Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
824/20.2T8ANS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL DE REGULARIZAÇÃO DE SITUAÇÕES DE INCUMPRIMENTO
PERSI
EXECUÇÃO
EXCEPÇÃO DILATÓRIA INOMINADA
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
COMUNICAÇÕES
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 03/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ANSIÃO DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 14.º, N.º 4 E 17.º, N.º 3 DO DECRETO-LEI N.º 227/2012, DE 25/10
ARTIGOS 278.º, N.º 1, AL. E) E 729.º, N.º 1, AL. C) DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
ARTIGO 334.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I) O Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) constitui um mecanismo de protecção aplicável a clientes bancários que estejam em incumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, obviando a que as instituições bancárias possam desencadear, de imediato, os procedimentos judiciais com vista à satisfação dos seus créditos.

II) A omissão do PERSI integra excepção dilatória inominada que determina a absolvição do executado da instância executiva.

III) É o exequente que tem o ónus de alegar e provar a existência, o envio e a respectiva recepção pelo devedor das comunicações exigidas no âmbito do PERSI.

IV) Na falta de factos indiciadores de má-fé, a invocação pelo devedor das normas jurídicas do regime jurídico do PERSI a seu favor não constitui um abuso do direito.

Decisão Texto Integral:



Acordam os Juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1. RELATÓRIO:

Por apenso à ação executiva para pagamento de quantia certa que foi instaurada por A..., S.A. vieram os Executados AA e BB, deduzir “embargos à execução”, invocando a inexigibilidade da obrigação exequenda por inobservância do procedimento de integração no âmbito do Procedimento Especial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI).

Terminam pugnando pela extinção da execução.

Em sede de contestação, respondeu a Embargada, em síntese, invocando que os embargantes registaram vários incumprimentos, o que motivou que, em 23.03.2016, o Banco lhes tenha enviado cartas a integrá-los no PERSI, o qual foi extinto em 22.06.2016.

Após isso foram levadas a cabo várias tentativas para regularização do incumprimento, sem sucesso.

Por último, aduziu a embargada que sendo uma sociedade de titularização de créditos e encontrando-se regulada pelo regime do Decreto-lei n.º453/99, de 05.11, não está abrangida pelo Decreto-lei n.º227/2012, de 25.10.

Terminou, por sua vez, pela improcedência dos embargos.

O Juízo de Execução de Ansião julga os embargos procedentes, e, consequentemente, decide:

“1. Julgar procedentes os presentes embargos de executado; e consequentemente,

2. Absolver os executados, ora embargantes, da instância executiva;

3. Declarar totalmente extinta a execução, e consequentemente,

4. Ordenar o imediato cancelamento da penhora de bens, saldos ou direitos penhorados aos executados.

São devidas custas, as quais ficam a cargo do Exequente, aqui embargado, porque vencido nos presentes embargos (cfr. Artigo 527.º, n.º 1 do nCPC e artigo 7.º, n.º 4 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela II-A anexa a este).

*

Após trânsito em julgado, extraia certidão da presente sentença e remeta para o Banco de Portugal, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 36.º, n.º 1 e 37.º do Decreto-Lei n.º 227/2012.

*

Registe e notifique.

Dê conhecimento ao Ex.mo Sr. Agente de Execução.

*

..., 25.11.2021”

A..., S.A. exequente nos autos à margem referenciados, não se conformando com a decisão interpõem o seu recurso, assim concluindo:

(…)

2. Do objecto do recurso

Da (in)observância, pela Exequente, dos procedimentos previstos no Decreto-Lei n.º 227/2012 de 25 de Outubro e no DL 349/98 de 11 de Novembro.

A 1.ª instância fixou o seguinte manancial fáctico:

1 - Por deliberação extraordinária do Conselho de Administração do Banco de Portugal, tomada em reunião extraordinária, no dia 03 de Agosto de 2014, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 5 do art.º 145-G do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo D.L. n.º 298/92, de 31 de Dezembro, foi aplicada uma medida de resolução ao B..., S.A. e, nessa sequência, constituído o N..., S.A...

2 - Nos termos daquela mesma deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal, os créditos que eram da titularidade do B..., S.A., foram transferidas para a titularidade do N..., S.A., com efeitos à data daquela deliberação.

