Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
579/09.1GAVGS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
SUBSTITUIÇÃO
PRISÃO POR DIAS LIVRES
Data do Acordão: 11/09/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE PEQUENA INSTÂNCIA CRIMINAL DE ÍLHAVO, COMARCA DO BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 45º E 56º CP
Sumário: Após a revogação da suspensão da execução de uma pena de prisão inicialmente aplicada, não é possível transformar essa pena numa de prisão por dias livres
Decisão Texto Integral:

8

1. Nos autos de processo sumário nº 579/09.1GAVGS do Juízo de Pequena Instância Criminal de Ílhavo, comarca do Baixo Vouga, foi o arguido
A..., melhor id. nos autos, condenado nos presentes autos, por sentença transitada em julgado, em 2/11/2009, pela prática, em 6/9/2009, de um crime de condução sem habilitação legal e de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena única de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano.

2. Entretanto, por decisão de 16.5.2011, foi revogada a suspensão da execução da pena aplicada ao arguido e, acto contínuo, foi decidido o cumprimento da pena de 10 meses de prisão por prisão por dias livres, tendo sido fixado o cumprimento por 60 períodos, com a duração de 36 horas, entre as 8 horas de sábado e as 20 horas do domingo seguinte.

3. Desta decisão do cumprimento da pena de 10 meses de prisão por prisão por dias livres recorre o ministério Público, formulando as seguintes conclusões:

3.1. Nos presentes autos de processo sumário o arguido A... foi condenado na pena de 10 (dez) meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de um ano pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal e de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
3.2. Por despacho de fls. 101 e ss. foi determinada a revogação da suspensão da pena e o cumprimento de 10 (dez) meses de prisão.
3.3. No mesmo despacho foi determinado que tal pena de prisão seria cumprida em 60 períodos de prisão por dias livres.
3.4. Após revogação da suspensão da execução da pena de prisão já não é legalmente admissível transformar a pena de prisão em prisão por dias livres.
3.5. A prisão por dias livres não é uma forma de cumprimento ou de execução da pena privativa da liberdade, mas antes, uma pena autónoma de substituição (detentiva).
3.6. Na fase de execução da pena não é legalmente admissível a substituição da pena de prisão por uma pena de substituição, pois que, a fase de escolha e medida da pena esgotou-se com a prolação da sentença.
Deve assim o recurso ser julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido e ordenado o cumprimento de 10 meses de prisão pelo arguido.

4. O arguido não respondeu.
5. Nesta instância, a Exma. Srª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu no sentido do provimento do recurso.
6. Foram os autos a vistos e realizou-se a conferência.
II
A questão a apreciar traduz-se na legalidade ou oportunidade processual da substituição da pena de prisão por prisão por dias livres.
III
Cumpre decidir:
1. É o seguinte o teor do despacho recorrido na parte que releva para o efeito:

Assim, em virtude do arguido ter cometido o mesmo tipo legal de crime no período de
suspensão, é manifesto que, as finalidades que estiveram na base da suspensão da execução da
pena não puderam ser alcançadas pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 56.º, n.º 1, al. b)
do C.P, revogo a suspensão da pena de prisão aplicada a A... e determino que o mesmo cumpra a pena de 10 (dez) meses de prisão em que foi condenado na sentença.
*
Dispõe o art.º 45º, n.º 1 do CP que a pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é cumprido por dias livres, sempre que o Tribunal concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
O pressuposto formal está verificado porque o arguido foi condenado a 10 meses de prisão, que não deve ser substituída por pena de outra espécie.
Por outro lado, também se entende que se encontra observado o pressuposto material.
Com efeito, não sendo a pena cumprida de forma contínua não deixa de o ser em meio
institucional, de forma a que o arguido reflicta sobre as consequências que advirão se vier a delinquir.
Assim sendo, o arguido interiorizará a necessidade de adequar as suas condutas aos valores vigentes na sociedade, e tutelados pelas normas penais, invertendo o seu caminho desviante.
A prisão por dias livres consiste na privação da liberdade por períodos correspondentes a fins-de-semana que não podem exceder 72 períodos.
Cada período equivale a 5 dias de prisão contínua e tem a duração mínima de 36 horas e máxima de 48 horas, podendo os feriados que antecederem ou seguirem a um fim-de-semana ser utilizados para a execução da prisão por dias livres, sem prejuízo da duração máxima estabelecida para cada período.
Assim, tendo o arguido sido condenado a 10 meses de prisão a que correspondem a 300 dias, deverá o arguido cumprir a prisão por dias livres durante 60 períodos.
Cada período terá a duração de 36 horas e será cumprido entre as 8 horas de sábado e
as 20 horas do domingo seguinte”.

