Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
239/16.7GAVZL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: CONDENAÇÃO POR CRIME DIVERSO;
NULIDADE DA SENTENÇA;
INJÚRIA;
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Data do Acordão: 10/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (J C GENÉRICA DE O. FRADES)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 181.º, N.º 1, E 183.º, N.ºS 1 E 3, DO CP; ART. 358, N.º 3, DO CPP
Sumário:
I – A comunicação em causa [art. 358.º, n.º 3, do CPP] tem por finalidade conceder ao acusado o direito de defesa, em tempo oportuno, da “nova” circunstância ou do novo enquadramento jurídico, que possa, de alguma forma, prejudicá-lo ou constituir uma decisão-surpresa.
II – Estando o recorrente acusado pela agravante qualificativa do art. 183.º reportada ao crime comum do art. 181.º, não pode o mesmo dizer que desconhecia ou que foi surpreendido pela qualificação efectuada que não é nova, porque identificada a acusação.
III – Teve, pois, oportunidade plena de se defender, em toda a amplitude, do crime. Exerceu o direito de defesa na maior amplitude possível. A condenação não importou qualquer diversidade substancial mas apenas a eliminação de uma agravante – também prevista na acusação, tal como o crime base/comum.
IV – Não tendo havido alteração relevante (foi apenas do mais para o menos naquele contido) a comunicação pretendida, além de materialmente inútil, não tinha que ser efectuada.
V – Na perspetiva de distinguir a injúria da mera deselegância ou ato de mau gosto, palavras ou gestos que embora reprováveis não atingiam o patamar da relevância penal, na vigência do C.P. de 1886 havia quem entendesse que a verificação do crime exigia o impropriamente chamado dolo específico, o animus injuriandi.
VI – Daí que a doutrina mais generalizada e a jurisprudência que vinha a afirmar-se como dominante, concluíam já então ser apenas necessário que o agente quisesse com o seu comportamento ofender a honra ou consideração alheias ou previsse essa possibilidade, de forma que pudesse ser-lhe imputada dolosamente, nada mais.
VII – A polémica deixou porém ter sentido com a entrada em vigor do C. Penal de 1982.
Com efeito, o C. Penal vigente não prevê no tipo objectivo qualquer circunstância específica de natureza subjectiva que exija uma específica direção da vontade ou ânimo injurioso.
VIII – Resultando da matéria provada: “7 - Naquelas circunstâncias o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”, essa matéria provada preenche todos os referidos elementos do tipo subjectivo – previsão, vontade de realização, atitude de contrariedade perante o dever-ser, na modalidade de dolo direto.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência, na 4ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra:

I RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, T. Singular, em referência, após realização da audiência de discussão e julgamento, com exercício amplo do contraditório, foi proferida a sentença com o seguinte DISPOSITIVO:

Assim, por todo o exposto, decido:

a) Condenar o arguido pela prática, em autoria material e concurso real, dos seguintes ilícitos criminais:

- um crime de injúrias, p. e p. pelo artº 181º, nº 1 do CP, na pena de 45 dias de multa, à taxa diária de 9 euros;

- um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artºs 153º, nº 1 e 155º, nº 1, al. a), ambos do CP, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 9 euros.

Em cúmulo jurídico vai o arguido condenado na pena conjunta de 80 dias de multa, à taxa diária de 9 euros, num total de 720 euros, com 53 dias de prisão subsidiária.

b) Condenar o arguido/demandado a pagar ao assistente/demandante (por via do pedido formulado a fls. 92 e s.) a importância actualizada de 300 euros, acrescida de juros moratórios contados da presente data, à taxa de 4% ao ano, até efectivo e integral pagamento.

c) Absolver o demandado do remanescente daquele pedido contra si formulado pelo assistente/demandante, isto é, da importância de 1.200 euros.

d) Condenar o arguido/demandado a pagar ao assistente/demandante (por via do pedido formulado a fls. 95 e s.) a importância actualizada de 500 euros, acrescida de juros moratórios contados da presente data, à taxa de 4% ao ano, até efectivo e integral pagamento.

e) Absolver o demandado do remanescente daquele pedido contra si formulado pelo assistente/demandante, isto é, da importância de 352 euros.

*

Inconformado com a sentença, dela recorre o arguido.

Na respectiva fundamentação formula as seguintes CONCLUSÕES:

I) O presente recurso versa sobre a matéria de direito e de facto, com a reapreciação da prova gravada.

II) Como questão prévia, alega o recorrente que lhe foi imputada a prática de um crime de injúria agravado, por força da acusação particular deduzida, porém, o Tribunal condenou-o por um crime de injúria simples, sem que dessa alteração lhe tenha sido dado conta - houve, por isso, uma alteração substancial dos factos, nos termos da al. f) do art. 1º do CPP, pois que existe uma alteração substancial dos factos sempre que aquela alteração tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso do que consta da acusação.

III) Em consequência, argui a nulidade da sentença, por violação dos art.rs 32 da CRP e 379°, nº1 do CPP.

IV) Depois, quanto ao crime de injúria, não consta dos factos dados como provados, precisamente porque não resultou da prova produzida, que as palavras que terão sido dirigidas ao assistente tenham ofendido a sua honra ou consideração.

V) Ora, sendo o bem protegido no crime de injúria, a honra e consideração, não encontramos, nos factos dados como provados, qualquer referência a que as palavras que terão sido dirigidas pelo arguido ao assistente, tenham ofendido a sua honra ou consideração, nem tão pouco se vislumbra uma ténue referência ao dolo necessário a esse tipo legal de crime

VI) De facto, o crime de injúria exige dolo, porém, não consta qualquer referência ao dolo do arguido nem ao elemento subjectivo desse tipo legal de crime nos factos dados como provados, ao contrário do que aí é referido quanto ao crime de ameaça agravada, quando se dá como provado o ponto 5- "O arguido, ao dizer ao queixoso que tinha (lá) uma arma para o matar, agiu com o propósito de o intimidar”.

VII) Assim, salvo o devido respeito por opinião contrária, o arguido não poderá ser condenado pelo crime de injúria, por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada no que se refere ao crime de injúria em que foi condenado, mostrando-se, por isso, violados os artigos 14° e 181 ° do CP, na interpretação que lhes foi dada pelo Mmo Juiz a quo e que sustentou a condenação do arguido. Efectivamente, o crime de injúria p. e p. pelo artigo 181° do CP exige como elemento básico o dolo. Ora, não consta dos factos dados como provados qualquer indício de uma actuação dolosa por parte do arguido, no sentido de querer e representar que as palavras proferidas ofendessem a honra e consideração do assistente.

