Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3272/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO PIÇARRA
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
INTRANSMISSIBILIDADE POR MORTE DO OBRIGADO
Data do Acordão: 12/14/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COVILHÃ - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 414º, 420º E 421º, DO C. CIV..
Sumário: I - O direito de preferência atribui ao seu titular, em caso de alienação da coisa sobre que incide, a prioridade na sua aquisição, e manifesta-se através da acção de preferência em que o preferente pode fazer seu o direito alienado, dando tanto pelo tanto, se o preferente estiver escudado em pacto com eficácia real ou o seu direito resultar da lei .
II – Revestindo a obrigação de preferência natureza pessoal, intuito personae, sem eficácia real, com a morte do obrigado não se transmite essa obrigação aos seus herdeiros, e a violação dessa obrigação apenas dá origem a indemnização e não à substituição do comprador .
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Relatório.
I – A... e mulher, B..., residentes na Avenida de Roma, Lisboa, intentaram acção declarativa, com processo ordinário, contra C... e marido, D..., residentes em Estremoz, E..., divorciada, residente em Lisboa, e F..., solteiro, residente na Covilhã, alegando, em síntese, que:
Em 5 de Abril de 1990, os pais das rés C... e E... acordaram dar-lhes preferência na venda da fracção autónoma designada pela letra "F', correspondente ao segundo andar, com o n° 86, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua António Augusto Aguiar, 82, 86 e 88, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 592° e descrito na Conservatória do Registo Predial do concelho da Covilhã, sob o nº 00227-F) freguesia de S. Pedro.
Na partilha subsequente à morte dos obrigados à preferência, essa fracção veio a caber àquelas rés, que a venderam ao réu F... pelo preço de 10.000.000$00, através de escritura pública de compra e venda de 1 de Julho de 1999.
São titulares do direito de preferência na alienação dessa fracção, direito que não lhes foi dado exercer, por não lhes terem comunicado os elementos essenciais desse negócio.
Com tais fundamentos, concluíram por pedir que se lhes reconheça o direito de preferência na compra dessa fracção autónoma e consequentemente o direito de a haverem para si, em substituição do réu F..., mediante o pagamento da quantia de € 59.908,62 correspondente ao preço e despesas notariais e registrais suportadas pelo mesmo.
Os réus C..., o marido e E... contestaram, por impugnação, alegando, em resumo, que o pacto de preferência celebrado entre a mãe delas e o autor se extinguiu com a morte daquela, desse modo, preconizando a improcedência da acção, desfecho pelo qual também se bateu o réu F... em contestação autónoma.
Os autores apresentaram réplica, na qual, além de manterem a sua posição inicial, ampliaram o pedido pretendendo subsidiariamente obter a condenação solidária das rés C... e E... no pagamento da importância de € 8.570,00 correspondentes aos prejuízos por eles já sofridos em consequência da frustração das negociações com elas encetadas, acrescida ainda da quantia que se liquidar em execução de sentença.
Os réus treplicaram opondo-se à alteração do pedido e pugnando pela inexistência da invocada preferência.
De seguida, foi proferido despacho saneador em que se afirmou a validade e regularidade da instância e condensou-se a matéria de facto, com especificação da já assente e organização da base instrutória, sem reclamação das partes.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, respondeu-se, sem censura, aos vários pontos da base instrutória, e, seguidamente, foi proferida sentença que, na improcedência da acção, absolveu os réus do pedido.
Inconformados, apelaram os autores, que concluíram, assim, a sua alegação:
1. Tendo sido celebrado um pacto de preferência entre o autor e os pais das rés, reduzido a escrito e por todos assinado e ocorrendo posteriormente o falecimento dos pais das rés, a comunicação por estas enviada ao autor, por escrito, no sentido de este preferir na venda que tencionavam fazer do bem objecto do pacto de preferência equivale à estipulação que a lei prevê para a transmissão do direito de preferência por morte dos contraentes originários.
2. Ou, em qualquer caso, a comunicação feita por escrito ao preferente pelas sucessoras dos obrigados originariamente à preferência e a subsequente resposta que, por escrito, aquele lhes fez no sentido de estar interessado em preferir, que não tencionava renunciar aos seus direitos, os quais tencionava exercer, reforçam a estipulação da transmissão do direito e obrigação de preferência e fazem nascer, ex novo, um pacto de preferência entre autor e rés.
