Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
549/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: LEGADO DE BEM
NÃO PERTENÇA POR INTEIRO DO TESTADOR
VALIDADE
Data do Acordão: 04/26/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ANADIA - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1685º, Nº 2, E 2251º, Nº 1, DO C. CIV. .
Sumário: I – A deixa de coisa certa pertencente a uma herança ainda indivisa de cônjuge predefunto, feita pelo viúvo, configura um legado de coisa em indivisão, afim de legado de coisa alheia .
II – No artº 1685º, nº 2, do C. Civ. dispõe-se que o legado de coisa determinada do património conjugal apenas dá ao contemplado o direito de exigir o respectivo valor em dinheiro, preceito este que se considera aplicável à deixa de bens indivisos, após a morte do primeiro cônjuge .

III – Não há motivo para não ser permitida ao cônjuge sobrevivo, enquanto não fizer a partilha com os herdeiros do cônjuge falecido, a faculdade de dispor da sua parte na comunhão para depois da morte, mas incidindo essa disposição sobre bens certos e determinados pertencentes à comunhão, ela é válida quanto ao valor e nula quanto à substância .

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - RELATÓRIO
I.1- A..., B... e C..., residentes em Moita, Anadia, intentaram acção declarativa, com processo comum sumário, contra D..., pedindo a declaração de nulidade de um legado outorgado por E..., pelo qual transmitiu à ré o prédio urbano inscrito na matriz sob o art.715, bem como a condenação da ré a reconhecer essa nulidade, e ainda o cancelamento de eventual registo que tenha por base o testamento que continha o legado.
Para tanto e em síntese, alegam que o referido E..., pai das AA., legou o prédio à ré, mas que esse prédio não lhe pertencia, antes integrando o prédio descrito na C.R. Predial de Anadia com o nº73105, o qual pertence à herança aberta por óbito de F..., mulher do E... e mãe das AA..
Contestou a ré, alegando que houve partilhas parciais verbais da mesma herança, nos termos das quais o prédio ficou a pertencer apenas a E..., que o possuiu e fruiu na companhia da ré ao longo de mais de 20 anos, pelo que o teria adquirido por usucapião; que era do conhecimento público que era vontade firme do E... deixar a casa onde vivia e quintal, após a sua morte, à sua companheira, a ré. Deduziu reconvenção, vindo os AA. mais tarde a ser absolvidos da instância reconvencional (despacho de fls.91, transitado).
Os AA. responderam, foi proferido despacho saneador, seleccionada a matéria de facto assente e organizada a base instrutória.
Realizado o julgamento, proferiu-se sentença nos termos da qual se julgou a acção procedente, declarando-se nulo o legado constante do testamento outorgado a 26.5.87. Condenou-se a ré a reconhecer a nulidade desse legado e ordenou-se o cancelamento de eventual registo que tenha por base esse testamento.
I.2- Não se conformando com o sentenciado, apelou a ré, tendo tirado das suas alegações recursivas, estas sintetizadas conclusões:
1ª- No domínio dos testamentos haverá de prevalecer a vontade substancial do testador em detrimento da forma como foi expressa no papel, nos casos em que seja possível determinar com exactidão e precisão essa mesma vontade, como será o caso vertente;
2ª- O facto de o prédio urbano nº715 se encontrar descrito na C.R.P. de Anadia como sendo prédio misto composto ainda pelo rústico nº5033, e do testamento apenas se referir ao dito artigo urbano, não é causa de nulidade absoluta e irreparável desse testamento;
3ª- Assim, o testamento deverá ser considerado válido, nos termos do art.2252º/C.C.;
4ª- Interpretado no sentido de que o autor desse testamento quando disse que legava o referido artigo urbano nº715, queria lagar não só a parte urbana mas também a parte rústica identificada no artigo rústico nº5033º (queria legar a unidade económica descrita na C.R.P. sob o nº73.105), o testador estava a deixar no testamento metade do valor do prédio por ser cônjuge meeiro da falecida Ilda;
5ª- Ou no mínimo, que fosse interpretado no sentido de que o testador estava a legar à ré apenas esse prédio urbano, como cônjuge meeiro efectivamente legava metade do valor dessa casa, isoladamente considerada do quintal, sendo possível efectuar uma avaliação separada das duas partes do imóvel;
6ª- O facto de o prédio ser constituído por uma realidade composta por artigo rústico (quintal) e outro urbano (casa de habitação), só por si, não é causa de nulidade do testamento.
