Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4315/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA DE BARROS
Descritores: DEMARCAÇÃO
REIVINDICAÇÃO
CAUSA DE PEDIR
EXCEPÇÃO
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
Data do Acordão: 02/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1311º E 1353º DO CÓDIGO CIVIL E ARTIGOS 193º, N.º1, ALÍNEA A) E 508º, N.º3 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. Integra a causa de pedir da acção de reivindicação de propriedade, além do mais, a ocupação do prédio pelo réu, porque tal acção visa essencialmente a restituição da coisa.
2. Sendo complexa a causa de pedir na acção de demarcação consistindo na existência de prédios confinantes, de proprietários distintos e de estremas incertas ou divididas, o autor, nessa acção, terá que alegar factos concretos em ordem a identificar o traçado ou linha divisória entre prédios, ou os pontos por onde deve passar a linha divisória.

3. A ineptidão da petição inicial não é suprível findos os articulados.

4. O n,.º 3 do art. 508º do CPC consagra uma mera faculdade e não um poder-dever, e a falta de convite às partes não constitui nulidade processual e sequer é passível de recurso.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I)- RELATÓRIO
A... e esposa B... intentaram, nos Juízos Cíveis de Coimbra, acção declarativa [que designaram de reivindicação e de demarcação.], sob a forma de processo sumário, contra
a)- C... e esposa D....
b)-HERANÇA ABERTA POR ÓBITO DE E..., representada por F... e esposa G....
c)- HERANÇA ABERTA POR ÓBITO DE H..., representada por I... e esposa J....
d)- K... e esposa L...,

pedindo a condenação dos RR. a:
a)-reconhecer os AA. como donos e legítimos possuidores do prédio descrito no art. 1º da petição;
b)- reconhecer que o prédio dos AA. se situa entre os prédios a que se refere os artigos 3685 e 3657;
c)- desocupar toda a área que esteja por si ocupada, levando em consideração a descrição do art. 1º da petição, ou seja, a área de 800 m2;
d)-reconhecer as delimitações do prédio com a área referida e aceitar a colocação ou cravação dos respectivos marcos.

Como fundamento e causa de pedir, os AA. alegaram, em síntese, a seguinte factualidade:
-São donos e legítimos possuidores de um prédio rústico inscrito na matriz predial sob o art. 3684º, identificado como terra de pinhal e mato, com a área de 800 m2;
-Está descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra com inscrição do domínio a favor dos AA.;
-Tal prédio veio à posse e propriedade dos AA. por doação, mas, de qualquer forma, sempre o teriam adquirido por usucapião, conforme posse exercida;
-Dos lados Norte, Sul, Poente e Nascente o prédio dos AA. confina, respectivamente, com os prédios pertencentes aos 1º, 2º, 3º e 4º RR;
-O prédio dos AA. situa-se entre o prédio a que diz respeito o art. 3685 (dos 1ºs RR.) e o prédio a que se refere o art. 3657 (da 2ª Ré);
-Contactados os 1º e 2º RR., face à configuração e situação do prédio dos AA., recusaram-se aqueles a delimitar e demarcar voluntariamente o prédio dos AA.;
-Actualmente não existem demarcações, ou pelo menos, não são visíveis, entre os 4 prédios confinantes.
Regularmente citados, apresentaram-se apenas a contestar F... e esposa, identificados, na petição, como representantes da 2ª Ré. Alegaram ser o Réu marido dono do prédio rústico situado a Norte do prédio dos AA., estando o seu prédio, há mais de 60 anos, demarcado do prédio dos AA. por 4 marcos bem visíveis, implantados no sentido nascente-poente. Jamais ocuparam qualquer parcela de terreno do prédio dos AA. Concluem pela improcedência da acção.

Os AA. responderam mantendo a posição assumida na petição inicial.

Seguidamente foi proferido despacho saneador a absolver os RR. da instância com fundamento na ineptidão da petição inicial.