2. A questão a dirimir passa, necessariamente, pela apreciação da possibilidade legal de, numa fase posterior à sentença na qual foi escolhida a pena a aplicar ao arguido (pena principal ou de substituição) e revogada que foi a aplicação de uma pena de substituição concretamente aplicada – no caso, a suspensão da execução da pena de prisão – ainda se poder ou não aplicar outra pena de substituição revogada que foi aquela.
A resposta a esta questão passa, por sua vez e, necessariamente, pela apreciação da verdadeira natureza de uma pena de substituição no nosso sistema penal actual.

A este propósito diz o Prof. Figueiredo Dias in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, Lisboa, 1993, fls. 90 e 91:
“…também as “novas” Refere-se às penas de substituição, por contraposição às penas principais (de prisão, de multa, de regime de prova) e penas acessórias, cuja aplicação pressupõe a aplicação de uma pena principal. penas diferentes das de prisão e de multa, são “verdadeiras penas” – dotadas, como tal, de um conteúdo autónomo de censura, medido à luz dos critérios gerais de determinação da pena (art. 72º) Correspondente ao actual art. 71º. - que não meros “institutos especiais de execução da pena de prisão” ou ainda menos, “medidas de pura terapêutica social. E deste ponto de vista, não pode deixar de dar-se razão à concepção vazada no CP, lias continuadora da tradição doutrinal portuguesa segundo a qual substituir a execução de uma pena de prisão traduz-se sempre em aplicar, na vez desta, uma outra pena.

O que sucede é que estas outras penas não relevam tanto da divisão entre penas principais e penas acessórias, quanto conformam uma categoria nova, com o seu sentido e a sua teleologia próprias: a categoria de penas de substituição. Penas estas que, podendo substituir qualquer uma das penas principais concretamente determinadas, radicam todavia, tanto histórica como teleologicamente, no atrás referido movimento político-criminal de luta contra a aplicação de penas privativas da liberdade, nomeadamente de penas curtas de prisão. Estas penas de substituição, se não são em sentido estrito, penas principais (porque o legislador não as previu expressamente nos tipos de crime), não são obviamente penas acessórias: não só porque estas se assumem num enquadramento histórico e teleológico que nada tem a ver com o das penas de substituição, como porque uma coisa são as penas que só podem ser fixadas conjuntamente com uma pena principal (como é o caso das penas acessórias), outra diferente as penas que são aplicadas e executadas em vez de uma pena principal (penas de substituição).
Depois desta primeira introdução às penas de substituição, o mesmo autor, na mesma obra, agora a fls. 329, aborda a designada “teoria geral” das penas de substituição, concluindo que são verdadeiras penas autónomas, na doutrina dominante portuguesa, dizendo:
“ Esta constitui a posição largamente dominante entre nós e foi, desde sempre, defendida por Beleza dos Santos e, sobretudo, por Eduardo Correia. Já Cavaleiro de Ferreira tende a ver estas medidas, prevalentemente como “modificações da pena na sua execução”, o que o leva a considerar que algumas delas – a prisão por dias livres e o regime de semidetenção mas já não a admoestação e a prestação de trabalho a favor da comunidade – poderiam ser aplicadas em momento posterior à condenação. Mas esta concepção não parece, como em seguida se procurará demonstrar, político-criminalmente correcta, nem adequada aos dados jurídico-positivos do sistema português”.

