Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
869/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: SILVA FREITAS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS SUPERVENIENTES A CONDENAÇÃO A INDEMNIZAR
INSTAURAÇÃO DE NOVA ACÇÃO QUANTO A ESTES NOVOS DANOS
Data do Acordão: 05/16/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA MÊDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 564º, Nº 2, E 566º, Nº3, DO C. CIV.
Sumário: I – Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros (danos emergentes ou lucros cessantes), desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão futura .
II – O artº 566º, nº 3, do C. Civ. preceitua que se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente, dentro dos limites que tiver por demonstrados .

III – Para que o tribunal possa atender a danos futuros é necessário que eles sejam previsíveis com segurança bastante, porque se o não forem não pode o tribunal condenar o responsável a indemnizar danos que não sabe se virão a produzir-se .

IV – Alegando-se em nova acção de condenação a verificação de danos supervenientes resultantes de um acidente de viação relativamente ao qual foi antes instaurada outra acção e aí responsabilizada a Ré pela indemnização então fixada, importa desenvolver uma actividade processual de instrução e de averiguação da matéria de facto controvertida, com vista a decidir-se se devem ou considerar-se como provados os alegados danos supervenientes e, em caso afirmativo, qual o montante indemnizatório que para eles deverá ser fixado .

V – A superveniência de eventuais novos danos, novas lesões/sequelas do mesmo acidente de viação, é questão de mérito que respeita ao fundo da causa e, sendo controvertida, carece de adequada instrução, averiguação e subsequente decisão .

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra



Na Comarca de Mêda, foi instaurada uma acção cível de condenação, com processo ordinário, por A..., residente no lugar de Carapito, concelho de Aguiar da Beira, contra B..., com sede na Av. Fontes Pereira de Melo, n.º 6, Lisboa, com os seguintes fundamentos:
No ano de 1997, correu termos neste Tribunal a acção sumária n.º 91/97, na qual o ora A. demandava a Companhia de Seguros C... (actualmente englobada na ora R. B...) na qualidade de responsável pelos danos resultantes de um acidente de viação de que o A. foi vítima.
Conforme foi alegado no referido processo n.º 91/97, no dia 10 de Fevereiro de 1997, no lugar de Fústia – Barreira, do concelho da Mêda, o A. foi vítima de atropelamento, pelo veículo XC-00-21, ligeiro de mercadorias, conduzido pelo proprietário D....
Na sequência deste acidente, o A. sofreu graves lesões a nível da coluna vertebral e que constam dos relatórios juntos ao processo n.º 91/97.
Entretanto, na acção n.º 91/97, A. e R. chegaram a acordo quanto ao montante indemnizatório aí reclamado pelos danos sofridos e peticionados pelo A., conforme requerimento que consta de fls. 177, apresentado em 09/02/2000.
Porém, posteriormente ao referido acordo, concretamente depois de Agosto de 2002, o A. começou a ter graves problemas de saúde, que se têm arrastado, problemas esses que, à data da transacção, não eram previsíveis, problemas que condicionam toda a sua vida, desde logo o quotidiano diário.
Considerando a gravidade desses danos, as limitações que os mesmos acarretam para a vida do A. e ainda a idade deste (26 anos), a indemnização em causa não deverá ser inferior a 150.000,00 Euros.
Todos os problemas de saúde que o Autor descreveu, tiveram como causa directa e necessária o acidente sofrido pelo Autor em 10 de Fevereiro de 1997.
O Autor não pôde alegar tais danos e sequelas na acção n.º 91/97 (escreveu-se, por lapso, n.º 91/87), uma vez que quer naquela data quer até 2002, nenhum se verificou à excepção de dores musculares e formigueiro nos membros inferiores.
Só posteriormente, em meados de 2002, começou a ter os sintomas descritos nos artigos anteriores da petição inicial.
