Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
334/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DO DESPACHO SANEADOR
Data do Acordão: 04/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: IDANHA-A-NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO E AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO AGRAVO; PROVIDA A APELAÇÃO
Legislação Nacional: ART. S 508°-A, N° 1, AL. E), E 511°, N° 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário:

I - Quem pretenda impugnar o despacho saneador tem que interpor recurso, visto as reclamações previstas nos art. s 508°-A, n° 1, al. e), e 511°, n° 2, do Código de Processo Civil, estarem destinadas a impugnar a selecção da matéria de facto incluída na base instrutória ou considerada como assente.
II - A decisão sobre a matéria de facto e a sentença correspondem a momentos processuais distintos.
Na primeira exige-se que o tribunal indique os factos que julga provados e os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (art.s 653°, n° 2 e 791.º. n° 3, do C.P.C.).
A omissão desta decisão implica uma nulidade processual, com previsão no art. 201.º do C.P.C.
III - A certidão extraída de um inquérito do M.º P.º é um documento autêntico. e, como tal, faz prova plena dos factos que refere como praticados pelo funcionário que a passou, assim como dos factos que nela são atestados com base nas percepções do mesmo.
Já não abrange, porém, as declarações dela constantes, sendo o documento, quanto a elas, mero meio de prova, a apreciar livremente pelo tribunal, de acordo com a livre convicção do julgador.
IV - Não tendo os seus autores impugnado tais declarações, invocando a falta e vícios da vontade, nomeadamente, a sua simulação, e nenhuma outra testemunha tendo sido inquirida à matéria de facto constante da base instrutória destinada a apurar a forma como ocorreu um acidente de viação, nada impede que o Tribunal da Relação altere tal matéria de tacto com base nas referidas declarações.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

AA, BB e marido, CC, DD e EE propuseram, em 14/09/2001, no Tribunal da comarca de Idanha-a-Nova, acção com processo ordinário emergente de acidente de viação contra FF, pedindo a condenação desta no pagamento global de 10.000.000$00, ou no de 6.000.000$00 baseado no risco, com juros vencidos e vincendos à taxa legal desde a citação, a título de danos morais e a título de indemnização pela lesão do direito à vida, em consequência do acidente de viação ocorrido no dia 15/04/2000, na estrada nacional nº 354, originado pelo ora autor EE, que, ao conduzir o veículo ligeiro de passageiros KK, pertencente ao primeiro autor, desatento à condução, se despistou e foi embater numa árvore, provocando a morte a GG e ferimentos no primeiro autor, respectivamente, mãe e pai do referido EE, cabendo a responsabilidade pelas consequências do acidente à ora ré seguradora em virtude de o proprietário do veículo ter a responsabilidade civil por quaisquer danos provocados pela sua utilização transferida para a mesma seguradora, por contrato de seguro titulado pela apólice nº 01296045.
*
A ré contestou, pugnando pela improcedência da acção, uma vez que o acidente foi exclusivamente provocado pela falecida, não se verificando qualquer conduta negligente por parte do condutor da viatura, sendo certo, por outro lado, que o autor AA garantia apenas a responsabilidade civil, não sendo terceiro no presente acidente.


*
Verificou-se a intervenção principal espontânea dos Hospitais da Universidade de Coimbra, reclamando o pagamento da quantia de 6.247,99 euros, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação, referente à assistência prestada ao ofendido AA.
*
A ré contestou a intervenção, dando por reproduzida a matéria constante da sua contestação, e defendendo a improcedência da acção.
*
De seguida, foi designado o dia 17/01/2003 para a realização de uma audiência preliminar, nos termos do artº 508º-A do C.P.Civil.
Consta da respectiva acta, designadamente, que: pelo mandatário da ré foi dito que mantinha a alegação por si feita em sede de contestação, no sentido de que, no seu entender, o autor AA não se configura como terceiro no âmbito desta acção para efeitos de ser considerado como abrangido pelo âmbito do seguro automóvel; que pelos autores foi mantida a sua posição, já defendida na petição inicial; e que foi proferido despacho a considerar improcedente a excepção invocada pela ré na sua contestação, em virtude de o Sr. Juiz entender que não via razões para que o autor AA não fosse considerado terceiro para efeitos da Lei do Seguro.
Mais consta da aludida acta que, seguidamente, o Sr. Juiz pôs à consideração dos mandatários um projecto de selecção de matéria de facto assente e controvertida, previamente por si elaborado, para que a apreciassem e formulassem as suas reclamações e, porque não houve reclamações, procedeu-se à fixação da matéria de facto assente e a que deverá ser levada à base instrutória.