Apreciando agora os critérios legais da aplicação das penas substitutivas e depois de enunciar como critério geral (apesar da dificuldade em encontrar tal critério em virtude de uma aparente multiplicidade e diversidade de critérios legais) no sentido de que o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição, remata o insigne autor, a fls. 331, que …são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação Explicitando a seguir que, a função da culpa exerce-se no momento da determinação quer da medida da pena de prisão quer da medida da pena alternativa ou de substituição. Mas nada tem a ver com a questão da escolha da espécie de pena..

Concretamente quanto à pena de prisão por dias livres ela é classificada como pena de substituição detentiva. Significa que é uma sanção que também é cumprida intramuros, tal como a pena de prisão contínua. Pelo que muitas doutrinas e legislações e mesmo entre nós – v. Cavaleiro de Ferreira -, medidas deste tipo sejam consideradas ainda dentro da problemática da prisão, preferentemente como formas especiais de cumprimento (ou de execução) da pena de prisão – v. Figueiredo Dias, ob. cit., fls. 336, que acrescenta:
“Mas, se bem que estas sanções possam ser consideradas também sob este ponto de vista, é inteiramente correcto contá-las entre as penas de substituição. São-no certamente do ponto de vista dogmático, uma vez que a sua aplicação supõe a prévia determinação de uma pena de prisão contínua, que depois é substituída. Por outro, qualquer das medidas em causa nutre-se do mesmo húmus histórico e político-criminal das restantes penas de substituição: o da luta contra as penas (curtas) de prisão”.

3. Expostas estas considerações de índole mais geral e doutrinal, é tempo de olhar mais de perto sobre o nosso sistema penal no que respeita a estas medidas de substituição e em particular quanto à prisão por dias livres.

