Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1148/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: BURLA
MODIFICAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PEDIDO CÍVEL
ELEMENTOS TÍPICOS (ENGANO)
Data do Acordão: 06/07/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE VILA NOVA DE FOZ CÔA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIME
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 217º, N.º 1 E 218º, N.º 1, DO C. PENAL E ARTIGOS 431º, AL. A) E 377º, DO C. P. PENAL
Sumário: I- O tribunal de recurso pode modificar a decisão da matéria de facto se do processo constarem todos os elementos que alavanquem esse julgamento.
II- Quando o tribunal concluir pela inexistência de ilícito penal ou se pronuncie pela inverificação dos pressupostos da responsabilidade civil aquiliana e o lesado haja formulado pedido de indemnização para ressarcimento dos danos que, no seu entender, a conduta que qualificou como crime, lhe causou, deve o tribunal ainda assim, depois de absolver pela prática do ilícito de natureza penal, absolver do pedido cível que o lesado lhe havia formulado.

III- São elementos típicos do crime de burla: 1º- Um engano precedente ou concorrente; 2º- Um engano bastante, quer dizer suficiente e proporcional para a consumação dos fins propostos; 3º- Criação ou produção de um erro essencial no sujeito passivo; 4º- Ânimo de lucro; 5º- Nexo causal ou relação de causalidade entre o engano provocado e o prejuízo experimentado.

Decisão Texto Integral:
Recorrente: A....
Recorrido: Ministério Público; e B....
I. – Relatório.
Acordam, na secção Criminal, do Tribunal da relação de Coimbra:
Em dissídio com o julgado no processo supra referida, que decidiu absolver o arguido B..., da prática, em autoria material, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelo artigo 218 n.º 1 e 217º n.º 1 do Código Penal, por reporte ao artigo 202º a) do mesmo diploma, bem assim do pedido cível, no valor de € 18.839.12 (a titulo de danos patrimoniais) e € 500.00 (a titulo de danos não patrimoniais), acrescido dos juros desde a notificação, que contra ele o assistente/demandante A... havia deduzido, recorre o assistente/demandante, despedindo a motivação que gizou, pela forma seguinte:
- Do conjunto dos factos provados elencados de “I” a “XX”, necessariamente interpretados á luz das regras da experiência e do senso comum, resulta factualidade mais que suficiente para conduzir á procedência da acusação do Mº Pº e à condenação do arguido pela prática do crime de burla qualificada, p. e p. pelo art. 218ºnº1 e 217º,nº 1 do C.Penal, por reporte ao art. al. a) do mesmo diploma;
- Existe manifesta inexactidão e nulidade relativamente aos dados como provados no ponto “X” do elenco dos factos provados, pois que reportando-se os mesmos à carta de Fevereiro de 2002, carta essa que foi junta aos autos pelo assistente, como doc. nº4, com a participação para efeitos de procedimento criminal apresentada em 10 de Setembro de 2003, nesta, contrariamente ao que ficou consignado pelo tribunal, não se refere que para legalizar o Opel Tigra em nome do assistente, este teria que proceder à extinção da reserva de propriedade, decorrendo, aliás, da também carta junta sob o doc. nº 5 com a mesma participação, aqui reproduzida, datada de 8 d e Março de 2002, e remetida ao participante A... pela sociedade ”C...”, que tal obrigação incumbia à própria sociedade ”C...”, pelo que estando tais factos dados como provados manifestamente em contrário do que consta dos documentos a que se reportam, se verifica uma nulidade que carece de ser reparada pela Relação;
- Verificando-se inclusive a existência de contradição entre os mesmos factos consignados em “XI” do mesmo elenco dos factos provados, quando neste último se refere que o arguido reiterou ao assistente que “ficasse tranquilo pois a extinção da reserva de propriedade já havia sido pedida pela “C....” à Conservatória do Registo Automóvel …”, pois que o tribunal ao dar como provado que a extinção da reserva de propriedade já tinha sido pedida pela sociedade comercial da qual o arguido é sócio-gerente, à Conservatória do Registo Automóvel, não podia ao mesmo tempo dar como provado em “X” que teria que ser o assistente a proceder à extinção da reserva de propriedade e para mais, por reporte ao teor de um documento que, tal como do mesmo, inevitavelmente, decorre, não refere isso;
- Esta contradição, incidindo sobre factos e factualidade que tem grande influência na decisão da causa, teve relevância na convicção do tribunal e, consequentemente, na decisão recorrida, tendo seguramente, sido em sentido favorável ao arguido quando deveria ter sido contra o mesmo arguido e à sociedade de que o mesmo era representante e gerente;
- O que os autos revelam documentalmente e que de resto decorre das próprias declarações do arguido que o tribunal e reproduziu, no essencial, para a fundamentação da formação da sua convicção, é que quem teria que proceder á extinção da reserva da propriedade era o próprio arguido, que referiu que não “pôde de imediato proceder ao pagamento de todas as mensalidades (da reserva) devido a problemas financeiros da sua empresa, que entretanto veio a falir, pelo que não pôde prontamente legalizar a situação do carro” … (sic), pelo que é absolutamente incontroverso e sem margem para quaisquer dúvidas que a nulidade dos factos dados como provados no ponto “X” do elenco dos mesmos factos o que torna a nosso ver a sentença Nula;
- Tendo, pois em conta que na redacção dos factos provados em “X”, deve constar sim, que teria o arguido B... ou a sociedade de que era sócio e gerente, “”C...”, que procederem à extinção da reserva de propriedade do automóvel, o restante elenco dos demais factos praticou no essencial os factos que lhe são imputados na acusação de burla qualificada de que vem acusado;
- O tribunal não analisou nem valorou correctamente toda a factualidade e circunstancialismo do caso concreto que os próprios autos revelam, não tendo aplicado na análise e julgamento da mesma factualidade, as regras ditadas pela experiência e senso comum, as quais, necessariamente, imporiam decisão bem diferente da recorrida;
- Só por incorrecta a apreciação dos factos, especiais e concretas circunstâncias em que os mesmos ocorreram, personalidade e forte experiência do arguido no ramo da transacção de veículos, ao longo de mais de 20 anos, isto a fazer fé nas suas próprias testemunhas abonatórias, se pode conceber que o tribunal tenha dado como não provados os factos referidos sob as als. B), C9 e D9, do elenco dos “factos Não Provados”, pois que seguramente qualquer homem médio ou julgador minimamente avisado não deixaria, no contexto dos factos provados, que dar também como provados, contrariamente ao que decidiu o tribunal, os factos elencados sob as als. B), C) e D);
- A convicção do tribunal não pode deixar de merecer de resto censura por este se ter, fundamentalmente, apoiado nas declarações do arguido, quando, como é sabido, as mesmas declarações sobre os factos constantes da acusação não foram prestadas sob juramento, por a tal o arguido, como é sabido, não estar obrigado, resultando da experiência adquirida pela prática forense, que o arguido, naturalmente, ao querer prestar declarações sobre os factos constantes da acusação, necessariamente, o faz, para sua defesa e não para confirmar ou confessar os factos da acusação conduzindo à sua condenação, sendo por isso muito surpreendente o registo do tribunal das declarações do próprio arguido;
- Como censura, também merece, nem que seja somente à luz das regras da experiência, que o tribunal tenha também formado a sua convicção no sentido da absolvição do arguido, valorando como relevante o depoimento das testemunhas meramente abonatórias que o mesmo arguido apresentou, tendo considerado como essencial para a formação da convicção a parte do depoimento em que estas referiram que o arguido para além de pessoa honesta e trabalhadora, que conhecem há mais de 20 anos, “sempre conduziu o seu negócio de forma irrepreensível”, apesar de ter conduzido a empresa, de que era sócio-gerente, à falência, e pasme-se, dando o tribunal ênfase e realce, tendo o cuidado de colocar em itálico e entre aspas, que o mesmo arguido “em cada cliente fazia um amigo”, fazendo lembrar ao assistente uma celebre canção de conteúdo libertário;
- Na sentença recorrida não foi ponderado e considerado que o comércio da compra e venda de automóveis usados, como, aliás, também noutras actividades se cometem abusos e práticas altamente censuráveis, vendendo-se muita das vezes “gato por lebre”, transaccionando-se veículos em situações de autêntica ilicitude e ilegalidade, sendo costume não se darem a conhecer aos potenciais compradores, como sucedeu no caso concreto com o assistente, e ora recorrente, das reais situações em que se encontram os veículos e as condições para a sua regularização, quer na parte mecânica, quer na parte meramente documental e de registo de propriedade,
- Não se compreende o assistente e ora recorrente como é que o tribunal aceitou e valorou o depoimento das próprias testemunhas abonatórias oferecidas pelo arguido, aceitando como essencial à formação da convicção o depoimento das mesmas de que o arguido era no fundo um conhecedor do ramo automóvel, sendo industrial experiente do ramo com mais de 20 anos, pelo menos tempo que declararam conhecê-lo, e o mesmo tribunal, tenha dado como não provado os factos especificados sob as als. A), B), C) e D), que mais não são do que circunstâncias de facto que, naturalmente, decorrem do conhecimento ditado pelas regras da experiência e do senso comum, e às quais não podia ser estranho um comerciante com mais de 20 anos de experiência, tempo mais que suficiente para bem saber de todas as circunstâncias, incidências e nuances ligadas ao comércio de compra e venda de automóveis usados, reservas de propriedade, legalização de documentos, prazos legais, etc.;
