Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
553/09.8TBPBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO COSTA
Descritores: INTERDIÇÃO POR ANOMALIA PSÍQUICA
LEGITIMIDADE ACTIVA
Data do Acordão: 10/13/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL - 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 141º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1 - O legislador, quando atribuiu, no artº 141º do Código Civil, a legitimidade para requerer a interdição a «qualquer parente sucessível» do interditando, quis abarcar todos os parentes sucessíveis legalmente previstos;

2 - Parentes sucessíveis do interditando são tanto o respectivo cônjuge sobrevivo, como os descendentes, os ascendentes, os irmãos e seus descendentes e outros colaterais até ao quarto grau;

3 – Qualquer destas pessoas tem legitimidade para instaurar acção de interdição, independentemente da classe de sucessíveis em que figure, no momento da instauração da acção.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

A... intentou, no Tribunal Judicial da Comarca de Pombal, o presente procedimento cautelar de arrolamento contra:

- B.. , pedindo que, sem audiência deste, fosse decretado o arrolamento dos bens imóveis do requerido que discrimina.

Alegou, para tanto, em resumo, que o requerido é seu filho e sofre de deficiência mental adquirida, causada por epilepsia, a qual tem carácter permanente e irreversível; o requerido é facilmente sugestionável perante terceiros, fazendo tudo o que lhe mandam, sendo incapaz de juízos críticos autónomos; tal deficiência mental impossibilita o requerido de reger a sua pessoa e os seus bens, mas não é de molde a justificar a respectiva interdição; a providência de arrolamento destina-se a proteger o requerido e a acautelar o seu património.

Indeferido o pedido de decretamento da providência sem audiência do requerido, foi este citado, tendo deduzido oposição em que alega que nunca sofreu de qualquer demência mental ou incapacidade que lhe impossibilitasse ou sequer dificultasse a regência normal tanto da sua pessoa como dos seus bens; completou com normalidade a instrução primária, sabendo ler e escrever de forma adequada; vive em união de facto com C..., em casa arrendada, tendo dessa ligação nascido, em 18/10/2008, uma filha a que deu o nome de D... ; trabalha como servente de pedreiro e aufere um salário mensal que se situa entre € 900,00 e 1.000,00, que ele próprio administra; termina, por isso, por pedir a improcedência da instaurada providência.

Procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas pelo requerente e pelo requerido, cujos depoimentos não se mostram gravados ou registados por qualquer meio.

Finda a inquirição das testemunhas, foi vertido para a acta despacho que, pronunciando-se sobre a questão da legitimidade do requerente, não suscitada pelas partes, para instaurar a acção de inabilitação e o presente procedimento cautelar, concluiu pela respectiva ilegitimidade, pelo que o requerido foi absolvido da instância.

Inconformado com o assim decidido, interpôs o requerente recurso para este Tribunal, o qual foi admitido como de apelação e efeito meramente devolutivo.

Alegou, oportunamente, o apelante, o qual finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1ª - “Pode requerer a inabilitação por anomalia psíquica, no quadro familiar, «qualquer parente sucessível» (artigo 156°, com remissão para o artigo 141°, ambos do Código Civil);

2ª - A douta decisão impugnada interpretou o art. 141° do Cod. Civil restritivamente, no sentido de referir-se ao imediato parente sucessível prevalente na hierarquia dos sucessíveis, nos termos do disposto nos artigos 2133°, al. a) e b), 2134° e 2135°, todos do Código Civil, qualidade que se verificaria exclusivamente na filha menor (ainda bebé) do apelado, conforme assento de nascimento junto;

3ª - Porém, a lei empregou uma fórmula que se afigura mais ampla e abrangente de «qualquer parente sucessível» e não apenas o «parente sucessível» ou o «herdeiro»;

4ª - Na interpretação da lei devem considerar-se os seguintes elementos: 1) O elemento gramatical ou literal; 2) Os elementos lógicos, que são: a) O sistemático, que tem em conta unidade do sistema jurídico; b) O histórico, constituído pelos precedentes normativos, trabalhos preparatórios e a occasio legis; c) O teleológico, que é a justificação social da lei; tal como resulta do disposto no art. 12°, n° 1, do Código Civil;