3 - Mediante contrato de cessão de créditos celebrado em 07 de junho de 2019, o N..., S.A. cedeu à A..., S.A. um conjunto de créditos vencidos de que era titular, incluído o crédito peticionado e garantias que o acompanham, conforme resulta do contrato de cessão de créditos junto com o requerimento executivo como Documento nº 1 e cujo teor aqui dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

4 - Em 04.06.2020, o Exequente deu entrada de requerimento executivo para pagamento de quantia certa contra os Executados, sendo que a quantia exequenda aposta no requerimento executivo é no valor 16 977,73 € (Dezasseis Mil Novecentos e Setenta e Sete Euros e Setenta e Três Cêntimos).

5 - Como título executivo, juntou, com o referido requerimento executivo, uma escritura pública de mútuo com hipoteca, celebrada em 17.02.2003, no Cartório Notarial de ..., perante CC, respetiva Notária, no valor de 25.000,00 €.

4. Mediante a mencionada escritura pública, os Executados declararam ter recebido do Exequente a quantia de 25.000,00 € para obras de beneficiação de habitação própria, a saber, do prédio urbano sito em ..., inscrito na matriz sob o artigo ...81, com o valor patrimonial de 65,35 €, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º...89, da freguesia ... e inscrito a seu favor pela inscrição G-três, AP.01...

5. Os Executados aceitaram o supra referido empréstimo e confessaram-se devedores da quantia de 25.000,00 € a título do mencionado empréstimo, com o prazo de trinta anos, cujo reembolso seria feito em prestações mensais sucessivas de capital e juros:

6. Para garantia do capital mutuado, respectivos juros e despesas judiciais e extrajudiciais, constituíram o(s) Mutuário(s) a favor do Banco, hipoteca sobre o prédio descrito em 4). A mencionada hipoteca encontra-se devidamente registada a favor do banco pela AP 01 de 2003.01.27, até ao montante máximo assegurado de 31.025,00 Euros.

7. Os embargantes foram informados para a Cessão de Créditos descrita em 3), por comunicação datada de 28.06.2019, para carta registada dirigida à seguinte morada: ..., ....

8. Em 15 de Maio de 2020, os executados foram notificados, por carta registada com aviso de recepção, remetida pelo Exequente, para a Resolução do Contrato de Crédito celebrado com o B..., S.A..

9. Os executados apresentaram falta de pagamento das prestações de 18.02.2016 e 18.03.2016.

10. Em virtude do descrito em 9), o N..., S.A. enviou as seguintes cartas simples aos Embargantes, a 23/03/2016, a integrá-los no PERSI, de idêntico teor, cuja primeira página se transcreve, juntas com a contestação aos embargos como documentos n.º1 e 2 e cujo teor se dá aqui por reproduzido para todos os devidos e legais efeitos:

11. O N..., S.A. enviou as seguintes cartas simples aos Embargantes, datadas de 22.06.2016, com o seguinte teor:

12. Os embargantes registaram falta de pagamento de prestações antes do contrato de cessão descrito em 3) por motivos de saúde e por baixa médica, tendo procurado celebrar acordos de pagamento com o N..., o que fizeram em Abril de 2017, após deslocação ao balcão, pelo período de 7 meses e que lograram cumprir apenas até Agosto de 2017, ainda que parcialmente.

13. O N..., S.A. remeteu aos embargantes a carta datada de 21.04.2017, que aqui reproduzimos.

14. Entre Março e Junho de 2019 efectuaram pagamentos por conta, inferiores ao montante das prestações vencidas e não pagas.

15. Os Executados faltaram ao pagamento das prestações contratadas e devidas ao Banco mutuante, não tendo pago a prestação que se venceu em 18/10/2018, tal como as prestações subsequentes.

16. No registo do N..., S.A., na área de recuperação de crédito, constam alguns contactos telefónicos entre banco e embargantes.

B – FACTOS NÃO PROVADOS

a) que as cartas descritas em 10), 11) e 13) dos Factos Provados tenham sido recebidas pelos embargantes.