- Pela leitura da explanada fundamentação da convicção do tribunal, retira o assistente e ora recorrente a conclusão de que afinal de contas ele é que, ao ter incomodado o arguido e ter adquirido o Opel Tigra que se encontrava exposto no stand de Vila Nova de Foz Côa, da sociedade de que o arguido era sócio e gerente, e para mais não ter ficado seu amigo, é que tem que ser condenado, com a absolvição do mesmo arguido;
- Merecendo também censura e não podendo passar sem reparo a circunstância de o tribunal ter valorado a inspecção periódica que o assistente fez do Opel Tigra e o pagamento d o seguro respectivo, que por todos é sabido tratarem-se de obrigações anuais, mas que por si só nada têm que ver com a circulação ou não do veículo, já que este não pode circular precisamente por não se encontrar feita a transferência do registo de propriedade para o assistente, cabendo ao arguido contrariar através de factos concretos a alegada imobilização do veículo e não ao tribunal substituir-se ao mesmo arguido, valorando factos e extraindo conclusões de outros que nenhuma ligação em concreto têm entre si;
- Porque, no entender do recorrente, os autos revelam bem que em Abril de 2001, o arguido e a sociedade de que era sócio-gerente, ao terem feito crer ao mesmo assistente e recorrente que o veículo por ele adquirido, no stand de Vila Nova de Foz Côa, estava em perfeitas condições de circular, não existindo nenhum impedimento, nem prazo legal para a regularização dos respectivos documentos, nomeadamente transferência do registo de propriedade para o seu nome; que tal regularização era breve e escondendo-lhe e nunca lhe explicando da existência e consequências da reserva de propriedade, sem cuja extinção jamais poderia o veículo ser livremente transferido para seu nome, interessados que estavam tão somente em receberem do mesmo assistente e comprador o preço dos então 1.650 contos, sendo que, até presentemente, volvidos mais de 4 anos, a situação do veículo é a mesma, a acusação do MºPº deveria ter sido dada como procedente e o arguido condenado pela prática do crime de burla de que vinha acusado, tendo, assim também, consequentemente, que ser condenado no pedido de indemnização civil, sem prejuízo de se considerar que também neste particular do pedido civil, a sociedade “C...”, em nome de quem o mesmo arguido sempre agiu como seu sócio-gerente, deveria ter sido também demandada e, consequentemente, condenada;
- A sentença recorrida é, pois, nula por força do disposto na al. c) do nº1 do art.379º do CPP e al.a) do nº1 do art. 669º do CPC, ex vi do art. 4º do CPP, existindo erro na apreciação da prova e contradição insanável da fundamentação a que aludem as als. b) e c) do nº2 do art. 410º do CPP, tendo sido feita incorrecta interpretação dos art. 7º e 73º do CPP, implicando, por tudo isso, a repetição do julgamento.
Mereceu resposta a motivação do recorrente, da parte do distinto magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo, que despede da forma seguinte:
- O ponto “X” da matéria de facto dada como provada não reproduz fielmente o conteúdo do documento nº4;
- O acabado de referir não constitui, quanto a nós, uma situação de erro notório na apreciação da prova, mas de um lapso que poderá, se assim se entender, ser corrigido, nos termos do art. 380º do CPP;
- Desta forma restituir-se-á a integral coerência á matéria de facto dada como provada, ficando assim em consonância os artigos “X” e “XI”;
- Dado tratar-se de uma correcção da sentença, nos exactos termos do já referido art. 380º do CPP, que não importa modificação essencial na decisão proferida deverá a mesma manter-se;
- Tendo em conta o conjunto de factos dados como provados e não provados, a decisão proferida pelo tribunal a quo não podia ter sido outra que não a absolvição do arguido, por não se terem verificado os elementos, quer objectivos quer subjectivos, atinentes ao crime de burla,
- Todo o inconformismo revelado pelo recorrente ao longo da sua motivação, independentemente do mérito que possa ou não ter, deverá ser resolvido não em sede penal, mas civil, dado que quanto a nós o que está em causa é um eventual incumprimento dos termos em que foi celebrado o contrato de compra e venda entre o arguido e o assistente;
- Da mesma forma, e por último lugar, carece de reparo o processo de formação de convicção do tribunal feito de acordo com a prova produzida em audiência de julgamento apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.
Nesta instância, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto, afina pelo mesmo diapasão da resposta extractada supra.
As questões que vêm suscitadas nas conclusões do recurso, colimam-se nas sequentes enunciações:
a) – Vícios de erro notório de apreciação da prova e contradição insanável da fundamentação (de facto); Modificabilidade da decisão da matéria de facto – Reenvio;
b) – Nulidade da sentença, por omissão de pronúncia;
d) – Consumação do crime de burla – Erro ou engano antecedente, causante e bastante;
e) – Dolo penal – Dolo civil; – Engano por omissão; - Os chamados “negócios jurídicos ou contratos criminalizados”.
II. – Fundamentação.
II.A. – De Facto.
Para a decisão que proferiu, considerou o tribunal adquirida a seguinte facticidade:
I. - À data dos factos o arguido era sócio da sociedade por quotas denominada “C...”, que mantinha aberto ao público na Estrada Nacional n.º 102 em Vila Nova de Foz Côa, um “Stand” de venda, compra e troca de automóveis usados;
II.- No dia 04.04.2001, A... dirigiu-se ao referido “stand” da sociedade “C...”, em Vila Nova de Foz Côa, dizendo que queria adquirir para seu uso o automóvel de cor preta, marca “Opel”, modelo “Tigra”, e matrícula 78-79-FI que aí se encontrava exposto para venda;
III.- A... foi atendido pelo encarregado do “Stand” que o informou das características do automóvel e do seu preço de aquisição: Esc. 1.650.000$00 (€8.230,17), garantindo-lhe o seu bom funcionamento e desempenho.
IV.- Como A... mostrou interesse na compra do automóvel o encarregado de vendas comunicou tal facto ao gerente da sociedade “C...”, B..., ora arguido, que tratou de todas as formalidades e formalizou o contrato com o ofendido, tendo-se comprometido a proceder à regularização dos documentos da viatura e, mais tarde, entregar-lhe o livrete do veiculo e titulo do registo de propriedade do automóvel em seu nome;
V.- O assistente entregou ao arguido o preço acordado e este entregou-lhe um documento contendo uma declaração de venda “para fazer fé perante as autoridades de trânsito”, enquanto não era feita a legalização do livrete e título do registo de propriedade do automóvel;
VI.- O assistente confiando nas palavras do vendedor passou a conduzir o veículo na via pública, convencido que o mesmo estava em condições legais para poder circular, o que aconteceu até Janeiro de 2002.
VII.- Nessa altura, como não lhe tivessem ainda sido entregues do livrete e o título do registo de propriedade o assistente dirigiu-se ao referido “Stand” manifestando preocupação por ainda não ser portador dos referidos documentos;
VIII.- Nessas circunstâncias, o encarregado de venda contactou telefonicamente o arguido que disse que tudo estava a ser tratado e que o assunto estava em vias de ser solucionado pedindo-lhe que aguardasse um pouco mais;
IX.- Em meados de Fevereiro de 2002 o assistente recebeu pelo correio uma carta manuscrita oriunda do “Stand” de “C...” de Vila Nova de Foz Côa, sem data e sem assinatura legível, vindos a ela anexados o livrete do veículo e o título do registo de propriedade e a declaração de venda do “Opel Tigra” 78-79-FI, assinada no lugar do vendedor pela anterior proprietária do veículo Erina Manuela Lemos Ferreira;
X.- Em tal carta referia-se que, para legalizar o “Opel Tigra” em nome do assistente este teria que proceder à extinção da reserva de propriedade do automóvel, que existia a favor da sociedade financeira “Mello Crédito, S.A.”, preenchendo o modelo de extinção;
XI.- O arguido, depois de confrontado com o teor dos documentos recebidos pelo assistente reiterou-lhe que ficasse tranquilo pois a extinção da reserva de propriedade já havia sido pedida pela “C...” à Conservatória do Registo Automóvel e que tal facto não impedia a circulação do veículo;
XII.- Posteriormente, em Abril de 2003, o assistente foi abordado pela Brigada de Trânsito que lhe referiu que o “Opel Tigra” não podia circulara sem a respectiva regularização;
XIII.- O arguido fez crer ao ofendido que o “Opel Tigra” estava em condições de circular e ser legalizado em curto prazo e em seu nome;
XIV.- O demandante é oficial do exército;
XV.- O demandante adquiriu um veículo automóvel para seu próprio uso e que estivesse em condições de legalmente poder circular, ou seja, um “Volkswagen”, modelo “Bora TDI”, matrícula 30-14-NX à sociedade “Raminhas Car – Comércio de Automóveis, Lda.” com sede na Rua General Calos Ribeiro, 3-B- 2735-546 Cacém, despendendo o preço de €18.281,12, quantia esta que liquidou em dois cheques, respectivamente de €8.000,00 e €10,281,12 Euros, sacados sobre a C.G.D
XVI.- Tendo pago para efeitos do registo da transferência de propriedade na Conservatória do Registo Automóvel a quantia de €58,00;
XVII.- O arguido é tido, pelas pessoas ouvidas em Tribunal a tal respeito, como pessoa honesta e trabalhadora, tendo sempre conduzido os seus negócios de forma irrepreensível.
