Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
840/22.0T9LRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: PESQUISA INFORMÁTICA
APREENSÃO DE EQUIPAMENTO INFORMÁTICO
EXTRACÇÃO DE MATERIAL RECOLHIDO EM EQUIPAMENTO INFORMÁTICO
VALIDAÇÃO DA JUNÇÃO AOS AUTOS DOS DADOS RECOLHIDOS
PRAZO PARA A APRESENTAÇÃO DOS DADOS RECOLHIDOS AO JUIZ
Data do Acordão: 04/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DAS CALDAS DA RAINHA – JUIZ ...
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 15º E 16.º, N.º, 3, DA LEI N.º 109/2009, DE 15 DE SETEMBRO/LEI DO CIBERCRIME
ARTIGO 178.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I – A pesquisa informática a que se refere o artigo 15.º, n.º 1, da Lei do Cibercrime consiste numa pesquisa sumária ao equipamento electrónico suspeito para averiguar se nele existem dados armazenados que interessem à prova; se a resposta for positiva, o equipamento é apreendido com vista à extracção dos dados.

II – É distinto o apuramento da existência de dados informáticos específicos e determinados que se encontrem armazenados num sistema informático, obtido através de pesquisa informática sumária, e a extracção dos dados relevantes do equipamento informático onde foram encontrados, bem como a sua junção ao processo, razão pela qual aquela pesquisa nunca pode ser confundida com a “junção” do material aos autos.

III – O prazo a que se refere o artigo 15.º, n.º 2, da Lei do Cibercrime respeita àquela pesquisa sumária, não à extração dos dados relevantes do equipamento informático para efeitos da sua junção ao processo, que se encontra previsto no art. 16.º da mesma lei.

IV – Quando forem apreendidos dados ou documentos informáticos cujo conteúdo seja susceptível de revelar dados pessoais ou íntimos, que possam pôr em causa a privacidade do respetivo titular ou de terceiro, devem ser apresentados ao juiz antes da sua junção aos autos, sob pena de nulidade, para prolação do despacho a que se refere no n.º 3 do artigo 16.º da Lei do Cibercrime.

Decisão Texto Integral:

Acórdão deliberado em conferência na 5ª seção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


1.

Relatório


A Magistrada do Ministério Público veio interpor recurso da decisão proferida pelo Juiz de Família e Menores no inquérito tutelar educativo n.º 840/22...., do Juízo de Família e Menores ... – J..., Comarca de Leiria, que declarou nulas as pesquisas informáticas realizadas e, em consequência, não validou os dados resultantes daquelas.


1.1.  Conclusões do recurso (que se transcrevem na parte relevante):

- As pesquisas informáticas tiveram o consentimento expresso dos titulares.

- As pesquisas não são nulas.

- Os dados e fotografias recolhidas não são prova proibida.

- Os dados e fotografias deveram manter-se nos autos.


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1.2. Não foi apresentada resposta.
1.3. O parecer emitido pela Exma. Procuradora-geral Adjunta nesta Relação pronuncia-se pela procedência do recurso.

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1.4. Despacho recorrido:

Veio o Ministério Público promover a validação de um conjunto de dados extraídos de equipamentos informáticos apreendidos nos presentes autos (resultantes de pesquisas informáticas ordenadas a 26-04-2022 pelo próprio Ministério Público)

Dispõe o artigo 15.º, n.º 1, da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, que «Quando no decurso do processo se tornar necessário à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, obter dados informáticos específicos e determinados, armazenados num determinado sistema informático, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho que se proceda a uma pesquisa nesse sistema informático, devendo, sempre que possível, presidir à diligência.».

Por outro lado, o n.º 2 do mesmo artigo prevê um prazo máximo de 30 dias para a realização dessa pesquisa, sob pena de nulidade.

Pois bem, compulsados os autos, constata-se que foi proferido despacho, pelo Ministério Público (autoridade judiciária competente), a 26-04-2022, a determinar, juntamente com buscas, a pesquisa informática, tendo o prazo de 30 dias decorrido a 26-05-2022, data em que foram realizadas as buscas e apreendido material informático com vista à pesquisa.

