Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
405/05.0TBSAT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARTINS DE SOUSA
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
APURAMENTO DA PROCRIAÇÃO
PRESUNÇÃO
Data do Acordão: 09/29/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SÁTÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1801º E 1871º C. CIV..
Sumário: I – Constituindo, no essencial, um facto biológico, a paternidade numa acção de investigação traduz-se no próprio vínculo biológico da progenitura, que é a sua causa de pedir.

II – Hoje, a procriação, nessas acções, apura-se directamente – através de meios científicos (artº 1801º do CC) – e indirectamente – através das presunções legais referidas no artº 1871º CC ou através das presunções naturais/judiciais (artºs 349º e 351º CC), capazes de permitirem concluir pela exclusividade das relações sexuais no período legal da concepção.

III – Uma das presunções legais consiste em o filho haver sido tratado e reputado pelo pretenso pai e reputado ainda como seu filho pelo público – o que se apelida de “posse de estado”.

IV – A reputação e tratamento como filho por parte do pretenso pai, para efeitos de posse de estado, tem que ser apreciada no seu conjunto numa perspectiva global e não separadamente.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


I - A... instaurou, em 8.11.2005, no Tribunal Judicial de Sátão acção declarativa, sob a forma ordinária de processo, contra B..., pedindo que este seja condenado a reconhecer o A. Como filho do falecido C.... Alegou para o efeito que, constando do Registo apenas o nome de sua mãe, ele é, também, filho do referido C... já falecido e irmão do Réu, em virtude de relações sexuais que manteve com aquela no período legal de concepção e por via das quais sobreveio a sua gravidez, no termo da qual veio a nascer. Alegou ainda presunção legal de tal paternidade decorrente de posse de estado que traduziu facticamente.
Citado, o Réu veio contestar e, após excepcionar com a caducidade do direito de acção, impugnou de forma simples e motivada quer as alegadas relações sexuais procriadoras quer a matéria relativa à posse de estado.
Replicou o Autor, impugnando a matéria de excepção e concluindo como na petição inicial.
Corridos os normais trâmites da causa, teve lugar na fase de instrução, perícia de investigação de paternidade a cargo do IML que para o efeito recolheu as amostras necessárias de sangue e saliva do A., tendo sido recolhidas as do R. em laboratório do Rio de Janeiro e, posteriormente, remetidas para o mesmo Instituto.
No relatório da mencionada perícia lavraram-se as conclusões seguintes:
A análise dos diversos marcadores genéticos de:
B... (irmão do pretenso pai C...)
A...
1ª Permite excluir, através da análise dos polimorfismos do cromossoma Y, B... como tio paterno de A..., uma vez que não há identidade entre os haplótipos identificados. Assim, qualquer familiar de linha masculina de B... (nomeadamente um seu irmão) é excluído da paternidade de A....
2ª A análise estatística (programa famílias 1.2), tendo em conta a estrutura genotípica do irmão do pretenso pai e a distribuição dos diferentes STRs autossómicos analisados na população, conduziu a um índice de paternidade IP=3 e a uma probabilidade de paternidade W=76,35% que corresponde a “paternidade duvidosa”, segundo a escala de Hummel…”
Após ocorreu o julgamento e foi proferida sentença que julgou improcedente a acção.
Dela interpôs o A. recurso de apelação de cujas alegações se aproveita de útil o seguinte:
- “o tribunal com a prova produzida não deveria concluir pela improcedência da acção com o fundamento da paternidade excluída, até porque desconhece se o Réu foi sujeito a alguma transfusão de sangue que pudesse alterar a sua estrutura genética”;
- “deveria o tribunal complementar todos os meios de prova incluindo a testemunhal, no que se refere à posse de estado”;
- “o falecido e o A tratavam-se mutuamente de pai e filho, visitando-se, orgulhando-se entre si”;
- “pelo que com a prova produzida e depois da sua complementaridade, deveria o tribunal a quo considerar procedente por provada a presente acção…
Concluindo o Recorrente pelo provimento do recurso e “ser revogada a decisão recorrida e de ser reconhecida ao A. a filiação do falecido…
Contra-alegou o Recorrido para, em resumo, concluir pela confirmação da sentença.
Colhidos os vistos legais cumpre, ora, apreciar e decidir.