Sustentam os Embargantes que a Exequente, ora embargada não observou o cumprimento prévio, na presente situação, como impõe o Decreto-Lei 227/2012 de 25 de Outubro, que não realizou qualquer procedimento de gestão de incumprimento, comunicação ou notificação nos termos do artigo 9º e seguintes do Decreto Lei 227/2012 de 25 de Outubro.

Escreve a 1.ª instância:

“O Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, estabelece princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários e cria a rede extrajudicial de apoio a esses clientes bancários no âmbito da regularização dessas situações.

Com o diploma em causa, o legislador pretendeu, como resulta do texto preambular do mesmo “estabelecer um conjunto de medidas que, refletindo as melhores práticas a nível internacional, promovam a prevenção do incumprimento e, bem assim, a regularização das situações de incumprimento de contratos celebrados com consumidores que se revelem incapazes de cumprir os compromissos financeiros assumidos perante instituições de crédito por factos de natureza diversa, em especial o desemprego e a quebra anómala dos rendimentos auferidos em conexão com as atuais dificuldades económicas (…) O presente diploma visa, assim, promover a adequada tutela dos interesses dos consumidores em incumprimento e a atuação célere das instituições de crédito na procura de medidas que contribuam para a superação das dificuldades no cumprimento das responsabilidades assumidas pelos clientes bancários”.

Tal diploma instituiu o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) (cfr. art.º 12.º do Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro).

De acordo com o texto preambular do referido diploma “define-se um Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), no âmbito do qual as instituições de crédito devem aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objetivos e necessidades do consumidor.”.

Nos termos do art.º 12.º do referido diploma “As instituições de crédito promovem as diligências necessárias à implementação do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) relativamente a clientes bancários que se encontrem em mora no cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito (…)

Vejamos, agora, quanto ao procedimento que as instituições financeiras devem observar no âmbito do PERSI.

Dispõe o art.º 13.º do referido diploma que “No prazo máximo de 15 dias após o vencimento da obrigação em mora, a instituição de crédito informa o cliente bancário do atraso no cumprimento e dos montantes em dívida e, bem assim, desenvolve diligências no sentido de apurar as razões subjacentes ao incumprimento registado.”.

Por seu turno, dispõe o art.º 14.º do referido diploma, com a epígrafe “fase inicial”:

“(…)

1 - Mantendo-se o incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito, o cliente bancário é obrigatoriamente integrado no PERSI entre o 31.º dia e o 60.º dia subsequentes à data de vencimento da obrigação em causa.

(…) O PERSI inicia-se sempre mediante uma comunicação formal (i.e. em suporte duradouro na qual a instituição de crédito mutuante, entre outros elementos, deve indicar a data de integração do cliente no PERSI e o montante total em dívida, detalhando as parcelas correspondentes a capital, juros e encargos (ou comissões) resultantes da mora.

O Decreto-Lei n.º 227/2012, impõe assim às instituições de crédito mutuante uma "renegociação forçada" e confere ainda ao cliente diversas garantias não displicentes tais como a impossibilidade de a instituição de crédito mutuante (a) resolver o contrato com fundamento no incumprimento, (b) intentar acções judiciais com vista à satisfação do seu crédito, (c) ceder a terceiros, total ou parcialmente, o crédito em questão, ou (d) transmitir a sua posição contratual – tudo isto, enquanto durar o PERSI (cfr. neste sentido, Francisco Almeida Garrett, no artigo “PARI, PERSI & AFINS – Breve Nota Sobre o Novo Regime”, in JusJornal, N.º 1676, 23 de Abril de 2013, e também disponível na internet em http://www.abbc.pt/xms/files/Noticias_-_Imprensa/PARI__PERSI___AFINS_-_Breve_Nota_Sobre_o_Novo_Regime.pdf).

(…)Artilhados com estes conceitos, vejamos o caso concreto.

A embargada, exequente, instaurou acção executiva, oferecendo como título executivo, escritura pública de empréstimo com hipoteca celebrada entre o cedente N..., S.A. e os embargantes/executados.

Nessa escritura, para além do mais, o N..., S.A.., declarou emprestar a quantia de €25.000,00 aos executados, e, para garantia do capital mutuado, juros e despesas, os executados, constituíram hipoteca sobre o prédio que iria beneficiar com as obras de beneficiação a que empréstimo se destinou.

