Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1365/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: RUI BARREIROS
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
PESSOAS OBRIGADAS A ALIMENTOS
FGADM
Data do Acordão: 10/04/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE FIGUEIRA DE CASTELO RODRIGO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 2009º DO CC
Sumário: O Mº Pº, em representação de menor credor de alimentos, tem interesse em agir quando demanda os devedores subsidiários previstos no artigo 2009º do CC, apesar do FGADM estar a pagar ao menor quantia que lhe foi fixada por incumprimento do devedor inicial.
Decisão Texto Integral: ...
I – Relatório.
1.1. Recorrente: Ministério Público, em representação do menor J ... .
1.2. Recorridos: F e M, casados, ... .
2. Objecto do recurso.
O presente recurso de agravo tem por objecto o despacho que indeferiu liminarmente a petição inicial do recorrente, por se ter considerado que ele não tem interesse em intentar a acção, por o seu representado estar já a receber alimentos por parte do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores (FGADM).
II – Fundamentação.
5. Os factos.
J nasceu no dia 23 de Outubro de 1996 e é filho de E e de I.
Em Maio de 2000, o MºPº, em representação do menor, intentou acção de regulação do exercício do poder paternal, em resultado da qual ficou o menor confiado a sua mãe e o pai com direito de visitas e com o dever de prestar alimentos no montante de 15.000$00 por mês, com actualização anual de acordo com o índice de aumentos para a função pública, quantia acrescida de 5.000$00 mensais para pagamento das mensalidades em atraso.
Por falta de cumprimento dos alimentos, em Maio de 2002, o Mº Pº pediu o respectivo cumprimento e alteração.
Por decisão de 17 de Dezembro de 2004, foi fixada a prestação de uma UC a pagar pelo FGADM, após verificação da situação de incumprimento e de falta de capacidade do obrigado para cumprir, não lhe sendo conhecida fonte de rendimento.
Em 11 de Fevereiro de 2005, o MºPº, em representação do menor, intentou acção de alimentos nos termos do disposto no artigo 186º, nº 1, da OTM, demandando F e M, na qualidade de avós do menor.
Em 18 de Fevereiro de 2005, foi proferida a decisão sob recurso, a qual considerou faltar um pressuposto inominado que «consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção, pelo que não se mostrando justificado, no momento, o lançar mão do processo, tanto mais que, como se disse, o direito material não se mostra em crise, importará indeferir liminarmente a petição inicial».
6. O Direito.
O Mº Pº intentou esta acção de alimentos, dirigindo-se aos avós do menor alimentando. Fê-lo apesar do menor estar a receber uma prestação do FGADM, em virtude de incumprimento por parte do progenitor, que se considerou não ter possibilidades económicas para cumprir com a sua obrigação.
O pedido foi liminarmente indeferida por falta do pressuposto inominado do interesse em agir.
Além de outros, a decisão fundamentou-se no seguinte:
«Será que, pergunta-se, nesta situação, em que existe um devedor judicialmente reconhecido e tendo sido fixada uma prestação a cargo do referido Fundo, em substituição desse devedor, pode ser desencadeada uma (nova) acção contra as pessoas referidas no artigo 2009º do Código Civil – que não o já condenado.
Pensamos que não.
Na verdade, dispõe o artigo 2009º/1 do Código Civil que estão obrigados à prestação de alimentos, pela ordem indicada, os ascendentes, no caso da alínea c), sendo que, nos termos do nº 3, se algum dos vinculados não puder prestar os alimentos ou não puder saldar integralmente a sua responsabilidade, o encargo recai sobre os onerados subsequentes.
Ora, no caso dos menores, o legislador sentiu necessidade de fazer funcionar a substituição do devedor, não pelo vinculado seguinte, nos termos do disposto no artigo 2009º/3 do Código Civil, mas pelo Fundo, tendo, inclusive, nos termos do disposto no artigo 6º/3 da Lei 75/98, de 19/11, referido que o Fundo fica sub-rogado nos direitos dos menores a quem sejam atribuídas prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso (...), podendo, assim, o Fundo instaurar as acções que julgue necessárias para se ressarcir dos montantes que eventualmente tenha pago, ao abrigo da sub-rogação legal (cfr. artigo 592º do Código Civil).
Na verdade, o interesse do menor fica desde logo assegurado pela intervenção do Fundo, não se vislumbrando interesse em o Ministério Público intentar a presente acção, sendo que ao fazê-lo está directamente (para o que não tem legitimidade) a acautelar os interesses do Fundo - ... - e não do menor, pois os deste, como se dirá, já se mostram assegurados.