A política criminal e legislativa actual impõe que as consideradas penas de substituição – multa, suspensão da execução da pena, permanência na habitação, prisão por dias livres, regime de semidetenção…-, sejam aplicadas (quer a espécie, quer a sua medida), na fase da sentença, como substitutivas da pena de prisão contínua inicialmente encontrada pelo julgador – artigos 43º, 44º, 35º e 46º, 50º…do CPenal.
E a jurisprudência dos nossos tribunais superiores é praticamente unânime em considerar uma omissão (que acarreta nulidade da sentença), a não apreciação da questão de aplicação de pena substitutiva a pena de prisão efectiva, sempre que tal aplicação for legalmente admissível.
Se o tribunal tem que apreciar, numa primeira fase, todos os pressupostos de aplicação de uma pena de prisão, desde a culpa às necessidades de prevenção e demais circunstâncias inerentes à prática dos factos e agente do crime, não é menos verdade que terão de ser averiguados também os pressupostos de aplicação quanto à pena substitutiva mais adequada bem como quanto à sua medida.
O que desde logo implica um julgamento da situação inerente ao agente do crime onde são ponderados todos os ingredientes que influenciam e determinam a sanção concreta e sua medida: culpa, prevenção, necessidades de reintegração….
Possibilitar uma eventual aplicação de uma pena de substituição para momento posterior ao da sentença, seria violar desde logo o princípio de que proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa – v. artigo 666º, do CPC – e consequente princípio do caso julgado.
Em segundo lugar, o legislador regula, estipula, para cada pena de substituição em concreto, a “sanção” aplicável no caso de incumprimento pelo agente.
É assim que nos termos do artigo 43º, nº 2, do CP, o condenado cumpre a pena inicial aplicada na sentença se não pagar a multa – sem qualquer possibilidade de lhe ser aplicada a pena de prisão por dias livres ou outra; nos termos do artigo 44º, nº 4, o condenado cumpre igualmente a pena de prisão fixada na sentença (descontando-se a pena cumprida segundo aquele regime de permanência na habitação), se entretanto tal regime de permanência na habitação for revogado – igualmente sem qualquer possibilidade de lhe ser aplicada a pena de prisão por dias livres ou outra; nos termos do artigo 56º, nº 2, o condenado cumpre igualmente a pena de prisão fixada na sentença se entretanto a suspensão da execução da pena vier a ser revogado – mais uma vez, entendemos nós, sem possibilidade de lhe ser aplicada a pena de prisão por dias livres.
É que a pena de prisão por dias livres, tem o mesmo estatuto e natureza, como pena substitutiva que é, da suspensão da execução da pena, da pena de multa substitutiva e da de permanência na habitação. Mesmo admitindo, como o fazem alguns autores, que a pena de prisão por dias livres bem como o regime da semidetenção, são uma forma de “cumprimento ou de execução” da pena de prisão contínua decretada, esta pena não perde, contudo, a natureza de pena de substituição Efectivamente os artigos 45º, nº 1 e 46º, nº1, do CPenal, referem-se a “cumprida” e “executada”, respectivamente.. E se se pode considerar que é uma forma de cumprir a pena de prisão efectiva ou contínua, já não pode ser considerado uma forma de “executar” a pena de suspensão entretanto revogada.
É de anotar que quando é aplicada a pena de prisão por dias livres como pena substitutiva da pena de prisão, foi já ponderada esta forma de “cumprimento”, que sendo uma pena substitutiva é cumprida intramuros tal como a pena de prisão contínua embora num regime diferente, aos fins-de-semana, sem retirar o condenado do meio social, laboral e familiar onde se encontra inserido, quando é aplicada uma pena substitutiva de suspensão de execução da pena, o julgador não está sequer a ponderar uma futura aplicação de prisão por dias livres mas tão só a suspensão, com todas as consequências daí emergentes. Se porventura achasse que a prisão por dias livres era a pena mais adequada, deveria aplicá-la de imediato.
Ou seja, quando é aplicada uma pena substitutiva, no caso de não cumprimento da mesma pelo condenado, não pode ser aplicada outra pena substitutiva daquela primeira pena mas sim executar esta primeira pena que, segundo o legislador, se traduz no cumprimento da pena de prisão inicial – é o que acontece com a pena de multa, de permanência na habitação e de suspensão, como se anotou.
Não acontece com a de prisão por dias livres e de semidetenção porque estas penas são já de per si, uma execução da prisão efectiva, cumprida intramuros mas em condições diferentes, regulando o legislador esta forma de cumprimento – v. artigos 487º e 488º, do CPP.
No entanto, segundo o referido artigo 488º, nº 3, do CPP, se o condenado faltar à entrada no estabelecimento prisional e a falta não for justificada, a prisão passará a ser cumprida em regime contínuo, sendo passados mandados de captura para o efeito.
Pelo que, também quanto a esta pena, o efeito normal do incumprimento ou observâncias das regras, é o cumprimento da pena de prisão contínua.

4. São estas as coerências que encontramos no sistema actual para se concluir pela não admissibilidade da aplicação da prisão por dias livres, na sequência da revogação da aplicação da suspensão de execução da pena de prisão inicialmente aplicada.
Razões que encontram eco no ac. deste TRC de 4.5.2011, proferido no proc. nº 49/08.5GDAVR-A.C1; no ac. do TRG de 30.5.2011, proferido no proc. nº 623/05.1GTBRG.G1 e no ac. do TRP de 20.10.2010, proferido no proc. nº 87/01.9TBPRG.P1, todos consultáveis na base de dados do ITIJ.
De sinal oposto, favorável pois, à aplicação, em momento posterior, da pena de prisão por dias livres, v. ac. deste TRC de 23.2.2011, proferido no proc. nº 893/07.0PTAVR-A.C1, in base de dados do ITIJ.
IV

Decisão
Por todo o exposto, decide-se:
Conceder provimento ao recurso do recorrente Ministério Público e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido na parte que procedeu à substituição da pena de 10 meses de prisão pela pena de prisão por dias livres e consequentes períodos fixados.

Sem custas.

Coimbra,


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(Relator, Luís Teixeira)


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(Adjunto, Calvário Antunes)