II – São os seguintes os factos provados:
a) O Autor nasceu em 20.06.1960 na freguesia de Castelo de Penalva, concelho de Penalva do Castelo.
b) O A. é filho de F..., natural da mesma freguesia, estando omissa a sua paternidade no registo.
c) C... faleceu no dia 6.09.2005 deixando vivo o seu irmão, B..., ora Réu.
d) C... é filho de D... e de E..., natural da freguesia de Mioma, concelho de Sátão, falecido no estado de viúvo de G..., residindo à data do óbito na aldeia de Souto de Vide, Castelo de Penalva, Penalva do Castelo.
e) F... teve um outro filho de nome H... cuja paternidade é também omissa.
f) O falecido C..., por vezes, referia-se ao Autor como filho e este referia-se àquele como seu pai.
g) O Autor e o falecido eram considerados no meio em que viviam como pai e filho.

III – O reconhecimento da paternidade em acção de investigação é, como se sabe, uma das formas de estabelecimento da paternidade prevista na lei.
Constituindo no essencial um facto biológico, a paternidade na aludida acção traduz-se no próprio vínculo biológico da progenitura que é a sua causa de pedir. E, hoje, a procriação, em tais acções, apura-se, directamente, através de meios científicos (artº1801º do CC), e, indirectamente, através das presunções legais referidas no artº1871º deste Código ou através das presunções naturais/judiciais (artº349º e 351º do mesmo diploma) capazes de permitirem concluir pela exclusividade das relações sexuais no período legal da concepção – cfr Lopes do Rego, Rev. MºPº, nº58, 165.
Escolheu o A., nesta acção, o caminho das presunções legais citadas, alegando a posse de estado e as relações sexuais mantidas no período legal da concepção, pela sua mãe e pelo pretenso pai (citado artº1871, 1, als a) e e),– o falecido C....
Foi com a entrada em vigor do DL 496/77 de 25.XI que se pôs termo à distinção entre acções oficiosas e não oficiosas, abandonados que foram os pressupostos de admissibilidade da acção da investigação de paternidade que, a partir de então, integraram as presunções legais já referidas, assim se invertendo o ónus da prova, dispensando o A de (directa ou indirectamente) provar o vínculo biológico e obrigando o Réu a elidi-las de forma a suscitar dúvidas sérias sobre a alegada paternidade (nº2 do citado artº1871º).
A - Uma dessas presunções consiste em o filho haver sido tratado e reputado pelo pretenso pai e reputado ainda como filho pelo público o que se apelida de posse de estado e que, na tradição jurídica, compreendia o nomen – atribuição a alguém de um nome correspondente a um estado (filho, pai), o tractatus – o tratamento desse alguém em conformidade com tal estado e a fama- reconhecimento pelo público como detentor desse mesmo estado.
Como se escreveu no Ac do STJ de 19.01.1984, BMJ, 333º, 441 ( e mais esmiuçada e impressivamente se pode ler em Filhos Ilegítimos de Baptista Lopes, p 111 e ss) a reputação e tratamento como filho por parte do pretenso pai para efeitos de posse de estado tem que ser apreciada no seu conjunto numa perspectiva global e não separadamente; o tratamento como filho é a exteriorização material da reputação, sendo esta um estado de consciência puramente interno que, embora exista no mundo psíquico do pai jamais se poderia tornar conhecido se não se tomassem em consideração os actos de tratamento.
Nos presentes autos, o A., na sua petição, além de alegar pura matéria conclusiva por encerrar o conceito de direito expresso na lei (artº 8º e 9º: “…o falecido…tratava-o como filho…), limitou-se a alegar de forma minimalista matéria que quando muito preencherá o conceito de reputação, vislumbrando-se alguma alusão ao tractatus nas vagas referências a visitas e à “oferta de algum dinheiro…por parte do falecido C..., insuficiente para caracterizar “actos claros, positivos, públicos e de certa continuidade, de assistência económica e moral, material e afectiva, em cuidados, amparo, protecção, carinho e ternura que os pais costumam, normalmente, dispensar aos filhos…cfr Baptista Lopes, ob cit, p.112.
Ora, se, além disso, tão pouco logrou provar qualquer indício conducente ao aludido tractatus, a acção, forçosamente, teria que improceder, desde logo porque reputação e tratamento devem ser consideradas no seu conjunto, numa perspectiva global, como acima se sustentou.
Formula ele pretensão no sentido de se “complementar todos os meios de prova, incluindo a testemunhal, no que se refere à posse de estado”.