Inconformados com tal decisão, agravaram os AA., pugnando pela sua revogação e extraindo da sua alegação as seguintes conclusões:
1ª- Os AA. tinham direito a, como questão prévia, a pedir o reconhecimento do seu direito de propriedade, e por isso, era dever do Tribunal, face à posição dos RR., a reconhecer-se o seu direito e proclamá-lo, pois não existe apenas uma acção de reivindicação, mas também uma acção declarativa sobre o direito de propriedade;
2ª-Mas de facto vieram instaurar acção que designaram de reivindicação e demarcação, alegando e demonstrando, através das competentes certidões, o seu direito de propriedade e a sua violação por parte dos RR., tendo pedido o reconhecimento do seu direito, mas também a entrega do que os RR. estivessem a ocupar;
3ª-Nesta medida, os AA. gozam de uma presunção relativa do direito de propriedade que o R. contestante nem sequer colocou em causa, e não era descabido reconhecer esse direito, antes pelo contrário;
4ª- Para a demarcação é necessária a intervenção de todos os confinantes e, por isso, instauraram a acção contra todos, sem excepção;
5ª-Os AA. alegaram que os prédios não estavam demarcados e nem sequer foram contrariados pelos RR. confinantes, e nem pelos contestantes, pelo que tinha a acção todos os pressupostos para prosseguir;
6ª-A decisão recorrida postergou os arts. 1311º do CC, conjugado com o n.º2 do art. 660º do CPC e os arts. 1353º e 1354º, ambos do CC;
7ª-O Tribunal recorrido julgou a petição inicial inepta e, por conseguinte, absolveu os RR. da instância;
8ª-A ineptidão da petição é uma excepção dilatória suprível e, nesta medida, ao Tribunal incumbe o dever de providenciar pelo seu suprimento, atitude que conscientemente omitiu;
9ª-Asssim, a decisão recorrida violou a alínea a) do n.º1 do art. 508º do CPC, assim como o art. 203º da CRP;
10ª- Na concepção do Tribunal recorrido, à petição faltavam elementos factuais integrantes da causa de pedir e, assim se refere na decisão impugnada;
11ª-Se assim foi, devia o Tribunal ter convidado os AA. a suprir as insuficiências sobre a matéria factual alegada, apontando até o que faltava;
12ª- A jurisprudência tem-se pronunciado que este é um poder-dever, isto é, tem obrigatoriamente, sob pena de nulidade, conceder-se a possibilidade de a parte corrigir as insuficiências;
13ª- O Tribunal omitiu este dever, pelo que violou a alínea b) do n.º1 do art. 508º, conjugado com o n.º3 do mesmo artigo e o n.º2 do art. 265º, todos do CPC, sendo, por isso, a decisão nula, nos termos do art. 668º do mesmo diploma;
14ª- A decisão recorrida ao julgar inepta a petição e ao não permitir que se analisasse a questão de fundo, fez errada interpretação sobre aquelas normas que não pode deixar de violar os arts. 20º e 203º da CRP.

Não foi apresentada contra-alegação.

Foi mantido o despacho impugnado.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II)- OS FACTOS E O DIREITO APLICÁVEL

Atentas as conclusões da alegação a delimitar, em princípio, o objecto do recurso (arts. 690º, n.º1 e 684º, n.º3, ambos do CPC), os AA./Agravantes submetem a julgamento deste Tribunal, essencialmente, duas questões:
1º)- Saber se a petição inicial é inepta:
2ª)-Definir se o Tribunal deveria ter providenciado pelo suprimento da ineptidão da petição inicial ou ter convidado os AA. a aperfeiçoar a petição inicial.