3. Nasceu para o autor e rés a obrigação de contratar por virtude da comunicação destas, enquanto obrigadas à preferência e da resposta daquele, enquanto preferente, que foram feitas em documentos assinados, devendo entender-se que se concluiu um contrato-promessa, não obstante as assinaturas terem sido apostas em dois papéis diferentes.
4. Tendo as rés comunicado ao autor a sua intenção de vender a fracção autónoma objecto do pacto de preferência e concedendo-lhe a faculdade de preferir pelo preço de 20.000.000$00 e tendo este respondido que não renunciava à preferência, mas que teriam que lhe dar conhecimento de todos os elementos do negócio, assiste ao autor o direito de preferência na venda que as rés, posteriormente, fizeram pelo preço de 10.000.000$00, sem nada lhe terem comunicado.
5. Subsidiariamente – e sem prescindir – ficando provado que as rés comunicaram ao autor a intenção de vender a fracção autónoma objecto do pacto de preferência pelo preço de 20.000.000$00, que lhe davam a faculdade de preferir por esse preço, que o autor interpretou a carta como declaração de vontade de lhe dar preferência na alienação da fracção, que ficaram os autores com a expectativa de que lhes assistia o direito de preferir, que o autor respondeu às rés que não renunciava à preferência, mas que o preço era simulado e que lhe deveriam ser comunicados os elementos essenciais do negócio e que as rés venderam a fracção a um terceiro pelo preço de 10.000.000$00, sem nada comunicarem ao autor, caso improcedesse o pedido principal sempre a actuação das rés seria geradora de responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar os autores pelos prejuízos decorrentes da sua conduta culposa, face à inobservância da lisura, correcção e lealdade que lhes era exigível.
6. Ficando provado que os autores, por via da expectativa de que lhes assistia o direito de preferir – decorrente, além do mais, da comunicação que lhes foi feita pelas rés – depois de terem tido conhecimento do negócio e dos elementos essenciais, diligenciaram no sentido de contratar advogado, a quem forneceram os elementos e informações necessárias ao patrocínio deste processo, a quem terão, no final, de pagar de honorários a quantia de € 3.000, a que acrescerá o IVA em vigor, que tiveram de reunir e inclusive retirar de depósitos a prazo a quantia de 50.908,62 € que depositaram à ordem do tribunal para poderem exercer a preferência, que estão desde 19.11.02 privados das vantagens, utilidades e rendimentos que tal importância lhes proporcionaria se estivesse na sua disponibilidade e que se traduziriam, pelo menos, nos juros por que seria remunerada aquela importância se ficasse aplicada financeiramente a prazo de um ano e a render juros, que são pessoas idosas e doentes e têm andado apreensivos e preocupados, até pela sua impreparação jurídica e pela incerteza do resultado do processo, caso improcedesse o pedido principal, sempre e em qualquer caso estariam as rés obrigadas a indemnizar os autores pelos demonstrados danos patrimoniais e não patrimoniais.
7. Decidindo como decidiu, o Tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação da lei, violando o disposto nos art.ºs 227º, 414º, 415º, 416º, 420º, 483º, n.º 1, 496º, n.º 1, 562º, 563º e 564º do Cód. Civil, devendo ser dado provimento ao recurso e revogando-se a sentença recorrida, conforme atrás propugnado.
Os apelados não ofereceram contra-alegação.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.
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II - Fundamentação de facto
São os seguintes os factos considerados assentes pela 1ª instância:
1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial do concelho da Covilhã, sob o nº 00227-F) freguesia de S. Pedro, a "Fracção autónoma designada pela letra "F', correspondente ao segundo andar, com o n° 86, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua António Augusto Aguiar, 82, 86 e 88, destinada a habitação, composta de 8 assoalhadas, cozinha, 2 casas de banho, 2 varandas, vestíbulo, 2 corredores, sótão amplo destinado a arrecadações e terraço, com 237,50 m2, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 592°".