5ª - Preceitua o n° 1 do art. 2032° do Código Civil que «aberta a sucessão, serão chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis, desde que tenham a necessária capacidade», enunciando deste modo os clássicos três pressupostos, cumulativos e de verificação simultânea, da vocação sucessória: (1°) a titularidade pelo sucessível, chamado, de designação sucessória prevalente no momento da abertura da sucessão (2°) a existência; e (3°) a capacidade, para efeitos sucessórios, desse sucessível naquele momento;

6ª - E o nº 2 do mesmo normativo, que se os primeiros sucessíveis não quiserem ou não puderem aceitar, serão chamados os subsequentes, e assim sucessivamente; a devolução a favor dos últimos retrotrai-se ao momento da abertura da sucessão;

7ª - O escalonamento concreto dos designados como sucessíveis, como é sabido, é altamente instável;

8ª - É que, a todo momento podem surgir novos herdeiros legitimários (por virtude de casamento, nascimento, adopção plena, regresso de ausente) ou desaparecer (por morte física ou presumida, deserdação), podem instituir-se herdeiros ou legatários contratuais ou testamentários ou estes podem ver a sua designação tornar-se ineficaz (por revogação, caducidade, etc.), podem surgir novos herdeiros legítimos ou desaparecerem estes;

9ª - Daí que a fixação da prevalência sucessória referida no art. 2032° só seja possível através da referência a um momento determinado, estabelecendo a lei que a vocação sucessória se faz (n° 1 do art. 2032° do CCIV) ou se retrotrai (n° 2 do mesmo artigo) ao momento da abertura da sucessão, a qual ocorre no momento da morte do de cuius (art. 203 1°, do CCiv);

10ª - Apenas num tal momento que se imobiliza e consolida a hierarquia das designações sucessórias que o escalonamento dos designados até então instável e em permanente evolução se fixa e se apuram as pessoas que em concreto vão ser chamadas à titularidade das relações jurídicas do falecido, desde que reúnam ainda os restantes pressupostos da vocação sucessória, ou sejam, a existência jurídica e a capacidade;

11ª - Ora no caso em apreço estamos longe do momento da abertura da sucessão e, assim, a hierarquia das designações sucessórias assaz instável ainda não se consolidou ou imobilizou;

12ª - Por isso, apelando ao elemento sistemático não há senão interpretar a expressão «qualquer parente sucessível» como abrangendo todo o parente do inabilitando (ou interdito) que integre qualquer das classes dos sucessíveis legais, posto que no momento da acção existam outros em hierarquia prevalente, mas que pela instabilidade do escalonamento concreto dos designados como sucessíveis, até ao momento da abertura da sucessão, o seu chamamento subsequente se torne como possível ou potencial;

13ª - O ora apelante (pai do apelado) integra a segunda classe dos sucessíveis legais (art. 2133°, n° 1, al. b)), podendo vir a ser chamado imediata e subsequentemente nas condições do n° 2, do art. 2032° do CCiv, concretamente se a descendente não puder aceitar;

14ª - Por outro lado o elemento racional ou teleológico “que consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar” (Parecer da PGR: DR II, de 26- 11-1992, pág. 11227), reforça esta interpretação;

15ª - O instituto da interdição (ou inabilitação) por demência está hoje centrado num «tríptico de interesse: o interesse do interdicendo, o da família e até o da sociedade;

16ª - E no caso sub júdice o apelante cumpre com um poder-dever na provável procedência da acção de inabilitação e suposta a sua nomeação como curador (143°, 1, c), que prevalece na nomeação sobre os descendentes (al. d)), de proteger e zelar pelos interesses patrimoniais do seu descendente evitando a dissipação do seu património através de vendas ou quaisquer alienações ao desbarato mercê da anomalia psíquica e assim prevenir a perda irremediável do seu património imobiliário;

17ª - A interpretação propugnada pelo douto despacho recorrido conduziria a que no quadro familiar, in casu apenas fosse a «filha do requerido (devidamente representada)» a ter legitimidade para requerer a inabilitação do apelado;

18ª - Provou-se que nasceu em 18 de Outubro de 2008, tendo agora apenas a tenra idade de 8 (oito meses), sendo por conseguinte uma bebé;

19ª - Sendo menor (122° CC), manifestamente não pode requerer o que quer que seja, pois carece de capacidade para o exercício de direitos (123° CC), incapacidade que é suprida pelo poder paternal (124°);

20ª - Ora, não se concebe que o pai da menor (ora apelado) em representação da menor fosse instaurar uma acção de inabilitação contra si próprio ou qualquer providência cautelar incidental;

