Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
222/19.0GBSRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO NOVAIS
Descritores: QUEIXA
ACUSAÇÃO
NULIDADE
Data do Acordão: 09/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA SERTÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 48.º, 49.º, 50.º, 119.º, AL. D), 241.º, 283.º, 284.º E 285.º, DO CPP
Sumário: I - Não é exigida a perfeita coincidência entre a narração, mais ou menos imprecisa, da queixa e a descrição, concreta e circunstanciada, da acusação.

II – A queixa traduz uma descrição do acontecimento naturalístico ocorrido, do “pedaço de vida” relativamente ao qual o ofendido pretende procedimento criminal, ou seja, consubstancia uma manifestação de vontade do ofendido de início e de prosseguimento de processo de natureza criminal contra o denunciado pela prática de um determinado crime.

III – Já a acusação, reforçando o mesmo propósito, visa horizonte mais vasto, imputando-se nela ao arguido, em termos concretos, os factos e os crimes que os factos consagram.

Decisão Texto Integral:


Acórdão da 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

 I -  Relatório

1.1.   MN e MF,  vieram interpor recurso da  sentença proferida pelo Juízo de Competência Genérica da Sertã, do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, que condenou o arguido MN pela prática dois crimes de injúria e a arguida MF pela prática de um crime de injúria, ambos p. p. pelo artigo 181º, nº 1 do Código Penal, nas penas, respectivamente, de 120 dias de multa (em cúmulo jurídico), à taxa diária de € 6,00, no total de € 720,00, e de 80 dias de multa, à taxa diária de € 8,00, no total de € 640,00

1.2. No 1º recurso, interposto pela arguida MF, (que designaremos por recurso A) a recorrente apresentou as seguintes conclusões:

(...)
III.  Por esse motivo o douto acórdão objecto de recurso é impugnado por motivos de facto e de direito.
IV. A Assistente quando efectuou queixa junto da GNR, em 12/09/2019, quanto a factos, por esta declarados, cujo já tinham sucedido há cerca de quatro meses, que alegadamente, em 27/05/2019 pelas 10h, nunca referiu que também se terão passado no referido dia 27/05/2019 no período da tarde, mas somente pelas 10h, cfr. resulta da queixa apresentada e do 5.º da acusação particular.
V. E ainda declarou na referida queixa “que os suspeitos, MN e MF, se aproximaram junto da denunciante proferindo as seguintes expressões: “és uma cabra como ela, és uma puta, põe-te na ponta do caralho, vamos te fazer a folha, entre outras…” várias vezes os mesmos nomes acima mencionados, fazendo-o de voz alta e de bom som, era mesmo aos gritos, de forma que todos os presentes ouvissem.”
VI. Sendo que na acusação particular deduzida já são imputados factos injuriosos diferentes e discriminadamente a cada Arguido, ou seja, na acusação particular refere em 3.º que o Arguido, de manhã, terá dito “em voz alta por forma a ser ouvido por várias pessoas e em tom de voz exaltada dirigindo-se à assistente disse-lhe “Vai-te embora daqui sua vaca, és uma puta, isso não é teu, não tens nada que estar aqui. “E que a seguir ao almoço, o arguido terá dito-lhe, novamente, “sua cabra, não prestas, és uma puta”, e que a Arguida também se dirigiu à Assistente e disse “és uma puta, és uma cabra como ela (referindo-se à D. N… põe-te na ponta do caralho, não prestas, sai daqui, vai para o caralho”.
 VII.  A Assistente quando fez queixa, em data mais próxima da alegada concretização dos factos, referiu uma situação diferente da que depois vem referir na acusação particular.
VIII.  Assim, a falta de queixa relativamente a factos descritos na acusação particular, dentro do prazo que alude o art. 115.º n.º 1 do Código Penal, enquanto pressuposto da procedibilidade obsta ao conhecimento do mérito da causa.
IX.  Narrando na acusação particular factos que não foram objecto de queixa, não tendo estes sido objecto de investigação no inquérito, existe uma nulidade insanável, prevista no art. 119 alínea d) do CPP, que remete para a “falta de inquérito nos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade.”
X. Nestes termos a acusação particular deduzida contra os aqui Arguidos deverá ser declarada nula.


(…).
XXXIX. Termos em que e nos demais de direito aplicável, deve ser dado provimento ao presente recurso e ser revogada a douta sentença recorrida tendo, em consequência, a Recorrente, de ser absolvida pelo crime de injúria de que vem condenada, p.p. pelo artigo 181º do C. Penal.
 