2. Aquela fracção autónoma foi adquirida pelos co-rés C... e E... por sucessão da herança de G....
3. Pela apresentação 5/200896 aquelas co-réus fizeram inscrever definitivamente no registo, a seu favor, em comum e sem determinação de parte ou direito, a aquisição do direito de propriedade sobre aquela fracção autónoma.
4. Pela apresentação 6/230399, o co-réu F... fez inscrever provisoriamente no registo, a seu favor, a aquisição do direito de propriedade sobre a aludida fracção autónoma.
5. Pelo averbamento 1 à Inscrição G-3, efectuado pela apresentação 9/24081999 foi convertida em definitiva a inscrição provisória referida número anterior.
6. Por escritura pública celebrada em 01 de Julho de 1999 no Edifico da C.G.D. em Lisboa, perante o ajudante do 5° Cartório Notarial de Lisboa, foi declarado pelas 1ª e 2ªs co-rés que vendiam ao 3º co-réu e por este que comprava àquelas, a referida fracção autónoma, pelo preço de dez milhões de escudos.
7. O 3º co-réu pagou no 5° Cartório Notarial de Lisboa a quantia de Esc. 121.090$00 pelo acto notarial referido no artigo anterior e respectivos emolumentos.
8. Pagou à Conservatória do Registo Predial da Covilhã a quantia de 196,06 euros, pela conta da nota da apresentação 6, de 23.03.99 e pagou à mesma Conservatória a quantia de 228,78 euros, pela conta da nota de apresentação 7, de 23.03.99.
9. Em 05.04.1990 aquela fracção autónoma pertencia a G..., casada com H... no regime de comunhão de adquiridos.
10. Pela apresentação 22/060990, a aquisição do direito de propriedade sobre aquela fracção autónoma foi definitivamente inscrita no registo a favor de G..., que o adquiriu por divisão com I... e com os aqui autores.
11. As rés são filhas de G..., que faleceu em 19.10.1995, no estado de viúva de H....
12. Em 05 de Abril de 1990 foi celebrado e reduzido a escrito entre G... e marido, H..., os aqui autores, e I..., um contrato que os outorgantes denominaram "acordo de preferência".
13. Foi declarado pelos outorgantes naquele contrato que, na qualidade de comproprietários, "outorgaram na escritura de partilha do prédio urbano sito na freguesia de S. Pedro, da Covilhã, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 592, no 14° Cartório Notarial de Lisboa em 5 de Abril de 1990, que tem as fracções A), B), C), D), E) e F), adjudicando na respectiva escritura as fracções A), B), D) e E) aos segundos outorgantes A... e mulher; a fracção C) à outorgante I... e a fracção F à primeira outorgante C... ".
14. Foi igualmente declarado pelos outorgantes que, no caso de venda a terceiros que não aos outorgantes na escritura aludida no dito" acordo de preferência", "dão-se reciprocamente o direito de opção das referidas fracções".
15. Com as vontades assim declaradas em documento por todos assinado, quiseram os outorgantes celebrar entre si, como, efectivamente celebraram, um acordo pelo qual deram reciprocamente preferência na venda das fracções autónomas identificadas no aludido documento, entre as quais se inclui a fracção autónoma objecto dos autos.
16. A co-ré C... remeteu ao autor marido uma carta registada com a/r., datada de 24 de Fevereiro de 1997, onde dizia que, “em face do" Acordo de Preferência" assinado, vimos informar de que se encontra à venda o 2° andar do prédio sito na Rua António Augusto de Aguiar, 86, na Covilhã, pela quantia de Esc. 20.000.000$00, pelo que aguardamos uma resposta, no caso de estar interessado na sua aquisição pela quantia referida".
17. O autor marido remeteu às co-rés C...e irmã uma carta registada com a/r., datada de 05 de Março de 1997, por meio da qual lhes respondeu à carta referida no artigo anterior, dizendo-lhes, além do mais, que a “comunicação que me é feita não respeita os requisitos legalmente impostos a V.Exas. para cumprimento da obrigação que perante mim têm em razão do pacto de preferência que a meu favor vigora.
18. Com efeito, não me são comunicados os elementos essenciais do negócio, como impõe a lei e dos quais não posso prescindir. Por outro lado, é-me anunciado um preço simulado, que já sei não ser o real nem aquele que vai ser cumprido, o que, também, viola os meus direitos de preferente. Em qualquer caso, deixo expresso e bem claro que não renuncio aos meus direitos de preferente, os quais tenciono exercer...".