VIII) Quanto ao crime de ameaça agravada, diga -se que os factos que foram dados como provados, em confronto com os depoimentos que aqui se trazem, denotam uma evidente irrelevância penal, isto é, tais factos não atingem, salvo o devido respeito, um mínimo de dignidade penal, muito menos, um mínimo de justificação na condenação do arguido por tal crime.

IX) De facto, resulta da douta acusação pública, no que ao crime de ameaça agravada concerne, que o arguido terá dito: "Tenho lá uma arma para te matar a ti e aos outros"; "Eu mato-te", "agindo o arguido com o propósito concretizado de intimidar o ofendido", porém,

X) Resulta como provado que o arguido disse ao queixoso: "tenho lá uma arma para te matar", "eu mato-te", porém, resulta provado que o arguido agiu com o propósito de intimidar o queixoso ponto 5, mas resulta NÃO provado que o queixoso tenha ficado intimidado com as expressões que o arguido lhe dirigiu. Ora,

XI) Os factos que constam na acusação relativos ao crime de ameaça agravada e essenciais ao seu preenchimento - intimidação, medo ou receio de que o arguido o viesse a matar, não foram dados como provados, como não deveriam ter sido dados como provados todos os outros relativos ao crime de ameaça agravada.

XII) De facto, é falso que o arguido tenha agido com o propósito de intimidar o assistente. Como se pode ler no Ac. deste Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, processo nº 366/10AGCTND.C1, datado de 30.05.2012, acessível in wvww.dssi.pt: "Para constituir o crime de ameaça, a expressão proferida tem de prenunciar, ou como refere o Ac. da Relação do Porto, de 12-12-1984, in Col. Jurisp. Tomo II, pág. 291 anunciar um grave e injusto dano, necessariamente futuro. E, anunciar a prática de um mal, no futuro, é que é ameaçar”.

XII) Os depoimentos das testemunhas ouvidas e que fundamentaram a decisão proferida negaram um carácter penal às expressões proferidas: a testemunha X asseverou que "Um que dizia que tinha uma arma, outro que dizia que tinha outra, um que tinha uma pendurada, outro não sei o quê. Foi vice-versa. Aqueles calores da época."

XIII) A testemunha Y, por sua vez, questionado pelo Mmo. Juiz a quo, acabou por sintetizar a situação, com as seguintes palavras: "Sei lá, com uns tiros, mas isso toda a gente diz essas coisas. Isso é normal".

Ou seja,

XIV) A normalidade com que a situação foi observada não mereceria, sequer, quanto a nós, a acusação deduzida, por manifesta falta de mínimo de dignidade penal, porquanto, como bem ensina Faria Costa, "o significado das palavras, para mais quando nos movemos no mundo da razão prática, tem um valor de uso. Valor que se aprecia, justamente, no contexto situacional, e que ao deixar intocado o significante ganha ou adquire intencionalidades bem diversas, no momento em que apreciamos o significado. "

Ora,

XV) Dos depoimentos das testemunhas que sustentaram a condenação do arguido pelos crimes de injúria e de ameaça agravada, cujos excertos mais relevantes dos seus depoimentos aqui quisemos trazer, resulta que o arguido vive em ambiente rural, está reformado, quis prestar declarações, negando a prática dos factos.

XVI) Não resultou que tivesse agido com o dolo exigido para qualquer dos crimes em que foi condenado.

XVII) Não resultou que o assistente tenha ficado intimidado, com medo ou receio pelo mal ameaçado, nem naquela altura, nem, muito menos, em momento futuro. A expressão "Eu mato-te" é manifestamente actual e presente.

XVIII) Não resulta dos depoimentos das testemunhas que serviram para fundamentar a condenação do arguido que qualquer das palavras proferidas pelo arguido fossem de levar a sério - era uma situação normal, banal, é normal dizer- se "eu mato-te" em discussões no café, entre pessoas que até se conhecem há muitos anos.

XIX) O arguido não agiu com dolo, em qualquer das suas vertentes.

XX) Os crimes em que foi condenado exige uma actuação dolosa, que não resulta dos factos dados como provados.

XXI) Assim, mostram-se incorrectamente julgados os factos provados sob os pontos 4,5, os quais, conjugados com os factos não provados sob os pontos a) a f), ditariam a sua absolvição.

XXII) Razão pela qual os depoimentos das testemunhas X e Y acima transcritos impunham uma decisão de absolvição do arguido, posto que demonstram a ausência de dolo, a normalidade e contemporaneidade das expressões proferidas e um contexto banal de discussão de café que não se coaduna com uma e primeira condenação penal.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve ser dado provimento ao recurso, declarando-se nula a sentença proferida, por violação do disposto nos art.°s 1º f, do CP, 32° da CRP e 379, nº do CPP:

Assim não se entendo, deverá ser dado provimento ao recurso, absolvendo-se o arguido pelos crimes em que foi condenado, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!

*

Respondeu o digno magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido, dizendo em síntese conclusiva (conclusões extraídas do respetivo suporte electrónico disponibilizado nos autos):

1- Nos termos do artigo 412.º, n.º 2, aI. a) do C.P.P., versando sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar as normas jurídicas violadas, no caso em apreço, no que diz respeito à condenação do arguido pelo crime de ameaça agravado, o recorrente não indica quais as normas que, no seu entendimento, foram violadas pela decisão a quo; pelo que, nesta parte (crime de ameaças agravado), deve o recurso improceder.

2 - Não existe a invocada nulidade de sentença por violação do disposto nos arts. 32.º da C.R.P. e 379.º/1 do C.P.P., pois é entendimento da jurisprudência e da doutrina que não é necessária a comunicação prevista no art. 358.º/3 do C.P.P. quando o interesse tutelado é semelhante, e tal ocorre quando, não havendo qualquer alteração factual, o arguido que vinha acusado de um crime agravado é condenado pelo mesmo crime na sua forma simples.