...
Daqui resulta, salvo melhor opinião, que a situação do menor, no que respeita a alimentos, já se mostra resolvida, não havendo qualquer necessidade, nos termos em que a acção é configurada, a novo processo.
...
Por outro lado, caso assim não se entendesse, poderia levantar-se a questão de a intervenção do Fundo ficar dependente do requerente, perante o incumprimento do devedor, ter, previamente, de percorrer os restantes obrigados referidos no artigo 2009º do Código Civil.
...
Se assim é, no caso dos menores, pela intervenção do Fundo, fica resolvida a questão de alimentos (sem prejuízo das alterações que se imponham).
Ora, não estando em causa o direito à acção – artigo 2º/2 do Código de Processo Civil – o certo é que, in casu, não se mostra necessário o seu uso, pelo que o Ministério Público não tem interesse em agir (na defesa dos direitos do menor)».
6.1. Entendemos que o recorrente tem razão, não podendo manter-se a posição recorrida.
Sendo problemática a classificação do interesse em agir ou, talvez melhor, da necessidade de tutela jurídica, como pressuposto processual inominado ou mesmo integrado na legitimidade ou, então, como condição da acção, por um lado, e a sua exigência no nosso direito processual enquanto pressuposto processual, por outro lado, a verdade é que são questões que não interferem relevantemente na questão a decidir, pelo que é mais útil aceitarmos a abordagem da sentença recorrida.
Mas, o que acontece é que entendemos que foi violado o direito do menor, pelo que se torna necessário proporcionar-lhe a sua integração e daqui deriva o interesse em agir, sendo que o pedido é para tal adequado. Foi violado por não ter sido cumprido pelo devedor originário, já condenado, pelo que se torna necessário recorrer aos devedores subsidiários, uma vez que o pagamento por parte do FGADM nem integra nem se destina a integrar o direito do menor e tem natureza diferente do cumprimento da obrigação devida pelos seus familiares.
6.2. A criação do FGADM [1] não derivou de necessidade de substituir os devedores subsidiários de alimentos a menores por outra entidade, neste caso o Estado. Nem o legislador o disse, nem há nenhuma razão válida para o pensar.
6.2.1. O legislador não o disse, mas surpreenderia muito que, introduzindo um regime especial de tamanha importância - tanta que foi precedido de algumas tentativas adiadas [2] -, nada dissesse relativamente a uma matéria regulada no Código Civil, em somente meia dúzia de artigos. É certo que os práticos de direito não beneficiam de uma produção legislativa de grande qualidade, mas terá de merecer reflexão essa eventual revogação meramente tácita de um artigo daquela referida meia dúzia.
No Parecer da Comissão para a Paridade, Igualdade de Oportunidades e Família sobre o projecto de lei nº 340/VII, do Partido Comunista Português, que deu lugar ao regime em análise, no “enquadramento legal”, refere-se o artigo 2009ª do Código Civil: «Por seu lado, estabelece o artigo 2009º que estão vinculados à prestação de alimentos o cônjuge ou o ex-cônjuge, os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os tios, durante a menoridades do alimentado, e o padrasto e a madrasta relativamente a enteados menores que estejam, ou estivessem no momento da morte do cônjuge, a cargo deste» [3].
6.2.2. E nenhuma razão há para deduzir do facto do Estado ter criado um regime de garantia de alimentos, que ele tenha querido aliviar os familiares devedores subsidiários, substituindo-se-lhes. E de forma definitiva, pois, enquanto o principal devedor não tivesse meios, o FGADM pagaria; quando aquele tivesse meios, os outros ..., íamos a dizer que permaneciam como subsidiários, mas não, porque a decisão o que diz é que o artigo 2009º do Código Civil foi revogado relativamente aos alimentos dos menores.
6.2.3. E, agora, tínhamos de voltar atrás, para acrescentar à surpresa de uma eventual revogação tácita, o de ela ainda ser parcial.
6.3. O fim querido pelo legislador foi o de proporcionar uma protecção efectiva das crianças, proporcionar o «acesso a condições de subsistência mínimas», que terão de ser suportadas ou pela sociedade ou pelo próprio Estado [4], em determinadas circunstâncias, e não o de substituir os primitivos devedores por outra entidade.
Defendemos que o regime nascido com a criação do FGADM tem um carácter exclusivamente garantístico [5], pelo que ele actua paralelamente com o direito que já vigorava antes e continua a vigorar: «estas situações justificam que o Estado crie mecanismos que assegurem, na falta de cumprimento daquela obrigação, a satisfação do direito a alimentos» [6]. Verificando-se a impossibilidade de cumprimento por parte de um dos obrigados, desencadeiam-se dois mecanismos: um cautelar, que é o de garantir, por razões óbvias, o sustento do alimentando; outro ordinário, mais lento e falível, que é de recorrer aos devedores subsidiários [7]. O primeiro tem a natureza de uma prestação social [8], o segundo de uma obrigação.