O Autor concluiu a petição inicial no sentido de que a acção devia ser julgada procedente, e, por via dela, condenando-se a Ré:
a) a reconhecer a sua responsabilidade pela reparação dos danos sofridos pelo Autor e que foram descritos nos artigos 16.º a 43.º da petição inicial;
b) a pagar ao Autor uma indemnização pelos danos morais sofridos quantificados
no montante de 150.000,00 Euros (cento e cinquenta mil Euros);
c) a pagar ao Autor juros à taxa legal vincendos sobre a referida quantia após a citação.
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Na contestação deduzida, a Ré disse o seguinte:
Por excepção:
O direito que o Autor pretende fazer valer nos presentes autos encontra-se prescrito, pois que estão decorridos mais de cinco anos desde a data do acidente ocorrido em 1997.
Mesmo que o Autor alegue a superveniência de factos e de lesões/sequelas, não há qualquer alegação de factos novos que não fossem já conhecidos do Autor à data de 1997.
Já na primeira acção proposta pelo Autor, este alegava estar dependente de terceira pessoa para todos os actos da sua higiene pessoal, estar incapaz para todo e qualquer trabalho que exigisse esforços, que não podia baixar-se, que sofria de rigidez da coluna e até que previa ficar numa cadeira de rodas, realidade que imputava às lesões alegadamente sofridas.
No âmbito desse processo, o Autor foi submetido a perícia médico legal colegial, onde lhe foi fixada uma IPP de 15%, tendo sido de comum acordo que a transacção se realizou naqueles autos.
A demandada já ressarciu o Autor de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do acidente a que se reportam os autos.
Por impugnação:
A Ré impugnou os factos alegados pelo Autor na petição inicial, nos termos do artigo 490.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
E impugnou expressamente o alegado nexo de causalidade entre o acidente de 1997 e as lesões e sequelas alegadas pelo Autor no seu articulado.
As excepções alegadas deviam ser julgadas procedentes, por provadas, com todas as consequências legais.
Mesmo não se entendendo assim, sempre a acção devia ser julgada improcedente, por não provada, com todas as consequências legais.
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O Autor apresentou réplica em que defendeu a improcedência das excepções alegadas, concluindo como na petição inicial.
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Foi dispensada a realização de audiência preliminar.
Proferiu-se despacho saneador em que se decidiu que o conhecimento da excepção da prescrição deveria ser relegado para final.
E decidiu-se julgar improcedente a excepção peremptória do pagamento.
Foram seleccionados os Factos Assentes e foi elaborada a Base Instrutória.
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A Ré interpôs recurso do Despacho Saneador, no tocante à parte em que julgou improcedente a excepção peremptória do pagamento.
O recurso foi admitido como recurso de apelação pelo despacho judicial de fls. 65 dos autos.
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Em doutas alegações apresentadas, a Apelante formulou as seguintes Conclusões:
1ª O estado do processo não permitia uma decisão sobre a excepção peremptória do pagamento, muito menos que a julgasse improcedente.
2ª A superveniência das lesões/sequelas alegadas pelo Agravado em sede de PI está questionada na douta base instrutória e, consequentemente, ainda não há prova dessa mesma superveniência e até do nexo de causalidade entre essas alegadas novas lesões e o acidente.
3ª A decisão sobre a extinção da obrigação de indemnizar, por via do pagamento, só deverá ser tomada a final, quando se decidir sobre a superveniência das lesões alegadas pelo Agravado.
4ª Verifica a ora demandada a violação do disposto, designadamente, no art.º 786.º e seg. do CC.
Nestes termos, deve o douto despacho ser revogado, relegando-se a decisão sobre a excepção para final.
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Em doutas contra-alegações apresentadas, o Apelado formulou as seguintes Conclusões:
1- O despacho saneador não merece qualquer censura, uma vez que a improcedência da excepção peremptória do pagamento não prejudica o direito que a Ré pretende acautelar.
2- Estão em causa danos supervenientes e ainda não indemnizados sem que se tenha colocado em causa o primeiro pagamento efectuado pela Ré.