III-1)- Analisemos a 1ª questão.
A factualidade com interesse ao julgamento do recurso decorre da petição inicial, acima relatada nos seus traços essenciais.
A este respeito cabe apenas salientar que a decisão impugnada não merece qualquer censura, é exaustiva na abordagem da matéria, e nesse âmbito é suficiente remeter para a respectiva fundamentação ao abrigo do n.º5 do art. 713º do CPC.
Cumpre apenas salientar que as acções surgem caracterizadas de acordo com o objecto da pretensão ou pedido, podendo as acções declarativas ser de simples apreciação, de condenação ou constitutivas (n.º2 do art. 4º do CPC). Quer a acção de reivindicação de propriedade, quer a acção de demarcação são acções declarativas de condenação, pressupondo um facto ilícito ou a violação de um direito do Autor, visando a primeira a defesa do direito de propriedade, permitido pelo art. 1311º do CC, ao passo que o fim específico da segunda é o de fazer funcionar o direito reconhecido ao proprietário pelo art. 1353º do mesmo diploma. Em ambas as acções a apreciação do direito do Autor aparece como um meio para se chegar a um fim último, ou seja, a condenação [cfr. “Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. 1º, p. 19 e 20, de Alberto dos Reis], diversamente daquilo que sucede na acção de simples apreciação em que o escopo ou o fim único da actividade jurisdicional é a apreciação. O pedido unitário de condenação analisa-se na apreciação do direito e na condenação, não significando que sejam propostas duas acções, uma de simples apreciação e outra de condenação, ou formulados dois pedidos. Ou seja é, em função do pedido unitário de condenação que deverá ser averiguado se a petição inicial é ou não inepta, uma vez que a apreciação do direito do Autor surge como um simples meio ou com cariz instrumental [Cfr. acórdãos do STJ, publicados no BMJ n.º 444º, p. 618 e desta Relação sumariado no BMJ n.º 444º, p. 715.] A qualidade de proprietário de um terreno é apenas condição de legitimidade para a acção. Como corolário, e em resposta à tese sufragada nas conclusões 1ª, 2ª e 3ª, salvo o devido respeito, não poderia julgar-se regular a petição para a simples e isolada declaração do direito de propriedade alegado pelos AA., que os RR. até aceitam, embora desconhecendo a indicada área de 800 m2 do prédio dos AA.

E tendo os AA. alegado o direito de propriedade e peticionado a condenação dos RR. a desocuparem a área que esteja por estes ocupada, tendo em consideração a indicada área do seu prédio, ou seja, 800 m2, a verdade é que em parte alguma da petição alegaram a ocupação abusiva do seu prédio por banda dos RR. E tal é absolutamente imprescindível à caracterização da acção de reivindicação de propriedade. Portanto, a petição, na perspectiva de uma acção de reivindicação de propriedade é inepta por falta de causa de pedir (alínea a) do n.º2 do art. 193º do CPC).

Sendo complexa a causa de pedir na acção de demarcação, [Observe-se que a acção de demarcação deixou de ser uma acção especial de arbitramento com a publicação do DL n.º329-A/95, de 12.12, que alterou o CPC, revogando o art. 1058º, e a consequência da falta de contestação consistia na nomeação de peritos.] consistindo na existência de prédios confinantes, de proprietários distintos e de estremas incertas ou duvidosas [Cfr. acórdão do STJ publicado no BMJ n.º 499º, p. 294 ; da Relação do Porto, sumariado no BMJ 431º, p. 548; Código Civil Anotado, vol. 3º, 1972, p. 179, de Pires de Lima e Antunes Varela; Processos Especiais, vol. 2, p. 37, de Alberto dos Reis.] , como acertadamente se escreve na decisão impugnada, o autor, nessa acção, terá que alegar factos concretos em ordem a identificar o traçado da linha divisória. A causa de pedir terá de ser necessariamente integrada, também, pela alegação dos pontos por onde deve passar a linha divisória entre os prédios confinantes. Manifestamente, na petição inicial, e como acima se relatou, os AA. não indicaram o traçado da linha divisória, e, em consequência, os RR. ficaram impedidos de sobre ela se manifestarem ou indicarem outra diferente. Igualmente o pedido nessa acção, agora seguindo a forma do processo comum de declaração e não de processo especial de arbitramento, consistirá na condenação do demandado a reconhecer a linha divisória alegada e aceitar aí a colocação de marcos, e jamais como fazem os AA., na condenação dos RR. a reconhecerem as delimitações do seu prédio tendo em conta a indicada área de 800 m2 [Como vem consignado no acórdão desta Relação, publicado na CJ 1999, 3º, p. 15, quer a as inscrições matriciais, quer as descrições da Conservatória do Registo Predial não constituem sequer título suficiente para efeito da acção de demarcação.] . Aquele é, pois, o efeito jurídico visado ou o pedido específico da acção de demarcação, a que se procederá pela forma apontada no art. 1354º do CC. Aliás, não contestando os RR., e implicando a falta de contestação o reconhecimento dos factos alegados (art. 784º do CPC), o Tribunal ficava impedido de demarcar ou definir os pontos por onde devia passar a linha divisória entre os prédios confinantes.
Improcedem, destarte, as conclusões 5ª, 6ª e 7ª.

