Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
14/09.5TBMLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
PROCESSO ESPECIAL
REVELIA
Data do Acordão: 12/16/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MEALHADA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: DL Nº269/98 DE 1/9
Sumário: Nos processos destinados a exigir o cumprimento de obrigações emergentes de contrato de valor não superior a € 15.000,00, se o réu, citado pessoalmente, não contestar, o juiz apenas poderá deixar de conferir força executiva à petição, para além da verificação evidente de excepções dilatórias, quando a falta de fundamento do pedido for manifesta, nomeadamente, por não ser, no caso, possível nenhuma outra solução jurídica.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I.RELATÓRIO

A (…)  SA”, sociedade anónima, instituição de crédito (…) , com sede na ...., intentou acção com processo especial de cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos contra B (…) e C (…), ambos solteiros e residentes no ...., pedindo a sua condenação solidária no pagamento de 7.400,53 €, acrescido de 1.520,54 € de juros vencidos até à data da propositura da acção, 13 de Janeiro de 2009; de 60,82 € de imposto do selo sobre os juros vencidos e ainda os juros que se vencerem à taxa nominal de 20,47% desde 14 de Janeiro de 2009 sobre o capital até ao integral pagamento, e imposto do selo que, à sobretaxa de 4%, recair sobre estes juros.

Para tanto, alegou ter celebrado com o réu um contrato de mútuo, destinado à compra de um veículo automóvel, com fiança prestada pela segunda ré, mediante o qual emprestou ao primeiro réu a quantia de 10.075,00 €, à taxa de juro nominal de 20,27% ao ano, a pagar em 60 prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira, no valor de 277,14 €, em 10.09.05, e as restantes no mesmo dia dos ulteriores meses, sendo, a partir de 10.10.2005, no valor de 296,79 €, contabilizando o seguro de vida protecção total, pago por transferência bancária, tendo ainda sido estipulado que a falta de pagamento de uma prestação implicaria o vencimento automático de todas as outras e que, em caso de mora, acresceria a taxa convencionada 4 pontos percentuais

Acrescenta que o réu não pagou a 31ª prestação, vencida em 10.03.05, nem as seguintes, com exclusão da 33ª, 34ª e 35ª, e a entrega de 82,25 € por conta, acrescido das despesas correspondentes à comissão de gestão, ao imposto de selo de abertura de crédito de transferência da propriedade e ao prémio ao seguro de vida.

Regular e pessoalmente citados, os Réus não deduziram oposição.

Foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, condenou a) os réus a pagarem solidariamente à autora a 31ª prestação, no montante de 296,79 €, bem como no pagamento das demais prestações de capital vencidas e não pagas; e, “…em relação a toda a quantia assim determinada com juros de mora calculados à taxa de 20,27 % até ao integral pagamento e no respectivo imposto de selo; b) Descontando o valor da 33ª, 34ª, 35ª prestações liquidadas em 10 Maio, 10 de Junho e 10 de Julho de 2008 e ainda da quantia de 82,25 €. c) Quantias a liquidar ulteriormente, absolvendo no mais os réus do pedido”. As custas foram fixadas na proporção do decaimento, em 1/6 e 5/6, respectivamente, para a Autora e para os Réus, sem prejuízo da ulterior liquidação.

Por não se conformar com tal decisão, dela interpôs a Autora recurso para esta Relação, formulando, com relevo, as seguintes conclusões:

- “Atenta a natureza do processo em causa – processo especial – e o facto de os RR regularmente citados não ter contestado, deveria o Senhor Juiz a quo ter de imediato conferido força executiva à petição inicial, não havendo assim necessidade, sequer, de se pronunciar sobre quaisquer outras questões. (…)”, formulando pretensão de que, concedido provimento ao recurso, seja a decisão recorrida revogada e substituída por outra que condene os Réus, solidariamente entre si, na totalidade do pedido.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


*

II. FUNDAMENTOS DE FACTO

1. Os factos relevantes à decisão da causa são os alegados pela Autora na sua petição inicial, que, na ausência de contestação dos Réus, se têm por confessados, nos termos do disposto no artigo 484º do Código de Processo Civil, os quais, não tendo sido impugnada a matéria de facto, nem havendo qualquer alteração a introduzir-lhe, aqui se reproduzem e mantêm.