1.3. No 2º recurso (recurso B), o arguido MN concluiu:
 A) O presente recurso tem como objeto toda a matéria da sentença condenatória, nomeadamente factos e direito, tanto ao nível penal/criminal como a nível cível, proferida nos presentes autos, pela qual o arguido foi condenado na prática de dois crimes de injúria (artigos 181 nº 1 do Código Penal).
B) As presentes motivações demonstram o inconformismo do recorrente em relação ao erro notório da apreciação da prova e erro na aplicação do direito, beliscando a sentença recorrida nomeadamente a norma contida no art. 410 nº 2 al. a) b) e c) C.P.P.
C) A livre convicção do julgador tem que ser objetiva e motivada de modo a permitir um controlo pelos destinatários da mesma, designadamente pela sociedade e pelos tribunais de recurso, o que não sucede in casu.
D) O teor da acusação particular é completamente diverso do teor da queixa crime apresentada (fls 30 e 31, auto lido em audiência de julgamento cfr. ficheiro 20201008105504_1790050_2870698 entre minuto 15.34 e 19.16), na medida em que inicialmente a assistente se refere expressamente somente as 10 horas da manhã do dia 27/05/2019, relatando que ambos os arguidos se aproximaram junto da  denunciante para proferir as alegadas injurias, ao passo que posteriormente na acusação particular são relatados factos relativos às 10 da manha em relação ao arguido MN e outra factualidade relativa à tarde, depois de almoço, que já inclui também a arguida MF, sendo que esta nem estava alegadamente junto à assistente mas à varanda de sua casa.
E) Dispõe o artigo 119 alínea d) do C.P.P que “Constitui nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento….: a falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade.”
F) Verifica-se por conseguinte a nulidade da acusação particular por na mesma constarem factos inexistentes na queixa-crime apresentada, em relação aos quais os arguidos não foram confrontados no inquérito.

(…)..

     

1.4. O Ministério Público junto ao tribunal a quo respondeu ao recurso A, terminando com as seguintes conclusões:

1. A Arguida MF foi condenada pela prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181º, n.º 1 do Código Penal, na pena única de 80 (oitenta) dias de multa, à razão diária de € 8,00 (oito euros).

2. Não se conformando com tal condenação, dela interpôs recurso a Arguida, invocando nulidade insanável da acusação particular deduzida, que os factos dados como provados como 3 a 13, e 14 a 16 deveriam ter sido dados como não provados e ainda que os factos não preenchem objetivamente a prática de crime de injúrias.

3. No que concerne à matéria de facto provada, com referência à acusação particular deduzida não resulta que tenha ocorrido qualquer nulidade, por não ter extravasado qualquer “pedaço de vida” relativamente aos factos denunciados pela assistente.

4. A acusação particular deduzida, que delimita o objeto do processo, reportou-se ao mesmo pedaço de vida deduzido na queixa.

(…).

19. Pelo que deverá ser julgado improcedente a argumentação aduzida pelo Recorrente.

 20. Não violou o Tribunal a quo qualquer norma ou, bem assim, quaisquer princípios jurídico-penais e/ou constitucionais.

1.5. E o mesmo Ministério Público junto à 1ª instância, respondeu ao recurso B, concluindo:

1. O Arguido MN foi condenado pela prática de dois crimes de injúria, previsto e punido pelo artigo 181º, n.º 1 do Código Penal, na pena única de 120 (cento e vinte) dias de multa, à razão diária de € 6,00 (cinco euros).

2. Não se conformando com tal condenação, dela interpôs recurso o Arguido, invocando nulidade insanável da acusação particular deduzida e ainda que os factos dados como provados como 3, 5, 8, 9, 10, 14, 15 e 16 deveriam ter sido dados como não provados.

3. No que concerne à matéria de facto provada, com referência à acusação particular deduzida não resulta que tenha ocorrido qualquer nulidade, por não ter extravasado qualquer “pedaço de vida” relativamente aos factos denunciados pela assistente.

4. A acusação particular deduzida reportou-se ao mesmo pedaço de vida deduzido na queixa. 

(…).