3 - O critério para se determinar se se impõe, ou não, a comunicação da alteração a que se refere no art. 358º do C.P.P. é o da salvaguarda das garantias de defesa do arguido, que no caso em apreço foram devidamente salvaguardadas, pois o seu direito de defesa não foi afetado com a alteração da qualificação jurídica.

4 - É irrelevante a circunstância de o arguido ter atuado mesmo que sem intenção de ofender a honra e a consideração do assistente, pois basta que tenha atuado com dolo genérico (mesmo eventual) não sendo exigível, hoje em dia, que haja a especial intenção ou o propósito de ofender, sendo bastante a consciência, por parte do agen­te, de que a sua conduta é de molde a prejudicar a ofensa da honra e consideração de alguém, como no caso em apreço sucedeu.

5 - Nos presentes autos, e no que diz respeito ao crime de injúria, ficou provado que o arguido, além de ter proferido as seguintes expressões: "aqui vem um gatuno; é um comilão; roubou um terreno e vendeu-o à A…", agiu também de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, ou seja, bem sabia que essas expressões atingiam a honra e consideração pessoal do assistente e que eram proibidas e punidas por lei, é quanto basta para preencher o elemento subjetivo do crime de injúria.

6 - Com as expressões "tenho lá uma arma para te matar", "eu mato-te" proferidas pelo arguido com o propósito de intimidar o assistente, como ficou provado, nunca quis o arguido referir-se quer ao passado quer ao presente, pois para poder matar o assistente o arguido tinha de ir buscar a arma que disse que lá tinha, é, pois, sempre uma ação futura.

7 - O recorrente apenas transcreve a parte que lhe interessa dos depoimentos das testemunhas e nem sempre é a cópia fiel do que consta da gravação.

8 - Quer a testemunha X, quer a testemunha Y, nos seus depoimentos, foram coincidentes e claros de que o arguido disse para o assisten­te que tinha lá uma arma para o matar e que o matava, basta ouvir as respetivas gra­vações cujos excertos constam das presentes contra-alegações que aqui se dão por re­produzidos por uma questão de economia processual.

9 - Não há, pois, dúvidas de que o arguido ameaçou o assistente com um mal futuro, tendo o M.º Juiz a quo alicerçado a sua convicção na conjugação dos depoimentos das testemunhas presenciais dos factos, complementada com as declarações do próprio arguido e com as regras da experiência, prudência e saber do julgador e no contacto pessoal e direto com as provas, pelo que não há o apontado, pelo recorrente, erro notório na apreciação da prova, tendo o tribunal a quo alicerçado a sua convicção de forma objetiva e fundamentada, com base nas regras da experiência e da lógica.

Nestes termos, E nos melhores de direito, deve ser negado provimento ao recurso do arguido e mantida na íntegra a douta decisão recorrida, a qual não violou qualquer disposição legal, assim se fazendo a cos­tumada e serena JUSTIÇA.

*

Respondeu também o assistente, invocando, em suma, no que concerne ao crime de ameaça, fundamentação semelhante à do MºPº; e dizendo, no que toca ao crime de injúria, ser suficiente a verificação do dolo em quaqluer das modalidades previstas no art. 14º do C.P.

*

No visto a que se reporta o art. 417º do CPP a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no qual, acompanhando as respostas apresentadas pelo MºPº e pelo assistente em 1ª instância, conclui no sentido da total improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no art. 417º, nº2 do CPP, respondeu o recorrente, sustentando que, ao contrário do referido no douto parecer, na resposta apresentada em 1ª instância o MºPº sustentou a improcedência do recurso no que diz respeito ao crime de injúria, alegando que não consta dos factos provados que o arguido tenha agido com conhecimento e vontade de ofender a honra e consideração do queixoso, pelo que deve ser absolvido de tal crime.

Corridos vistos, cumpre apreciar os fundamentos do recurso.

II FUNDAMENTAÇÃO

1. Vistas as conclusões, que definem o objecto do recurso, são suscitadas as seguintes questões:

- Nulidade da sentença por condenação por crime diverso do imputado na acusação;

- Não verificação de pressupostos dos crimes – quanto ao crime de injúria: insuficiência da matéria de facto / não verificação do dolo / propósito de ofender a honra; e - no que concerne ao crime de ameaça: por ter ficado provado que o ofendido não se sentiu intimidado.

2. APRECIAÇÃO

2.1- Nulidade da sentença - condenação por crime diverso do imputado na acusação

O recorrente vinha acusado de um crime de injúrias, p. e p. pelo artº 181º, nº 1 do C.P., agravado nos termos do art. 183º, nº1 e nº3 do C.P. E, na sequência da matéria de facto que veio a ficar provada (não provada) da discussão da causa foi condenado – apenas - pelo crime de injúrias p. e p. pelo artº 181º, nº 1 do C.P., com a consequente absolvição da agravante enunciada na acusação.

O art. 358º nº3 (aditado na sequência de decisões do TC no sentido de que a comunicação prevista no preceito devia ser aplicada também às meras alterações da qualificação jurídica, ao contrário do que entendia determinada uma corrente jurisprudencial que entendia que não, de acordo com a máxima de que curia novit jus), estabelece agora que “O disposto no nº1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”.

A comunicação em causa tem por finalidade de conceder ao acusado o direito de defesa, em tempo oportuno, da “nova” circunstância ou do novo enquadramento jurídico, que possa, de alguma forma, prejudicá-lo ou constituir uma decisão-surpresa.

Tal normativo enquadra-se com os poderes de cognição do tribunal, tendo em vista que o objeto do processo, definido na acusação - recorte de vida dotado de unidade de sentido perspectivado para respectiva qualificação jurídico-penal.

Sobre o objeto do processo, postula o art. 339º, n.º4 do CPP: Sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos efectuada na acusação ou na pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368º e 369º.

Como refere Mário Tenreiro, na ROA (47), 1998, p. 1024 e segs., citando Figueiredo Dias, o “objecto do processo será assim uma questão de facto integrada por todas as possíveis questões de direito que possa suscitar”.

Na mesma perspectiva, o objecto da prova é constituído por “todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e da determinação da medida da pena” – cfr. art. 124º do CPP.

O direito de defesa é exercido na contestação e, acima de tudo, na audiência, onde são discutidas as provas do facto típico e consequente tipificação jurídico-penal.