19. Esta carta foi recebida pela co-ré C... em 10. 3. 97.
20. As rés não têm formação jurídica, nem experiência na venda de imóveis.
21. Por esse motivo, interessadas na venda da "fracção" que lhes havia sido adjudicada, recorreram aos serviços de um advogado a quem, além do mais, pediram conselho sobre o conteúdo daquele "acordo" que os falecidos pais haviam outorgado.
22. Esse causídico informou-as que, no caso de pretenderem vender, estavam obrigadas a dar preferência ao A..., ora Autor.
23. No seguimento de tal informação, a ré C... escreveu ao autor a carta de 24.2.97.
24. As rés aconselharam-se junto de outro advogado, que as informou que não estavam obrigadas a dar preferência na venda.
25. A ré C... ao enviar a carta de 24.2.97, agiu na convicção de estar obrigada a dar preferência na venda.
26. As rés decidiram vender a fracção referida ao 3º réu, de quem são amigas, pelo preço declarado de Esc. 10 000 000$00.
27. O réu F... adquiriu efectivamente a fracção descrita, às rés, pelo preço declarado de 10.000.000$00 tendo obtido empréstimo bancário para efectuar o pagamento.
28. O autor recebeu a carta datada de 24.2.97 e interpretou-a como declaração de vontade de lhe dar preferência na alienação da fracção.
29. A carta mencionada e datada de 24.7.97 foi redigida e remetida ao autor com o conhecimento e concordância de todos, só assim se compreendendo a utilização do verbo na primeira pessoal do plural, "vimos".
30. Os autores, por via do contrato e da carta que receberam da ré C..., ficaram com a expectativa de que lhes assistia o direito de preferir na alienação da fracção.
31. Depois de terem tido conhecimento do negócio e dos seus elementos essenciais, os autores diligenciaram no sentido de contratar advogado, a quem forneceram os elementos e informações necessários ao patrocínio deste processo, a quem terão, no final de pagar honorários, que rondarão a quantia de € 3.000, a que acrescerá o IVA em vigor, hoje à taxa de 19%.
32. Os autores tiveram que reunir e, inclusive, retirar de depósitos a prazo a quantia de 50.908,62 euros que depositaram à ordem deste Tribunal para poderem exercer a preferência.
33. Os autores estão desde 19.11.2002 privados das vantagens, utilidades e rendimentos que tal importância lhes proporcionaria se estivesse na sua disponibilidade, e que se traduziriam, pelo menos, nos juros por que seria remunerada aquela importância se ficasse aplicada financeiramente a prazo de um ano e a render juros para os Autores.
34. Os autores, pessoas idosas e doentes, têm andado apreensivos e preocupados, até pela sua impreparação jurídica, pela incerteza do resultado do processo.
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III - Fundamentação de direito
A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado, como se sabe, pelas conclusões da alegação dos apelantes (art.ºs 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil), passam pela análise e resolução das seguintes questões jurídicas por eles colocadas a este tribunal:
q Têm, ou não, os apelantes o direito de haverem para si, em substituição do réu F..., a fracção autónoma;
q As rés C... e E... devem indemnizar os apelantes.
Abordemos, então, cada uma dessas questões.
1 - Os apelantes têm, ou não, o direito de haverem para si, em substituição do réu F..., a fracção autónoma.
O direito de preferência atribui ao seu titular, em caso de alienação da coisa sobre que incide, a prioridade na sua aquisição, e manifesta-se através da acção de preferência em que o preferente pode fazer seu o direito alienado, dando o tanto pelo tanto, se o preferente estiver escudado em pacto com eficácia real ou o seu direito resultar da lei (preferência legal) Cfr. José Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 5ª edição, págs. 571 e 577, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 8ª, edição, pág. 409, Jorge Leite Areias Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, Vol. I, Almedina, pág. 291, e ac. do STJ de 7/7/94, CJ/STJ, ano II, Tomo III, págs. 51 e 52..