É assim que entendemos a afirmação constante do Acórdão do STJ, de 27 de Janeiro de 2004: «não há paridade entre o dever paternal e o dever do Estado, quanto a alimentos. Embora o Fundo de Garantia dos Alimentos devidos a Menores fique sub-rogado, nos termos previstos no artº. 6, nº. 3, da Lei 75/98, de 19-11 e no artº. 5, nº. 1, do dec-lei 164/99, de 3 de Maio, em todos os direitos dos menores a quem sejam atribuídas prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso, a verdade é que a entidade sub-rogada, quando procede ao pagamento de prestação de alimentos, em conformidade com as disposições legais citadas, fá-lo no cumprimento de uma obrigação própria e não alheia» [9]. E pensamos que também se enquadra nesta perspectiva a decisão já tomada por Acórdãos desta Relação de não quantificar a prestação do FGADM pela fixada ao parente devedor.
Aliás, a sentença reconhece que o Estado fica sub-rogado nos direitos dos menores com vista ao reembolso [10]. Afastar os devedores subsidiários, seria limitar a possibilidade e probabilidade de conseguir o reembolso, que, entretanto, é objectivo do regime legal. Haveria uma contradição.
E do ponto de vista político-legislativo, nenhuma justificação haveria para fazer recair sobre a comunidade em geral a obrigação dos familiares do alimentando, de uma forma que fosse para além da cautelar [11]. Antes da sua criação, o FGADM sempre foi reclamado, invocando-se a experiência de outros Países para responder de forma rápida ao carecido de alimentos, não para substituir os devedores já previstos na lei. Pensava-se – e é fundamento do regime – que era mais fácil à Administração ir atrás do devedor ou dos devedores do que o particular, ainda por cima carenciado; mais fácil e justo, uma vez que se está perante um direito fundamental.
6.4. O interesse do Mº Pº, ao intentar acção relativamente a familiares subsidiários, não é o de proteger o FGADM [12]. Como vimos, ele protege-se a si próprio, através do regime estabelecido; obviamente, que nessa auto-protecção o FGADM conta com o número de devedores previstos na lei e o chamamento dos devedores subsidiários por quem tem legitimidade para o fazer só dá coerência e consistência ao sistema [13].
O interesse do MºPº é o de melhor proteger o menor, quer do ponto de vista jurídico, quer do ponto de vista sócio-psicológico.
Do ponto de vista jurídico, pelo que já dissemos atrás, podendo agora concluir-se que todos os familiares previstos no artigo 2.009º do CC são «pessoas obrigadas a alimentos».
Do ponto de vista sócio-psicológico, porque a prestação e o recebimento de alimentos não têm carácter material ou, pelo menos, exclusivamente material. Basta ver o «conteúdo do poder paternal: compete aos pais, ..., velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, ...» [14]. Segurança e saúde e sustento e educação e representação são aspectos, juridicamente consagrados, de uma realidade sócio-psicológica que abrange, ainda - agora, com cariz mais material, embora instrumental - a administração dos bens do menor [15]. Por isso, a decisão a proferir na regulação do exercício do poder paternal há-se ter como objecto, necessariamente, a guarda do menor, o regime de contactos com o outro progenitor e os alimentos.
Dar e receber alimentos faz parte do conteúdo da relação familiar, pelo que não é indiferente que quem presta seja o familiar devedor ou o Estado; o que deveria prestar e não o faz terá maior ou menor proximidade com o menor seu familiar consoante esteja mais ou menos ob+ligado, em concreto, em exercício; e, nesta perspectiva, obrigar o devedor a cumprir, também é protegê-lo contra si próprio, na medida em que, quando e se quiser viver a parentalidade, não vá encontrar um jovem ou um adulto que não o conheça ou que tenha sobrevivido sem ele ou que tenha sobrevivido mal.
Dar e receber alimentos, faz parte do conteúdo da relação familiar, pelo que não é indiferente que quem recebe o seja de familiar, porque, mesmo que forçado, a prestação ainda é uma forma de ligação, a qual, apesar de tudo, pode diminuir o sentimento de abandono, de rejeição por parte do menor. E o facto da lei processual estabelecer um processo próprio para os obrigados que não têm o exercício do poder paternal – artigos 186º e seguintes da O.T.M. – em nada prejudica a afirmação de que não é indiferente que quem recebe o seja de familiar.