18. Pelo que deverá ser julgado improcedente a argumentação aduzida pelo Recorrente.

 19. Não violou o Tribunal a quo qualquer norma ou, bem assim, quaisquer princípios jurídico-penais e/ou constitucionais.

1.6.  A assistente respondeu ao recurso A, concluindo:
1ª – Por douta sentença proferida em nos autos, decidiu o Tribunal a quo, condenar a arguida pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artº 181º nº 1 do Código Penal, em pena de multa e ainda decidiu condenar a arguida no pagamento da quantia de €200,00 de indemnização á demandante a titulo de danos não patrimoniais.
2ª - Considerando as conclusões da motivação da recorrente, retira-se, em nosso entender, que esta coloca á apreciação deste Venerando Tribunal as seguintes questões a apreciar:
- Existência de nulidade insanável da acusação particular;
- Existência de erro na apreciação da prova;
- Requerendo a apreciação da douta sentença relativamente à matéria de facto.
3ª - Entendemos não assistir qualquer razão à recorrente, pois a douta sentença ora recorrida não merece qualquer reparo, tendo a MM.ª Juiz “a quo” julgado com acerto e perfeita observação dos factos e da Lei aplicável e analisou minuciosamente todas as questões levantadas nos autos, dando-lhes a solução jurídica adequada, de acordo ou tendo em conta o principio da livre apreciação da prova.
4ª – Os factos provados, são com referencia á acusação particular deduzida, sendo que é esta que delimita o objecto do processo, não existindo, portanto, qualquer nulidade por referência aos factos denunciados pela assistente.
5ª - É a acusação (e não a queixa) que deve conter a narração do pedaço ou história de vida mencionado na queixa que originou o processo. Através da queixa, o titular do respectivo direito imputa ao denunciado uma determinada conduta, um concreto comportamento.
Não se exige, contudo, que a descrição dos factos da acusação seja ipsis verbis a que consta na queixa, nem que todos os factos da primeira tenham correspondência total na última.
6ª - O que se impõe ao titular do direito, é que este manifeste inequivocamente a sua vontade de prosseguimento de processo contra a denunciada pela prática de um determinado crime, o que sucede neste caso e é a dedução da acusação particular que determina o prosseguimento do processo.
7ª - Não assiste, assim, razão á recorrente quando defende a nulidade insanável da acusação particular.
(…).

1.7.  E a assistente respondeu ainda ao recurso B, rematando:
1ª – Por douta sentença proferida em nos autos, decidiu o Tribunal a quo, condenar o arguido pela prática de dois crimes de injuria, p. e p. pelo artº 181º nº 1 do Código Penal, em pena de multa e ainda decidiu condenar o arguido no pagamento da quantia de €350,00 de indemnização á demandante a titulo de danos não patrimoniais.
2ª - Considerando as conclusões da motivação dos recorrentes, retira-se, em nosso entender, que estes colocam á apreciação deste Venerando Tribunal as seguintes questões a apreciar:
- Existência de nulidade insanável da acusação particular; - Existência de erro na apreciação da prova;
- Requerendo a apreciação da douta sentença relativamente á matéria de facto.
3ª - Entendemos não assistir qualquer razão ao recorrente, pois a douta sentença ora recorrida não merece qualquer reparo, tendo a MM.ª Juiz “a quo” julgado com acerto e perfeita observação dos factos e da Lei aplicável e analisou minuciosamente todas as questões levantadas nos autos, dando-lhes a solução jurídica adequada, de acordo ou tendo em conta o principio da livre apreciação da prova.
4ª – Os factos provados, são com referencia á acusação particular deduzida, sendo que é esta que delimita o objecto do processo, não existindo, portanto, qualquer nulidade por referência aos factos denunciados pela assistente.
5ª - É a acusação (e não a queixa) que deve conter a narração do pedaço ou história de vida mencionado na queixa que originou o processo. Através da queixa, o titular do respectivo direito imputa ao denunciado uma determinada conduta, um concreto comportamento. Não se exige, contudo, que a descrição dos factos da acusação seja ipsis verbis a que consta na queixa, nem que todos os factos da primeira tenham correspondência total na última.
6ª - O que se impõe ao titular do direito, é que este manifeste inequivocamente a sua vontade de prosseguimento de processo contra o denunciado pela prática de um determinado crime, o que sucede neste caso e é a dedução da acusação particular que determina o prosseguimento do processo.
7ª - Não assiste, assim, razão ao recorrente quando defende a nulidade insanável da acusação particular.

(…).

         1.8. No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ministério Público junto ao Tribunal da Relação, aderindo à resposta aos recursos apresentada pelo Ministério Público junto ao tribunal a quo, terminando no sentido de ser negado provimento a ambos os recursos, confirmando-se a decisão recorrida.