As alterações a que se reporta o art. 358º, sejam de facto ou de direito, são apenas aquelas – sob pena até da prática de ato inútil, proibido pelo art. 130º do CPC, aplicável ex vi do art. 2º do CPP - que não resultem da acusação, e sobre as quais o arguido não teve oportunidade de se pronunciar e tempo útil, o mesmo é dizer de que, de alguma forma possa resultar prejudicado o direito de defesa, cabal e completo, do acusado.

Dentro do princípio geral do exercício do contraditório (cfr. art. 3º do CPC – “salvo casos de manifesta desnecessidade”) o contraditório prévio apenas se exige relativamente a questões novas, surgidas durante a discussão da causa, de que o arguido não tenha podido defender-se em tempo útil.

Ora, no caso, o recorrente, foi acusado pela agravante qualificativa do art. 183º reportada ao crime comum do art. 181º - preceito expressamente identificado na qualificação efectuada na acusação. Até porque não a qualificativa do 183º não funciona sem o crime comum/base do art. 181º.

Não pode assim o recorrente dizer que desconhecia ou que foi surpreendido pela qualificação efectuada que, repete-se, não é nova, porque identificada a acusação. Teve, pois, oportunidade plena de se defender, em toda a amplitude, do crime. Exerceu o direito de defesa na maior amplitude possível. A condenação não importou qualquer diversidade substancial mas apenas a eliminação de uma agravante – também prevista na acusação, tal como o crime base/comum.

De onde que, não tendo havido alteração relevante (foi apenas do mais para o menos naquele contido) a comunicação pretendida, além de materialmente inútil, não tinha que ser efectuada.

Pelo que improcede a arguição da nulidade da sentença.

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Para apreciar as restantes questões, de facto e de direito, importa ter presente a decisão da matéria de facto.

2.2. A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO é a seguinte

Discutida a causa, resultam provados os seguintes factos:

1 – No dia 2.12.16, em momento não concretamente apurado, mas entre as 16 e as 17 horas, o arguido encontrava-se junto ao estabelecimento denominado Café …, sito no Lugar …, freguesia de …, deste concelho de ….

2 – Encontrava-se exaltado por motivos não concretamente apurados.

3 – Nessa ocasião aproximou-se do referido estabelecimento o queixoso … e o arguido, de viva voz, em tom alto, audível para o referido queixoso, e dirigindo-se à pessoa deste, disse: aqui vem um gatuno; é um comilão; roubou um terreno e vendeu-o à a….

4 – Tendo-se então gerado uma discussão entre o arguido e o queixoso, ao longo e na dinâmica da mesma o primeiro, dirigindo-se ao segundo, disse-lhe, “andas a comer à custa da associação”, “tenho lá uma arma para te matar”, “eu mato-te”.

5 – O arguido, ao dizer ao queixoso que tinha (lá) uma arma para o matar, agiu com o propósito de o intimidar.

6 – Nas circunstâncias acima descritas somente se encontravam no local, para além do arguido e do queixoso, as testemunhas X e Y.

7 – Naquelas circunstâncias o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

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8 – Em função de se encontrar aposentado, o arguido beneficia de uma pensão mensal de 700 euros.

9 – Vive com a esposa, também reformada.

10 – O seu agregado habita em casa própria.

11 – O arguido possui veículo automóvel próprio.

12 – Tem como habilitações a 4ª classe.

13 – Não possui antecedentes criminais.

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Mais se provou, sobretudo com interesse para os deduzidos pedidos cíveis, a seguinte factualidade:
14 – Em função da discussão ocorrida entre si e o demandado, o demandante passou a evitar aquele.

15 – O demandante padece de doença do foro cardíaco.

16 – Em função da conduta do demandado e da discussão com este travada, o demandante, durante alguns dias, andou nervoso e sobressaltado.

17 - Em consequência da conduta do demandado o demandante experimentou sentimentos de tristeza e vergonha.

18 – Tendo em vista a sua constituição como assistente no processo, o demandante pagou o montante de 102 euros.

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Matéria de facto Não provada:

a) que no âmbito da discussão travada entre ambos, o arguido se tenha aproximado do queixoso com os dois braços levantados e tenha encostado o seu rosto ao rosto daquele.
b) Que o queixoso tenha ficado intimidado com as expressões que o arguido lhe dirigiu.
c) Que o queixoso seja membro da direcção da A….
d) Que a conduta do arguido descrita na factualidade apurada, e a discussão entre aquele e o queixoso, tenham sido propagadas na povoação de ….
e) Que o demandante tenha sentido, ou que ainda sinta, medo ou receio de que o arguido o viesse/venha a matar.
f) Que em momento anterior à situação retratada na factualidade apurada, no mesmo café …, o demandado tivesse dito, em voz alta, para os presentes naquele estabelecimento, “ainda hoje vou fazer uma asneira, tenho lá uma arma e vou matar alguém, vou para a prisão mas vou matar alguém”, “esta merda destes reformados colocava-os na parede”.
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Fundou-se a convicção do tribunal, desde logo, na conjugação dos depoimentos das testemunhas X e Y, sendo este, como esclareceu, o dono do café ….

Assim, tendo o arguido reconhecido a ocorrência de um desentendimento entre si e o queixoso …, apontou que o mesmo foi presenciado pelas mencionadas testemunhas.

Ora, num registo que apesar de tudo não deixa de se lamentar, e que numa primeira fase, notoriamente, tentava não se comprometer ou comprometer qualquer dos intervenientes na ocorrida discussão, a testemunha X acabou por confirmar a veracidade dos factos vertidos no libelo no que concerne às expressões que foram proferidas no âmbito dessa mesma discussão, mormente pelo arguido. Como acabou por reconhecer que o seu registo inicial prendia-se, precisamente, com a circunstância de não pretender prejudicar ninguém, o que apesar de tudo, de um ponto de vista humano, se compreende, justificando por isso a credibilidade que nos mereceu o posterior reconhecimento/confirmação dos factos e circunstâncias constantes da acusação.

E tal credibilidade foi confortada e, do mesmo passo, adquirida, ante o registo da testemunha Y, o qual, não tendo estado presente em toda a situação de conflito, como mencionou, pôde ouvir do arguido o proferimento, para o assistente, de várias expressões, como comilão e gatuno, ou ‘eu mato-te’, como outrossim, no âmbito da discussão, ouvir falar em venda de terrenos e em ‘comer o dinheiro’. Ou seja, expressões e ‘assuntos’ que vão de encontro ao teor do registo da testemunha X.