21ª - Donde mais se justifica que possam ser outros parentes também sucessíveis e com plena capacidade de exercício de direitos, interessados no seu bem-estar futuro, concretamente o seu progenitor, ora apelante, a requerer;

22ª - Pelo que uma interpretação teleológica do art. 141° do CC, in casu reclama que o apelante possa, no interesse do seu descendente e da própria família (onde avulta uma neta bebé) dispor de legitimidade para requerer a inabilitação e, correspondentemente, a presente providência cautelar, integrando-se no conceito de «parente sucessível» interessado para tal fim;

23ª - Ou seja, embora em classe presentemente não prevalente, o autor como pai é ainda parente sucessível, detendo de legitimidade para propor a acção de inabilitação por anomalia psíquica e por inerência, requerer o arrolamento de bens – 944°, 422°, n° 1 e 424°, n° 1, do CPC e 141°, n° 1 e 2133, n° 1, ai. b) ex vi do art. 156° do Civil;

24ª - O apelado é proprietário de prédios e se nada for feito a tempo de o proteger contra a dissipação do seu património, pode sofrer de prejuízos irreversíveis, quando futuramente terá necessidades básicas que carecem de adequada satisfação, o que importa acautelar;

25ª - O justo receio de extravio ou dissipação de bens a que alude o art. 421° do CPC envolve uma acepção de temor, acompanhada de incerteza e que constitui um facto inconsumado a produzir no futuro, posto que presumível e verificava-se pelos actos descritos no requerimento inicial (arts. 36° a 46°), sendo manifesto o interesse na procedência deste procedimento com vista á descrição e avaliação dos bens imóveis do requerido identificados em 33°;

26ª - A decisão recorrida fez incorrecta interpretação e aplicação do artigo 141°, por remissão do artigo 156° e, dos artigos 2133°, al. a) e b), 2134° e 2135°, todos do Código Civil;

27ª - Violou o disposto nos artigos 2032°, nºs 1 e 2 e 203 1°, cujos pressupostos não atendeu, daquele diploma legal;

28ª - Desatendendo ao elemento sistemático e teleológico na interpretação do art. 141° do CC, violou o disposto no art. 9°, n° 1, do mesmo diploma;

29ª - Julgando o apelante parte ilegítima para o arrolamento, violou as disposições conjugadas dos artigos 944°, 956°, n° 1 e 421°, no 2, 422°, n° 1 e 424°, 1, todos do CPC e 141°, n°1 e 2133, n°1, al. b) ex vi do art. 156° do Civil”.

Contra-alegou o apelado, pugnando pela manutenção do julgado.


...............


O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, nos termos do disposto nos artºs 684º, n.º 3, e 685º-A, n.º 1, do C. de Proc. Civil, na versão introduzida pelo Dec. Lei nº 303/2007, de 24/8.

De acordo com as apresentadas conclusões, a questão a decidir por este Tribunal cinge-se a saber se o apelante tem legitimidade para requerer o presente procedimento cautelar de arrolamento, como incidente da acção de inabilitação por anomalia psíquica.  

Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre decidir.


...............


OS FACTOS

O despacho recorrido não discrimina os factos que o Tribunal “a quo” considerou provados e não provados. Não obstante, os factos que importam à decisão do recurso resultam de documentos juntos e são os seguintes:

1º - O requerido B... nasceu no dia 27 de Julho de 1973 e foi registado como filho de A... e de E... (doc. de fls. 13 e 14);

2º - D... nasceu no dia 18 de Outubro de 2008 e foi registada como filha de B... e de C... (doc. de fls. 46).


...............


O DIREITO

A questão que cumpre dilucidar é somente a de saber se o ora apelante, pai do apelado, tem legitimidade para instaurar contra este acção de inabilitação por anomalia psíquica e, por arrastamento, também para o arrolamento incidental da mesma acção.

O despacho recorrido, sem que nenhuma das partes tivesse questionado a legitimidade em questão, pronunciou-se oficiosamente sobre ela, concluindo pela ilegitimidade do requerente para instaurar a acção de inabilitação a que este procedimento cautelar corre por apenso.

Salvo o devido respeito, não podemos acompanhar, de modo algum, o entendimento sufragado no despacho recorrido.