III-2)- Examinemos, agora, a 2ª questão.
No caso ajuizado, em vez de decidir pela absolvição da instância, deveria o Tribunal a quo ter providenciado pelo suprimento da ineptidão da petição inicial ou ter convidado os AA. a aperfeiçoar a petição inicial, como se prevê nas alíneas a) e b) do n.º1 do art. 508º do CPC?
A este respeito, determina o n.º1 do art. 508º do CPC que findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho destinado a:
a) Providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias, nos termos do n.º2 do art. 265º;
b) Convidar as partes ao aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes.
E de acordo como o n.º2 desse artigo, o juiz convidará as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correcção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.

A aptidão da petição inicial é um pressuposto processual relativo ao objecto da causa, configurando a ineptidão uma excepção dilatória (alínea b) do art. 494º em conjugação com o art. 193º, n.º1 e 2, ambos do CPC). Na previsão da alínea a) do n.º1 do art. 508º, por remissão para o n.º2 do art. 265º, aí se compreende o suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação. Mas a ineptidão da petição inicial já não é susceptível de sanação ao abrigo dessa norma, ou nessa fase, até porque a alteração da matéria de facto implicando alteração ou ampliação da causa de pedir está condicionada pelo disposto no 273º [Cfr. “Temas da Reforma do Processo Civil”, 2º vol., p. 67 e 68, de António Geraldes e Estudos Sobre O Novo Processo Civil”, p. 302, de Teixeira de Sousa.]. Ou seja, na presente demanda estava vedado ao Tribunal providenciar pelo suprimento da ineptidão da petição inicial, convidando os AA. a alegar a ocupação abusiva do seu prédio pelos RR., a concretizar o traçado ou os pontos por onde no terreno devia passar a linha divisória entre o prédio dos AA. e os prédios com aquele confinante e, ainda, a deduzir pedido em conformidade com esta última alegação.

No n.º2 do art. 508º prevê-se, também, tal como na alínea a) do n.º1, um poder-dever do juiz no tocante a irregularidades dos articulados, irregularidades essa que nada têm a ver com o vício da ineptidão da petição inicial.

Ainda de harmonia como o n.º 3 do art. 508º, “pode o juiz convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada…” Consagra esta norma uma mera faculdade Cfr. acórdão do STJ, no BMJ n.º 487, p. 244, desta Relação, na CJ 2000, 2º, p. 27; obra citada de António Geraldes, p. 79, e não um poder-dever ou despacho vinculado do juiz em vista do suprimento de insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, excluindo-se, pois, o convite a qualquer alteração do pedido. Como assim, o não exercício desse poder funcional e discricionário face a falhas da articulação da matéria de facto não constitui nulidade processual e sequer é passível de recurso.
Mas, como prescreve o n.º5, sempre as alterações à matéria de facto alegada pelas partes previstas nos n.ºs 3 e 4, devem conformar-se com os limites estabelecidos no art. 273º, se forem introduzidas pelo autor, nos artigos 489º e 490º, quando o sejam pelo réu. Ou seja, tais alterações não podem qualificar alteração ou ampliação da causa de pedir, respeitando apenas a falhas menores. Todavia, como acima se sublinhou, está em causa a ineptidão da petição inicial, por insuficiência da causa de pedir e ausência de pedido específico visando a definição dos pontos por onde deve passar a linha divisória ou a demarcação.
E salvo o devido respeito, na interpretação da lei adjectiva, não se vislumbra qualquer violação dos arts. 20º (acesso ao direito) e 203º (independência dos tribunais e sujeição à lei) da CRP, violação essa vertida na conclusão 14ª, pelo que improcede tal conclusão.

Em suma, não sendo de acolher a motivação alinhada no recurso, é de manter sem qualquer alteração o despacho saneador que decidiu pela absolvição da instância com fundamento na ineptidão da petição inicial, excepção dilatória de conhecimento oficioso (art. 495º do CPC).

III)- DECISÃO
Nos termos e pelos razões expostas, acorda-se em:
Negar provimento ao recurso.
Confirmar a decisão impugnada.
Condenar os Agravantes nas custas do recurso.
COIMBRA,

(Relator- Ferreira de Barros)

(1º Adj.- Des. Helder Roque)

(2º Adj.- Des. Távora Vítor)