Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
24/12.5YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR OLIVEIRA
Descritores: GARANTIA DE POSSIBILIDADE DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO.
Data do Acordão: 07/03/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Decisão: INDEFERIMENTO
Legislação Nacional: ART.º 13º, AL. A), DA LEI N.º 65/2003, DE 23 DE AGOSTO
Sumário: A garantia de possibilidade de interposição de recurso referida na al. a), do art.º 13º, da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, tendo em consideração o princípio que a determina, tanto deve referir-se aos casos de julgamento na ausência do arguido, como igualmente aos casos em que a decisão de cumprimento de prisão é posterior e foi tomada sem conhecimento e intervenção prévia do arguido, o que determina do ponto de vista do princípio da equidade que, pelo menos, possa essa decisão ser posteriormente contraditada pelo arguido através de recurso.
E não satisfaz tal garantia a possibilidade de recurso sujeita a condição, exigindo-se um efectivo direito a recurso, por natureza só dependente da vontade de quem o pode exercer.
Decisão Texto Integral: Relatório:
Na sequência de pedido de detenção emitido por autoridade judicial inglesa (mandado de detenção europeu) para cumprimento de pena e de requerimento nesse sentido do Magistrado do Ministério Público do Tribunal da Relação de Évora, procedeu-se à detenção do cidadão português A..., residente na … Montemor-o-Velho.
Após a detenção, o Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal requereu a audição do arguido e a execução do mandado nos termos dos artigos 15º, nº 1 e 18º da Lei nº 65/2003 de 23 de Agosto.
Foi o arguido A... ouvido na presença de defensora que lhe foi nomeada, tendo declarado não renunciar ao princípio da especialidade e opor-se à entrega às autoridades inglesas, requerendo prazo para oposição.
Foi determinado que o requerido aguardasse os ulteriores termos do presente procedimento judicial sujeito à medida de coacção de detenção preventiva.

O requerido veio a apresentar defesa no prazo concedido em que invoca, resumidamente, o seguinte:
- O mandado de detenção europeu não permite saber qual a efectiva pena a cumprir, não constando do mesmo qualquer decisão com força executiva que determine o cumprimento de uma pena de prisão efectiva, não estando reunidas as condições de validade previstas no artigo 3º da Lei nº 65/2003, alíneas c) e f) o que deve determinar a recusa do seu cumprimento;
- Caso assim não se entenda, deve o cumprimento do mandado ser recusado nos termos do artigo 2º, alínea g) da Lei nº 65/2003, devendo o Estado Português comprometer-se a executar a pena depois de interpelar o Estado Inglês para informar se existe decisão que revogue a suspensão da prisão e qual a pena a cumprir, o que requer;
- Declara que pretende cumprir a pena em Portugal, devendo ocorrer a recusa facultativa prevista na alínea g) do artigo 12º da Lei nº 65/2003.

O Magistrado do Ministério Público respondeu à oposição deduzida pronunciando-se no sentido de que não deve ser atendida.

Foi ordenada a realização de relatório social, encontrando-se o mesmo junto aos autos.
Por despacho proferido em 28.3.2012 determinou-se que a autoridade judiciária inglesa esclarecesse se a decisão que ordenou o cumprimento de pena de prisão foi proferida sem que o arguido tenha tido conhecimento prévio da realização da audiência para esse efeito e sem que tenha tido possibilidade de se pronunciar previamente, solicitando-se a prestação da garantia a que se refere o artigo 13º, alínea a) da Lei nº 65/2003, para o caso da resposta ser afirmativa.
No mesmo despacho foi ordenada a libertação do arguido que esteve detido preventivamente de 30 de Janeiro de 2012 a 28 de Março de 2012.

A autoridade inglesa respondeu conforme consta de fls. 136.