A legitimidade em causa, tal como a abordou o despacho recorrido, refere-se à acção de inabilitação já instaurada. Essa (i)legitimidade provocaria por arrastamento a (i)legitimidade para os termos do presente procedimento cautelar.

De acordo com o preceituado no artº 141º do C. Civil (aplicável à inabilitação ex vi do artº 156º do mesmo código), a interdição pode ser requerida pelo cônjuge do interditando, pelo tutor ou curador deste, por qualquer parente sucessível ou pelo Ministério Público (nº 1).

O nº 2 do mesmo preceito dispõe sobre a legitimidade quando o interditando estiver sob o poder paternal, o que não é o caso dos autos.

A legitimidade para a instauração das acções de interdição/inabilitação radica, pois, num grupo alargado de pessoas, nele se incluindo o cônjuge do interditando, o respectivo tutor ou curador, quando estejam nomeados, qualquer parente sucessível e, por último, o Ministério Público.

Aqui, está em causa saber se o apelante, pai do interditando, se enquadra dentro do grupo «qualquer parente sucessível» a que alude aquele nº 1 do artº 141º.

O Tribunal “a quo”, afastando-se nitidamente da letra da lei e do seu espírito, considerou que o facto de o interditando ter uma filha afastava o apelante, seu pai, do lote dos parentes sucessíveis daquele, para efeitos de poder instaurar a acção de inabilitação. Isto é, o apelante era afastado por não figurar na 1ª classe de sucessíveis do interditando, na qual está a sua filha menor, D....

Como escreveu Rodrigues Bastos (Notas ao Código Civil, vol. 1º, 192), relativamente aos parentes, como só aos sucessíveis é reconhecida legitimidade para a acção, só a podem exercer os parentes em qualquer grau de linha recta e até ao 6º grau (actualmente 4º grau) da linha colateral (artº 1582º). Tal faculdade não é concedida nem aos afins nem aos credores.

Os parentes sucessíveis de qualquer pessoa singular encontram-se enumerados no artº 2133º do Código Civil e são os seguintes:

a) O cônjuge; b) Os descendentes; c) Os ascendentes; d) Os irmãos e seus descendentes (sobrinhos); e) Outros colaterais até ao quarto grau.

Aquele artº 2133º estabelece a ordem pela qual são chamados os diversos herdeiros, mas tal ordem não tem nada a ver com a legitimidade para a instauração das acções em causa.

A ordem pela qual são chamados à partilha da herança de determinada pessoa só se coloca após a respectiva morte, sabido como é que a sucessão apenas se abre no momento da morte do seu autor (artº 2031º do C.C.).

Enquanto a pessoa é viva não pode afirmar-se que este ou aquele é seu herdeiro, no sentido de que tem direito à totalidade ou a uma parte dos seus bens. Todas as pessoas enumeradas naquele artº 2133º são seus sucessíveis e qualquer delas pode vir a figurar como herdeiro dos seus bens.

A circunstância de o interditando ter actualmente uma filha não afasta o apelante da categoria dos parentes sucessíveis daquele. Na verdade, o interditando é vivo e não sabemos quais vão ser, à data da sua morte, os seus concretos herdeiros. Acresce que, mesmo que o interditando deixe filhos, quando morrer, pode suceder que eles repudiem a herança e, nessa hipótese, já o apelante, seu pai, caso o interditando não deixe cônjuge, passa a ser herdeiro.

Actualmente, o inabilitando não tem herdeiros, já que ainda não morreu e, como tal, não se deu a abertura da respectiva herança. O que ele tem são parentes sucessíveis e qualquer deles pode vir a ser, no momento da abertura da herança, seu herdeiro.

Do que vem de dizer-se afigura-se-nos claro que o legislador, quando aludiu a «qualquer parente sucessível» do interditando/inabilitando, no já citado artº 141º, quis abarcar todos os parentes sucessíveis legalmente determinados. E parentes sucessíveis do interditando são tanto o respectivo cônjuge sobrevivo, como os descendentes, os ascendentes, os irmãos e seus descendentes e outros colaterais até ao quarto grau.

Não faria sentido algum que o legislador, destinando-se, obviamente, a interdição/inabilitação a pessoa viva, quisesse restringir a legitimidade para a instauração da acção respectiva aos herdeiros concretos, dentro da respectiva classe de sucessíveis, retirando a legitimidade aos sucessíveis das demais classes. Na verdade, porque ainda não foi, como não podia ser, aberta a sucessão do interditando, sempre nos restaria a dúvida de quem seriam os concretos herdeiros do interditando, já que a herança só se abre na data da morte e, de qualquer modo, a herança depende de aceitação, que pode ser expressa ou tácita (artº 2056º do C.C.).