No caso, a preferência exercitada pelos apelantes filia-se, em primeiro lugar, no pacto de preferência escrito celebrado entre eles e os pais das rés C... e E..., em 05 de Abril de 1990, através do qual estes assumiram a obrigação de dar àqueles preferência na venda, entre outras, da fracção autónoma ora objecto de preferência (art.º 414º do Cód. Civil). Trata-se, portanto, de preferência convencional a que não foi atribuída eficácia real (art.º 421º, nºs 1 e 2 do Cód. Civil), pelo que, mesmo a existir na titularidade dos apelantes a invocada preferência, a sua violação por banda das rés C... e E... apenas daria lugar a indemnização. Nunca os apelantes poderiam chamar a si a fracção autónoma alienada Cfr., neste sentido, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, págs. 168/169, e Manual dos Contratos em Geral, 4ª edição, págs. 238/239, Mário Júlio de Almeida Costa, obra citada, págs. 408/409, e Jorge Leite Areias Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, Vol. I, Almedina, págs. 289 e 291. , propósito que estava, pois, votado ao fracasso, desde o início.
Sucede que a obrigação de preferência assumida pelos pais das referidas rés revestiu natureza pessoal, intuiti personae, e consequentemente não se transmitiu às filhas, com a morte dos obrigados, a última das quais ocorrida a 19 de Outubro de 1995 (art.º 420º do Cód. Civil), na medida em que nada se estipulou em contrário nem resulta sequer da própria natureza do pacto Cfr., a este propósito, Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil anotado, 1ª edição, I Volume, pág. 279. . Aliás, nada foi alegado pelos apelantes a respeito da eventual transmissibilidade da obrigação de preferência em resultado da própria natureza do pacto ou de estipulação nesse sentido feita pelas partes.
Assim sendo, parece-nos óbvio que, por essa via, não podiam os apelantes arrogar-se de preferentes perante as rés C... e E... na venda da fracção autónoma em causa efectuada a 1 de Julho de 1999.
No entanto, os apelantes radicam também a preferência que exercitam na carta que aquelas rés lhe enviaram em 24 de Fevereiro de 1997 e na resposta que o apelante lhes remeteu em 5 de Março de 1997. Acham que essas duas cartas consubstanciam um novo pacto de preferência ou contrato-promessa, através do qual as rés teriam assumido ex nuovo a obrigação de lhes dar preferência. Só que se esquecem que as rés, ao enviarem a carta aos apelantes, agiram na convicção errónea de que estavam vinculadas à preferência e, não fora isso, não teriam remetido tal carta.
Significa isto que não houve da parte delas intuito de criar ou estabelecer um novo vínculo preferencial a favor dos apelantes, pelo que nunca se poderia ter aperfeiçoado o pretenso pacto de preferência pelo qual estes também pugnam. É que o sentido da declaração constante dessa carta não pode razoavelmente ter o alcance que os apelantes lhe atribuem (art.º 236º, n.º 1 do Cód. Civil) e, além disso, atento o dissenso em que, nessa troca de correspondência, ainda permaneciam as rés e os apelantes, o invocado contrato seja promessa ou pacto preferencial não chegou a concluir-se (art.ºs 232º e 233º do Cód. Civil) Cfr., a este propósito, Heinrich Ewald Horster, A Parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 1992, págs. 455 e 465, e Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2003, 2ª edição, págs. 322/323..
Afigura-se-nos, por isso, que, ao invés do que sustentam os apelantes, não lhes assiste, também por essa via, direito de preferir na aludida venda.
Saliente-se, aliás, que, mesmo a entender-se que as rés se teriam vinculado ex nuovo à preferência, estaríamos perante preferência convencional desprovida de eficácia real, pelo que a sua violação por banda das rés apenas daria lugar, como antes já se disse, a indemnização e não à substituição do comprador.
Deste modo temos como certo que os apelantes nunca poderiam fazer sua a fracção autónoma alienada Cfr., neste sentido, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, págs. 168/169, e Manual dos Contratos em Geral, 4ª edição, págs. 238/239, Mário Júlio de Almeida Costa, obra citada, págs. 408/409, e Jorge Leite Areias Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, Vol. I, Almedina, pág. 291. , improcedendo tudo o que, a esse propósito, argumentaram e concluíram na sua alegação recursiva.