O contrato em causa, cai assim, no âmbito do objetivo do Decreto-Lei n.º 227/2012, já que integra um dos contratos previstos no art.º 2.º, n.º 1, al. a) e b) do referido diploma.

Ora, perante a situação de incumprimento registada, desde logo, em 2016, o N..., S.A., enquanto instituição de crédito, estava obrigada a integrar os executados/embargantes, no PERSI, por força do disposto no art.º 14.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 227/2012.

E, invocado pelos executados o não cumprimento das disposições referentes ao PERSI (Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento), previstas no Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro, incumbe à instituição de crédito alegar e provar o cumprimento das formalidades ali previstas atentas as regras de repartição do ónus da prova previstas no art.º 342.º do Código Civil.

De acordo com o disposto nos artigos 14.º, n.º 4 e 17.º, n.º 3, do citado DL, a integração no PERSI e a extinção do procedimento, têm de ser comunicadas pela instituição de crédito ao cliente “através de comunicação em suporte duradouro”.

No que se refere à concretização do conceito de comunicação em suporte duradouro, a alínea h) do artigo 3.º define-a como “qualquer instrumento que permita armazenar informações durante um período de tempo adequado aos fins a que as informações se destinam e que possibilite a reprodução integral e inalterada das informações armazenadas.”

No caso, apesar da Embargada ter feito prova do envio das missivas destinadas à integração dos executados no PERSI, não logrou fazer a prova da sua recepção pelos executados.

Logo, não logrou provar que o N..., S.A. integrou os executados no PERSI.

Coloca-se agora a questão de determinar as consequências resultantes desse incumprimento legal.

No que se reporta aos efeitos da pendência do PERSI, o art. 18.º do Dec. Lei n.º 227/2012 contém um elenco taxativo de atos que as instituições de crédito ficam impedidas de praticar enquanto decorre o aludido procedimento, o que se traduz em garantias do cliente bancário.

Uma das garantias que é atribuída aos clientes bancários na situação contemplada pelo Dec. Lei n.º 227/2012 é a proibição de sobre eles serem intentadas ações judiciais, proibição esta que impende sobre o credor, para a satisfação do seu crédito, entre a data da integração do devedor no procedimento e a sua extinção – cfr. art. 18.º, n.º 1, al. b)– que no caso ocorre porque nem sequer se teve o procedimento por iniciado, muito menos por extinto.

Não fazendo o legislador distinção entre ação declarativa e executiva, atendendo aos princípios e razões que subjazem à implementação do PERSI, deve ter-se por mais adequada a interpretação que inclui no âmbito daquela previsão os dois tipos de ações (cfr. Andreia Sofia Lúcio Engenheiro, O crédito bancário: a prevenção do risco e gestão de situações de incumprimento, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito na área de Ciências Jurídicas Empresariais - Universidade Nova de Lisboa, Julho, 2015, p. 57, https://run.unl.pt/bitstream/10362/16176/1/Engenheiro_2015.pdf.).

Por outro lado, no período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito [al. c)] ou transmitir a terceiro a sua posição contratual [al. d)].

Porém, nos termos do n.º 2 do citado normativo, a instituição de crédito pode ceder créditos para efeitos de titularização [al. b)] ou ceder créditos ou transmitir a sua posição contratual a outra instituição de crédito [al. c)]; neste último caso, sendo exigível que a cessionária seja outra instituição de crédito, “fica esta obrigada a prosseguir com o PERSI, retomando este procedimento na fase em que o mesmo se encontrava à data da cessão do crédito ou da transmissão da posição contratual” (n.º 3).

Ora, no caso concreto, a cessionária é uma sociedade de titularização de créditos.

Acompanhando a autora supra - Andreia Sofia Lúcio Engenheiro, O crédito bancário: a prevenção do risco e gestão de situações de incumprimento, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito na área de Ciências Jurídicas Empresariais - Universidade Nova de Lisboa, Julho, 2015, p. 57, https://run.unl.pt/bitstream/10362/16176/1/Engenheiro_2015.pdf - citada no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30.01.2020, disponível em www.dgsi.pt, entendemos que a entidade bancária não podia ter cedido o crédito dos autos à exequente sem ter previamente cumprido as exigências legais, não podendo a ora exequente escudar-se na circunstância de não ser uma entidade de crédito para, desde modo, evitar que sejam cumpridas as exigências legais.