3- Cabe ao Autor provar que os danos que peticiona nesta nova acção, são supervenientes à acção 91/97. Se tal acontecer, o pagamento efectuado pela Ré não tem qualquer relevância, pois estão em causa novos danos ainda não indemnizados.
4- Nesta acção, o Autor não coloca em causa a indemnização anterior já paga pela Ré, motivo pelo qual o MM Juiz «a quo» não poderia ter decidido de maneira diferente.
Nestes termos, deve o recurso ser improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
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Colhidos os vistos dos Ex.mos Juízes-Adjuntos, cumpre-nos decidir.
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A questão essencial que se debate no presente recurso é a seguinte:
Segundo as alegações da recorrente, o Tribunal «a quo» não tinha ainda prova da superveniência dos danos que o recorrido alegou na petição inicial.
Por isso, não era possível julgar, desde logo, que o pagamento efectuado não era causa extintiva da obrigação de indemnizar, se ainda não estava definido nos autos a superveniência dos danos alegados na petição inicial.
A superveniência dos danos foi alegada pelo Autor, o que não significa que se prove, ou até, que se estabeleça o nexo de causalidade entre essas alegadas lesões/sequelas e o acidente de viação.
O estado dos autos não permitia a decisão sobre a excepção do pagamento, pelo que a mesma deveria ter sido relegada para a decisão final.
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No despacho saneador, e a respeito da excepção peremptória do pagamento como causa extintiva do direito do Autor, foi entendido que:
- os danos invocados pelo Autor nesta acção referem-se, alegadamente, a danos não verificáveis no momento da transacção efectuada no processo n.º 91/97;
- o ressarcimento de danos decorrentes do acidente de viação, ocorrido no dia 10/2/1997, referem-se aos danos determináveis e previsíveis naquela altura, de modo que era patente não se ter como verificado o pagamento dos danos ora reclamados, os quais, de acordo com a versão do Autor, são supervenientes;
- em face do exposto, e sem necessidade de mais considerações, foi decidido julgar improcedente a excepção peremptória de pagamento suscitada pela ora recorrente.
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No mesmo despacho saneador, procedeu-se à selecção da seguinte Matéria de Facto:
A)
Correu termos neste Tribunal a acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, n.º 91/97, na qual o ora A. demandava a Companhia de Seguros C... – actualmente englobada na R. – na qualidade de responsável pelos danos resultantes de um acidente de viação, ocorrido em 10 de Fevereiro de 1997.
B)
Nesse dia, no Lugar de Fústia – Barreira, do Concelho da Mêda, foi o A. atropelado pelo veículo automóvel, ligeiro de mercadorias, conduzido pelo seu dono, D....
C)
Em consequência do acidente, o A. sofreu, entre outras lesões, fractura da coluna L1.
D)
Tais lesões determinaram o internamento do A. nos Hospitais da Universidade de Coimbra, durante dois meses, onde foi submetido a intervenções cirúrgicas à coluna vertebral.
E)
Foi transferido para o Hospital Distrital de Viseu, onde permaneceu mais de quinze dias, continuando no regime de consulta externa durante dois meses.
F)
No processo 91/97, A. e R. chegaram a acordo quanto ao montante indemnizatório aí reclamado, pelos danos aí alegados pelo A., conforme requerimento apresentado em 09/02/2000.
Depois, elaborou-se a Base Instrutória com os seguintes pontos de facto:
1.
Na circunstância de tempo e lugar referida em B) dos factos assentes, o A. encontrava-se na berma da estrada atrás do veículo XC, enquanto que D... se encontrava ao volante do mesmo?
2.
Aquele D...pediu ao A. para abrir a porta da bagageira do XC?
3.
Quando a porta já se encontrava aberta, o condutor do XC iniciou a manobra de marcha atrás, sem se ter apercebido que o A. ainda se encontrava atrás do veículo?
4.
Em consequência da acção descrita em 3), o XC derrubou o A. para o chão?
5.
E passou-lhe por cima?
6.
Apercebendo-se dos factos descritos em 4) e 5), e no intuito de retirar o veículo de cima do A., aquele D... conduziu o XC para a frente?