II -  Fundamentação de Facto

São os seguintes os factos considerados provados na decisão sob recurso:

 1. No dia 27 de maio de 2019, cerca das 10,00 Horas, numa propriedade rústica sita na zona do Capitólio, na vila da Sertã, onde a assistente se encontrava a acompanhar a D. N. e o Sr. C que se encontrava a colocar uma vedação no dito prédio rustico, abeirou-se deles e da assistente, o arguido MN, que dirigindo-se diretamente à assistente lhe disse em tom de voz exaltado e agressivo “Quem é que vos mandou colocar uma vedação”.

2. A assistente respondeu que “A mim não tem que me dizer nada, tem que dizer ao dono do terreno”.

3. Após o que o arguido, em voz alta e por forma a ser ouvido por várias pessoas e em tom de voz exaltada dirigindo-se à assistente disse-lhe “Vai-te embora daqui sua vaca, és uma puta, isso não é teu, não tens nada que estar aqui.”, expressões que proferiu por diversas vezes.

4. O arguido só abandonou o local quando a assistente lhe disse que chamaria a GNR.

5. No mesmo dia e no mesmo local, a seguir ao almoço, quando a assistente, a D. N e o Sr. C, retomaram os trabalhos de colocação da vedação, o arguido MN, apareceu novamente no local, abeirando-se de todos eles dirigiu-se para a assistente dizendo-lhe “sua cabra, não prestas, és uma puta” o que disse em voz muito alta, aos gritos, por forma a ser ouvido por várias pessoas como efetivamente foi.

6. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, nas proximidades do local, surgiu à varanda de uma residência a arguida MF, que dirigindo-se também à assistente disse” és uma puta, és uma cabra como ela (referindo-se à D. N…), põe-te na ponta do caralho, não prestas, sai daqui, vai para o caralho”.

7. O que igualmente repetiu por diversas vezes, em alta voz, por forma a ser ouvida por várias pessoas, como efetivamente foi.

8. O arguido MN, com a conduta supra descrita tinha consciência de estar a atingir o bom nome, honra e consideração da assistente, o que efetivamente conseguiu, pois a assistente sentiu-se e sente-se envergonhada, enxovalhada e ofendida no seu bom nome, honra e consideração tendo ficado atingida emocional e psicologicamente.

9. Até porque tais palavras foram proferidas em voz alta e por forma a serem ouvidas por terceiras pessoas, como efetivamente foram.

10. O arguido agiu deliberada livre e conscientemente, bem sabendo que a sua atuação é ilícita e penalmente censurável, bem sabendo que as expressões que dirigiu à assistente eram idóneas a causar, como causaram, lesões na honra, nome e dignidade da assistente.

11. A arguida MF, tinha consciência de estar a atingir o bom nome, honra e consideração da assistente, o que efetivamente conseguiu, pois a assistente sentiu-se e sente-se envergonhada, enxovalhada e ofendida no seu bom nome, honra e consideração, na sua dignidade enquanto pessoa humana, tendo ficado atingida emocional e psicologicamente.

12. Até porque tais palavras foram proferidas em voz alta e por forma a serem ouvidas por terceiras pessoas, como efetivamente foram.

13. A arguida agiu deliberada livre e conscientemente, bem sabendo que a sua atuação é ilícita e penalmente censurável, bem sabendo que as expressões que dirigiu à assistente eram idóneas a causar, como causaram, lesões na honra, nome e dignidade da assistente.

 

           III – Fundamentação de Direito

           Apreciando e decidindo

           a) O objecto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995).   

           b) Cada um dos arguidos apresentou o seu recurso; todavia, as questões a apreciar em ambos os recursos são essencialmente as mesmas, com exceção da iii.            

           Assim, cabe apreciar:                

           i)  Se ocorre a nulidade insanável da acusação particular, uma vez contém factos quer não estão abrangidos pela queixa apresentada, verificando-se quanto a esses factos extinção do direito de queixa; 

           ii) Se foram erradamente dados como provados os factos 3 a 13 e 14 a 16, devendo antes os mesmos serem considerados factos não provados;

           iii) Caso improceda a impugnação da matéria de facto, saber se  as expressões proferidas constituem a prática de crime de injúrias, defendendo a recorrente que as expressões “puta”, “cabra”, constituem «utilização de linguagem desbragada, manifestação de alguma falta de educação por parte de quem a profere» e que, por conseguinte, “tal comportamento embora socialmente desconsiderado, visto como ordinário e violador das normas consuetudinárias da ética e da moral, é destituído de relevância penal» (questão apenas levantada no recurso A).  