Mas de igual modo a nossa convicção, sustentada do modo acima referenciado, mostra-se confortada ante as declarações do próprio arguido. De facto este, não obstante negar ter proferido as expressões constantes do libelo das acusações, reconheceu ter invectivado o assistente de fórmulas, no mínimo, deselegantes, como ‘lambe-botas’ ou ‘porco’, e bem assim de o ter informado que “ao pontapé e ao murro dou cabo de ti”. Isto é, sem reconhecer os factos que lhe são imputados, a conduta que reconheceu ter assumido, longe de inócua ou benigna, conforta os registos das testemunhas X e Y, aos quais não foi apontada qualquer relação de interesse para com o assistente (pelo menos de modo diferente para com o arguido), ou qualquer tipo de inimizade para com qualquer deles. Neste contexto não se alcança qualquer motivação para que as testemunhas não reproduzissem as palavras e expressões que o arguido alega ter dito e, do mesmo passo, fossem ‘inventar’ outras que aquele nega ter proferido. De outra perspectiva, se a conduta verbal do arguido fosse aquele por si veiculada, certamente que as testemunhas não deixariam de a confirmar (o que manifestamente não foi o caso).

Mais relevou o CRC de fl. 143.

Para a situação socio-familiar do arguido foram relevantes as suas próprias declarações.

No que tange às consequências ‘práticas’ e ‘morais’ da conduta do arguido, ou de episódios como aquele no qual o demandante foi interveniente/vítima, foram sobremaneira relevantes as regras da normalidade e experiência corrente, que por si permitem sustentar tais consequências feitas plasmas na factualidade apurada relativamente aos deduzidos pedidos ressarcitórios. Ainda, nesta sede, o depoimento da testemunha Z, que apontou ao demandante seu marido o padecimento de problemas do foro cardíaco.

Mais relevou, para efeitos do pedido associado à matéria da acusação particular, o expediente de fls. 7 e 9 a 11, quanto ao pagamento de taxa de justiça pela constituição como assistente.

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Já a factualidade dada como não provada emergiu, sobremaneira, da falta ou insuficiência de prova em ordem a convencer-nos da sua eventual veracidade.

Assim, a imputada – ao queixoso - qualidade de membro da direcção da A… não foi confirmada pela testemunha V, que é o actual presidente daquela agremiação, como esclareceu.

Também os factos mencionados sob as alíneas d) e f) somente foram afirmados pela testemunha Z, esposa do queixoso e, por isso, não estando numa posição de desinteresse que, por si, permita sustentar uma convicção objectiva ou isenta de reservas.

Já no que tange aos factos vertidos sob as alíneas b) e e) os mesmos não emergiram clarificados, até porque, como as testemunhas X e Y apontaram nos seus registos, o queixoso não se manteve ‘mudo e quedo’ perante o arguido e a conduta por este assumida, mas ‘respondia’ em termos análogos.

2.3. Apreciação dos pressupostos do crime de injúria – verificação dos elementos do tipo objectivo e do tipo subjetivo

O recorrente invoca a “insuficiência” da matéria de facto dada como provada - para o preenchimento dos elementos do tipo subjetivo.

Nos termos do art. 410º n.º2 do CPP “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de fato provada;”

Os vícios previstos no art. 410º, n.º2 incidem sobre a decisão da matéria de facto, como resulta não só da letra da lei [“matéria de facto”, “apreciação da prova” constantes das alíneas a) e c)], como ainda do espírito ou ratio do mencionado preceito, permitindo originariamente a chamada revista alargada, no recurso per saltum, directamente do tribunal colectivo de comarca para o STJ. Onde, embora conhecendo exclusivamente de direito [““Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal à matéria de direito” - cfr. corpo do citado n.º2], o STJ podia sindicar a matéria de facto naquelas três situações, reenviando, se necessário, o processo para novo julgamento da matéria de facto correspondente, nos termos do art. 426º, n.º1.

Trata-se de vícios relativos à estrutura lógica da sentença que há-de emergir do texto da decisão propriamente dito e/ou do mero confronto da decisão com as regras da experiência comum. Repercutindo os seus efeitos ao nível da decisão de mérito, uma vez que a sua consequência típica é o reenvio para novo julgamento - cfr. art. 426º do CPP.

Como referem Simas Santos/Leal Henriques (Recursos em Processo Penal, Ed. Rei dos Livros, 5ª ed., p. 61) o vício de insuficiência constitui “uma lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito (…) havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher”. Vício que resulta de “o tribunal não ter esgotado os seus poderes de indagação da descoberta da verdade material, deixando por investigar factos essenciais cujo apuramento permitiria alcançar a solução legal e justa” – cfr. AC. STJ de 14.11.1998 citado por Simas Santos/Leal Henriques, Recursos, cit., p. 63. Ou “da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou tenham resultado da discussão” – Cfr. Simas Santos/ Leal Henriques no seu CPP Anotado, 2ª ed., 2º vol., p. 759.

Trata-se assim de uma lacuna de investigação/apuramento de matéria de que competisse conhecer. Que não de “insuficiência de prova” para dar como provada matéria conhecida/apreciada (erro de apreciação da prova). Nem tão-pouco de “insuficiência da matéria de facto” apurada para a qualificação jurídica operada (erro de direito).

Ora, no caso, o recorrente não invoca a falta de investigação/apuramento de matéria de facto – da acusação, contestação ou cuja investigação se impusesse, oficiosamente - que devesse ter sido apreciada e se revelasse essencial.

Mas antes que a matéria – investigada - dada como provada não preenche os elementos do tipo subjectivo do crime. Tratando-se, pois, de uma questão de direito, que não do vício de “insuficiência” previsto no art. 410º, al. a) do CPP - de conhecimento oficioso, aliás, como definido pelo Acórdão do STJ de para fixação de jurisprudência 19.10.1995, publicado no DR, I-A Série de 28.12.95.

Ora, sobre o relevo criminal da injúria escrevia Beleza dos Santos (R.L.J., nº 92º, p. 168), na vigência do CP de 1886: «não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem aquilo que o queixoso entende que o atinge, de certo ponto de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais».