I.3- Contra-alegaram as AA. pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da decisão.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTOS
II.1 - de facto
Por não vir impugnada, nem haver lugar à sua alteração, dá-se como reproduzida a matéria de facto fixada na sentença recorrida – art.713º/6, C.P.C. .

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II.2 - de direito
Pretendem os AA. a declaração de nulidade do legado instituído a favor da ré, D....
Tendo em conta a factualidade assente, a 1º instância assim o considerou, com o argumento de que o prédio objecto da deixa constituía a parte urbana de um prédio misto, portanto sem existência autónoma. Nessa medida e não podendo o testador legar coisa que não lhe pertença por inteiro, conforme dispõe o art.2252º/1,C.C., o legado não seria válido.
Se bem interpretamos a totalidade da minuta do recurso, a ré insurge-se contra o decidido por entender que o legado deveria ser reduzido à parte do imóvel inscrito na matriz urbana com o nº715, pertença do testador por direito próprio decorrente da sua meação. Essa seria, a seu ver, a interpretação da vontade real do testador, ou seja, dispor a favor da sua companheira, a ré, a casa de habitação onde viveram, estando assim a legar metade do valor do prédio misto.
Vejamos o que de relevante se provou.
No testamento outorgado em 26.5.87, foi declarado por E..., viúvo e pai das AA., o seguinte: “Lega a D..., viúva, (…), o prédio urbano composto de casa de habitação e logradouros com o seu respectivo recheio, sito no lugar e freguesia da Moita, concelho de Anadia (…) e inscrito na respectiva matriz sob o art.715º”.
Este prédio faz parte do prédio descrito na respectiva conservatória sob o nº73105, como prédio misto, casa de habitação e quintal, inscrito na matriz urbana sob o art. nº715 (área da parte urbana: superfície coberta, 65m2; logradouros, 105m2) e na rústica sob o art. nª5033.
O prédio referido (misto) foi inscrito em 19.1.71 a favor de E... e dos AA., sendo o facto inscrito “aquisição, em comum e sem determinação de parte ou direito”, e causa, “herança indivisa”.
Na base desta inscrição esteve a escritura de habilitação de herdeiros por óbito de F..., falecida em 11.7.70, no estado de casada com o referido E... no regime de comunhão geral de bens, sucedendo-lhe como suas herdeiras, as filhas aqui autoras.
A ré e o E... viveram juntos, como se fossem marido e mulher, até à data do falecimento dele ocorrida em 22.9.97, cuidando a ré diariamente da casa de morada de ambos, casa que foi objecto do legado.
Publicamente o E... referiu ser sua vontade, após a sua morte, deixar à ré a casa onde vivia (a mencionada no testamento) e o quintal adjacente.
Estes factos levam-nos esta segura conclusão: o pai das AA. ficou, após a morte da mulher e mãe das filhas, F..., com direito a metade dos bens do casal, por ser essa a sua meação.
Na verdade, sendo ele cônjuge sobrevivo, à morte do seu consorte tinha apenas a posição de meeiro do património do casal, por não estar então em vigor o C.C. da reforma de 1977.
As AA. ficaram com direito à outra metade que integrava a herança da sua mãe.
A ré ficou como legatária. É evidente que se instituiu um legado ao atribuir-se um bem certo e determinado do património do testador, como foi o caso (art.2030º/2,C.C.).
Interpretando a vontade real do testador em ordem a averiguar o que ele efectivamente quis, não se nos oferecem dúvidas de que estamos perante uma deixa testamentária que contempla apenas a parte urbana (área coberta e logradouros) do aludido prédio misto.
Tendo presente o disposto no nº1 do art.2187º/C.C., é do contexto do testamento que a vontade do testador deve resultar. O nº2 do mesmo normativo admite a prova complementar, mas determina que não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.
Na situação presente, pese embora se tenha provado que era firme vontade do testador deixar à ré a casa onde vivia e o quintal, ou seja, a parte urbana e a rústica do prédio descrito sob o nº73.105, esta intenção é irrelevante por não conter no contexto do testamento qualquer apoio.