Como determina o artº 9º, n.º 1, do C. Civil, na interpretação da lei não deve o intérprete “cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”.

E, de acordo com o nº 3 do mesmo preceito, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Os juízes – escreveu-se de forma douta no Ac. do S.T.J. de 29/10/96, B.M.J. n.º 460º, 663 – “decidem de uma forma ou de outra, assumida a sua responsabilidade na interpretação da lei e na, tanto quanto possível, justa resolução do caso concreto.

É a visão do direito judiciário, procurando a consonância da lei com a vida, até porque esta é a razão de ser daquela.
Obviamente, os juízes não podem deixar de ser os garantes da observância da lei, ressalvado o respeito pela Constituição (artigos 206º e 207º da Constituição). Mas também não podem limitar-se a conhecer e a dizer as palavras da lei, assim a modos como ensinava Montesquieu – impressionante, positivamente, a propósito da definição e repartição dos poderes de Estado, mas naturalmente desconhecedor do sentido judiciário e da diferença entre ler e dizer ou, por outro lado, interpretar e aplicar a lei aos casos concretos.

Como reflectia Cabral de Moncada, a ordem social é dinâmica e não estática; «saber cientificamente o direito não é só isso», ou seja, não é só «saber o que dizem as leis»; todo o direito é «pensamento ao serviço da vida» (Filosofia do Direito e do Estado, 2º, 42, 56 e 76). E é nesta linha de entendimento que surgem normas como as do tão simples como essencial artigo 9º do Código Civil, designadamente com a sua «nota vincadamente actualista», nas palavras autorizadas e impressivas dos Prof.s P. de Lima e A. Varela (C.C. Anotado, 1º, 4.ª ed., 58), o que vale dizer que a lei é passível de interpretação evolutiva que, quanto possível, a sintonize com a dinâmica social, científica e, especialmente, com a perspectiva concreta do justo (...)”.

Ora, o legislador proclamou, no já aludido artº 141º, que a legitimidade para as acções de interdição/inabilitação cabe, para além de outros, a qualquer parente sucessível. A utilização do pronome ou adjectivo indefinido «qualquer» só pode ter o sentido de que o legislador quis atribuir a legitimidade para as acções em causa a um de entre muitos, sem escolha, a pessoas indeterminadas de entre aquelas que figuram legalmente como sucessíveis do interditando (vide o significado do pronome qualquer em Dicionários Editora).

Presumindo o intérprete que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (citado artº 9º, nº 3), seria ir contra a letra e o espírito da lei restringir a legitimidade para as acções em análise à concreta classe de herdeiros do interditando/inabilitando, até porque, segundo o velho brocardo, ubi lex non distinguit nec nos distinguire debemus.

Caso o legislador quisesse restringir, tal como defende o despacho recorrido, a legitimidade para a instauração das acções referidas a uma concreta classe de herdeiros, excluindo os demais sucessíveis, não teria utilizado o adjectivo indefinido «qualquer», mas exprimir-se-ia certamente noutros termos.

Procedem, assim, as conclusões da alegação do apelante, pelo que o despacho recorrido não pode manter-se, tendo de ser substituído por outro que afirme a legitimidade do apelante para os termos da intentada acção de inabilitação e, por conseguinte, para o presente procedimento cautelar, seguindo-se os demais termos.


.........


Sumário:

1 - O legislador, quando atribuiu, no artº 141º do Código Civil, a legitimidade para requerer a interdição a «qualquer parente sucessível» do interditando, quis abarcar todos os parentes sucessíveis legalmente previstos;

2 - Parentes sucessíveis do interditando são tanto o respectivo cônjuge sobrevivo, como os descendentes, os ascendentes, os irmãos e seus descendentes e outros colaterais até ao quarto grau;

3 – Qualquer destas pessoas tem legitimidade para instaurar acção de interdição, independentemente da classe de sucessíveis em que figure, no momento da instauração da acção.


...............


DECISÃO

Nos termos expostos, decide-se julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, a fim de ser substituído por outro que afirme a legitimidade do ora apelante para os termos da instaurada acção de inabilitação, seguindo-se os demais termos.

Custas pelo apelado.