7.
Pelo que o A. se enrolou debaixo do veículo?
8.
Como consequência do acidente, o A. sofreu, para além das lesões referidas em C):
- Pneumotórax à direita?
- Traumatismo da bacia?
- Traumatismo craniano?
9.
Posteriormente ao acordo referido em G) dos factos assentes, depois de Agosto de 2002, e em consequência do acidente de viação, o A. sofreu as seguintes lesões:
a)- incontinência intestinal?
b)- incontinência urinária?
c)- disfunção eréctil?
d)- fortes enxaquecas?
e)- lapsos de memória, confusão e desmaios?
10.
Em consequência das lesões referidas em 9a) e 9b), o A. está impedido de se ausentar por longos períodos de casa, por ficar com a roupa suja e urinada?
11.
O que o obriga a regressar a casa para se mudar?
12.
Ausentando-se por períodos de tempo longos é obrigado a levar peças de roupa, para a eventualidade de as trocar?
13.
O A. acorda a meio da noite todo molhado, sem se ter apercebido que teve necessidade de urinar?
14.
O A. vive na ansiedade de a todo o tempo ter de mudar a roupa?
15.
O que o levou a deixar de conviver com amigos em locais públicos?
16.
Em consequência da lesão mencionada em 9c), o A. desde Novembro de 2003 toma medicamentos, incluindo Viagra?
17.
Não consegue estar sentado por um período longo?
18.
Quando está de pé, o A. sente um formigueiro nas pernas que o obrigam a deitar?
19.
Devido à lesão referida em 9d), o A. é obrigado a fechar-se num local escuro, por não suportar a luminosidade?
20.
Em consequência das lesões referidas em 9d) e 9e), o A. recorreu a consultas de neurologia no Hospital Distrital de Viseu, onde o informaram da possibilidade de sofrer de epilepsia após traumatismo craniano?
21.
E aí está a ser seguido em consulta externa com exames periódicos?
22.
Os factos referidos em 9) a 19) provocaram no A. síndrome depressivo, desgosto, tristeza e humilhação?
23.
O que o obriga a tomar anti-depressivos?
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Como estabelece o artigo 564.º, n.º 2, do Código Civil, «Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior».
Os danos futuros, a que se refere este n.º 2, tanto podem representar danos emergentes como lucros cessantes – (cfr. Prof. Vaz Serra, Obrigação de Indemnização, in Bol. Min. da Justiça, n.º 84, pág. 12 e nota 12).
Só é indemnizável o dano futuro que seja previsível – (cfr. Cons. J. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código Civil, volume III, pág. 36, acórdão da Relação do Porto, de 14 de Fevereiro de 1978, in Col. Jur., Ano III, 1978, tomo 1, págs. 186/187, e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Janeiro de 1980, in Bol. Min. da Justiça, n.º 293, págs. 327/332).
O citado n.º 2 do artigo 564.º manda arbitrar indemnização por danos futuros, desde que sejam previsíveis, mas declara que se não forem determináveis a sua fixação deve ser relegada para decisão ulterior.
E o artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, preceitua que se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente, dentro dos limites que tiver por demonstrados.
Também resulta do artigo 496.º, n.º 3, do Código Civil, que, em matéria de danos não patrimoniais, o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º.
Portanto, o tribunal, ao fixar a indemnização, pode atender a danos futuros, se forem previsíveis; mas, se não forem determináveis, deve a fixação da indemnização ser remetida para decisão ulterior.
«Para que o tribunal possa atender a danos futuros, é necessário que eles sejam previsíveis com segurança bastante, porque, se o não forem, não pode o tribunal condenar o responsável a indemnizar danos que não se sabe se virão a produzir-se; se não for seguro o dano futuro, a sua reparação só pode ser exigida quando ele surgir.
A segurança do dano pode resultar de probabilidades.