       

    d) Quanto à primeira questão, defendem os recorrentes que ocorre a nulidade da acusação particular, nos termos do  artigo 119º, alínea d), do C.P.P uma vez que o “o seu teor é completamente diverso do teor da queixa crime apresentada  (…) na medida em que inicialmente a assistente se refere expressamente somente às 10 horas da manhã do dia 27/05/2019, relatando que ambos os arguidos se aproximaram junto da  denunciante para proferir as alegadas injurias, ao passo que posteriormente na acusação particular são relatados factos relativos às 10 da manha em relação ao arguido MN e outra factualidade relativa à tarde, depois de almoço, que já inclui também a arguida MF  - conclusões III a X do recurso A, e conclusões  A) a F) do recurso B.

           Na queixa apresentada pela assistente, esta declarou que (…) no período e local mencionado nos autos (27/05/2019, pelas 10h00, 11/09/2019, pelas 20h00), quando se encontrava a ajudar uma amiga de nome N, juntamente com o Sr, C, testemunhas identificadas em auto, a colocar uns paus tratados para uma vedação numa propriedade/terreno rústico, de herdeiros de F, irmão de N, foi injuriada pelos suspeitos MN e MF, já devidamente identificados em item próprio”.

           Assim, é certo o que afirma a arguida no recurso A; naquela queixa apresentada pela assistente, não houve referência a que alguns dos factos se terão passado no referido dia 27/05/2019 no período da tarde, mas somente pelas 10h, ao contrário do que sucede na no art 5.º da acusação particular.

          Assim como corresponde à verdade o que afirma a arguida, relativamente à não coincidência exacta entre a queixa apresentada e a acusação particular posteriormente deduzida, uma vez que na queixa a assistente referiu que os arguidos disseram “és uma cabra como ela, és uma puta, põe-te na ponta do caralho, vamos te fazer a folha, entre outras…” várias vezes os mesmos nomes acima mencionados, fazendo-o de voz alta e de bom som, era mesmo aos gritos, de forma que todos os presentes ouvissem.”, enquanto na acusação particular “são imputados factos injuriosos diferentes e discriminadamente a cada Arguido, ou seja na acusação particular refere em 3.º que o Arguido, de manhã, terá dito “ em voz alta por forma a ser ouvido por várias pessoas e em tom de voz exaltada dirigindo-se à assistente disse-lhe “ Vai-te embora daqui sua vaca, és uma puta, isso não é teu, não tens nada que estar aqui”. E que a seguir ao almoço, o arguido terá dito-lhe, novamente, “sua cabra, não prestas, és uma puta”, e que a Arguida também se dirigiu à Assistente e disse “és uma puta, és uma cabra como ela (referindo-se à D. N), põe-te na ponta do caralho, não prestas, sai daqui, vai para o caralho”.

         

e) Mas será que as assinaladas discrepâncias entre a queixa e a acusação particular tonam esta nula?

Vejamos:

          Queixa, «é o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respetivo direito (em regra o ofendido), exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada» - Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, p. 663, Aequitas, Editorial Notícias, 1993. Nem o Cód. Penal, nem o Cód. Proc. Penal determinam a forma como deve ser apresentada a queixa (não se exigindo sequer que revista a forma escrita), pelo que tem sido entendido, face ao objectivo primordial da apresentação da queixa acima referido, que a mesma deve revestir qualquer forma, desde que da mesma resulte a manifestação de vontade, do titular do interesse protegido pela norma, em perseguir criminalmente determinado facto -  Figueiredo Dias, ibidem, pág. 665 e ss.

Em suma, qualquer forma de manifestar aquela vontade é assim admissível, não tendo os factos alegados que estar totalmente esclarecidos ou alegados, sendo essa a posterior função do processo, designadamente da fase de inquérito, sendo irrelevante a omissão ou a errada qualificação jurídica dos mesmos – cfr. Conde Correia, Comentário Judiciário do C.P.P., T. I, p. 522, Ed. Almedina.

f) Quanto à acusação particular, exigida para determinados tipos de crimes, constituindo um reforço da vontade do ofendido para que se verifique o procedimento penal já anteriormente manifestado através da apresentação da queixa, não se confunde com esta, indo para além dela.

          Já não está apenas em causa, como na queixa, possibilitar o exercício da acção penal (ou impedir esse exercício através da desistência da queixa); está em causa o exercício dessa mesma acção penal, independentemente do próprio Ministério Público.