Não constando dos autos qualquer outro despacho a determinar nova pesquisa informática, para além do já mencionado, não pode o juiz validar as referidas pesquisas porquanto as mesmas, de acordo com o disposto no artigo 15.º, n.º 2 da Lei 109/2009, de 15 de setembro, são nulas, por ter sido ultrapassado o prazo máximo. Com efeito, as pesquisas foram ordenadas a 26-04-2022 e só a 06-01-2023 é que foram juntas aos autos, ultrapassando largamente o prazo legal.

Note-se que o próprio Ministério Público, no despacho onde ordena tais pesquisas, definiu o referido prazo de 30 dias para a realização das mesmas.

Pelo exposto, julgam-se nulas as pesquisas informáticas realizadas e, em consequência, decide-se não validar os dados resultantes daquelas, não se determinando a sua junção aos autos, isto sem prejuízo de serem solicitadas novas pesquisas e juntas aos autos.


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2.

Conhecimento do recurso

Encontra-se o objeto do recurso limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente. São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, pelo que se ficam aquém, a parte da motivação que não consta das conclusões não é considerada, e se forem além também não são consideradas, porque a motivação das mesmas é inexistente ([1]).

O objeto do presente recurso resume-se a decidir se as pesquisas informáticas efetuadas são nulas, por ter decorrido o prazo fixado para a sua realização.


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            Constam dos autos os seguintes atos processuais, relevantes para a decisão:
Ø A 26.4.2022 o Ministério Público proferiu despacho em que determinou:
2- Assim, remeta os autos ao Mmo. Juiz de família e menores, ao qual se requer, nos termos do disposto nos arts. 28.1 al.a) da LTE, 174.1 a 3, 176, 177.1 e 268.1 al. f), 2, 3 e 4 do C.P.P (estes por força do disposto no art. 128.1 da LTE), que determine:
- a realização de busca à residência acima identificada, a concretizar pela P.J;
- a emissão, em quadruplicado, de mandado para a realização da citada busca (…)
3- Determino:
- (…) a pesquisa, nos bens detetados que constituam suporte informático, de dados ou documentos informáticos neles existentes (art. 15.1 da Lei 109/2009, de 15/9);
- a apreensão dos detetados relacionados com os ilícitos indiciados (art. 16.1 da Lei 1092009, de 15/9).
4- Verificando-se as situações previstas os arts. 16.3 ou 17 da Lei 109/2009 de 15/9 (apreensão de dados ou documentos informáticos suscetíveis de revelar dados pessoais ou íntimos ou deteção de mensagens eletrónicas ou registos eletrónicos a elas equiparados) deverão ser apresentados ao Mmo. Juiz do juízo de família e menores (nos termos do disposto no art. 28.1 al. a) da LTE):
- os dados ou documentos informáticos suscetíveis de revelar dados pessoais ou íntimos, para determinação da sua junção (ou não) aos autos (art. 16.3 da lei 109/2009, de 15/9);
- as mensagens ou registos eletrónicos equiparados, para determinação da sua apreensão e junção (ou não) aos autos (art. 17 da lei 109/2009, de 15/9).
Delego na P.J a realização das diligências determinadas, a realizar no prazo máximo de 30 dias.
Ø Por despacho proferido no mesmo dia 26.4.2022 pelo Juiz de Família e Menores, foi ordenado, nomeadamente: “Assim, nos termos conjugados dos arts. 174º, nº 1 a 3, 176º, 177º, nº 1, 178º, n.ºs 3 e 4 e 268º, n.º 1 al. f), 2, 3 e 4 todos do C.P.P, ex vi art. 128º n.º 1 da LTE), determina-se a realização de busca à residência do menor supra identificado a ser levada a cabo pela Polícia Judiciária.
A busca destina-se à obtenção de elementos de prova das suprarreferidas condutas, incluindo-se a apreensão, se necessário, de dispositivos ou suportes físicos que as contenham, e com a ressalva de que quaisquer mensagens ou registos eletrónicos equiparados, dados ou documentos informáticos suscetíveis de relevar dados pessoais ou íntimos, deverão ser apresentados NESTE JUIZO DE FAMÍLIA E MENORES para os efeitos previstos pelos arts. 16º e 1º da Lei 109/2009 de 15Set.
(…) A busca deverá ser realizada no prazo de 30 dias.
Ø Foram emitidos mandados de busca a 27.4.2022 pelo Juiz de Família e Menores;
Ø O Mandado de Pesquisa Informática foi emitido pelo Procurador da República a 27.4.2022, constando deste o seguinte: “MANDA que, nos termos do at. 15º 1 da Lei 109/2009, de 15/9, seja efetuada pesquisa informática em sistemas ou suportes existentes no local da busca determinada, a fim de serem apreendidos dados ou documentos informáticos aí detetados, nos termos do disposto nos arts. 16º e 17º da Lei 109/2009, de 15/09, a cumprir no prazo máximo de 30 DIAS a contar de 26/04/2022”.
Ø O auto de busca de apreensão da Polícia Judiciária data de 26.5.2022, tendo sido apreendido um telemóvel onde foram encontradas imagens de cariz sexual envolvendo menores e de nudez explícita no telemóvel, após ser sujeito a pesquisa informática.
Ø A 10.1.2023, foi proferido pelo Ministério Público o seguinte despacho, sobre o qual incidiu o despacho judicial objeto de recurso: “Conclua os autos ao Mmo. Juiz, juntamente com os suportes em DVD, em duplicado e selados pela P.J, juntos à contracapa, tendo em conta o disposto nos arts. 16.3 e 17 da lei 109/2009, de 15/9, já que se indicia que foram detetados, na sequência da pesquisa informática efetuada, dados informáticos de natureza pessoal ou íntima, podendo por em causa a privacidade do respetivo titular ou terceiros e/ou constituir correio eletrónico ou registo de comunicações de natureza semelhante com grande interesse para a prova e a descoberta da verdade, pelo que deve ser ordenada a respetiva junção aos autos.