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, que o balizam e delimitam, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2].

Considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:

- se, tratando-se de acção com processo especial de cumprimento de prestações pecuniárias emergentes de contrato de valor não superior a € 15.000,00, a falta de contestação dos Réus, regular e pessoalmente citados, permitia outra decisão que não a de conferir força executiva à petição.

2. A decisão recorrida, proferida em processo especial de cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos cujo pedido não excede o valor da alçada da Relação, valorando os factos articulados pela Autora, que considerou confessados face à ausência de contestação dos Réus, devidamente citados, não conferiu força executiva à petição inicial, e, em vez disso, julgou a acção apenas parcialmente procedente, com o argumento, consolidado por extensa esteira jurisprudencial, de que num contrato de mútuo em que se haja clausulado que a falta de pagamento de uma prestação na data do respectivo vencimento tem como consequência o imediato vencimento das demais prestações, tal não pressupõe o vencimento das prestações dos juros remuneratórios que seriam devidos até ao termo do contrato.

Esse é, efectivamente, o entendimento maioritário das instâncias superiores, como se salienta na decisão recorrida, que se escora em diversos acórdãos, que cita.

Destacam-se também, em idêntico sentido, entre outros, os Acórdãos da Relação de Coimbra, de 14.10.2008, 03.03.2009, 10.03.2009, 01.4.2009 (processos nºs 6195/06.2TVLSB e 3816/06.0TJLSB, da Relação do Porto, de 30.10.2008, 20.11.2008, 17.12.2008, 31.3.2009, do Supremo Tribunal de Justiça, de 23.09.2008, 06.03.2008, e os acórdãos uniformizadores de jurisprudência de 14.05.2009 e 25.3.2009[3], tendo este fixado, ainda que sem natureza vinculativa, a seguinte doutrina: “no contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo de cláusula de redacção conforme ao art.º 781º do Código Civil não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporados. ”

Aceitando como o mais adequado o entendimento acolhido pelas diversas decisões mencionadas, importa apurar, porque é sobre tal que versa o objecto deste recurso, se a questão pode ser discutida e apreciada em procedimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações emergentes de contrato de valor não superior à alçada da Relação, em que falte contestação dos Réus, regular e pessoalmente citados.

Com o Decreto -Lei nº 269/98, de 01 de Setembro – dando execução ao disposto no artigo 7º do Decreto – Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro -, criou-se,  no âmbito dos Tribunais de Pequena Instância Cível (alargado depois a todos os tribunais judiciais), um novo processo com tramitação própria, baseado no modelo da acção sumaríssima, mas ainda mais simplificada.

Tal regime jurídico – surgido num contexto histórico de recurso e concessão indiscriminados de crédito ao consumo, e perante a falta de solvabilidade dos que, por este meio, se constituíram devedores -, e que determinou “a instauração de acções de baixa densidade que tem crescentemente ocupado os tribunais, erigidos em órgãos para reconhecimento e cobrança de dividas por parte dos grandes utilizadores”[4], teve em vista a desjudicialização consensual deste tipo de litígios, através da introdução de mecanismos processuais adequados a agilizar a sua resolução, com o objectivo de responder de forma eficaz a tal situação, cujos efeitos perversos já então eram reconhecidos.

Tal regime tem aplicação aos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15.000,00.

 Segundo o artigo 2º do Anexo ao Decreto – Lei nº 269/98 (e não 268/98, como, certamente por lapso, se escreveu na sentença recorrida), de 1 de Setembro, “’se o réu, citado pessoalmente, não contestar o juiz, com valor de decisão condenatória, limitar-se-á a conferir força executiva à petição, a não ser que ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias ou que o pedido seja manifestamente improcedente”.

Como se pode retirar do Acórdão da Relação de Lisboa de 30.04.2009[5], o normativo em causa “prevê (…) sobre o facto positivo da citação pessoal do réu, acrescido do facto negativo de omissão de contestação, e estatui a regra de o juiz se limitar, com valor de decisão condenatória, a conferir força executiva à petição inicial, se não for manifesta a existência de excepções dilatórias ou a improcedência do pedido”.