Realizada conferência, cumpre apreciar e decidir nos termos do artigo 22º, nº 2 da Lei nº 65/2003 de 23 de Agosto.
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Fundamentos:
Com relevo para a decisão cumpre salientar a seguinte factualidade que consta do mandado de detenção europeu, do relatório social e da informação complementar prestada pela autoridade inglesa a fls. 136 (tradução):
O presente mandado de detenção europeu foi emitido no âmbito da previsão do artigo 1º, nº 1 da Lei 65/2003 de 23 de Agosto para cumprimento de pena.
O arguido foi condenado pelo Tribunal da Coroa de Taunton, pela autoria de crime de violência sexual de que se declarou culpado, por sentença com força executiva proferida em 21.9.2010, na pena de 12 meses de prisão que foi suspensa por 24 meses com sujeição a obrigações.
O mencionado crime é punível pela legislação inglesa com pena de prisão até 10 anos.
Porque o arguido não cumpriu as obrigações, em audiência do mesmo Tribunal de 25.10.2010, foi decidida a detenção do arguido para cumprimento da pena de prisão.
O arguido saiu de Inglaterra para Portugal em data anterior à da referida audiência que se realizou na sua ausência e sem o seu prévio conhecimento.
O arguido não foi notificado da decisão de revogação do regime de suspensão da execução da pena.
O Tribunal da condenação prestou a informação adicional de que " (…) Se a pena imposta for considerada pelo arguido como sendo injusta, este poderá pedir permissão para interpor recurso da sentença perante o Tribunal da Relação nos termos da Lei de 1968 Relativa ao recurso em processo penal. (…)".
O arguido reside em Portugal na morada acima mencionada desde que regressou de Inglaterra na companhia dos seus pais. Trabalha com o pai no comércio de veículos automóveis usados.
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A entrega requerida no âmbito do presente mandado de detenção europeu foi solicitada para cumprimento de pena de 12 meses de prisão, resultante da revogação de pena de substituição "pena de prisão de 12 meses cuja execução fora suspensa com sujeição a obrigações".
Nos termos do artigo 1º da Lei nº 65/2003 o mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado membro com vista à detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade.
O mandado de detenção europeu é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na referida Lei e na Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI/ do Conselho, de 13 de Junho.
E assim é em razão do evidente objectivo de harmonização de legislações, dando-se conta desde logo da existência da inerente complementaridade relacional de ambos na realização do Espaço Penal Europeu.
O Mandado de Detenção Europeu (MDE) foi a primeira concretização desse Princípio do Reconhecimento Mútuo que tem como pressuposto um espaço comum de justiça e a necessidade de livre circulação e reconhecimento mútuo das decisões judiciárias já que, tradicionalmente, a cooperação judiciária em matéria penal se tem apoiado numa série de instrumentos jurídicos internacionais que se caracterizam, essencialmente, por aquilo a que se poderia chamar o "princípio do pedido", ou seja, um Estado soberano apresenta um pedido a outro Estado soberano, o qual decide, em seguida, se deverá ou não aceder a esse pedido.
Ora, a aplicação do Princípio do Reconhecimento Mútuo determina que, emitido pelo Estado Emissor o Mandado de Detenção Europeu e recebido pela autoridade judicial competente para a sua execução – Estado Executor – a decisão judicial nele incluída produza efeitos quase de forma automática, sem necessidade que a autoridade de execução proceda a um novo exame para verificar a sua conformidade com o ordenamento jurídico interno (sem embargo de se dever assegurar a sua execução com o respeito dos direitos, liberdades e garantias individuais).
Tem-se entendido que o princípio do reconhecimento mútuo se fundamenta na ideia de que, ainda que outro Estado possa não tratar uma determinada questão de forma igual ou análoga à forma como seria tratada no Estado do interessado, os resultados serão considerados equivalentes às decisões do seu próprio Estado.
No entanto, é de realçar que o dito princípio do mútuo reconhecimento implica-se no pressuposto fundamental da recíproca confiança entre os Estados membros, quer na pertinência das disposições do outro Estado quer na correcta aplicação dessas disposições.
A referida relação de confiança entre os Estados-Membros pressupõe, pois, o reconhecimento recíproco da qualidade dos seus ordenamentos jurídicos e respectivos processos, baseada na convicção de que estes respeitam os mais elementares princípios e direitos fundamentais, o que vem referido expressamente no considerando n°10 da Decisão-Quadro nº 2002/584/JAI onde se diz que “ O mecanismo do Mandado de Detenção Europeu é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados-Membros”.
Ora este princípio da confiança que está subjacente ao regime jurídico do mandado de detenção europeu levou à consagração de procedimentos simplificados em que a documentação da decisão judicial que determinou a emissão do mandado se limita ao preenchimento de um formulário com indicação de uma sentença com força executiva e respectivo conteúdo condenatório; factos, qualificação jurídica, pena.
Face ao disposto no artigo 2º da Lei nº 65/2003 o mandado de detenção europeu pode ser emitido por factos puníveis, pela lei do Estado membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas da liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses ou, quando tiver por finalidade o cumprimento de pena ou de medida de segurança, desde que a sanção aplicada tenha duração não inferior a 4 meses.
E, ainda, que será concedida a extradição com origem num mandado de detenção europeu, sem controlo da dupla incriminação do facto, sempre que os factos, de acordo com a legislação do Estado membro de emissão, constituam as infracções, puníveis no Estado membro de emissão com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 3 anos, constantes do elenco previsto no artigo 2º da Lei 65/2003.
A emissão do mandado foi feita com indicação de uma pena máxima até 10 anos.
Em Portugal está previsto crime correspondente (artigo 165º, nº 1 do Código Penal) sendo punível com pena de prisão até oito anos.
Ao contrário do que refere o arguido e como já resulta do exposto, o mandado de detenção indica com clareza a pena primariamente imposta, suspensa, a pena de prisão imposta após revogação da suspensão e não teria que indicar a data do trânsito em julgado da decisão que não é pressuposto da exequibilidade do mandado de detenção europeu como, ademais, resulta com clareza do disposto no artigo 13º, alínea a) da Lei nº 65/2003 que expressamente se refere a mandado de detenção europeu para cumprimento de pena sem que o arguido tenha sido notificado da decisão.
Em face do exposto, mostram-se preenchidos os requisitos formais de emissão e de validade de transmissão do mandado, não se verificando as apontadas violações do disposto nas alíneas c) e f) do nº 1 do artigo 3º da lei em referência.