Vejamos:

O art. 15º da denominada Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009, de 15.9), sob a epígrafe “Pesquisa de Dados Informáticos”, na parte que interessa, dispõe o seguinte:

«1 - Quando no decurso do processo se tornar necessário à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, obter dados informáticos específicos e determinados, armazenados num determinado sistema informático, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho que se proceda a uma pesquisa nesse sistema informático, devendo, sempre que possível, presidir à diligência.

2 - O despacho previsto no número anterior tem um prazo de validade máximo de 30 dias, sob pena de nulidade.»

No caso, o juiz ordenou a realização de uma busca à residência do menor (art. 177º, n.º 1, do Código de Processo Penal), enquanto o Ministério Público determinou a apreensão e pesquisa de dados informáticos detetados no local – competência que a lei claramente lhe atribui no n.º 1 do art. 15º transcrito.

Não colhe o fundamento invocado pelo Ministério Público relativo ao consentimento dos titulares, uma vez que na parte do auto, pré-elaborado, destinado à assinatura do consentimento não foi aposta qualquer assinatura.

Como bem se refere no despacho objeto de impugnação e consta do mandado de pesquisa informática emitido, este tinha um prazo de validade de 30 dias, correspondente ao período máximo previsto na lei. Uma vez que ficou a constar do mesmo que tal prazo se contaria a partir da data do despacho que o ordenou (não da data do próprio mandado), o prazo expirava a 26.5.2022.

A busca foi, assim, realizada dentro do prazo concedido, a saber, no dia 26.5.2022. E o mesmo sucedeu com a pesquisa informática.

Na realidade, decorre do despacho proferido, objeto de recurso, que o Exmo. Juiz incorreu num equívoco, tomando a pesquisa informática e a sua junção aos autos como uma mesma realidade. Não é assim.

Conforme consta do auto de busca e apreensão, foi no âmbito e no momento da busca efetuada a pesquisa informática aos equipamentos informáticos encontrados na habitação; tendo sido encontradas imagens de cariz sexual envolvendo menores no telemóvel, o que determinou a sua apreensão (ordenada pelo Ministério Público ao abrigo do art. 178º, n.º 3, do Código de Processo Penal).