Ou seja: nas circunstâncias descritas, o juiz apenas poderá decidir de modo diferente ao prescrito naquele artigo 2º quando, ocorra, de modo manifesto excepção dilatória ou causa que determine a improcedência do pedido.

E diz-se que “a pretensão formulada pelo autor é manifestamente improcedente ou manifestamente inviável porque a lei a não comporta ou porque os factos apurados, face ao direito aplicável, a não justificam.

A ideia de manifesta improcedência corresponde à ostensiva inviabilidade o que raro se verifica, pelo que o juiz tem de ser muito prudente na formulação do juízo de insucesso.[6].

Daí que, tal como sustenta o recente Acórdão da Relação de Lisboa, de 20.10.2009[7], “…perante a ausência de contestação do Réu, o juiz apenas poderá deixar de conferir força executiva à petição – para além da verificação de excepções dilatórias – quando a falta de fundamento do pedido for evidente, ostensiva, indiscutível, irrefutável, numa palavra, manifesta”.

Deste modo, o juiz só não conferirá força executiva à petição, na ausência de contestação do réu, devidamente citado, em procedimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações emergentes de contrato de valor não superior a € 15.000,00, se, da simples análise da referida peça processual o magistrado puder emitir um juízo seguro de que a pretensão do Autor não pode proceder por não ter qualquer acolhimento na lei em vigor e na interpretação que dela façam a doutrina e a jurisprudência.

Basta que a pretensão do autor encontre apoio, designadamente, em alguns textos jurisprudenciais, ainda que a doutrina e a jurisprudência tomem posição maioritária em defesa de tese diferente, para que não possa reputar-se a mesma de “manifestamente improcedente”.

É o caso objecto de apreciação: não obstante a prevalência na jurisprudência do entendimento de que no contrato de mútuo liquidável em prestações, o imediato vencimento das prestações em falta, quer ao abrigo do convencionado pelas partes, quer ao abrigo do disposto no artigo 781º do Código Civil, não importa a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporadas, e a estabilidade que os acórdãos uniformizadores de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que, apesar de ausência vinculativa, conferem a esse mesmo entendimento, a existência de posição contrária admitida também na jurisprudência – que existe, designadamente o Acórdão do STJ mencionado na decisão recorrida – é bastante para que não possa qualificar-se, ainda que delimitada a essa concreta questão, de manifestamente improcedente a pretensão da Autora.

Devia, assim, o senhor juiz na decisão que proferiu, e que é objecto deste recurso, limitar-se a conferir força executiva à petição inicial, sem cuidar de aferir da viabilidade do pagamento dos juros remuneratórios em relação às prestações vencidas automaticamente por falta de pagamento de uma delas[8].

Conclusão: Nos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações emergentes de contrato de valor não superior a € 15 000,00, se o réu, citado pessoalmente, não contestar, o juiz apenas poderá deixar de conferir força executiva à petição, para além da verificação evidente de excepções dilatórias, quando a falta de fundamento do pedido for manifesta, nomeadamente, por não ser, no caso, possível nenhuma outra solução jurídica.


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Nestes termos, acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar procedente o recurso de Apelação e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra, com valor de decisão condenatória, conferindo-se força executiva à petição inicial neste processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias decorrentes de contratos em que é Autora (…) e Réus (…) , nos termos do artigo 2º do Regime dos Procedimentos a que se refere o artigo 1º do diploma preambular do DL n.º 269/98, de 01-09.

Custas: pelos apelados.


[1] artigos 684º, nº 3 e 685-A, nº 1 do C.P.C., na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto
[2] art.º 664º do mesmo diploma
[3] Todos publicados em www.dgsi.pt
[4] Cf. Preâmbulo do referido diploma
[5] www.dgsi.pt
[6] Salvador da Costa, “Processo Geral Simplificado. A Injunção e as Conexas Acção e Execução”, pág. 90
[7] www.dgsi.pt
[8] Cf. ainda Acórdão da Relação do Porto, 05.03.2009, www.dgsi.pt.