Com efeito existem palavras que, ditas em particular, podem ser aceitáveis, ao passo que usadas entre as mesmas pessoas, mas de forma pública, tornam-se ofensivas; “se faladas com raiva, com a clara intenção de insultar, elas são entendidas dessa forma; se articuladas em voz baixa, ou em tom de brincadeira, podem ser entendidas de maneira bastante diferente” - cfr. DAVID GARRIOCH, in Insultos verbais na Paris do século XVIII.

Na expressão de Faria Costa (Comentário Conimbricence, tomo I, p. 612) “o cerne da determinação dos elementos objectivos (do crimes de injúria e/ou difamação) tem sempre de se fazer pelo recurso a um horizonte de contextualização. Residindo aqui um dos elementos mais importantes para, repete-se, a correcta determinação dos elementos objectivos do tipo”.

Contextualização que mais não é, afigura-se, do que a aplicação ao crime de injúria do nexo de causalidade adequada entre a acção e o resultado típico subjacente a toda a responsabilidade criminal. Pois que toda a responsabilidade criminal exige a verificação do nexo de causalidade adequada entre a actuação do agente e o resultado típico do crime. Com efeito, nos termos do art. 10º, n.º1 do C. Penal “Quando o tipo de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo, como a omissão da acção adequada a evitá-lo”. Consagrando tal disposição – à semelhança do que sucede para a responsabilidade civil, no art. 563º do C. Civil – a doutrina da causalidade adequada.

Na formulação clássica de Eduardo Correia (Direito Criminal, I vol., p. 257) “para que se possa estabelecer um nexo de causalidade entre um resultado e una acção não basta que a realização concreta daquele se não possa estabelece sem esta; é necessário que, em abstracto, a acção seja idónea para causar o resultado; que o resultado seja uma consequência normal, típica, da acção. O processo lógico deve ser de prognose póstuma, ou seja, de um juízo de idoneidade referido ao momento em que a acção se realiza, como se a produção do resultado não se tivesse ainda verificado, isto é de um juízo ex ante. Este juízo deve ser feito segundo as regras da experiência comum aplicadas às circunstâncias concretas da situação (...) segundo as regras da experiência normais e as circunstâncias concretas em geral conhecidas, não se devendo porém abstrair, para a sua determinação, das circunstâncias que o agente efectivamente conhecia”.

Na perspetiva de distinguir a injúria da mera deselegância ou ato de mau gosto, palavras ou gestos que embora reprováveis não atingiam o patamar da relevância penal, na vigência do C.P. de 1886 havia quem entendesse que a verificação do crime exigia o impropriamente chamado dolo específico, o animus injuriandi.

Na vigência do C. Penal de 1886 travou-se uma longa querela consistente em saber se os crimes de injúria, difamação, calúnia, para além dos requisitos gerais do dolo, era exigível um dolo específico que seria integrado pelo fim de injuriar ou difamar.

Entendia-se já então que a exigência do impropriamente chamado dolo específico assentava num equívoco, que era o de considerar como dolo específico elementos que, ou estavam integrados no dolo genérico (directo necessário ou eventual) ou que, num correcto entendimento dogmático, faziam parte do tipo objetivo.

Daí que a doutrina mais generalizada e a jurisprudência que vinha a afirmar-se como dominante, concluíam já então ser apenas necessário que o agente quisesse com o seu comportamento ofender a honra ou consideração alheias ou previsse essa possibilidade, de forma que pudesse ser-lhe imputada dolosamente, nada mais.

A polémica deixou porém ter sentido com a entrada em vigor do C. Penal de 1982.

Com efeito o C. Penal vigente não prevê no tipo objectivo qualquer circunstância específica de natureza subjectiva que exija uma específica direção da vontade ou ânimo injurioso. Havendo, pois, que recorrer tão-só e apenas, aos critérios gerais do tipo subjetivo doloso, em qualquer das suas modalidades previstas no art. 14º do C. Penal: direto (quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, atuar com intenção de o realizar), necessário (quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta), ou eventual (representação de um facto que preenche um tipo de crime, como consequência possível da conduta, se o agente atuar conformando-se com aquele resultado).

É este entendimento que agora, sem margem para dúvidas, deve ser dado, que vinha já sendo sustentado, no domínio do C.P. 1886, pela doutrina mais autorizada – v.g. Beleza dos Santos, RLJ, ANO 92, p. 196 e sgs. e que recolhe a quase unanimidade da doutrina actual – cfr. Faria Costa, Comentário Conimbricence, tomo I, 612, Maia Gonçalves, CP Anotado, 15ª ed., p. 601.

O dolo desdobra-se nos chamados elementos intelectual (representação, previsão ou consciência dos elementos do tipo de crime) e volitivo (vontade dirigida à realização daqueles elementos do tipo - intenção de realizar o facto típico, aceitação como consequência necessária da conduta, conformação ou indiferença pela realização do resultado previsto como possível, nas 3 modalidades previstas no art. 14º do C. Penal - directo, necessário e eventual). A que acresce um elemento emocional que é dado, em princípio, pela consciência da ilicitude – cfr. Figueiredo Dias, Jornadas de Direito Criminal, Fase I, ed. do Centro de Estudos Judiciários, 1983, p. 71-72 e Rev. Port. de Ciência Criminal, ANO 2, 1º, p. 18-19. “Elemento emocional que se adiciona aos elementos intelectual e volitivo; uma qualquer posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas (…) quando o agente revela no facto uma posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal” – cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 333.

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Na sequência da observação formulada na resposta ao douto parecer (que nas conclusões da resposta apresentada em 1ª instância, o MºPº pede a absolvição do crime de injúria) cumpre esclarecer este ponto.

As conclusões da resposta supra reproduzidas são aquelas que constam do respetivo suporte electrónico. No entanto, compulsando a resposta ao recurso incorporada fisicamente no processo (cfr. fls. 186) verifica-se que a conclusão nº 2 da minuta incorporada no processo, contem, efectivamente, a asserção referenciada na resposta ao douto parecer.

De qualquer forma é manifesto que se trata de mero lapso que resulta claro do respectivo contexto – porque descontextualizada e contrária à fundamentação que serve de suporte, toda ela no sentido de que se mostram verificados os pressupostos do crime. Acresce que se trata de crime particular, com assistente constituído, competindo-lhe o exercício da ação penal.