2 - As rés C... e E... devem indemnizar os apelantes
Já vimos que as rés não estavam obrigadas a dar preferência aos apelantes, pelo que afastada fica a hipótese das mesmas terem que os indemnizar pela violação da obrigação de preferência. Tal indemnização pressupõe, como é óbvio, a existência dessa obrigação e a sua violação e, inexistindo estas, não há lugar àquela.
Contudo, os apelantes filiam a indemnização que peticionaram no art.º 227º do Cód. Civil. Estabelece este que quem negoceia com outrem para a conclusão de um contrato, tanto nos preliminares como na formação dele, deve proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos causados à outra parte.
O conceito de boa fé a que tal normativo se reporta é ético-objectivo e o seu conteúdo terá que aquilatar-se através do confronto das circunstâncias de cada tipo de situação. Agir de boa fé implica actuar com a lealdade, correcção, diligência e lisura exigíveis às pessoas normais face ao circunstancialismo envolvente, segundo o critério da reciprocidade, ou seja, fazendo-o com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, por via de uma conduta honesta, transparente e conscienciosa, com correcção e probidade, sem prejudicar os interesses legítimos da contraparte ou proceder de modo a alcançar resultados não toleráveis por uma consciência razoável Cfr, neste sentido, Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2003, 2ª edição, págs. 326 a 328, Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, pág. 73, e Heinrich Ewald Horster, A Parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 1992, págs. 473/474. .
A esta luz, não parece que as rés tenham agido de má fé, na medida em que, num primeiro momento, altura em que enviaram a carta aos apelantes, estavam convencidas de que aqueles gozavam do direito de preferência, informação jurídica fornecida pelo advogado que então consultaram, e, posteriormente, tendo obtido informação de sentido contrário, decidiram vender a fracção autónoma sem disso lhes dar conhecimento. É certo que, dentro das regras de sã convivência e de cortesia, se impunha que as rés tivessem comunicado aos apelantes que já não lhes davam a preferência, por terem entretanto obtido informação de que não estavam vinculadas à mesma.
No entanto, essa omissão, no seu contexto e conteúdo, não encerra a censurabilidade que os apelantes lhe atribuem nem se afigura adequada a qualificar de má fé a conduta das rés de molde a fazê-las incorrer em responsabilidade pré-contratual e na consequente obrigação de os indemnizar. Aliás, a ruptura das negociações, como modelo típico do desrespeito dos deveres de boa fé na negociação e na conclusão dos negócios, só releva se for injustificada Cfr, neste sentido, Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2003, 2ª edição, págs. 329/330. e as rés tinham motivo para não prosseguir com a negociação encetada, visto que obtiveram entretanto a informação jurídica de que não estavam obrigadas à preferência.
Acresce que a indemnização em causa, neste tipo de responsabilidade, corresponde ao interesse contratual negativo, ou seja, a reparação dos danos que a parte inocente (os apelantes) não teriam sofrido se não fosse a expectativa na conclusão do negócio frustrado ou da vantagem que teriam obtido se aquela expectativa se não tivesse gorado Cfr., a este propósito, Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, 4ª edição, pág. 207, Oliveira Ascensão, Direito Civil – Teoria Geral, 2ª edição, Coimbra Editora, 2003, Volume II, pág. 374, e ac. do STJ de 10/05/01, CJ/STJ, ano IX, Tomo II, pág. 71. e, como bem se ajuizou na parte final da sentença recorrida, tais danos não ocorrem.
Os prejuízos que dizem ter sofrido não podem, a nosso ver, ser imputados às rés, mas sim ao risco normal de uma acção de preferência, a qual, se fossem um pouco mais sagazes e diligentes, sabiam estar votada ao fracasso, na medida em que se trataria apenas de preferência convencional desprovida de eficácia real, o que os dispensaria inclusive do depósito que desnecessariamente efectuaram.
Em suma e para concluir, sobre as rés não recai, contrariamente ao que sustentam os apelantes, a obrigação de os indemnizar, o que implica o total insucesso do recurso e a confirmação do sentenciado em 1ª instância.
IV - Decisão
Pelo exposto decide-se julgar improcedente a apelação e consequentemente confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
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Coimbra, 14 de Dezembro de 2005