Em primeiro lugar tem de dizer-se que, no quadro dos poderes desta Relação definidos no artº712º do CPC, se o Recorrente (mesmo confusamente) pretendia qualquer tipo de reapreciação das provas só tinha de fazê-lo em conformidade com o disposto no artº690ºA do mesmo diploma, uma vez que no caso ocorreu a gravação dos depoimentos prestados na audiência de julgamento. Não o fez, todavia.
Depois, se o complemento por ele pretendido havia de implicar uma qualquer ampliação da prova, sempre esta estaria dependente da alegação prévia de factos nos respectivos articulados e da respectiva especificação. E não se vislumbra que outros factos alegados pelo A poderiam ir ao questionário.
Por fim, e mesmo aceitando o acerto da pretensão do Recorrente, não se vê como o alegado “complemento da prova”poderia colmatar a fragilidade, senão verdadeira omissão na petição inicial de factualidade atinente ao tratamento que ao lado da reputação integra a posse de estado e que se afigura como vício original de uma causa condenada ao fracasso.
B – Resta uma breve alusão à perícia de investigação da paternidade efectuada pelo IML cujas conclusões acima se transcreveram e de que o Recorrente faz leitura pouco inteligível é certo (veja-se a sua alusão a hipotética transfusão de sangue…), mas com a qual parece pretender infirmar o argumento usado na sentença para, com fundamento no seu resultado, inutilizar o préstimo jurídico da presunção de posse de estado, mesmo que esta se encontrasse provada.
Na verdade, nessa peça escreveu o Senhor Juiz: “…ainda que existisse prova dessa posse de estado, o que não ocorre, sempre o relatório pericial obtido conclui que a análise dos diversos marcadores genéticos permite excluir o falecido C... da paternidade do autor. Vale isto dizer que, independentemente dessa posse de estado, sempre haveria uma “dúvida séria” quanto à paternidade assim presumida, o que equivale a excluí-la.”
O resultado do dito exame não oferece qualquer tipo de dúvida nem, salvo o devido respeito, pode conduzir a qualquer tipo de dúvida: nele se exclui pura e simplesmente a paternidade de familiar da linha masculina do Réu (nomeadamente um seu irmão).
Esta conclusão foi obtida através da análise dos polimorfismos do cromossoma Y.
Seguindo a exposição publicada na Revista do Mº Pº, nº80. p. 141 e 142, da autoria da Senhora Professora M. Fátima Pinheiro, Directora do Serviço de Genética e Biologia Forense do IML(Porto),
“…o cromossoma Y é um cromossoma estruturalmente pequeno, com parte do braço longo (q) formado por heterocromatina.
A maior parte do cromossoma Y não recombina…Os loci STR do cromossoma Y estão apenas presentes em indivíduos do sexo masculino como alelos únicos, por estarem localizados na parte não recombinante do cromossoma. Os STRs do cromossoma Y segregam como haplótipos intimamente ligados na linhagem masculina de uma família. Por isso a transmissão faz-se de pai para filho, como um único bloco (herança aplóide, uniparental paterna) … Em relação ao cromossoma Y todos os indivíduos masculinos da mesma família, como irmãos, filhos, pai, tios paternos, terão haplótipos idênticos”.
No exame em apreço o que se verificou foi a falta de identidade entre os haplótipos presentes nas amostras de DNA de Réu e Autor o que conduz a verdadeira incompatibilidade genética entre ambos. Daí a conclusão pela exclusão da paternidade com a extensão reportada no relatório à linhagem familiar masculina referida no relatório pericial na qual se inclui o pretenso progenitor do mesmo Autor.
Já quanto ao predicado apontado na segunda conclusão da perícia em questão deve levar-se em conta que se trata de análise estatística conducente a um juízo de probabilidade que leva em conta a estrutura genotípica do pretenso pai e a variabilidade dos mesmos marcadores genéticos no grupo populacional em que este se situa.
É abusivo, por isso, tentar iludir ou confundir, como pretende o Recorrente, aquela primeira conclusão, com o predicado da segunda, patente que está a diversidade quanto ao objecto, validade e finalidade científica inerente ao exame efectuado (cromossoma Y) e à análise estatística em que assenta o referenciado predicado.

IV – Em face de todo o exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sintética e bem elaborada sentença recorrida.
Custas pelo Apelante.
Coimbra,