Se o dano futuro, embora certo ou previsível com segurança ou probabilidade, não for determinável no seu montante, a fixação da sua indemnização deve ser remetida para decisão ulterior (art. 564.º, n.º 2, 2ª parte), como, por ex., para liquidação em execução de sentença» – (cfr. Prof. Vaz Serra, in Rev. de Leg. e de Jur., Ano 113.º, págs. 326/327, em anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Janeiro de 1980, Boletim n.º 293, pág. 327).
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Cremos que a posição da Apelante parte do princípio de que, tendo efectuado o pagamento, não é obrigada a efectuar o pagamento de qualquer outra indemnização.
No Direito Civil, o pagamento é o cumprimento voluntário de uma obrigação, seja qual for o seu objecto – (cfr. Profª. Ana Prata, in Dicionário Jurídico, 4ª edição, com a colaboração de Jorge Carvalho, pág. 846).
«O devedor cumpre a obrigação, no dizer do artigo 762.º, n.º 1, do Código Civil, quando realiza a prestação a que está vinculado».
O cumprimento da obrigação é a realização voluntária da prestação debitória. É a actuação da relação obrigacional, no que respeita ao dever de prestar.
«Dentro dos quadros sinópticos da relação jurídica, o cumprimento é usualmente tratado como um dos modos de extinção das obrigações.
Antes, porém, de ser uma causa de extinção do vínculo obrigacional, o cumprimento é a actuação do meio juridicamente predisposto para a satisfação do interesse do credor. É o acto culminante da vida da relação creditória, como consumação do sacrifício imposto a um dos sujeitos para realização do interesse do outro».(………).
«Ao mesmo tempo que realiza o cumprimento devido (acção ou omissão a que o devedor se encontra adstrito; prestação debitória), sendo nesse sentido um meio de liberação do devedor, o cumprimento assegura, em princípio, a satisfação do interesse do credor» – (cfr. Prof. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. II, 6ª edição, págs. 7-10).
Porém, há que tomar em consideração o seguinte:
A presente acção foi intentada com a finalidade de ser peticionada uma indemnização por danos supervenientes aos danos que foram alegados na acção sumária n.º 91/97 e à transacção efectuada nesses mesmos autos de acção sumária.
A transacção determinou que as partes na respectiva acção chegassem a acordo quanto ao montante indemnizatório aí reclamado, como resulta da alínea F) da Matéria de Facto Assente.
O pagamento da correspondente indemnização não está em discussão na presente acção.
Com efeito, o próprio Autor confessa no artigo 2.º, da réplica, que é um facto que a Ré indemnizou o Autor por sequelas resultantes do acidente sofrido em 10 de Fevereiro de 1997.
Mas agora trata-se de apurar a eventual verificação de danos supervenientes e resultantes do mesmo acidente de viação.
Para tanto, haverá que desenvolver uma actividade processual de instrução e de averiguação da matéria de facto controvertida, com vista a decidir se se devem considerar provados ou não provados os alegados danos supervenientes, e, em
caso afirmativo, qual o montante indemnizatório que deverá ser arbitrado.
Na medida em que são factos constitutivos do direito alegado, de harmonia com o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, incide sobre o Autor o encargo de provar a ocorrência dos alegados danos supervenientes.
Ora, a Ré e recorrente invocou a excepção do pagamento, no sentido de que se encontrava extinta a sua obrigação de indemnização.
O pagamento não está em discussão quanto ao ressarcimento dos danos verificados e apurados na acção n.º 91/97.
Porém, agora, o objecto da presente acção consiste em averiguar se se verificou a superveniência de danos, não determinados, nem verificados, no decurso daquela acção n.º 91/97, e que, por conseguinte, não seriam conhecidos quando foi lavrada a transacção mencionada na alínea F) da Matéria de Facto Assente.