XVIII.- O arguido aufere, mensalmente, cerca de €700,00 e vive com a esposa, que é doméstica, tendo a seu cargo um filho menor e tem, como habilitações literárias o 4º ano de escolaridade;
XIX.- Tem como encargos mensais o pagamento de um empréstimo contraído para a aquisição de habitação, no montante de €500,00.
XX.- O arguido foi condenado, por decisão datada de 24.05.2000, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível 143º n.º 1 do Código Penal, na pena de 140 dias de multa à taxa diária de Esc. 500$00.
Não considerou, o tribunal, adquiridos para a decisão os seguintes factos:
- O arguido pretendeu obter para si, designadamente para a sociedade que representava e de que era único sócio um enriquecimento ou mais valia que sabia ilegítimos;
- Para a obtenção dessa mais valia que se cifra em: Esc. 1.650.000$00 (€8.230,17) o arguido, valendo-se da sua posição de vendedor, experiente, de automóveis usados, fez crer ao assistente que não era entendido no assunto, com total naturalidade e à vontade, que tal situação era normal e que os papéis que lhe entregou substituíam o livrete e o título do registo de propriedade, enganando-o e induzindo-o, assim, à compra do automóvel;
- Ao fazer crer que os papéis que lhe entregou permitiam a circulação do automóvel até à sua posterior legalização, o arguido enganou o ofendido e determinou-o à compra do veículo, o que lhe causou prejuízos traduzidos no montante do preço do “Opel Tigra” e mais despesas havidas com a falta de legalização;
- O arguido agiu sempre de forma voluntária livre e consciente, sabendo a sua conduta proibida por lei;
- O arguido era o único sócio da sociedade “C...”;
- O assistente imobilizou o veículo desde Abril de 2003, quando teve conhecimento que o mesmo não estava em condições legais de circular e confrontado com a contingência da sua apreensão, dele deixando de fazer qualquer uso, tratando-se, assim, de objecto sem qualquer utilidade para o demandante que, assim, se viu empobrecido do montante despendido com a sua aquisição;
- A viatura referida em XV. obedece às mesmas condições de preço e qualidade do “Opel Tigra”;
- O demandante sentiu-se humilhado com a conduta do demandado e, contra a sua vontade, deixou de gozar e sentir a satisfação que lhe proporcionava a condução do “Opel Tigra” e que constituía um dos prazeres que a vida lhe proporcionava e de que se viu involuntariamente privado.
O Tribunal formou a sua convicção em todo o acervo probatório produzido em audiência, analisado de uma forma crítica e com juízos de experiência comum, levou, designadamente, em linha de conta o depoimento do arguido B..., que, de forma sincera e, aparentemente, honesta, confirmou o teor dos parágrafos 1º a 6º., 9º e 10º da douta acusação deduzida pelo Ministério Público; mais, esclareceu o arguido que o assistente lhe ligou duas vezes a pedir que lhe fossem legalizados os documentos do automóvel “Opel Tigra”, tendo-lhe o arguido dito que tudo estava a ser tratado; o arguido narrou que só depois da celebração do negócio com o assistente é que se apercebeu que sobre o dito veículo impendia uma reserva de propriedade a favor da instituição financeira “Mello Crédito”, encontrando-se por liquidar várias mensalidades relativas a um contrato de leasing celebrado com a anterior proprietária; o arguido referiu que não pôde de imediato proceder ao pagamento de todas a mensalidades devido a problemas financeiros da sua empresa, que entretanto veio a falir, pelo que não pôde prontamente legalizar a situação do carro, mas precedeu ao pagamento das mensalidades à financeira; o arguido referiu que sempre disse ao assistente que o carro tinha uma reserva de propriedade. O arguido nega que tenha causado qualquer prejuízo ao arguido, tendo, antes, o prejuízo sido seu, pois teve que pagar ao “Mello Crédito” todas as mensalidades em dívida (as quais ascenderam as cerca de 900 “contos”, tendo tido, com o negócio, um prejuízo de cerca de 600 “contos”), tendo sido sua intenção, apenas, solucionar o problema do assistente como pôde, o que logrou, apenas em 2004, tendo de seguida enviado ao arguido um impresso, devidamente assinado, para este proceder ao cancelamento da reserva de propriedade que impendia sobre o “Tigra”.
Por seu turno o assistente A... esclareceu o tribunal acerca das condições de celebração do negócio a que se referem os autos, tendo, no essencial confirmado o teor da acusação, tendo esclarecido que, no acto da compra, lhe foram exibidos os documentos do carro que o “Stand” assumiu a incumbência de legalizar o carro e de o registar em seu nome, todavia, como tal demorasse mais do que o prazo normal dos 60 dias, deslocou-se ao “Stand” da empresa “C...” a pedir explicações, tendo o empregado contactado telefonicamente o arguido que lhe disse que tudo estava sendo tratado, era uma questão de dias, mais tarde, como tal não aconteceu, contactou o arguido que lhe disse que só faltava uma assinatura da anterior proprietária e que o assistente podia andar com o carro, que não teria qualquer problema. O assistente referiu que, aquando da celebração do negócio lhe foram exibidos os documentos do carro, não se recordando quando se apercebeu que existia uma reserva de propriedade, mas pensa que terá sido em Fevereiro de 2002, quando lhe foram enviados os documento aludidos no ponto IX. supra, referindo que só em 07.07.2004 é que lhe foram enviados os documentos necessários para proceder ao cancelamento da reserva de propriedade que impedia sobre o veículo, assinados pelo arguido, o que não logrou fazer uma vez que era necessário o reconhecimento notarial daquela assinatura. O assistente esclareceu que, pelo menos uma vez, falou pessoalmente com o arguido e este nunca lhe falou na mensalidade que tinha que pagar. O assistente referiu que o “Opel Tigra” tem estado parado desde 2003, embora tenha vindo a pagar o seguro, tendo o assistente adquirido uma nova viatura. O assistente depôs de forma consistente e objectiva.
O Tribunal teve em conta o depoimento das testemunhas:
José Carlos Fonseca Branco, tio do assistente, que acompanhou o sobrinho certa vez ao “Stand” do arguido para falar com este acerca dos motivos da demora na legalização do veiculo que este ali tinha adquirido, tendo o arguido assegurado ao assistente que tudo estava sendo tratado. A testemunha confirmou, no essencial a versão do assistente, e referiu que este teve que comprar outra viatura, na qual despendeu mais de 18.000,00 Euros, pois encontrava-se privado de veículo desde que fora mandado parar pela Brigada de Trânsito. A testemunha depôs de forma clara e concisa, referindo que o assistente andou muito preocupado com a situação a que se reportam os autos, mas referiu que o assistente não mais fez a inspecção do carro, facto que é contrariado pelo documento de fls. 322 o que, juntamente com a sua relação de proximidade com o arguido, abalou a sua credibilidade perante o Tribunal.
Paulo Jorge Fortunato de Carvalho, que foi o encarregado do “Stand” que vendeu o veículo em causa ao arguido, e que de forma esclarecedora coerente segura, conscienciosa e, aparentemente, isenta esclareceu as circunstâncias que presidiram à celebração do negócio em apreço, tendo referido que exibiu todos os documentos ao assistente, o qual, após experimentar o carro quis comprá-lo, tendo o “Stand”assumido a incumbência de legalizar a documentação e passar o carro para o nome do assistente, não tendo sido assumido qualquer prazo para a sua legalização. Referiu que, mais tarde, o arguido foi ao “Stand” saber porque é que ainda não tinha recebido os documentos e o carro sido registado em seu nome, tendo, a testemunha, contactado telefonicamente o arguido, uma vez que a legalização dos mesmos já não dependia de si. Refere que o arguido não usou qualquer habilidade para vender ao carro.
Paulo Raminhas, vendedor de automóveis, que vendeu ao assistente o veiculo mencionado no ponto XIV. da matéria de facto provada, que, cabalmente, esclareceu o Tribunal acerca das condições da celebração de tal contrato de compra e venda; a testemunha referiu, também, que entre o “Opel Tigra” a que se referem os autos e o “Volkswagen Bora” que o assistente adquiriu existe um diferença substancial, não só ao nível do preço, como da qualidade, sendo o “Bora” um carro pertencente a um segmento muito superior, tendo o triplo da qualidade e preço do “Tigra”.