          E uma vez que a acusação particular se relaciona com o verdadeiro exercício da acção penal, facilmente se compreende que a lei exija muito mais do que uma simples manifestação de vontade, sem especiais formalidades, como ocorre na queixa. Por esse motivo, a nossa lei estabelece expressamente a forma que deve revestir a acusação particular devendo respeitar – por remissão do 285º, nº 3 do C.P.P. – o disposto no art. 283º, 3, 7 e 8 do mesmo código; Ou seja, tem necessariamente que conter as especificações exigidas quanto à acusação pública, mormente a «narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada»  - cfr. al. b)  do n.º 3 do art 283º do C.P.P.

          Como é sabido, é de grande relevância a descrição dos factos na acusação: o objecto do processo é o objecto da acusação, no sentido de que é esta que fixa os limites da actividade cognitiva e decisória do tribunal, ou, noutros termos, o thema probandum e o thema decidendum - cfr. Ac. do S.T.J. de 13.10.2011, proc. n.º 141/06.0JALRA.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt; A estrutura acusatória do processo, o princípio do contraditório, bem como o direito de defesa, levam a que, de acordo com o denominado princípio da vinculação temática, os poderes de cognição do tribunal estejam delimitados pelo conteúdo da acusação – cfr. Ac.  desta Rel. de Coimbra, de 15-4-2015, processo n.º 992/12.1TAVIS.C1, disponível no mesmo sítio.

         

g) Daqui resulta, que se na queixa se deve fazer referência ao acontecimento relativamente ao qual o ofendido pretende que ocorra uma reacção penal, assim se definindo a amplitude da investigação em sede de inquérito e da própria acusação, não se exige a perfeita coincidência entre a narração mais ou menos imprecisa desse acontecimento, e a descrição concreta e circunstanciada exigida numa acusação. Na queixa o que se pretende é uma descrição do acontecimento, ou “pedaço de vida”, relativamente ao qual o ofendido pretende procedimento penal; impõe-se apenas a manifestação da vontade no prosseguimento de processo crime contra o denunciado pela prática de um facto ou acontecimento que configurará determinado crime.

          Já na acusação, reforçando-se a mesma manifestação de vontade, vai-se mais longe, imputando-se ao arguido, em termos precisos e concretos, os factos, e os crimes.

         

h) Regressando ao caso concreto, constata-se que a assistente apresentou queixa, relatando que nos dias 27/05/2019 e 11/09/2019 “foi injuriada pelos suspeitos MN e MF (…)  e que estes se dirigiram à assistente afirmando “és uma cabra como ela, és uma puta, põe-te na ponta do caralho, vamos te fazer a folha, entre outras…”.

O conteúdo desta queixa permitia que o inquérito, aberto na sua sequência, se debruçasse sobre o comportamento dos arguidos no dia 27/05/2019, quer na parte da manhã (como originariamente constava da queixa), como da parte da tarde (como se especificou na acusação particular); e o conteúdo da mesma queixa, revelava o teor das expressões dirigidas à assistente por cada um dos arguidos, como  posteriormente descritos na acusação particular,  mantendo ligação evidente com as expressões que a assistente imputou indiscriminadamente aos arguidos na mesma queixa.

O que importa é que não restassem dúvidas que a assistente - enquanto titular do interesse que a lei pretendeu proteger com a previsão do crime de injúrias - pretendeu que fosse instaurado procedimento criminal contra os arguidos relativamente ao comportamento daqueles, que lhe teriam proferido expressões que a mesma considerou injuriosas e ofensivas, nos dias assinalados, e essa vontade ocorreu indiscutivelmente.

A tese dos recorrentes, segundo a qual o conteúdo da acusação tem que coincidir exactamente com o teor da queixa, não tem fundamento legal. Nem teria qualquer sentido que assim fosse, já que tornaria quase inútil o próprio inquérito (no qual se indagam os factos e se recolhe prova – art 262º C.P.P.), e a própria posterior dedução de uma acusação. E contrariaria ainda as diferentes finalidades, acima assinaladas, da queixa e da acusação, que impõem que esta última revista uma precisão e uma concretização, não exigíveis àquela.

O recurso improcede assim nesta parte.

(…).


*

IV – Dispositivo

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar totalmente improcedente os recursos interpostos por MF e MN, confirmando-se na íntegra a sentença recorrida.          

Custas pelos recorrentes, com taxa de justiça que se fixa em 4 UC´s.

Coimbra, 22 de Setembro de 2021

João Novais (relator)

Elisa Sales (adjunta)