Portanto, o despacho saneador traçou a devida distinção das questões:
- quanto à superveniência dos danos e excepção da prescrição do invocado direito de indemnização, a decisão sobre as respectivas questões foi relegada para a sentença final, por o estado dos autos não permitir a mesma decisão, ou seja, por
o estado do processo não propiciar ainda a demonstração dos necessários elementos de facto que constituíssem os pressupostos indispensáveis, o antecedente factual e lógico, da decisão;
- quanto à excepção do pagamento, o despacho saneador pronunciou-se pela sua improcedência, porque o Autor confessou que a Ré pagou a indemnização relativa aos danos que foram apurados e verificados na acção sumária n.º 91/97, pagamento esse que não está em discussão nesta acção, e porque agora se trata de apurar se ocorreu ou não a verificação de danos supervenientes, por isso que, danos que não terão sido verificados e demonstrados no decurso da acção n.º 91/97, não estando, consequentemente, abrangidos no âmbito da transacção lavrada nessa mesma acção.
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Em abono deste entendimento, pode invocar-se o que decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 28.11.96, Proc. 290/96, 2.8 Sec., citado no acórdão da Relação de Lisboa, de 5 de Dezembro de 2000:
«Tendo o autor declarado no recibo de quitação de indemnização paga pela seguradora que renunciava a todos os direitos de acção judicial e indemnização que lhe pudessem caber, em virtude do mesmo acidente, o declaratário normal, colocado na posição do réu, não podia entender tal declaração senão como respeitando apenas aos prejuízos desse lesado sofridos até ao momento de tal declaração».
E, na sequência da transcrição do assim decidido, considerou-se também no mencionado acórdão da Relação de Lisboa:
«O sentido de uma tal declaração, dedutível por um «declaratário normal», para o
efeito prevenido no art.º 236.º-1 do CC, só precipitada e levianamente poderia compreender os danos futuros, desde logo pela consabida imprevisibilidade das consequências de lesões traumáticas da gravidade das dos autos.
Entendimento diverso levaria, nos casos em que sobrevêm a morte do lesado, por forma não previsível na época da quitação por ele dada, por evolução não prevista das lesões sofridas, à conclusão de que lhe estaria vedado, por obra de tal quitação, o direito, transmissível por sucessão, de ser indemnizado.
Ainda quando, porém, se admitisse que o texto do documento de quitação suscitasse legítima dúvida sobre a inclusão, ou não, de danos futuros, sempre se deveria acolher, nos termos do art.º 237.º do CC, o sentido conducente ao maior equilíbrio das prestações. E não sofre dúvida que uma interpretação inclusiva daqueles prejuízos levaria a um severo desequilíbrio, pela exclusão da reparação de danos posteriormente sobrevindos» – (cfr. Col. Jur., Ano XXV, 2000, tomo V, págs. 120-121).
No caso «sub judice», a ora recorrente não referiu que o Autor tivesse emitido um recibo de quitação de indemnização paga, em que renunciasse a todos os direitos de acção judicial e indemnização que lhe pudessem caber, em virtude do questionado acidente de viação.
A aqui recorrente invocou tão-somente a excepção do pagamento.
Porém, o que tentámos demonstrar, com a citação daquelas decisões, é que nelas se encontra subjacente o mesmo ou idêntico entendimento que julgamos ser o defensável, em termos de razoabilidade, para a interpretação e resolução da questão concreta colocada à apreciação do Tribunal.
O pagamento efectuado, na sequência da transacção lavrada na acção sumária n.º 91/97, não pode ser interpretado como abrangendo todos os danos futuros, se vier a demonstrar-se que, posteriormente à transacção, se revelou a superveniência de novos danos, resultantes do mesmo acidente de viação, mas não averiguados, nem apurados, no decurso da acção sumária n.º 91/97, e, por isso, não previstos na mencionada transacção.
A superveniência de eventuais novos danos, novas lesões/sequelas do mesmo acidente de viação, é questão de mérito que respeita ao fundo da causa, e, sendo controvertida, carece de adequada instrução, averiguação e subsequente decisão.
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Julgando que não foram violadas as normas legais invocadas pela recorrente, cremos que deve concluir-se pela improcedência das conclusões das doutas alegações que foram apresentadas.
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Nos termos expostos, acordam nesta Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, e, em consequência, confirmam a douta decisão recorrida.
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Custas pela recorrente.
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Coimbra,