Com data de 27/01/2003 (fls. 154/157), apresentou a ré seguradora uma reclamação, alegando que deveria o Tribunal alterar o despacho saneador, no sentido de considerar que o proprietário do veículo, segurado e tomador do seguro, consubstanciado na Apólice junta aos autos, com o nº 1296045, não se encontra abrangido pelo seguro do veículo KK, interveniente no acidente que nos autos se discute.



Por despacho de 21/02/2003 (fls. 180/182), foi tal reclamação indeferida, por se entender, por um lado, que a reclamação deveria ter sido apresentada na audiência preliminar, e por outro lado, que o despacho apenas poderia ser impugnado por via de recurso e não de reclamação.

A ré interpôs recurso do despacho que indeferiu a reclamação, o qual foi recebido como agravo, a subir diferidamente, nos autos, e com efeito devolutivo.

Teve, depois, lugar o julgamento, com gravação da prova, e, decidida a matéria de facto controvertida, sem reclamações, foi proferida a sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a ré a pagar aos H.U.C. a quantia peticionada de 6.247,99 euros, e juros desde a citação, ao autor AA a quantia de 4.000.000$00 e juros desde a citação, e a todos os autores a quantia de 3.000.000$00 e juros desde a citação.
*
Inconformados com a decisão, interpuseram, tanto a ré como as autoras DD e BB, recursos de apelação, sendo do seguinte teor as conclusões destes e do recurso de agravo.
Recurso de agravo:
1. O AA, proprietário, segurado, tomador do seguro não é nos termos da Lei, mormente dos artºs 2 da C.G.Apólice, “Terceiro”.
2. O recorrido, AA, ferido do acidente que nos autos se discute, era, nos termos do contrato de seguro do veículo naquele interveniente, que tomou o nº 1296045 de apólice segurado, tomador do seguro e sujeito da relação jurídica na e com a ora recorrente.
3. Não se coaduna, no seguro obrigatório de responsabilidade seguro automóvel, que o segurado possa, a qualquer título, também e ainda, ser “terceiro”, pessoa alheia a certo negócio jurídico, mas que, por se encontrar em relação jurídica, com um dos sujeitos daquele, tem, por via dessa relação jurídica, um direito que colide com o próprio acto jurídico (P. Cunha: Garantia das Obrigações) ou ainda, em relação a um contrato, é todo aquele que, por si, ou por intermédio de outrem, não participa na sua celebração. É todo o que não pode ser qualificado como parte (leite de campos, Seguro de responsabilidade
Civil – 66).
4. Os artºs 6º das C.G. Apólice tal como o artº 7º do Dec. Lei nº 522/85 de 31/12 mediante a epígrafe “Exclusões”, destinam-se a retirar da garantia do seguro os danos decorrente de lesões corporais e materiais sofridas por pessoas que à luz do artº 1º do citado Decreto-Lei poderiam possuir a qualidade de terceiros.
5. A decisão recorrida viola, antes de mais, o próprio conceito de terceiro e, por tal facto, o conceito de segurado, na relação jurídica do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, mais violando, entre outros, os artºs 1º, 2º e 6º das C.G. Apólice e os artºs 1º e 7º do Dec.-Lei nº 522/85, de 31/12.
Recurso de apelação da ré:
1ª- A sentença apelada enferma das nulidades previstas nas als. b) e d) do artº 668º do Cód. Proc. Civil. Mas,
2ª- Mais violados se encontram os preceitos legais consagrados nos artºs 369º, 370º, nº 1, 371º, nº 1 do Cód. Civil e 544º, 546º, 653º, nº 2, do Cód. Proc. Civil.
3ª- A sentença recorrida violou a al. a) do nº 1 do artº 7º do Dec. Lei nº 522/85 de 31/12, mais se encontrando violada a al. a) do nº 32 do artº 6º das Condições Gerais da Apólice do seguro Obrigatório. Mas,
4ª- Mais se encontra violado o nº 1 do artº 1º do Dec.-Lei nº 522/85, tal como as als. b), d) e e) do nº 1 das Condições Gerais da Apólice, o mesmo acontecendo com o artº 1724 e nº 3 do artº 504, ambos do Cód. Civil.

Recurso de apelação das autoras DD e BB:
1) Decidiu-se na sentença recorrida não ter resultado provado qualquer facto de onde se possa extrair qualquer dano moral sofrido pelas recorrentes e indemnizável nos termos do artº 406º do Código civil;
2) Considerando-se que apenas resultou provado que a GG era uma pessoa extremosa e dedicada ao seu companheiro e filhos;
3) Da matéria factual dada como assente ou provada resultaram, para além do facto supra enunciado, o facto de que as recorrentes serem filhas da GG que faleceu com 48 anos de idade e era uma pessoa afável e disponível para ajudar, carinhosa, diligente e atenciosa, amiga e conselheira dos filhos;