Alberto Moreira Peixoto Pereira e Francisco Fernando Santos Dias, testemunhas abonatória do arguido e que o conhecem há mais de 20 anos, que referiram que este é de pessoa honesta e trabalhadora, tendo sempre conduzido os seus negócios de forma irrepreensível, apesar das dificuldades financeira sentidas pela sua empresa e que, em última instância, conduziram à sua falência, vendia muito carros e “em cada cliente fazia um amigo”.
O Tribunal considerou, ainda:
O CRC junto aos autos de a fls. 105 e 106 (facto XIX.);
Documento de fls. 101 a 104, corroboram o facto vertido no ponto XIV. da matéria de facto provada.
Os documentos de fls. 7, 8, 9, 10 a 13, 280 a 303, 322 e seguintes, 348 e 349 -o tribunal analisou os documentos referenciados e submeteu-os a juízos de verosimilhança, tendo os mesmos sido de crucial importância para a decisão quanto à factualidade ínsita nos pontos E. e F. da matéria de facto não provada, uma vez que deles resulta que o arguido não é o único sócio gerente da sociedade “C...” e que o assistente procedeu à realização da inspecção periódica do “Opel Tigra” no ano de 2003 e procedeu ao pagamento do seu seguro no ano de 2005, elementos que põe em crise o alegado facto que a viatura está parada desde 2003, mal se compreendendo que o assistente tenha efectuado tais despesas o carro estivesse totalmente parado, como um objecto sem qualquer utilidade, razão pela qual não demos como provada tal factualidade.
No que toca à restante matéria dada como não provada o Tribunal fundou a sua decisão na total ausência de prova, designadamente testemunhal ou documental, acerca da mesma, não se podendo retirar as inferências aí plasmadas da factualidade dada como provada, nem tão pouco tendo as mesmas resultado de um qualquer meio de prova produzido em audiência de julgamento.
Quanto à situação económico-social e familiar do arguido, o Tribunal fez fé nas declarações do mesmo prestadas a tal respeito, aparentemente de forma honesta e sincera.
II. B. – De Direito.
II.B.1. – Vícios de contradição insanável na fundamentação e de erro notório de apreciação da prova; Modificabilidade da decisão da matéria de facto – Reenvio.
No enquadramento jurídico-processual que é feito dos vícios do artigo 410º, nº2 do CPP, estes assumem-se como erros de julgamento a relevar da contextualização interna da decisão, ou da própria estrutura da decisão, congraçada com as regras ou máximas da experiência comum, entendidas estas como o regular, normal e adquirido vivenciar do homem, histórico – socialmente situado. É avonde a jurisprudência do nosso mais alto tribunal (Supremo Tribunal de Justiça) quanto a esta matéria – vícios da decisão, por erro notório na apreciação da prova, insuficiência da matéria de facto para a decisão e contradição insanável entre a fundamentação e a decisão. Por todos: Acórdãos do STJ de 1.10.1997; 22.10.1997;27.11.1997; 4.12.1997; 14.6.1998;20.1.1998;28.10.1998; 2.12.1999;14.3.2002; e 3.7.2002; proferidos nos processos nºs28/97; 612/97; 1127/96; 1018/97; 725/98; 690/97; 1098/98; 1046/98; 3261/01; 1748/02. Respigando (e somente quanto ao invocado vício que foi alegado pela recorrente) daqueles que nos parecem mais significativos (sem desprimor para os demais, como é óbvio), escreveu-se no Ac.de 27.11.1997 que:”A contradição insanável da fundamentação dá-se quando, analisando a matéria de facto dada como provada e não provada, se chega a conclusões contraditórias, irredutíveis, que não podem ser ultrapassadas recorrendo-se ao contexto da decisão no seu todo e com recurso às regras de experiência comum”; ou no Ac. de 4.12.1997: “só pode falar-se no vício da contradição insanável da fundamentação quando determinado facto provado seja logicamente contraditório com outro dado factual que serviu de base à decisão final, ou quando, segundo um raciocínio lógico, é de concluir que a fundamentação justifica precisamente a decisão contrária ou que a decisão não fica suficientemente esclarecida por haver colisão entre os fundamentos”; ou, finalmente o Ac. de 2.12.1999: “A contradição insanável da fundamentação, vicio previsto no art. 410º, nº 2, al. b) do CPP, verifica-se quando se dá como provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, ou quando simultaneamente se dão como provados factos contraditórios ou quando a contradição se estabelece entre a fundamentação probatória da matéria de facto, sendo ainda de considerar a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão. II – O apontado vício tem de resultar do próprio texto da decisão recorrido, por si ou conjugada com as regras de experiência comum”; ou ainda, por fim, o Ac.de 3.7.2002,”I.- (…) . II – O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, previsto na al. b) do nº2 do art. 410º do CPP, verifica-se quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal”.
Consubstanciando-se o erro num desvio interpretativo de uma dada situação de facto que se apresenta à leitura lógico – racional do individuo, aqui consideradas as envolventes sociais, históricas, pessoais, económicas e/ou outras, a decisão que labore em erro notório há-de expressar esse desvio interpretativo, como evidente e detectável a uma análise perfunctória, de feição intuitivo – racional, do caso em que ele se manifesta ou patenteia. O erro notório torna-se, assim, numa calamidade interpretativa à luz dos princípios da razão histórica e do padrão cognoscente prevalente e socialmente instituído, i. é, das máximas da experiência comum.
Já a insuficiência da matéria de facto para a decisão se reconduz a uma ausência de materialidade substancial, isto é, uma omissão factual contextualizada que inviabiliza e impede que o tribunal possa validamente operar uma adequada e correcta subsunção à previsão ilícito – material contida no preceito incriminatório da facticidade adquirida para o teor decisório. O tribunal podia e devia ter apurado factos que lhe permitissem obter uma factualidade consistente donde fosse possível extrair um veredicto de direito ajustado ao caso.
Por seu turno, a contradição entre a fundamentação ou entre esta e a decisão, tanto pode ocorrer entre a fundamentação de facto, em si, como entre esta e a fundamentação de direito ou entre esta mesma fundamentação, ou, ainda, entre todas, e cada uma, destas posições antinómicas e a decisão a que se chegou.
Do que se trata, no caso do último dos apontados vícios, é de detectar uma antinomia endógena á estrutura da decisão que torne conflituantes a argumentação de facto ou de direito explanada na parte fundamentadora da decisão com o veredicto que o tribunal assumiu no dispositivo decisório. No silogismo que é mister constituir-se entre as partes fundamentadora da sentença e o dispositivo, a contradição do operar lógico evidencia uma refracção no plano lógico-dedutivo que desconecta o sentido racional do julgado. As premissas enunciativas deixam de exercer o seu papel denotador da decisão para figurarem como desvirtuadoras do processo de formação lógico-racional conclusivo.
Para um mais adequado enfoque da contradição patenteada na motivação, transportaremos para aqui o teor das missivas endereçadas pela firma demandada e os itens da matéria de facto (aparentemente) antinómicos.
É do seguinte teor o texto da missiva endereçada ao assistente pela firma demandada – na parte que interessa - (doc. junto sob o nº4 –fls. 10) : “Junto enviamos livrete, título e declaração de venda d viatura Opel Tigra, Mat. 78-79-FI.
Para proceder a legalização da viatura em seu nome, falta o modelo de extinção de reserva da viatura, o qual lhe será entregue o mais breve possível, desde já as mais (…) desculpas, pois temos vindo a deparar com certas (…), as quais não estávamos á espera.
Assumimos desde já a responsabilidade pela entrega do mesmo documento o mais breve quanto possível”.
O documento nº 5 reza, na parte em que interessa, que “a firma C...., declara para os devidos efeitos que vendeu ao Sr. A..., a viatura da marca Opel Tigra, com a matricula 78-79-FI e que se responsabiliza pela sua legalização, o que não foi feito até agora, devido ao facto de ainda se encontrar em falta a extinção de reserva de propriedade.
Os pontos a que se aponta incongruência com as missivas transcritas, expressam-se da seguinte forma: “X.- Em tal carta referia-se que, para legalizar o “Opel Tigra” em nome do assistente este teria que proceder à extinção da reserva de propriedade do automóvel, que existia a favor da sociedade financeira “Mello Crédito, S.A.”, preenchendo o modelo de extinção;
XI.- O arguido, depois de confrontado com o teor dos documentos recebidos pelo assistente reiterou-lhe que ficasse tranquilo pois a extinção da reserva de propriedade já havia sido pedida pela “C...” à Conservatória do Registo Automóvel e que tal facto não impedia a circulação do veículo”.
No item “X”, da matéria que o tribunal considerou adquirida para a decisão dessume-se a ideia de que a legalização do automóvel adquirido, por compra, pelo assistente no stand propriedade do arguido, ficaria dependente da extinção da reserva de propriedade a cargo deste, enquanto que no item “”XI” se põe esse encargo sob a égide da firma de que é sócio-gerente o arguido. A asserção contida no item “X” colide com o teor da missiva que foi endereçada ao assistente pela firma vendedora e que se encontra documentalmente comprovada. Afirma-se, de forma ostensiva, uma realidade declarada que não corresponde ao declarado, de forma expressa, em documento que não foi objecto de contraprova, ou pelo menos, não obteve uma repulsão infirmativa por parte do tribunal, no sentido de pôr em crise a validade da declaração que consta do documento escrito. A ausência de contraprova do documento e a sua consequente aceitação, para prova de uma realidade factual, que o tribunal escrutinou ser necessária, teria que conduzir, inelutavelmente, a que esse facto tivesse que ser aceite e dado como adquirido tal e qual consta do documento.