“Com efeito, de outro modo estaria encontrada uma via expedita para as instituições de crédito se subtraírem à obrigatória sujeição ao regime decorrente do Dec. Lei n.º 227/2012, bastando para o efeito que, em violação do estatuído no citado diploma legal, se abstivessem de integrar obrigatoriamente o cliente bancário no PERSI e cedessem o seu crédito a um terceiro que não é uma instituição de crédito, o que permitiria que este (cessionário) não ficasse sujeito às proibições ou impedimentos elencados no art. 18º e pudesse obter de imediato a satisfação do crédito cedido, sendo-lhe, por isso, lícito, sem quaisquer restrições, resolver de imediato o contrato de crédito com fundamento em incumprimento (art. 18.º, n.º 1, al. a)), intentar ações judiciais contra o mutuário, tendo em vista a satisfação dos respetivos créditos (al. b)), ceder a terceiros uma parte ou a totalidade do crédito em causa (al. c)) ou transmitir a terceiro a sua posição contratual (al. d)).

Tal representaria, fácil é de ver, uma autêntica fraude à lei, na medida em que frustraria por completo os objetivos que presidiriam à consagração daquele especial regime que visa tutelar as situações dos clientes bancários que se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, solução essa que deve ser rejeitada.”

Assim, no nosso entendimento, in casu, existe falta de pressuposto (antecedente) da instauração da ação executiva, por omissão de integração obrigatória dos Embargantes no PERSI.

Pelo exposto, no caso em apreço verifica-se, na ação executiva, a existência de uma exceção dilatória atípica ou inonimada, por falta de pressuposto da instauração da ação, que obsta ao conhecimento do mérito da causa e importa a absolvição dos executados da instância (cfr. art.º 278.º, n.º 1, al. e) do nCPC).

A falta de qualquer pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva, constitui, fundamento de oposição à execução, conforme o art.º 729.º, n.º 1, al. c) do CPC.

Assim sendo, existe justo fundamento para a oposição à execução.

Com todo o respeito, pela alegação do apelante, não poderemos deixar de dar razão ao Juízo de Execução de Ansião.

Senão vejamos:

Como se pode ler no Preâmbulo do diploma legal que prevê o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento – PERSI -, instituído pelo DL nº 227/2012 de 25 de Outubro, “estamos perante uma relação jurídica caraterizada por uma acentuada assimetria informativa, em que a lei inculca uma especial responsabilidade nas instituições bancárias e considera o cliente bancário-consumidor como a parte mais fraca”. Este, constitui um mecanismo de protecção aplicável a clientes bancários - consumidores - que estejam em incumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, obviando a que as instituições bancárias possam desencadear, de imediato, os procedimentos judiciais com vista à satisfação dos seus créditos.

Nas palavras do Acórdão do STJ de 16.12.2020, pesquisável em www.dgsi.pt, “como instrumento para a prevenção de incumprimento no crédito bancário, o Procedimento Extrajudicial para Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) não se basta com o cumprimento formal, pela instituição de crédito, do dever de integração do cliente bancário no procedimento, sendo-lhe exigida a observância de deveres específicos e a realização de diligências concretas. Estando o executado / cliente bancário integrado no PERSI e não provando a exequente / instituição de crédito que ocorreu a extinção do PERSI e que cumpriu os deveres de informação que lhe incumbiam na sequência de tal extinção, deve a execução com vista ao pagamento das prestações em falta no contrato de crédito extinguir-se”.

O PERSI, constituindo uma fase pré-judicial, em que se visa a composição do litígio por mútuo acordo entre credor e devedor, sendo obrigatória a integração do devedor no PERSI, a sua omissão implica a ocorrência de uma excepção dilatória inominada, que conduzirá à absolvição do executado da instância executiva– neste sentido, os Acórdãos do STJ de 9.12.2021 e 13.4.2021, pesquisáveis em www.dgsi.pt.