4) Os desgostos morais são indemnizáveis nos termos do artº 496º do Código Civil;
5) Não haverá maior desgosto moral do que aquele que resulta da perda (seja em que circunstância for) de uma mãe;
6) Segundo as regras da experiência e o normal aconteceu constitui um facto notório e evidente o desgosto da perda precoce e trágica da mãe;
7) É uma máquina da experiência o desgosto que a morte da mãe provoca;
8) De qualquer forma, o sentimento de profundo desgosto e revolta vivenciado e sofridos pelas autoras foi alegado na petição inicial;
9) Os factos dados como provados são suficientes para que se possa extrair da existência do dano moral sofrido pelas recorrentes;
10) Se se entender que o desgosto moral carece de prova dever-se-á ampliar a matéria de facto, atento o que se deixou alegado no artº 47º da petição inicial, ou seja, o profundo desgosto e revolta sentidos pelas autoras pela morte prematura e trágica de sua mãe;
11) Decidindo em contrário ao propugnado nas antecedentes conclusões, o Mmº Juiz “a quo” fez errada interpretação do disposto no artº 514º, nº 1, do Cód. Proc. Civil e 496º do Código Civil – os quais, assim, violou.
*
Apenas os autores apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência dos recursos interpostos pela ré.
*
O Sr. Juiz sustentou o despacho objecto do recurso de agravo.
*
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
Como é sabido o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal da relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil – diploma a que pertencerão os restantes normativos citados sem menção de proveniência).



Vamos apreciar os recursos pela ordem da sua interposição, de acordo com o disposto no nº 1 do artº 710º.

Recurso de agravo.
A ré alegou na contestação que o autor AA apenas garantia a responsabilidade civil, não sendo ele, no presente acidente, terceiro.
O Mmº Juiz, na audiência preliminar, pronunciou-se sobre tal questão, tratando-a como uma excepção, considerando-a improcedente, por entender que o autor AA devia ser considerado terceiro para efeitos da Lei do Seguro.
A ré apresentou, posteriormente, reclamação de tal despacho, alegando que deveria ser alterado o despacho saneador, no sentido de considerar que o autor AA não se encontra abrangido pelo seguro do veículo KK, interveniente no acidente de que tratam os autos.
A reclamação foi indeferida e, quanto a nós, bem.
Com efeito, dispõe o nº 2 do artº 510º que, se houver lugar a audiência preliminar, o despacho saneador é logo ditado para a acta.
Por sua vez, o artº 508º-A estatui (nº 1, al. e) que, quando a acção tenha sido contestada, a audiência preliminar se destina a seleccionar, após debate, a matéria de facto relevante que considere assente e a que constitui a base instrutória da causa, nos termos do artº 511º, decidindo as reclamações deduzidas pelas partes.
Estas reclamações são, como é óbvio, apenas contra a selecção da matéria de facto incluída na base instrutória ou considerada como assente, como resulta claramente do facto de estarem previstas na mesma alínea que trata de tal selecção e do disposto no nº 2 do artº 511º, onde se regulam expressamente os fundamentos dessas reclamações.
Assim, e como mais nenhuma reclamação aí está prevista, quem pretender impugnar o despacho saneador tem de lançar mão do recurso (cfr. artº 676º, nº 1).
Por isso, pretendendo a ré impugnar o despacho que decidiu acerca da qualidade de terceiro do autor AA, teria de se servir do recurso e não da reclamação, pelo que não merece censura o despacho recorrido, que, assim, é de manter.



Convém apenas esclarecer o seguinte:
A recorrente invoca, na sua alegação, preliminarmente, que o mandante da ora agravante levantou na audiência preliminar a sua oposição ao entendimento de ser considerado o autor AA, proprietário da viatura e segurado da ora embargante, terceiro nos presentes autos e, assim, se opunha à posição assumida pelo Tribunal junto de quem viria fundamentar a sua posição. O Mmº Juiz respondeu que iria indeferir, isto é, indeferiria a posição assumida e, bem assim, a sua fundamentação. Ficou, pois, suspensa até à recepção da fundamentação a decisão do despacho anunciado e sem decisão não há recurso.
Compulsando a acta da audiência preliminar, constata-se que nada disso consta da mesma.
Ora, a acta constitui um documento autêntico, cuja força probatória só pode ser ilidida com base na sua falsidade (cfr. artºs 3363º, nº 2, 371º, nº 1, e 372º nºs 1 e 2, do Código Civil).
Como não foi invocada, oportunamente, pela ré a falsidade da acta da audiência preliminar, improcede a questão preliminar suscitada pela recorrente.