Refira-se, aliás, que a pesquisa informática a que se refere a norma ínsita no art. 15º, n.º 1, da Lei do Cibercrime constitui apenas o início da execução do meio de recolha de prova em suporte eletrónico: é efetuada uma pesquisa sumária ao equipamento eletrónico suspeito (através de palavras chave ou outros meios) e, caso se conclua que no equipamento existem dados armazenados que interessem à prova, o equipamento é apreendido. Perante a complexidade cada vez mais maior do sistema de armazenamento dos dados informáticos, que se tem tornado em cada dia mais sofisticado, desde o momento em que resulte de uma pesquisa que existe naquele determinado equipamento material relacionado com o crime e a sua extração poderá decorrer algum tempo, dependendo, v.g., do grau de encriptação dos dados que interessem.

Assim, é distinto: por um lado, o apuramento da existência de dados informáticos específicos e determinados que se encontrem armazenados num sistema informático, através de pesquisa informática; por outro lado, num momento temporal que pode ser diferente, a extração dos dados relevantes do equipamento informático onde foi encontrado, bem como a sua junção ao processo.

Dito de outra forma, a pesquisa informática permite de imediato apurar que determinados dados se encontram armazenados naquele equipamento, o que não coincide necessariamente com a sua disponibilização, que poderá não ser imediata.

Por essa razão, a pesquisa nunca pode ser confundida com a sua “junção” aos autos, contrariamente ao que resulta do despacho recorrido.

Para aferir da validade da pesquisa informática efetuada importa ter em conta a data em que a mesma foi executada. No caso, foi cumprido o prazo de 30 dias fixado no mandado emitido, mesmo que no último dia concedido: 26.5.2022.

Pelas razões expostas, não foi ultrapassado o prazo a que se refere o n.º 2 do art. 15º da Lei do Cibercrime, tendo a pesquisa no sistema informático sido realizada tempestivamente – fundamento que determinou a prolação do despacho recorrido.

O equipamento informático foi apreendido nos termos previstos no Código de Processo Penal (art. 178º), cabendo a apreensão dos dados informáticos à autoridade judiciária, concretamente o Ministério Público, na fase de inquérito. Assim, estabelece o n.º 1 do art. 16º da Lei do Cibercrime: “Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados dados ou documentos informáticos necessários à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho a apreensão dos mesmos”.

 Constando da promoção do Ministério Público de 10.1.2023 terem sido “detetados, na sequência da pesquisa informática efetuada, dados informáticos de natureza pessoal ou íntima, podendo por em causa a privacidade do respetivo titular ou terceiros”, cabe ao juiz proferir o despacho a que se refere o n.º 3 do art. 16º da Lei do Cibercrime, que foi omitido face ao erróneo juízo prévio efetuado.

Estabelece essa norma que “Caso sejam apreendidos dados ou documentos informáticos cujo conteúdo seja suscetível de revelar dados pessoais ou íntimos, que possam pôr em causa a privacidade do respetivo titular ou de terceiro, sob pena de nulidade esses dados ou documentos são apresentados ao juiz, que ponderará a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto”, não referindo a norma prazo para o efeito.

Assim, a questão que caberá ao tribunal recorrido decidir, nesta fase, respeita a esta última norma, uma vez que não se pronunciou sobre a mesma, tendo-se limitado a não validar a junção aos autos dos dados apresentados com fundamento na violação do n.º 2 do art. 15º.

Prosseguirão, pois, os autos para esse efeito.


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3.

Decisão


Pelo exposto, concede-se parcial provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o despacho proferido a 20.1.2023, que deverá ser substituído por outro que se pronuncie nos termos do art. 16º, n.º 3, da Lei n.º 109/2009, de 15.9.

Sem tributação.

Notifique.


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Coimbra, 26 de abril de 2023

Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (relatora – processei e revi)

João Bernardo Peral Novais (1º adjunto)

Rui Pedro Miranda Mendes Lima (2º adjunto)




[1] v. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, 2015, págs. 335-336.