Ao não traduzir a realidade textual que expressava e que pretendia alardear e fazer fé, perante o receptor/declatário e ao contraminar a prova contida no item sequente, entrou, o tribunal em insanável contradição, em manifesto acomodamento ao espírito da al.b) do nº2 do art. 410º do CPP.
Não vale para o caso a solução, salvífica, que vem proposta pela digna agente do Ministério Público, num louvável e dúctil exercício que se traduziria na supressão de um suposto lapso de escrita, com que taxa a patente insolubilidade dos factos insertos nos indicados itens. Os erros de escrita e os demais erros materiais indicados no art. 667º do CPC, configuram-se como erros decorrentes de falhas ou lapsos do declarante do ditame processual, e não como erros de percepção, captação ou captura de sentido e, consequentemente, de apreciação e julgamento de realidades postas à consideração da inteligibilidade do julgador.
Não se trata, como resulta do que se deixou dito, de um erro ou lapso material, a promanar de uma desatenção ou falta de zelo de quem redige a decisão, mas sim de uma evidente percepção factual do teor de um documento que havia sido exibido para prova de uma realidade declarada e destinada a assegurar e projectar um determinado comportamento negocial, sequenciando a concreção de um contrato de compra e venda.
Sendo, no entanto, este o vicio que se surpreende no texto da decisão e detectado, pela patente antinomia entre o facto dado como provado e aquele que consta da realidade textual que atesta o facto julgado, essa circunstância não invalida o julgamento do caso.
É o que procuraremos demonstrar no apartado seguinte.
Modificabilidade da decisão da matéria de facto – Reenvio
Os tribunais da Relação conhecem de facto e de direito – art. 428º do Cód. Processo Penal.
A decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser modificada: “se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base” – al.a) do art. 431º do CPP.
O tribunal de recurso deverá reenviar o processo para novo julgamento, quando se constatar a existência de qualquer dos vícios do nº 2 do art. 410º do CPP e não seja possível decidir a causa. Sendo possível decidir a causa, isto é, se o tribunal de recurso, mercê dos elementos que constam do processo e da possibilidade que a lei lhe confere de poder modificar a decisão da matéria de facto, se do processo constarem os necessários elementos que a tal o habilitem, o reenvio não deve ser accionado, incumbindo ao tribunal superior remediar e conformar a decisão, na sua estrutura interna e lógico – conceptual, por forma a adequá-la aos fins para que tende, isto é, um enunciado propositivo denotador de sentido e representativo da imanência factual endógena captada para o processo.
A validade das decisões penais atesta-se pela existência da motivação de facto e de direito, adquirindo a sua legitimidade pela verdade processual ou seja pela «correspondência aproximativa»: “por decirlo más claramente, por la verdad e fiabilidad, tanto fáctica como jurídica, de los discursos assertivos que forman la motivación” Vide Luigi Ferrajoli, in “Derecho y Razón, “Teoria del garantismo penal”, Editorial Trotta, Madrid, p. 543.. Verificabilidade e verificação das motivações (…) são por outro lado, as condições constitutivas da estrita legalidade e a estrita jurisdicionalidade das decisões judiciais.
A legitimidade de uma decisão penal exibe-se na possibilidade de conformar o veredicto jurisdicional com a verdade histórica que se captou, pela produção das provas necessárias e legalmente admissíveis, durante o processo. A verdade processual é sempre uma «verdade aproximativa», isto é, uma verdade que reflecte o estado de conhecimentos adquiridos e possíveis num determinado momento histórico e em certo condicionalismo lógico – empírico. Vide op. loc. cit. pags. 47 a 66. Vale por dizer que a verdade processual “é a correspondência mais ou menos argumentada e aproximativa das proposições de que predica com a realidade objectiva, que em processo vem constituída pelos factos julgados e pelas normas aplicadas”.
Temos assim que a decisão penal tem de corresponder ao acervo probatório que foi colectado para o processo de modo a poder constituir-se um feixe de proposições logicamente ensartadas e coerentemente configuradas, representativas do saber cognitivo historicamente confinado e legalmente adquirido.
Sendo este o feixe conceptual rector que deve orientar a apresentação de uma decisão, impõem-se que o tribunal de recurso, no seu múnus de verificação da conformidade da decisão com o acervo probatório, colectado escrutine a motivação da decisão por forma a detectar a existência de refracções ou desvios lógico – argumentativos que possam desvirtuar a legitimidade interna da decisão.
Em face do que se deixou explanado supra, torna-se patente dever o tribunal superior proceder à modificação da matéria de facto, por conterem os autos os elementos probatórios suficiente que possibilitam o “accertamento” do material probatório adquirido para que a causa possa ser decidida, desde já.
O julgamento de um caso é possível, no tribunal superior e nos casos em que se verifiquem ou detectem quaisquer um dos vícios elencados no art.410º, nº2 do CPP, quando o vicio não interfira ou não colida com os elementos essenciais ou pressupostos de punibilidade que a previsão jurídico-normativa engolfa, ou verificando-se estes não exima ou afaste a possibilidade de accionamento de uma causa de justificação do ilícito-tipico ou da culpa.
No caso que nos ocupa a contradição anotada não colide ou interfere com a aplicação ou isenção e /ou ilibação dos pressupostos de punibilidade pelo tipo de ilícito que é imputado ao arguido. Na verdade, a realidade factual que se patenteia na contradição verificada, consubstancia uma iteração de um incumprimento contratual ou numa incapacidade de solucionamento de um problema que estava inerente ao pressuposto de validade contratual desvirtuante da lhaneza e lisura negocial que deve nortear qualquer negócio jurídico. Como se intentará demonstrar infra, o ilícito imputado ao crime não se materializou pelo que os factos encastoados em contradição não impedem o julgamento da causa.
O tribunal de recurso pode modificar a decisão da matéria de facto se do processo constarem os elementos que alavanquem esse julgamento. É o que sucede nos presentes autos, em que os factos que se anotou estarem em contradição, podem ser modificados por os elementos de prova que estiveram na base estão disponíveis no tribunal de recurso para apreciação e julgamento.
Assim os pontos “X” e “XI” da matéria de facto, quedarão modificados, e, consequentemente, substituídos, por decisão deste tribunal, nos termos dos artigos supra enunciados, pela forma seguinte: “A firma de que é sócio-gerente o arguido, endereçou ao assistente as missivas que foram juntas com a participação sob os números 4 e 5 dos documentos que lhe vêm anexos”.
b) – Nulidade da sentença, por omissão de pronúncia;
Considera o recorrente que o tribunal a quo deixou de se pronunciar quanto ao facto de (sic): “os autos revelam bem que em Abril de 2001, o arguido e a sociedade de que era sócio-gerente, ao terem feito crer ao mesmo assistente e recorrente que o veículo por ele adquirido, no stand de Vila Nova de Foz Côa, estava em perfeitas condições de circular, não existindo nenhum impedimento, nem prazo legal para a regularização dos respectivos documentos, nomeadamente transferência do registo de propriedade para o seu nome; que tal regularização era breve e escondendo-lhe e nunca lhe explicando da existência e consequências da reserva de propriedade, sem cuja extinção jamais poderia o veículo ser livremente transferido para seu nome, interessados que estavam tão somente em receberem do mesmo assistente e comprador o preço dos então 1.650 contos, sendo que, até presentemente, volvidos mais de 4 anos, a situação do veículo é a mesma, a acusação do MºPº deveria ter sido dada como procedente e o arguido condenado pela prática do crime de burla de que vinha acusado, tendo, assim também, consequentemente, que ser condenado no pedido de indemnização civil, sem prejuízo de se considerar que também neste particular do pedido civil, a sociedade “C...”, em nome de quem o mesmo arguido sempre agiu como seu sócio-gerente, deveria ter sido também demandada e, consequentemente, condenada”.
A justificação para não tomar conhecimento do pedido civil consistiu em que:”a sentença, ainda que absolutória condena o arguido em indemnização civil, sempre que o pedido venha a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no artigo 82º n.º 3 do Código de Processo Penal, é o que dispõe o artigo 377º n.º 1 do Código de Processo Penal.
O assistente A... deduziu pedido cível, contra o arguido e a sociedade “C...” pedindo a condenação dos demandados no pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais (no montante de €18.839,12) e não patrimoniais (no valor de €500,00) por si sofridos e causados pela conduta ilícita do arguido, quantias a quer devem acrescer juros desde a notificação para contestar o pedido de indemnização cível. Funda o seu pedido na responsabilidade civil do arguido pelos danos causados ao demandante e que se radicam no factos perpetrados pelo arguido que plasmados na acusação deduzida pelo Ministério Público.
O pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem sempre que ser fundamentado na prática de um crime e na consequente responsabilidade civil extracontratual cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Janeiro de 2000, proc. nº 599/99- 3ª; SASTJ n.º 37, pág. 37.
Conforme resulta da conjugação entre o disposto nos arts. 128º do Cód. Penal e 483º do Cód. Civil a obrigação de indemnizar pressupõe a pratica pelo lesante de um facto ilícito e culposo.
Nos termos do art.º 128º do Cód. Penal a indemnização por danos causados pela prática de um crime é regulada pela lei civil, ou seja, é às disposições do Cód. Civil – arts. 483º e ss. e 562º e ss. – que se têm de ir buscar, não só os pressupostos da responsabilidade civil como também as regras de determinação dos danos a indemnizar cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Outubro de 1989 in AJ n.º 2, pág. 4.
Nos termos do art.º 483º do Cód. Civil aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. Como ensina o Sr. Professor Antunes Varela “Das Obrigações em Geral”, vol. I, Coimbra 1991, pág. 516, os pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos são: Facto voluntário do lesante, Ilicitude, Nexo de imputação do facto ao lesante, Dano e Nexo de causalidade entre o facto e o dano.
No que concerne ao:
Facto voluntário do lesante – que no caso se consubstanciaria no acto de o arguido fazer crer ao ofendido que o “Opel Tigra” estava em condições de circular e ser legalizado em curto prazo e em seu nome, pretendendo obter para si, designadamente para a sociedade que representava e de que era único sócio um enriquecimento ou mais valia que sabia ilegítimos (que se cifra em: Esc. 1.650.000$00 (€8.230,17)), valendo-se da sua posição de vendedor, experiente, de automóveis usados e fazendo crer ao assistente que não era entendido no assunto, com total naturalidade e à vontade, que tal situação era normal e que os papéis que lhe entregou substituíam o livrete e o título do registo de propriedade, enganando-o e induzindo-o, assim, à compra do automóvel – cfr. pontos A. a C. da matéria de facto não provada..
Vemos, assim, que falha logo o facto do lesante que determinaria a responsabilização aquiliana do arguido, que se traduz na prática da factualidade que integra o crime de burla qualificada pelo qual vem acusado, pelo que, não resta senão, concluir pela sua absolvição no que concerne ao pedido, a este respeito, formulado pelo assistente. Por outro lado a factualidade supra vertida nos vários pontos matéria de facto provada seria susceptível de integrar responsabilidade contratual do demandando, da qual não se poderá conhecer ora” Se em processo penal for deduzido pedido de indemnização cível, tendo o mesmo por fundamento um ilícito criminal, verificando-se a situação prevista no artigo 377º n.º 1 do Código de Processo Penal, ou seja a absolvição do arguido, este só pode ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual” – Acórdão do pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, 7/99 de 17 de Junho, in D.R. I-Série A, de 3 de Agosto..
Preceitua o art. 377º do CPP que “a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no artigo 82º, nº3”, dispondo, por seu turno a al. c) do art. 379º do mesmo diploma legal que (é nula a sentença) “quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Não suscita controvérsia o entendimento de que o pedido civil aderido ao processo penal deverá ter por base, isto é, ter como causa de pedir o facto ilícito gerador da responsabilidade civil extracontratual em que se fundeia a obrigação de indemnizar a cargo do autor do evento danoso. Decorre do predito entendimento que o tribunal terá, desde que o lesado haja deduzido pedido civil, ou nos casos em que as “particulares exigências da vitima o imponham” –cfr. art. 82º-A do CPP – que condenar desde que fique provada materialidade que integre os pressupostos donde mane a responsabilidade civil extracontratual, fundada na culpa, ou tão só no risco.
Quando o tribunal concluir pela inexistência de ilícito penal ou se pronuncie pela inverificação dos pressupostos da responsabilidade civil aquiliana e o lesado haja formulado pedido de indemnização para ressarcimento dos danos que, em seu entender, a conduta que qualificou como crime, lhe causou, deve o tribunal ainda assim, depois de absolver pela prática do ilícito de natureza penal, absolver do pedido cível que o lesado/demandante lhe havia formulado. Neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21.1.1998, proferido no processo nº 1306/97-3ª secção e 17.4.2002, processo nº402/01, 3ª secção. No primeiro dos citados arestos escreveu-se que “II – A acção cível que adere ao processo penal é a que tem por objecto a indemnização civil fundada na prática de um crime. III.- Se é certo que a absolvição crime não obsta á condenação cível – se o respectivo pedido vier a revelar-se fundado – não é menos certo que, ainda assim, só poderão estar em causa um pedido de indemnização cível e uma condenação fundadas na responsabilidade civil extracontratual do arguido. IV. – Por essa razão, sempre que os prejuízos do lesado não são imputáveis a qualquer facto do arguido que não seja ilícito (ou que, sendo-o, se traduza, apenas, na violação de uma obrigação em sentido técnico) ou gerador da responsabilidade pelo risco, á absolvição do crime seguir-se-á, naturalmente, a absolvição do pedido cível”. No segundo dos citados arestos deixou-se doutrinado que “I. – Nos termos da al.c) do nº1 do art. 379º do CPP, é nulo o acórdão que deixa de se pronunciar sobre um dos pedidos de indemnização civil que devia conhecer no cumprimento das normas constantes dos arts. 374º e 377º, ambos do referido diploma legal”.
O nosso ordenamento jurídico-processual inoculou o princípio da adesão, não da forma mitigada que se encontra estabelecido no ordenamento de que é tributário, o congénere italiano, mas de uma forma plena, permitindo ao ofendido com o facto ilícito de natureza criminal fazer valer os seus direitos no processo em que este se discuta. Unidade de percepção do fenómeno juridicamente relevante, na sua globalidade e total amplitude, incindibilidade da captação do material probatório e não dispersão dos momentos em que a prova deve ser prestada perante o tribunal e economia processual, serão, entre outras, certamente não menos ponderosas, razões que justificam a possibilidade/necessidade de apreciação de um pedido de ressarcimento pelos danos causados pelo facto ilícito de natureza penal.
Se assim, não pode o princípio ser devassado ao ponto de permitir que o julgador do feito criminal esteja adstrito a julgar os pedidos formulados pelo lesado do facto ilícito, a não ser nos casos em que o mesmo facto pode ocasionar um dever de indemnizar decorrente da responsabilidade objectiva ou pelo risco. Compreende-se que a legislação alargue para estas situações a necessidade e o encargo jurisdicional de tomar conhecimento de um pedido. Em primeiro lugar, em homenagem á razões que se deixaram expressas supra, em segundo lugar porque o facto juridicamente relevante versa sobre materialidade factual sobre o qual o tribunal já teve que emitir um juízo de não culpabilidade, mas que pode, no entanto, assumir contornos de obrigação de indemnizar á luz de pressupostos, que não radicando na ilicitude e na culpa, manam de causas, outras, que não as dependentes da vontade particular e livremente assumida pelos sujeitos jurídicos e, finalmente, porque a jurisdição processual-penal não será a sede própria e adequada para apreciar e produzir todos os elementos de prova que imanentes a um ajuizamento com características e alcance do veredicto cível.
Fundando o lesado um pedido cível com base numa conduta que reputa de ilícita e vindo o tribunal a concluir pela inverificação dos pressupostos que alavanquem o sancionamento da conduta, deverá o tribunal pronunciar-se quanto ao pedido cível que lhe foi dirigido e emitir pronúncia. O tribunal tem a obrigação de emitir pronúncia sobre todas as questões que lhe sejam presentes pelas partes –art. 660ºnº2 do C.P.Civil, aplicável por força do artigo 4º do CPP – exceptuando aquelas que se mostrem prejudicadas pela solução que haja sido dada a outras. A obrigação de pronúncia decorre do princípio de jurisdição inerente ao dever de conhecimento de todas as questões que sejam equacionadas pelos sujeitos processuais ao órgão jurisdicional.
No caso em julgamento, a sentença não deixou de se pronunciar sobre o pedido cível que o lesado fez decorrer da conduta ilícita que imputou ao arguido. A sentença tomou, desde logo na parte da fundamentação para justificar a sua posição quanto ao pedido formulado no processo. Na parte que interessa, o tribunal justificou, com a jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal quais os limites de cognoscibilidade do pedido cível aderido em processo penal, para, no troço final, concluir “Vemos, assim, que falha logo o facto do lesante que determinaria a responsabilização aquiliana do arguido, que se traduz na prática da factualidade que integra o crime de burla qualificada pelo qual vem acusado, pelo que, não resta senão, concluir pela sua absolvição no que concerne ao pedido, a este respeito, formulado pelo assistente. Por outro lado a factualidade supra vertida nos vários pontos matéria de facto provada seria susceptível de integrar responsabilidade contratual do demandando, da qual não se poderá conhecer ora Se em processo penal for deduzido pedido de indemnização cível, tendo o mesmo por fundamento um ilícito criminal, verificando-se a situação prevista no artigo 377º n.º 1 do Código de Processo Penal, ou seja a absolvição do arguido, este só pode ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual” – Acórdão do pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, 7/99 de 17 de Junho, in D.R. I-Série A, de 3 de Agosto.”.
