Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3000/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTINÇÃO POR NÃO USO
DECURSO DO PRAZO NA PENDÊNCIA DA ACÇÃO
ARTº 663º DO C.P.C.
Data do Acordão: 11/30/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 663º DO C.P.C
Sumário: I – A demora processual não pode ter-se como relevante para integrar a causa de pedir ou uma condição do exercício do direito de acção.
II – O artº 663º do C.P.C, ao impor a atendibilidade, na sentença, dos factos jurídicos supervenientes, fala em novos factos e não no mesmo facto.
III – O complemento do prazo do não uso de uma servidão de passagem, para efeitos da sua extinção, decorrido após a propositura da acção não pode ser considerado facto e menos ainda facto novo, mas reflexo da demora processual, e este não é nem integra a causa de pedir da extinção da servidão.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


A.... e marido, B..., instauraram, em 08/01/1998, pelo Tribunal da comarca de Aveiro, acção com processo sumário contra C... e mulher, D..., e E... e marido, F..., que por ter falecido em 27/7/75, foi substituído, em habilitação, pela ré mulher e pelos filhos G..., H... e I..., residentes em Aveiro, alegando, em síntese, o seguinte:
Os autores são donos dum prédio urbano sito em Aveiro, à Rua António da Benta, n.ºs 9 e 11, constituído por casa com dois pavimentos e logradouro.
Os primeiros réus são donos de um prédio urbano, do qual os segundos réus são arrendatários, que confronta a nascente com o dito prédio dos autores.
Na zona sul do referido prédio dos autores, e em benefício do dito prédio dos primeiros réus, existia uma passagem que se fazia por uma espécie de corredor cimentado com cerca de 20 metros de comprimento e a largura de cerca de 1,40 metros, constituindo uma servidão de passagem a pé, e que ligava, no sentido nascente - poente, as traseiras da casa dos primeiros réus à dita Rua António da Benta.
Há mais de vinte anos que os réus e seus antecessores deixaram de passar das traseiras do seu prédio para esta dita rua, nunca tendo utilizado o referido
corredor por si ou interpostas pessoas durante aquele período.


A segunda ré (Arminda) reclamou dos autores a reabertura a seu favor do passadiço em apreço, mediante carta de 30/10/97.
Terminam, pedindo que, na procedência da acção, seja declarada extinta por não uso a mencionada servidão de passagem.
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Contestaram os primeiros réus, pedindo a improcedência da acção.