Por outro lado, resulta da matéria provada: (“7 - Naquelas circunstâncias o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”). Abarcando “naquelas circunstâncias” todas “as circunstâncias acima descritas” referenciadas no ponto anterior (ponto 6). Quer pela sequência, quer pelo plural utilizado, quer pelo sentido lógico. Referindo-se claramente a todas as circunstâncias descritas nos nºs anteriores, relativas aos dois crimes imputados. Aliás, se assim não fosse, teria que resultar da apreciação da prova e especificada como matéria não provada em relação a esta ocorrência. Sob pena, aqui sim, de incorrer no vício de insuficiência previsto no art. 410º, nº2, a) do CPP.

E aquela matéria provada preenche todos os referidos elementos do tipo subjectivo – previsão, vontade de realização, atitude de contrariedade perante o dever-ser, na modalidade de dolo direto.

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Crime de ameaça

Neste âmbito, alega o recorrente (cfr. conclusão XXI) “Assim, mostram-se incorrectamente julgados os pontos 4, 5, os quais conjugados com os factos não provados sob os pontos a) a f), ditariam a sua absolvição”.

A matéria de facto impugnada, dada como provada sob os pontos 4 e 5 é a seguinte: «4 – Tendo-se então gerado uma discussão entre o arguido e o queixoso, ao longo e na dinâmica da mesma o primeiro, dirigindo-se ao segundo, disse-lhe, “andas a comer à custa da a…”, “tenho lá uma arma para te matar”, “eu mato-te”. 5 – O arguido, ao dizer ao queixoso que tinha (lá) uma arma para o matar, agiu com o propósito de o intimidar».

A sentença obedece ao dever específico de fundamentação, nos termos previstos no art. 374º do CPP, obrigando o juiz, em matéria de facto, além do mais, à apreciação crítica dos meios de prova (nº 2 do art. 374º). Daí que, não cumprindo esse específico dever de fundamentação, a sentença é nula, nos termos previstas no art. 379º, nº1 do mesmo CPP.

Assim a sentença está vinculada à necessária objectivação, na motivação da decisão, do exame crítico dos meios de prova que sustenta a matéria dada como provada, para lá da dúvida razoável.

Daí que no recurso, encontrando-se a sentença devidamente fundamentada em termos probatórios [não estando é nula, repete-se, nos termos do art. 374º, nº2 e 379º, nº1, al. a) do CPP], constitui ónus, para quem pretende vê-la revogada, de motivar o recurso (cfr. art. 411º, nº2 do CPP) e de especificar (art. 412º, nº1 do CPP) não só os concretos pontos de facto tidos por incorretamente julgados [art. 412º, nº3, al. a)], bem como “as concretas provas que impõem decisão diversa” [art. 412º, nº3, b)], como ainda, quando estão em causa provas gravadas, “as passagens – da gravação - em que se funda a impugnação” - [art. 412º, nº4 do CPP].

No caso, como fundamento da impugnação da matéria de facto, alega o recorrente (cf. conclusão XII) que “é falso que o arguido tenha agido com o propósito de intimidar o assistente”. Para concluir, citando jurisprudência que cita, que “a expressão proferida tem que prenunciar um grave e injusto dano, necessariamente futuro.

Trata-se, portanto, de típico fundamento de natureza jurídica que não probatória ou de reapreciação da prova reportada a determinado facto concreto. Carecendo assim tal asserção, manifestamente, de valor como prova susceptível ou capaz de “impor decisão (de facto) diversa da recorrida”.

Na mesma linha, quando referencia os depoimentos de testemunhas, o recorrente não cumpre o ónus de impugnação especificado para a matéria de facto previsto no art. 314º nºs 2 e 3 do CPP. Não especifica designadamente conteúdo probatório susceptível, muito menos capaz, de impor decisão diversa da recorrida - ou porque o tribunal tivesse omitido a valoração de afirmação/passagem do depoimento ou porque lhe tivesse atribuído, como suporte da decisão impugnada, conteúdo diverso daquele que é revelado pela gravação. Pelo contrário referencia os depoimentos em termos conclusivos, retirando dos excertos que reproduz, efeitos conclusivos, de direito. Que não conteúdo probatório, repete-se, diverso daquele que foi valorado pela decisão recorrida.

É o que sucede claramente quando refere (conclusão XII) «a testemunha X asseverou que "Um que dizia que tinha uma arma, outro que dizia que tinha outra, um que tinha uma pendurada, outro não sei o quê. Foi vice-versa. Aqueles calores da época»». De onde reculta que nada de concreto reporta do testemunho sobre a matéria em causa (propósito de intimidar) susceptível de infirmar a decisão recorrida.

Na mesma linha, a conclusão XIII: «A testemunha Y, por sua vez, questionado pelo Mmo. Juiz a quo, acabou por sintetizar a situação, com as seguintes palavras: Sei lá, com uns tiros, mas isso toda a gente diz essas coisas. Isso é normal"». Ou seja, também aqui não especifica passagem ou afirmação relevante de conteúdo probatório incidente sobra matéria impugnada. Muito menos susceptível ou adequado a infirmar a decisão. Limitando-se a reproduzir um juízo formulado pela testemunha (“isso é normal”) sem qualquer virtualidade probatória.

Assim, no enunciado a que procede de depoimentos de testemunhas (conclusões XII e XIII), não identifica qualquer passagem/afirmação sobre o facto probando que, como meio de prova, pudessem impor decisão diversa sobre um facto específico.

Pelo contrário, o referido sentido conclusivo surge claramente evidenciado na conclusão XII: “Os depoimentos das testemunhas ouvidas e que fundamentaram a decisão proferida negaram carácter penal às expressões proferidas”.

Ora, para além do incumprimento do ónus de impugnação nos termos especificados no art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP, carece de sentido invocar depoimentos de testemunhas para “negar carácter penal” aos factos provados, o mesmo é dizer, para descaracterizar o enquadramento jurídico efectuado pelo tribunal recorrido. Desde logo porque a testemunha depõe “sobre factos” (cfr. art. 128º, nº1 do CPP). E não sobre conceitos de direito, o mesmo é dizer para negar relevância penal às expressões.

Não existe, pois fundamento para modificação da decisão recorrida nos questionados pontos da matéria de facto.

Aliás, face à inconsistência da impugnação dos pontos 4 e 5 a que se fez referência, o recorrente sente necessidade de complementá-la alegando que “conjugados com os factos não provados sob os pontos a) a f), ditariam a sua absolvição probatória”.