Entendeu o tribunal a quo que os factos que alicerçaram a exculpação do arguido do facto ilícito e, correlatamente, do ausência de responsabilidade extracontratual que o assistente/demandante tinha feito derivar desse mesmo facto, poderiam ensartar uma responsabilidade contratual decorrente do incumprimento, ou de cumprimento defeituoso, de um negócio jurídico, que conduziria à formulação de um pedido, em sede civil, com base, ou tendo como causa de pedir a violação das regras e dos deveres contratuais a que os contraentes estão obrigados na celebração de um vinculo sinalagmático.
Do dispositivo consta, expressamente, “quanto ao pedido de indemnização cível formulado pelo demandante A... julgo-o totalmente improcedente, por não provado, e dele absolvo o demandado B...”. Qualquer destinatário da decisão pode comprovar a emissão explicita, na sentença, de pronúncia quanto ao pedido cível e não poderão restar dúvidas que o tribunal deixou expresso que não tomava conhecimento do pedido, fundado em outro tipo de responsabilidade, pelas razões que justificadamente aduziu, e que são absolutamente correctas. O tribunal pronunciou-se, tendo justificado as razões por que não tomava conhecimento do pedido que o assistente havia dirigido ao órgão jurisdicional, e deixando aduzidas razões que, em seu entender, inviabilizavam a sua tomada de conhecimento neste processo.
Não colhe, decididamente, e pelas razões expostas, a aduzida nulidade de omissão de pronúncia conducente à anulação do acto processual praticado.
d) – Consumação do crime de burla – Erro ou engano antecedente, causante e bastante;
Anton Oneca configurou o conceito de burla como “a conduta enganosa, com ânimo de lucro, próprio ou alheio, que, determinando um erro numa ou em várias pessoas, as induz a realizar um acto de disposição em do qual decorre um prejuízo no seu património ou no de terceiro” (tradução nossa). Vide neste sentido Francisco Muñoz Conde, in “Derecho Penal, Parte Especial”, Tirant lo Blanch, p. 404. No mesmo sentido J.A. Choclán Montalvo, em “El Delito de Estafa”, Bosch, Barcelona, 2000, p.80 e Cândido Conde-Pumpido Ferreiro, “Estafas”, Tirant lo Blanch, Valência, 1997, autores que seguiremos de perto na abordagem que faremos às questões que deixamos enunciadas no leque de matérias a analisar no recurso. De passagem, e porque de merma importância no confronto com os citados autores, aludiremos ao Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo II. Já J.A. Choclán Montalvo, na monografia “El delito de Estafa”, define burla como aquele comportamento do sujeito activo que, com ânimo de enriquecimento injusto, induz outro a uma disposição patrimonial mediante a alegação de factos falsos ou ocultação dos verdadeiros, produzindo ou reforçando a falsa representação do sujeito passivo, inevitável com o emprego da diligência que era capaz e exigível na situação concreta, e da que resulta um prejuízo no seu património.
São elementos típicos da infracção: 1º - Um engano precedente ou concorrente; 2º - o engano há-de ser bastante, quer dizer suficiente e proporcional para a consecução dos fins propostos, havendo de ter adequada entidade para que na convivência social actue como estímulo eficaz da transferência (traspasso) patrimonial, devendo valorar-se aquela idoneidade tanto atendendo aos módulos objectivos como em função das condições pessoais do sujeito afectado e das circunstâncias todas do caso concreto; a manobra defraudadora há-de revestir a aparência de realidade e seriedade suficientes para defraudar as pessoas de mediana perspicácia e diligência, a idoneidade abstracta complementa-se com a suficiência no específico suposto contemplado; 3º - Criação (Originación) ou produção de um erro essencial no sujeito passivo desconhecedor ou com conhecimento deformado e inexacto da realidade, por causa da insidia, mendacidade, fabulação ou artificio do agente, o que o leva a actuar debaixo (bajo) uma falsa pressuposição, a emitir uma manifestação de vontade partindo de motivo viciado, por cuja virtude se produz a transferência (traspasso) patrimonial; 4º - ânimo de lucro, como elemento subjectivo do injusto, exigido hoje de maneira explicita, entendido como o propósito por parte do infractor de obtenção de uma vantagem patrimonial correlativa, ainda que não necessariamente equivalente, ao prejuízo ocasionado, eliminando-se, pois, a incriminação a título de imprudência; 6º - nexo causal ou relação de causalidade entre o engano provocado e o prejuízo experimentado, oferecendo-se este como resultado do primeiro, o que implica que o dolo do agente tem de anteceder ou ser concorrente na dinâmica defraudadora, não se valorando penalmente no que ao tipo de burla se refere, o dolo subsequente, quer dizer, superveniente e não anterior á celebração do negócio de que se trate; aquele dolo característico da burla supõe a representação para o sujeito activo, consciente da maquinação enganosa, das consequências da sua conduta, quer dizer da indução que alenta ao desprendimento patrimonial como correlato do erro provocado e o consequente prejuízo suscitado no património do sujeito vitima”.5 cfr. J.A. Choclán Montalvo, op. loc. cit., p. 81.
O engano desencadeador ou provocante do prejuízo ou merma patrimonial, como é entendimento generalizado entre os autores, há-de ocorrer num momento temporal em que o sujeito passivo desarma a sua defesa intelectual e volitiva para se deixar enlear no artificio congeminado e posto em prática pelo agente infractor. Como se decidiu na sentença do Tribunal Supremo espanhol (STS de 23 de Abril de 1997, o engano há-de ser antecedente, causante e bastante. Antecedente porquanto teria que preceder e determinar o consequente prejuízo patrimonial, não sendo aptas para originar o delito de burla as hipóteses do denominado “dolo subsequente”; causante, já que o engano deve achar-se ligado por um nexo causal com o prejuízo patrimonial, de tal forma que este haja sido gerado por aquele; e bastante, no sentido da idoneidade do engano para viciar a vontade ou o consentimentos concretos do sujeito passivo da argúcia.
O Professor Francisco Muñoz Conde coloca o momento da consumação do crime de burla no momento em que se verifica a produção do prejuízo patrimonial; “no es preciso que se haya producido el correspondiente provecho”. Cfr. op. loc. cit., p. 413 No caso que vem submetido a julgamento o momento da consumação da burla ter-se-ia que ter por verificado, quando, o vendedor do stand propriedade do arguido, por haver utilizado um artificio ou engano gerador da claudicação da vontade do sujeito passivo, originou a depreciação do seu património.
O que vem adquirido para a decisão é que o assistente celebrou com o stand um contrato de compra e venda de um veículo, tendo pago parte do preço acordado, no momento da entrega, e que no momento recebeu uma declaração de venda que lhe permitia circular com o veículo, até á emissão da documentação pertinente que transferisse a titularidade do veículo para a sua esfera jurídico-patrimonial.
Não está adquirido que o vendedor que efectuou o negócio que conduziu à passagem do veículo da posse do estabelecimento vendedor para a esfera possessória do assistente, haja utilizado qualquer engano ou artificio que fosse gerador de uma falsa ou deformada representação intelectual do sujeito passivo, designadamente quanto ás condições em que o veículo se encontrava e da possibilidade de o mesmo veículo poder vir a tornar-se de difícil legalização.
A questão que haverá que colocar-se é de saber se o vendedor, de acordo com as regras de boa fé e confiança, que devem ser apanágio nos negócios jurídicos deveria, ou tinha a obrigação de informar o assistente das condições de propriedade particulares em que se encontrava a titularidade do veículo objecto do contrato de compra e venda. Vale por dizer se o vendedor terá ocasionado com a sua omissão um engano relevante gerador do prejuízo patrimonial que, o assistente, diz ter sido provocado no seu património.
É o que intentaremos responder no apartado sequente.
e) – Dolo penal – Dolo civil; – Engano por omissão; - Os chamados “negócios jurídicos ou contratos criminalizados”.
Por engano entende-se a falta de verdade no que se diz ou faz, de modo que os demais formem uma representação incerta do que realmente pretendem. Trata-se de uma ocultação ou disfarce da realidade, simulando algo que não existe ou não se tem a intenção que chegue a existir, ou ocultando ou dissimulando algo que existe e cujo conhecimento modificaria a atitude da pessoa a quem o engano se dirige Cfr. Cândido Conde-Pumpido Ferreiro, op. loc. cit., p. 45. .
Os autores usam distinguir os enganos em enganos omissivos – traduzidos no silenciamento de circunstâncias negativas, como os defeitos ou gravames da coisa; – enganos implícitos – que se traduziriam na adopção de uma conduta ou atitude que leva implícita a ideia do cumprimento de uma contrapartida; os enganos verbais, que não seriam acompanhados de maquinações fácticas que os ratificassem; e, finalmente os enganos menores, que não induziriam em erro as pessoas avisadas ou perspicazes.