Contestaram outrossim as rés Arminda e Maria José, impugnando a matéria de facto alegada pelos autores e pedindo a improcedência da acção.
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Foi proferido o despacho saneador e organizada a selecção dos factos considerados assentes e dos que constituem a base instrutória, sem qualquer reclamação.
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Teve, depois, lugar o julgamento e, decidida a matéria de facto controvertida sem reclamações, foi proferida a sentença, que julgou a acção improcedente.
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Para assim decidir, baseou-se o Sr. Juiz na seguinte matéria de facto:
I - Os autores são donos dum prédio urbano sito em Aveiro, à Rua António da Benta, com os n.ºs 9 e 11 de polícia, constituído por casa com dois pavimentos e logradouro, inscrito na matriz predial urbana da freguesia da Vera Cruz sob o artigo n.º 2299 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o n.º 01190/130694 da dita freguesia, de que os segundos réus são inquilinos. - A) dos Factos Assentes.
II - Os primeiros réus são donos de um prédio urbano, do qual os segundos réus são arrendatários, o qual confronta a nascente com o dito prédio dos autores, deitando a respectiva frente para a Rua Antónia Rodrigues, onde tem o n.º 42 de polícia. – al. B).
III - Na zona sul do referido prédio dos autores e em benefício do dito prédio dos primeiros réus existia uma passagem que se fazia por uma espécie de corredor cimentado com cerca de 20 metros de comprimento e a largura de cerca de 1,40 metros, constituindo uma servidão de passagem a pé, e que ligava, no sentido nascente - poente, as traseiras da casa dos primeiros réus à dita Rua António da Benta. – al. C).
IV - Há mais de vinte anos os primeiros réus e seus respectivos antecessores deixaram de passar pelo caminho referido na alínea C) da matéria assente, das traseiras do seu prédio para a Rua Antónia da Benta. – resp. quesito 1º da Base Instrutória.
V - Nunca tendo utilizado o corredor directamente ou por interpostas pessoas, à excepção dos segundos réus, durante o referido período; - q. 2.º.
VI - Os segundos réus deixaram de passar pelo dito “caminho” pelo menos desde Janeiro de 1980; - q. 3.º.
VII - A segunda ré reclamou a reabertura a seu favor do passadiço em apreço, mediante carta do teor de folhas 12 dos autos; - q. 4.º.
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Inconformados com a decisão, apelaram os autores, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1.- A matéria de facto apurada como existente à data do encerramento da dis-cussão deveria ter determinado a procedência do pedido.
2.- A Sentença sob apelação não atentou nos preceitos do art. 663º do C.P. Ci-vil.
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Apenas os réus Francisco e mulher contra-alegaram, defendendo a improcedência do recurso.
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Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Como é sabido, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o tribunal da relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil – diploma a que pertencerão os restantes normativos sem menção de proveniência).
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A acção foi julgada improcedente na 1ª instância por, não obstante se ter provado que a segunda ré e o seu falecido marido, a quem o prédio dominante se encontra arrendado, deixaram de passar pelo caminho de servidão desde Janeiro de 1980, não ter decorrido até à propositura da acção (1998) o prazo de 20 anos previsto na al. b) do nº 1 do artº 1569º do Código Civil, para determinar a extinção da servidão.
Alegam os recorrentes que a acção deveria ter sido julgada procedente, uma vez que à data do encerramento da discussão já havia decorrido o prazo do não uso da servidão suficiente para ser declarada a sua extinção, não tendo, assim, a sentença atentado no preceito do artº 663º.
A questão suscitada no recurso consiste, assim, em saber se o presente caso se encontra abrangido pela previsão do nº 1 daquele artigo (663º).
Tal artigo – subordinado ao título “atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes” - dispõe que a sentença deve tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proprosição da acção, desde que se repercutam na causa de pedir invocada na acção.
Um dos princípios fundamentais do processo civil, segundo o Prof. Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, pág. 361), é o de que a inevitável demora do processo, ou ainda a necessidade de recorrer a ele, não deve ocasionar dano à parte que tem razão. A sentença deve julgar como se o processo tivesse sido decidido logo que foi instaurado. Deve, consequentemente, pôr a parte vencedora na situação em que estaria nessa hipótese, e também naquela em que estaria se não lhe tivesse sido necessário servir-se dos meios judiciais para obter o que lhe é devido. Tudo isto, porém, só valerá até onde for preciso para evitar um dano injusto ao pleiteante que tenha razão no começo do litígio.
Este princípio não se sobrepõe ao princípio dispositivo e respeita o direito substantivo. Por outro lado, pressupõe o respeito pelo pleiteante que, em relação ao momento em que cada um define a sua posição, seria o vencedor, que teria razão, e exclui da atendibilidade os factos que não dependerem da vontade do respectivo titular (cfr. Ac. do S.T.J. de 30/04/1997, BMJ 466º-472, que aqui seguimos de perto).
Equivale isto a dizer, segundo este Acórdão, que não se quis ter como facto constitutivo ou mesmo ter como relevante para integrar a causa de pedir ou uma condição do exercício do direito de acção o “facto” demora processual nem o seu “reflexo” – de outro modo, quando o concreto facto jurídico accionado ou a condição de exercício do direito de acção integrasse um determinado lapso temporal, estar-se-ia a conferir-lhe uma eficácia que ele em si e em termos de direito substantivo não podia conhecer.
É de realçar que o artº 663º fala em novos factos e não no mesmo facto.
A abertura do direito processual à evolução dinâmica da relação litigada, até ao momento derradeiro do encerramento da discussão da causa, é relativa à admissão dos novos factos. É o reflexo decorrente, aliás, da ampliação correspondente introduzida no âmbito dos articulados supervenientes (cfr. Prof. Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, pág. 679/681)

No presente caso, o facto que os autores invocaram para obter a extinção da servidão de passagem foi o seu não uso durante vinte anos, cujo prazo, segundo eles, já tinha decorrido à data da propositura da acção.
Os réus impugnaram tal facto, e a verdade é que se provou que os segundos réus deixaram de passar pelo caminho de servidão pelo menos desde de Janeiro de 1980, não tendo, ainda, decorrido, portanto, à data da propositura da acção (08/01/1998), o prazo de vinte anos previsto na lei para a extinção da aludida servidão.
Seguindo aqui de novo o Ac. do S.T.J. atrás citado, o “complemento” do prazo do não uso decorrido após a propositura da acção não pode ser considerado facto e menos ainda facto novo, mas reflexo da demora processual, e este não é nem integra a causa de pedir da extinção da servidão, sendo que a demora processual, além de ser só uma situação, nem seria facto dependente da vontade do respectivo titular.
Quando a acção foi proposta os autores ainda não gozavam do direito de requererem que se decretasse a extinção da servidão pelo fundamento que invocaram.
É de realçar que o facto constante da resposta ao quesito 3º da Base Instrutória – “Os segundos réus deixaram de passar pelo dito “caminho” pelo menos desde Janeiro de 1980” – está temporalmente limitado à data da propositura da acção, nada garantindo que tal situação se tenha mantido posteriormente a esta última data.
Conclui-se, assim, pela inaplicabilidade, in casu, do disposto no artº 663º, com a consequente improcedência do recurso.


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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelos recorrentes.