As comunicações exigidas, nesta fase, têm de lhe ser feitas em suporte duradouro, ou seja, a sua representação através de um instrumento que possibilite a sua reprodução integral e inalterada, e, portanto, reconduzível à noção de documento constante do art.º 362.º do Código Civil - As comunicações de integração dos executados no PERSI e de extinção do PERSI têm de ser feitas num suporte duradouro (que inclui uma carta ou um e-mail) – arts. 14º, nº 4 e 17º, nº 3 do dito DL 227/2012, de 25/10 – e não se podem provar com recurso a prova testemunhal (arts. 364º, nº 2 e 393º, nº 1, ambos do C.Civil) exceto se houver um início de prova por escrito (que não seja a própria alegada comunicação) – Acórdão desta Relação de Coimbra de 15.12.2021, in www.dgsi.pt.

Mais, tratando-se de declarações receptícias, constitui ónus da exequente demonstrar a sua existência, o seu envio e a respectiva recepção pela executada. Ou seja, a simples junção aos autos das cartas de comunicação e a alegação de que foram enviadas à executada, não constituem, por si só, prova do envio e recepção das mesmas pela executada.

Por isso, mais do que discutir na apelação se as cartas simples preenchem a finalidade prevista pelo legislador, é o de saber se tal comunicação chegou ao conhecimento do consumidor.

O que está provado é que o exequente/embargado, relativamente ao PERSI, enviou cartas por correio simples, não constando do acervo factual dado como provado que as ditas cartas tivessem sido recepcionadas pelos executados/embargantes.

Mas, este é o plano essencialmente formal de interpretação das normas aplicáveis ao processo.

Alega, ainda, o apelante:

“Resulta claro que os Embargantes foram integrados no PERSI, dele foram excluídos e várias foram as tentativas levadas a efeito pelo Banco Mutuante, para regularização do incumprimento, sem sucesso.

Ainda que assim não fosse, o que por mera cautela de patrocínio se admite, tinha a Exequente legitimidade para dar entrada da ação executiva, sem integração dos Embargantes no PERSI.

Pelo facto de se terem registado incumprimentos reiterados, não podem os Executados sentirem-se reduzidos nos seus direitos, nem tão pouco nas suas expectativas legítimas, porquanto a ação executiva apenas foi instaurada depois de frustradas várias negociações encetadas entre as partes.

Neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09/02/2017 (Pro. N.º 194/13.5TBCMN-A.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt), no qual pode ler-se: “III - Tendo a acção executiva sido intentada no ano de 2013 (depois da entrada em vigor do DL n.º 272/2012) e situando-se o incumprimento dos executados em 2011, o mencionado regime seria, em princípio, aplicável ao caso. IV - Porém, resultando da facticidade provada que em Maio de 2011, i.e., antes mesmo da entrada em vigor do referido diploma, a exequente havia iniciado um procedimento extrajudicial de regularização da situação de incumprimento dos executados, equiparado ao PERSI, que se prolongou até Março de 2013 e que só não se concretizou através de dação em cumprimento de um imóvel por facto imputável a estes últimos, não é de aplicar ao caso o regime previsto no DL n.º 272/2012, de 25-10, sob pena de a pretensão dos executados/oponentes configurar abuso de direito. V - A circunstância de os executados/oponentes não terem sido formalmente integrados no PERSI não lhes retirou direitos, nem lhes reduziu expectativas legítimas, posto que a acção executiva só foi instaurada depois de gorada a concretização da solução negociada por razões só àqueles imputáveis. VI - Em consequência, também não se verifica qualquer inconstitucionalidade fundada na violação da tutela da confiança ou na violação dos direitos à informação e à protecção dos consumidores, assumindo, antes a pretensão dos oponentes contornos de abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium (art. 334.º do CC).” (sublinhado nosso). Em sentido idêntico pronunciou-se o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 17/01/2019 (Proc. n.º 3242/15.0T8SLV-A.E1) do qual resulta que: “O devedor inadimplente que, por várias vezes, negociou com a instituição bancária, celebrando acordo de renegociação da dívida, persistindo, contudo, no incumprimento do acordado, age com abuso do seu direito, na modalidade de venire contra factum proprium, quando em embargos de executado, vem acusar o facto de não ter sido integrado no PERSI.”