Qualquer engano só assume relevância penal quando seja bastante para provocar o erro da vítima. Estão subtraídos à tutela jurídico-penal aquelas situações que pela sua intensidade e densidade enganosa ou de maquinação e artifício defraudador, não sejam suficientemente reprováveis do ponto de vista ético-juridico que sejam merecedoras de ser enquadráveis no tipo de ilícito adrede. “A linha divisória entre o dolo penal e o dolo civil nos delitos contra a propriedade se acha dentro do conceito de tipicidade, o ilícito penal frente ao ilícito civil, de tal forma que só quando a conduta do agente encontra acomodação no preceito penal que conculca, se pode falar de delito, sem que portanto isso signifique a vulneração da lei penal, porque a norma estabelece meios suficientes para restabelecer o império do Direito ante vícios puramente civis”. O que acaba de se expressar “produz-se especialmente quando o dolo civil não é causante, mas antes incidental, isto é não constitui um vício da vontade ou do consentimento subsumível aos correspectivos preceitos civis, mas que sobrevive como uma forma de incumprimento do contrato validamente celebrado. Cfr Cândido Conde-Pumpido Ferreiro, op.loc.cit., p. 55.
A fragilidade e a ténue linha delimitadora que se pressente entre o dolo civil e o dolo penal, neste tipo de infracções, levou a que alguma jurisprudência a crismasse certas situações charneira ou de difícil enquadramento jurídico-penal como “negócios jurídicos ou contratos criminalizados”, que seriam aqueles negócios jurídicos ou contratos civis em que o ilícito penal aparece caracterizado – frente ao incumprimento civil – pela intenção inicial ou antecedente de não fazer a efectiva contraprestação ou pela consciência da impossibilidade de o fazer, de modo a que o contrato aparente é o instrumento da fraude, ou noutra formulação, nos negócios jurídicos de direito privado em que a aparência do próprio negócio constituem uma operação de engano, enquanto o autor simula um propósito de contratar quando realmente só quer aproveitar-se do cumprimento da outra parte, recebendo a contraprestação acordada, mas sem intenção de cumprir. Neste “negócios civis criminalizados”, o contrato ou negócio jurídico erige-se em instrumento dissimulador, e ocultação, fingimento e fraude, civil ou mercantil, com aparência de quantos elementos são precisos para a sua existência correcta, ainda que a sua intenção inicial ou antecedente de não efectuar a contraprestação ou o conhecimento da sua impossibilidade de a fazer, defina a burla. Cfr. para mais desenvolvimentos Cândido Conde-Pumpido Ferreiro, op. loc. cit., p. 62 e J.A. Choclán Montalvo, in op. loc. cit., p. 98 e segs. Para Groizard, citado por José António Choclán Montalvo, o critério de distinção, em função da entidade do engano, deve ser expressa pelo princípio da protecção subsidiária que compete ao direito Penal e ao seu carácter fragmentário, com a consequente limitação da reacção mediante a pena frente a condutas mais graves. Na expressiva formulação do último dos autores citados “o que caracteriza o dolo civil como vício de vontade é o efeito que provoca de indução a contratar (dolo causm dans contractu). Ao passo que no tipo subjectivo penal, o móbil concreto que impulsa a conduta dolosa (vgr. A obtenção de um proveito económico) não é relevante no dolo civil. O dolo civil causante do direito civil também consiste num engano (palavras ou maquinações) que utiliza uma parte contratante para induzir o outro a celebrar um contrato, de forma tal que supõe uma intervenção essencial no processo de formação do querer. J.A. Conclán Montalvo, op. loc. cit., p. 93.
Como se alcança do que vimos explanando, todos os autores colocam o momento deflagrador do ilícito penal na precedência ou antecedência da acção enganosa relativamente à atitude do sujeito em aderir ao pacto contratual depreciador do seu património.
Queda por analisar o engano omissivo como geradores de situações de burla, com base na doutrina causal da omissão ou das teses gerais de comissão por omissão.
Seguindo de perto a lição de Candido Conde-Pumpido, na obra que vimos citando, “entrecruzam-se neste ponto duas posições: a referente à inabilidade do silêncio para criar engano e da rejeição dos enganos omissivos. Entende-se pelos defensores dessas doutrinas que ao tratar-se de uma omissão pura, o silêncio não poderia chegar a produzir os outros elementos típicos, em especial a indução em erro do sujeito passivo. Desse modo o silêncio, ao equiparar-se à omissão pura, não pode valorar-se como engano. Por isso só seria relevante o silêncio quando começasse a formar parte de um complexo que possa interpretar-se como conducta concluyente dando a entender uma situação mendaz que aparece implícita na conduta com o que, a omissão se transforma em acção através da doutrina de los facta concludentia”. Merkel assinalou que o silêncio ou a ocultação pode vir calculado para induzir em erro o contrário. Seria o caso da oferta de um negócio ou a aceitação do mesmo, que suporia a afirmação de que os contraentes se dão as condições válidas para a celebração válida do contrato. Porém, como adverte Pedrazzi, isso não quer dizer que o silêncio ou a omissão possa valorar-se á margem de uma certa cobertura jurídica de modo a que alguém esteja obrigado a desfazer a obcecação de outra pessoa ou acompanhar os seus actos com advertências para prevenir qualquer engano. Só quando o direito imponha ao sujeito que se encontra numa concreta situação o informar a outra pessoa de determinadas circunstâncias, é quando o silêncio convertendo-se em reticência (no sentido de se calar aquilo que deveria dizer-se) assume um valor concludente: “o sujeito passivo tem o direito de interpretar a falta de comunicação como afirmação de que o agente sobre quem a obrigação recai não tem nada que comunicar. “Só que essa obrigação de informar não deve ser só valorada em termos de dever jurídico mas também em atenção aos usos e costumes próprios do tráfico, de modo que há-de ter-se em conta se na situação concreta os usos do tráfico permitem contar com que seria proporcionada a informação silenciada”. Como assinala Pedrazzi “para que o silêncio adquira relevância como conduta enganosa faz falta não só que seja interpretável como conduta concludente, mas também que o sujeito passivo o tenha de facto interpretado como tal, isto é, que pelo silêncio o sujeito passivo tenha sido induzido em erro”.
Este longo, e quiçá entediado e macilento, excurso pelas categorias que se poderiam apropinquar da situação que vem configurada no processo para que nos é requestada solução, permitir-nos-á, na recensão da matéria de facto adquirida para a decisão sob impugnação, concluir quanto á existência, ou não, dos elementos definidores do crime por que o assistente se obstina de fazer penar o arguido.
Não está demonstrado, pela prova que foi colectada para o processo, que, no momento em que o assistente encetou e formou a sua vontade de aquisição do automóvel estivesse pendente algum artifício ou “engaño bastante” que induzisse, influísse ou determinasse a sua vontade para o negócio que acabou por concretizar. Dir-se-á que o empregado do stand deveria tê-lo advertido que sobre a viatura impendia uma reserva de propriedade que teria e deveria ser removida para que pudessem formalizar-se os trâmites burocráticos tendentes à transmissão da propriedade. No arrimo aos princípios da boa fé contratual, que devem presidir á conclusão e perfeição das vontades negociais livremente expressas, impunha-se que essa advertência devesse ser feita. Só que, não ficou demonstrado, por não provado, que o empregado que atendeu o assistente soubesse do ónus que impendia sobre o objecto do contrato e que tivesse escondido, fraudulentamente, esse facto ao comprador.
O arguido não interveio directamente na compra e venda e, portanto, não estava adstrito à obrigação de informação sobre o objecto do contrato e a manifestar na realização do negócio os princípios de confiança e boa fé contratual que deveriam nortear a efectivação do contrato.
Não estamos perante uma daquelas situações caracterizadas supra como “contratos ou negócios criminalizados”, pois que o contrato em si não encerra nenhum ardil ou artificio indutor de um aproveitamento da vontade de negociar e do qual pudesse advir um proveito económico ilegítimo para o agente activo.
Como se deixou explicitado supra o dolo penal, ainda que rase o dolo civil, se torne de difícil destrinça e adquira contornos que induzem dificuldades de delimitação, assume uma intencionalidade que não está impressa no comportamento que vem espelhado na prova que foi produzida em sede de julgamento. Não está expresso, na prova que nos é facultada pela decisão sob impugnação, uma intencionalidade enganosa e de fraude que permita valorar a conduta assumida pelo arguido, ao longo de todo o processo, como revestindo uma feição ou cariz criminal, passível de preencher o elemento subjectivo do ilícito de burla.
Pelo que se deixa dito, considera-se que não se mostram preenchidos os elementos constitutivos do ilícito imputado ao arguido. Subsistirá um incumprimento contratual a demandar em sede adequada, mas não um ilícito de natureza penal a censurar e punir de acordo com a normação jurídico-penal.
III. – Decisão.
Acordam, na secção criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra, os juízes que constituem este colectivo, em:
A) – Julgar totalmente improcedente o recurso impulsado pelo recorrente A..., e, consequentemente, confirmar a decisão sob recurso.
B) – Condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em dez (10) UCs.

Coimbra,