Não obstante o exposto, porque está em causa o cumprimento de pena cuja decisão não foi notificada ao arguido e foi proferida à sua revelia, deve ter-se presente o disposto no artigo 13º, alínea a) da Lei acima citada preceituando que "a execução do mandado de detenção europeu só terá lugar se o Estado Membro de emissão prestar uma das seguintes garantias:
a) Quando o mandado de detenção europeu tiver sido emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança imposta por uma decisão proferida na ausência do arguido e se a pessoa em causa não tiver sido notificada pessoalmente ou de outro modo informada da data e local da audiência que determinou a decisão proferida na ausência do arguido, só será proferida decisão de entrega se a autoridade judiciária de emissão fornecer garantias consideradas suficientes de que é assegurada à pessoa procurada a possibilidade de interpor recurso ou de requerer novo julgamento no Estado membro da emissão e de estar presente no julgamento."
Este normativo, em certo sentido, constitui uma excepção ao princípio da confiança que norteou o regime especial de extradição do mandado de detenção europeu e visa assegurar a máxima estabelecida na Convenção Europeia dos Direitos do Homem do direito a processo equitativo (due process of law) com a consciência de que nem sempre aspectos específicos da legislação dos Estados dão plena consagração a esse princípio.
Note-se que neste caso a decisão que justifica a detenção para cumprimento da pena não é a sentença condenatória mas a posterior, tomada em audiência, que determinou o comprimento da pena cuja execução fora naquela primeira decisão suspensa.
Mas a citada garantia, tendo em consideração o princípio que a determina, tanto deve referir-se aos casos de julgamento na ausência do arguido, como igualmente aos casos em que a decisão de cumprimento de prisão é posterior e foi tomada sem conhecimento e intervenção prévia do arguido, o que determina do ponto de vista do princípio da equidade que, pelo menos, possa essa decisão ser posteriormente contraditada pelo arguido através de recurso.
Ora, tendo em vista o exposto, constando do próprio mandado de detenção que o arguido se terá ausentado da morada em Inglaterra antes da decisão da sua detenção e não se esclarecendo cabalmente se essa audiência teve ou não lugar sem que o arguido para a mesma tenha sido notificado, elemento indispensável para se concluir se era ou não exigível a mencionada garantia, solicitou-se ao Estado da emissão do mandado que esclarecesse se a decisão que ordenou o cumprimento da pena de prisão foi proferida sem que o arguido tenha tido conhecimento prévio da realização de audiência para esse efeito e sem que tenha tido possibilidade de se pronunciar previamente e, na afirmativa, a prestação da garantia a que se refere o artigo 13º, alínea a) da Lei 65/2003.
Resultando da resposta do Tribunal inglês ao solicitado, como já resultava do mandado de detenção europeu, que o arguido não teve prévio conhecimento do procedimento de incumprimento e revogação da pena suspensa e não foi notificado da decisão a executar, não prestou, porém, a solicitada garantia, limitando-se apenas a informar que segundo a legislação inglesa o arguido pode recorrer, ainda assim, mediante prévia solicitação e autorização do Tribunal. (tal informação sobre a possibilidade de recurso parece vir reportada à sentença e não à posterior decisão de revogação do regime de suspensão). Trata-se, de qualquer modo, de uma possibilidade de recurso sujeita a condição e não de um efectivo direito a recurso, por natureza só dependente da vontade de quem o pode exercer.
Ora, não tendo sido prestada a garantia em causa, não pode ser proferida decisão de entrega.
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Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes nesta 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em negar a execução do mandado de detenção europeu contra o arguido A....
Não há lugar a tributação.
Notifique o MºPº, o GNI, o arguido e defensor e informe a autoridade de emissão através da autoridade central (PGR) com menção do período de tempo durante o qual o arguido esteve detido à ordem destes autos.

Coimbra, 3 de Julho de 2012
(Texto elaborado e revisto pela relatora; a primeira signatária)
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(Maria Pilar Pereira de Oliveira)

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(José Eduardo Fernandes Martins)