Bem como o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19/02/2019 (Proc. n.º 144/13.9TCFUN-A.L1.S1), onde se conclui que: “I – A exigência de integração dos clientes bancários em situação de mora há mais de um ano, à data da entrada em vigor do DL n.º 227/2012, de 25-10, no regime de regularização (PERSI) ali estabelecido, depende, nos termos do respetivo art. 39.º, da vigência dos contratos de crédito – o que não ocorre se estes entretanto já tiverem sido objeto de resolução com fundamento no incumprimento. II – Ademais, sob pena de se incorrer em abuso de direito, não faria sentido que, bem mais de um ano depois do início do incumprimento e depois de terem estado em curso negociações, sem sucesso (de parte a parte), fosse exigível à exequente a integração formal dos executados no regime do PERSI.” (sublinhado nosso)

Como sabemos, a aplicação do instituto do abuso do direito tem uma natureza subsidiária, só a ele sendo lícito recorrer na falta de uma norma jurídica que resolva, de forma adequada, a questão em causa.

Mais, a figura do abuso do direito tem sido utilizada como uma válvula de escape para evitar os resultados injustos que a aplicação estrita da lei pode causar. Como se escreve no Acórdão do STJ de 18.12.2008, pesquisável em www.dgsi.pt,  “a figura do abuso do direito surge como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.”.

Todavia, para que seja aplicado este instituto, não bastam conceções subjetivas de justiça, ou, até, que seja de facto produzida uma qualquer forma de injustiça ou de desequilíbrio entre as partes.

Como se concluiu no Acórdão do STJ de 12.01.2021 , pesquisável em www.dgsi.pt , “- O abuso de direito não significa uma desaplicação de normas com base numa remissão genérica para sentimentos de justiça. Os tribunais exigem a prova rigorosa dos seus elementos constitutivos e a ponderação dos valores sistemáticos em jogo, de acordo com modelos experimentados ao longo da história pelo labor da jurisprudência”.

Para que seja aplicado o instituto do abuso do direito, é, pois, necessário que os factos provados sejam inequívocos no sentido de demonstrarem a má fé dos executados e que o exercício do seu direito ou posição jurídica exceda o fim social e económico que constitui a sua razão de ser.

O que nos dizem, mais, os autos:

“3 - Mediante contrato de cessão de créditos celebrado em 07 de junho de 2019, o N..., S.A. cedeu à A..., S.A. um conjunto de créditos vencidos de que era titular, incluído o crédito peticionado e garantias que o acompanham, conforme resulta do contrato de cessão de créditos junto com o requerimento executivo como Documento nº 1 e cujo teor aqui dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

4 - Em 04.06.2020, o Exequente deu entrada de requerimento executivo para pagamento de quantia certa contra os Executados, sendo que a quantia exequenda aposta no requerimento executivo é no valor 16 977,73 € (Dezasseis Mil Novecentos e Setenta e Sete Euros e Setenta e Três Cêntimos).

5 - Como título executivo, juntou, com o referido requerimento executivo, uma escritura pública de mútuo com hipoteca, celebrada em 17.02.2003, no Cartório Notarial de ..., perante CC, respetiva Notária, no valor de 25.000,00 €.

4. Mediante a mencionada escritura pública, os Executados declararam ter recebido do Exequente a quantia de 25.000,00 € para obras de beneficiação de habitação própria, a saber, do prédio urbano sito em ..., inscrito na matriz sob o artigo ...81, com o valor patrimonial de 65,35 €, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º...89, da freguesia ... e inscrito a seu favor pela inscrição G-três, AP.01...

5. Os Executados aceitaram o supra referido empréstimo e confessaram-se devedores da quantia de 25.000,00 € a título do mencionado empréstimo, com o prazo de trinta anos, cujo reembolso seria feito em prestações mensais sucessivas de capital e juros:

6. Para garantia do capital mutuado, respectivos juros e despesas judiciais e extrajudiciais, constituíram o(s) Mutuário(s) a favor do Banco, hipoteca sobre o prédio descrito em 4). A mencionada hipoteca encontra-se devidamente registada a favor do banco pela AP 01 de 2003.01.27, até ao montante máximo assegurado de 31.025,00 Euros.