Então, há utilidade e necessidade que o MºPº, em representação do menor, procure obter os alimentos de familiar, sem prejuízo de, entretanto, eles serem garantidos através do Estado, agora, sim, por questões essencialmente materiais, pela sobrevivência imediata de alguém que está carecido; mas, vê-se bem, com uma intervenção de natureza meramente cautelar e não globalmente substitutiva.
É assim que se articula o regime civil dos alimentos a menores - artigos 1.878º, 1.879º, 1.882º e 2.003º a 2.013º do CC - com o regime administrativo instituído com o FGADM.
Aliás, faltaria ao Estado legitimidade para, perante o menor, se apresentar como o prestador de alimentos, de forma mais ou menos definitiva, mas, sobretudo, afastando dele ou facilitando um afastamento dos seus parentes que poderiam, e, às tantas, quereriam – bem vistas as coisas, ou seja, chamados à razão –, dar o que deviam ao menor.
6.5. Nesta perspectiva, já não é importante analisar se o MºPº, com esta acção, pode ou não ganhar alguma coisa para o menor, quantitativamente, em relação ao que este aufere do Estado.
...
III – Decisão.
Nestes termos, concede-se provimento ao agravo, devendo substituir-se o despacho recorrido por outro que convoque os requeridos para uma tentativa de conciliação, nos termos do disposto no artigo 187º, nº 1, da O.T.M..
Sem custas.

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[1] Lei nº 75/98, de 19 de Novembro e Decreto-Lei nº 164/99, de 13 de Maio.
[2] Projectos de lei nºs. 160/V e 437/IV.
[3] Diário da Assembleia da República, VII Legislatura, 2ª sessão legislativa (1996-1997), II série-A, nº 43, de 15 de Maio de 1997, pág. 790.
[4] Preâmbulo do DL, último período do 1º §.
[5] «..., este direito (o do art. 69º da C.R.) impõe ao Estado os deveres de assegurar a garantia da dignidade da criança como pessoas em formação a quem deve ser concedida a necessária protecção» (2º período do 1º 4 do Preâmbulo do D.L.).
[6] 5º § do Preâmbulo do D.L.; sublinhámos; reconhecemos que a expressão final - a satisfação do direito a alimentos - parece ir ao encontro da posição da sentença recorrida, mas trata-se de uma expressão infeliz, porque a prestação social tem um máximo legalmente fixado, pelo que não é seguro, pelo menos nalgumas situações, dizer-se que o direito a alimentos fica satisfeito.
[7] por isso não concordamos com a seguinte passagem do despacho recorrido: « Por outro lado, caso assim não se entendesse, poderia levantar-se a questão de a intervenção do Fundo ficar dependente do requerente, perante o incumprimento do devedor, ter, previamente, de percorrer os restantes obrigados referidos no artigo 2009º do Código Civil» (5º §, de fls. 44).
[8] cf. o § 6º do Preâmbulo do D.L.: «ao regular a Lei nº 75/98, de 19 de Novembro, que consagrou a garantia de alimentos devidos a menores, cria-se uma nova prestação social, ...».
[9] pontos I e II do respectivo sumário; procº 03A3648, relatado pelo Conselheiro Azevedo Ramos; www.dgsi.pt.
[10] o que nos interessa com esta referência à sub-rogação é o direito do Fundo a ser reembolsado, por quem devia ter pago, do que pagou, pois, a propósito da sub-rogação, tivemos ocasião de escrever o seguinte no Acórdão proferido no recurso de agravo nº 1482/04: «Os institutos tradicionais do direito civil nem sempre se adequam ao direito de família». Na mesma linha, o já referido Acórdão do STJ, de 27 de Janeiro de 2004 disse que se tratava de “uma obrigação própria e não alheia”.
[11] o que é compatível com a afirmação do Dr. J. R. Remédio Marques (Algumas Notas Sobre Alimentos, Coimbra Editora, 2000, pág. 247) de «a Administração tenderá, no futuro, a substituir-se com maior frequência aos tribunais na tarefa de prover ao sustento e manutenção dos menores», o que tem a ver com uma abordagem sócio-económica e estatística.
[12] não obstante também não se ver por que não o poderia e deveria fazer.
[13] «através da articulação de diversas entidades intervenientes, em colaboração com o tribunal, visa-se assegurar a plena eficácia e rapidez do procedimento ora criado, ...» (8º § do Preâmbulo do D.L.).
[14] artigo 1878º do CC.
[15] artigo 1878º do CC.