Na realidade, no testamento em apreço o declarante reporta-se expressa e especificadamente ao prédio urbano composto de casa de habitação e logradouros, mencionando o respectivo artigo matricial – 715. Se a sua intenção fosse a de deixar também o quintal, tê-lo-ia declarado indicando o artigo matricial da parte rústica (5033), ou então reportar-se ao prédio como um todo, misto, tal como está descrito.
Como assim, a vontade do testador, o que ele na verdade quis, foi beneficiar a ré, sua companheira ao longo dos anos, com a atribuição da parte urbana do prédio que integrava a herança da sua mulher, e que fora a casa de morada de ambos.
A questão está então em saber se é válida ou não essa deixa testamentária.
Sendo como é deixa de coisa certa pertencente à herança indivisa do cônjuge predefunto feita pelo seu viúvo, estamos em presença de legado de coisa em indivisão, afim do legado de coisa alheia.
Dispõe o nº1 do art.2252/C.C.: “se o testador legar uma coisa que não lhe pertença por inteiro, o legado vale apenas em relação à parte que lhe pertence, salvo se do testamento resultar que o testador sabia não lhe pertencer a totalidade da coisa, pois, nesse caso, observar-se-á, quanto ao restante, o preceituado no artigo anterior”.
Mas para a hipótese, de verificação frequente, de a coisa legada só em parte pertencer ao testador em virtude de este dispor, no testamento, de coisa certa e determinada pertencente ao património comum dos cônjuges, o nº2 do referido preceito manda ressalvar as regras do número anterior que não prejudicam o preceituado no art.1685º/2. Aqui se dispõe que o legado de coisa determinada do património conjugal apenas dá ao contemplado o direito de exigir o respectivo valor em dinheiro. Este preceito foi considerado aplicável à deixa de bens indivisos, após a morte do primeiro cônjuge. [Cfr. Oliveira Ascenção, «Sucessões», pág.320]
A lei permite, como regra, a disposição da meação para depois da morte. Em homenagem ao princípio da liberdade de testar possibilita, como excepção, a validade de deixa de coisa certa e determinada do património comum, impondo, contudo, a conversão obrigatória em dinheiro. Imposição que contempla um interesse familiar, seja do outro cônjuge, seja dos sucessores deste, seja dos sucessores do próprio testador.
Não há motivo para não ser permitida ao cônjuge sobrevivo, enquanto não fizer a partilha com os herdeiros do falecido cônjuge, de dispor da sua parte na comunhão para depois da morte.
Incidindo a disposição sobre bens certos e determinados pertencentes à comunhão, ela é válida quanto ao valor e nula quanto à substância. O contemplado pode sempre exigir o respectivo dinheiro, mas não pode exigir a própria coisa. [Cfr. P. Lima e A. Varela, «C.C. anotado», Vol. IV, pág.312]
A solução contemplada no citado art.1685º/2 é, pois, a da transformação sistemática da disposição em substância no legado pecuniário correspondente.
No caso concreto, o testador legou uma coisa certa (casa de habitação e logradouros) pertencente à herança indivisa do seu falecido cônjuge. Tendo a liberdade de dispor da sua meação nos bens comuns, isto não significa que tivesse direitos sobre coisas certas e especificadas, nem direito a uma quota sobre qualquer dessas coisas. Logo, não podia intitular-se dono do prédio legado ou sequer titular do direito a metade do prédio como sustenta a recorrente.
Para salvaguardar o benefício do contemplado, a lei enveredou pela solução antes referida. Em tal hipótese, o legatário adquiriu um direito creditório por via do testamento, tornando-se credor da herança. Não tem direito a bens do património mas a exigir dos onerados, em princípio os herdeiros, que lhe paguem o respectivo valor em dinheiro. São os chamados legados obrigacionais. [Cfr. Galvão Teles, «Direito das sucessões», 4ª ed., pág.162]
Concluindo: o caso dos autos está abrangido pelo art.2252º/2, pelo que o legado, embora não possa ser concretizado em substância, é válido e deve ter o correspondente valor em dinheiro.
A pretensão dos AA. não pode, pois, ter acolhimento.
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III - DECISÃO
Acorda-se, pelo exposto, em julgar procedente a apelação se bem que com fundamentação diferente da recorrente, revoga-se a sentença apelada absolvendo-se a ré do pedido, a qual, conforme referido, tem o direito a que os AA. lhe paguem o valor do legado em dinheiro.
Custas em ambas as instâncias a cargo dos autores, sem prejuízo do apoio judiciário de que gozam.
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COIMBRA,