7. Os embargantes foram informados para a Cessão de Créditos descrita em 3), por comunicação datada de 28.06.2019, para carta registada dirigida à seguinte morada: ..., ....

8. Em 15 de Maio de 2020, os executados foram notificados, por carta registada com aviso de recepção, remetida pelo Exequente, para a Resolução do Contrato de Crédito celebrado com o B..., S.A..

9. Os executados apresentaram falta de pagamento das prestações de 18.02.2016 e 18.03.2016.

10. Em virtude do descrito em 9), o N..., S.A. enviou as seguintes cartas simples aos Embargantes, a 23/03/2016, a integrá-los no PERSI, de idêntico teor, cuja primeira página se transcreve, juntas com a contestação aos embargos como documentos n.º1 e 2 e cujo teor se dá aqui por reproduzido para todos os devidos e legais efeitos:

11. O N..., S.A. enviou as seguintes cartas simples aos Embargantes, datadas de 22.06.2016, com o seguinte teor:

12. Os embargantes registaram falta de pagamento de prestações antes do contrato de cessão descrito em 3) por motivos de saúde e por baixa médica, tendo procurado celebrar acordos de pagamento com o N..., o que fizeram em Abril de 2017, após deslocação ao balcão, pelo período de 7 meses e que lograram cumprir apenas até Agosto de 2017, ainda que parcialmente.

13. O N..., S.A. remeteu aos embargantes a carta datada de 21.04.2017, que aqui reproduzimos.

14. Entre Março e Junho de 2019 efectuaram pagamentos por conta, inferiores ao montante das prestações vencidas e não pagas.

15. Os Executados faltaram ao pagamento das prestações contratadas e devidas ao Banco mutuante, não tendo pago a prestação que se venceu em 18/10/2018, tal como as prestações subsequentes.

16. No registo do N..., S.A., na área de recuperação de crédito, constam alguns contactos telefónicos entre banco e embargantes”.

Ora, parece-nos, com todo o respeito pelo apelante, que não existem factos suficientes para demonstrar os requisitos do abuso do direito por parte dos apelados.

Apenas resulta que “os embargantes registaram falta de pagamento de prestações antes do contrato de cessão descrito em 3) por motivos de saúde e por baixa médica, tendo procurado celebrar acordos de pagamento com o N..., o que fizeram em Abril de 2017, após deslocação ao balcão, pelo período de 7 meses e que lograram cumprir apenas até Agosto de 2017, ainda que parcialmente”, que “apresentaram falta de pagamento das prestações de 18.02.2016 e 18.03.2016”, que “faltaram ao pagamento das prestações contratadas e devidas ao Banco mutuante, não tendo pago a prestação que se venceu em 18/10/2018, tal como as prestações subsequentes” e que “entre Março e Junho de 2019 efectuaram pagamentos por conta, inferiores ao montante das prestações vencidas e não pagas”.

O instituto do abuso do direito tem que estar secundado em factos indiciários de má fé ou de contrariedade aos bons costumes ou ao fim económico e social do direito. Ora, a má fé dos executados, no caso dos autos, não está provada, nem resulta da matéria de facto.

O recurso ao PERSI corresponde ao exercício de um direito que a lei concedeu aos devedores precisamente por entender que os clientes bancários, em dificuldades financeiras para assumirem as suas obrigações, precisam de proteção.

Assim, por não ser aplicável o artigo 334.º do Código Civil, mantemos o decidido pela 1.ª instância.

Improcedem, assim, as conclusões do apelante, mantendo-se o decidido pelo Juízo de Execução de Ansião.

(…)
3.Decisão
Assim, na improcedência do recurso, mantemos a decisão proferida pelo Juízo de Execução de Ansião – Juiz 2.

As custas ficam a cargo do apelante.

Coimbra, 8 de Março de 2022

(José Avelino Gonçalves - Relator)

(Paulo Brandão - 1.º adjunto)

(Arlindo Oliveira– 2.º adjunto)