Com efeito o tribunal recorrido deu como não provado – alínea e) – “que o demandante tenha sentido, ou que ainda sinta, medo ou receio de que o arguido o viesse a matar”.

Podia aqui ver-se aqui suscitado o vício previsto no art. 410º, n.º2, al. a) do CPP, de conhecimento oficioso, aliás – cfr. Acórdão do STJ de para fixação de jurisprudência 19.10.1995, publicado no DR, I-A Série de 28.12.95.

Trata-se de vício de natureza lógica evidenciado “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”, como referido no corpo do preceito. Verificando-se quando são afirmadas, em simultâneo, duas proposições que reciprocamente se excluem logicamente, em que portanto se uma é verdadeira a outra não o pode ser, tendo por referência, como se disse, o texto da decisão por si ou conjugado com as regras da experiência comum. Existe quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que a fundamentação justifica precisamente decisão oposta; entende-se o facto de afirmar e negar ao mesmo tempo uma coisa, ou a emissão de duas proposições que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas – Cfr. Ac.s do STJ de 13.03. 1996 e de 08.05.1996, citados por SIMAS SANTOS / LEAL HENRIQUES, Recursos em Processo Penal, Ed. Rei dos Livros, 5ª ed., Recursos, p. 65.

No caso não se verifica o aludido vício (não invocado mas de conhecimento oficioso) de erro notório ou de contradição insanável entre o ponto 5 da matéria provada e a alínea e) da matéria não provada.

Com efeito uma coisa é a vontade ou propósito do arguido. Outra, diferente, o efeito sobre a pessoa visada – que, apesar do propósito e da objectividade da afirmação, pode ser imune à ameaça, ao contrário do cidadão comum suposto pela ordem jurídica. Por ex., porque dispõe de meios de defesa desconhecidos do agente.

Assim, a decisão da matéria de fato não merce censura, tão-pouco nesta perspetiva.

Em matéria de qualificação jurídica dos factos provados, refere o recorrente que o crime de ameaça se refere a um “mal futuro” no pressuposto de que tal não se verifica no caso.

Tal asserção crítica carece de sentido porque é o que se verifica no caso – o arguido não tinha a arma consigo nem praticou qualquer facto no sentido de levar a cabo o anunciado intento, naquela hora. Pelo contrário, do contexto e do enunciado verbal (“tenho lá uma arma para te matar”) é manifesto que se referia a uma ameaça futura a levar a cabo com a arma que tinha lá em casa.

Os pressupostos do crime são definidos pelo art. 153º n.º 1 do Código Penal (redacção introduzida pela reforma de 1995 - DL n.º 48/95, de 15.03, mantida pela Lei n°59/2007, de 4 de Setembro nos seguintes termos: “1- Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de autodeterminação, é punido (…)”.

Esta tipificação prescinde claramente do resultado. Bastando para o seu preenchimento que a acção seja “de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação”.

Na verdade, com a revisão de 1995 este crime deixou de ser um crime de resultado, passando a constituir um crime de mera acção e perigo concreto - cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal tomo 1, pág. 348/349.

Não exige assim que a conduta do agente tenha provocado no visado, em concreto, medo ou inquietação. Mas apenas que a ameaça seja adequada, em termos de juízo de causalidade adequada, a provocar no visado medo ou inquietação ou afectar a sua paz individual ou liberdade de determinação.

Ora o nexo de causalidade adequada deve “ser referido ao momento em que a acção se realiza, como se a produção do resultado não se tivesse ainda verificado, isto é de um juízo ex ante. Este juízo deve ser feito segundo as regras da experiência comum aplicadas às circunstâncias concretas da situação, segundo as regras da experiência normais e as circunstâncias concretas em geral conhecidas, não se devendo porém abstrair, para a sua determinação, das circunstâncias que o agente efectivamente conhecia” – cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, I vol., p. 257 “

Daí falar-se de um critério objectivo-individual para determinar a adequação da ameaça: - objectivo, na medida em que se deve considerar adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); - individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada.

Como decidido no Ac. RC de 16 de Março de 2000 (Col. Jurisp. T. II, p. 47) citando Fernando Mantovani, in Diritto Penal, Parte Speciale, p. 398 e 399 «a ameaça , qualquer que seja a modalidade que revista , deve possuir uma efectiva potencialidade intimidatória , isto é deve aparecer capaz , segundo um juízo ante , tanto mais rigoroso no caso de ameaça larvar , implícita ou indeterminada - de intimidar , de criar um estado ( senso) de medo , a avaliar caso a caso com referência a : a) às circunstâncias do caso concreto (mal perspectivado), sua credibilidade e exequibilidade, prazo breve ou diferido; forma, tempo, lugar e toda a modalidade da conduta ameaçadora ; capacidade de delinquir do agente e os seus eventuais precedentes penais ; b) as particulares condições psicológicas do sujeito passivo, impressionabilidade , grau de temor , estado psicológico , idade , capacidade de resistência e o conhecimento disso por parte do sujeito activo , no momento da conduta»

Ora no caso, sendo o arguido pessoa de são entendimento, ao dizer “que tinha (lá) uma arma para o matar” não podia deixar de ser com o propósito de o intimidar, tal como resulta da matéria provada nos termos a que se fez referência.

Desde logo porque é conhecida a natureza das armas, cuja mera posse é proibida e punível por lei – cfr. artigo 86º da Lei 5/2006 de 23.02.

Sendo, pois, manifestamente apta/adequada, nas circunstâncias do caso, para intimidar ou intranquilizar a pessoa visada.

Também no que concerne aos pressupostos do tipo subjectivo, mostrando-se provado que o arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, com o porócito de intimidar, mostram-se preenchidos, no caso, os elementos do tipo subjectivo, nos termos supra definidos para o crime de injúria.

Pelo que, também nesta perspectiva, a decisão recorrida não merece censura.

III DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos decide-se negar provimento ao recurso, com a consequente manutenção integral da decisão recorrida.

Custas pelo arguido/recorrente (art. 513º do CPP, nº1 do CPP), fixando-se a taxa de justiça, nos termos da Tabela III anexa ao RCP - reapreciação da prova – em 4 (quatro) UC.

Coimbra, 17 de outubro de 2018

Belmiro Andrade (relator)

Abílio Ramalho (adjunto)