Termos em que tem o recurso de improceder.
*
Na 1ª instância deu-se como provado, com interesse para a decisão dos recursos de apelação, o seguinte:
- No dia 15/04/00, cerca das 14 horas, na E.N. nº 354, área da comarca de Idanha-a-Nova, GG era transportada no veículo ligeiro de passageiro de matrícula KK, no seu banco de trás do lado direito, no sentido Senhora da Graça/Ladoeiro – (al. A) dos F. A.).
- A propriedade do aludido veículo, ao tempo, encontrava-se registada a favor do seu marido, AA – (al. B).
- Em 15/04/00, a companhia de seguros ré garantia a responsabilidade civil pela circulação da viatura KK, nos precisos termos da apólice nº 1296045, que se encontra junta de fls. 48 a 77, que aqui se dá por reproduzida – (al. C).



- No dia e hora referido em A) o aludido veículo era conduzido por EE, filho de GG – (al. D).
- A GG faleceu no dia 15/04/00, pelas 14 horas, com 48 anos de idade – (al. E).
- Os autores, AA por um lado, DD, BB e EE por outro, são, respectivamente, marido e filhos, todos eles únicos e universais herdeiros da falecida GG – (al. F).
- No dia e hora referida em A) o co-autor AA fazia-se transportar ocupando o banco da frente do veículo, também ali referido – (resp. p. 1º da B.I.).
- O EE conduzia nas condições referidas em A) e D) a pedido e solicitação dos pais, o AA e a GG, por imposição e com expressa autorização destes, porque disso necessitavam, indo visitar uns familiares – (p. 2º).
- E isto porque o AA estava impossibilitado de conduzir automóveis e a mãe não possuía documento que a habilitasse à condução estradal – (p.3º).
- Ao Km 29,900 a EN 354 descreve-se numa curva para a direita, atento o sentido Senhora da Graça/Ladoeiro – (p. 4º).
- Sensivelmente a meio da curva referida em 4º, o condutor do veículo QS-60-17 não evitou que ele descrevesse um ângulo de cerca de 90 graus, invadindo a semi-faixa contrária, atento o seu sentido de marcha – (p. 7º).
- Saindo em despiste da estrada, indo embater numa árvore na berma do lado esquerdo da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha – (p.8º).
- O veículo só se imobilizou a cerca de 2,5 metros distanciado da árvore referida em 8º - (p. 9º).
- Naquele local a estrada, que se desenha numa curva, tem cerca de 6,40 metros de largura – (p.10º).
- Desde a berma, onde o veículo entrou em despiste, da semi-faixa direita atento o sentido de marcha, até ao local onde ficou imobilizado, percorreu distância não inferior a 27 metros – (p. 11º).


- Do embate resultou na GG extenso hematoma na região fronto parietal direita e escoriações na face direita; contusão torácica anterior e grelha costal direita; fractura do fémur à direita, fractura temporal lado direito; hemorragia sub dural e sub aramoide temporoparietal bilateral; fractura em séria desde o 4º ao 10º arcos costais posteriores do lado direito; fractura do terço superior do lbo direito do fígado; e fractura dos ossos do antebraço direito – (p. 13º).
- A morte da GG ocorreu devido às lesões traumáticas craneo-encefálicas e toraxico-abdominais descritas, que determinaram, directa e necessariamente, a sua morte – (p. 14º).
- A GG era uma pessoa extremosa e dedicada ao seu companheiro e filhos – (p. 25º).
- A falecida era para os seus filhos, os autores DD, BB e EE, carinhosa, diligente e atenciosa, permanentemente atenta às sua necessidades, sua amiga e conselheira – (p. 30º).

Importa, ainda, ter em consideração mais o seguinte, com base no disposto no artº. 659º, nº 3, e no documento de fls. 78 a 91, não impugnado:
-O documento de fls. 78/91 é constituído por uma certidão passada pela Unidade de Apoio do Mº Pº do Tribunal da comarca de Idanha-a-Nova e extraída dos autos de inquérito aí registados sob o nº 66/00, em 05/05/2000, por homicídio por negligência, em que foi interveniente o veículo automóvel com a matrícula KK, conduzido por EE.
O EE, aqui autor, foi aí ouvido como arguido, tendo declarado que “no dia 15/04/2000, pelas 14H00, deslocou-se na viatura KK, acompanhado de seus pais a uma quinta pertencente ao senhor HH. O dia estava chuvoso e a certa altura a sua mãe começou a gritar. A sua mãe tinha frequentes quedas de tensão, mais propriamente a tensão alta. Em seguida a sua mãe tocou no braço do ora depoente. Ao tocar no braço o carro guinou para a direita. O ora depoente tentou controlar o carro, não o conseguiu, tendo o mesmo entrado em despiste.


Que não se lembra de mais nada relacionado com o acidente. O ora depoente acrescenta ainda que no local do acidente a estrada teria óleo”.
O autor AA foi, também, ouvido nesse inquérito, na qualidade de testemunha, tendo declarado que “no dia 15-04-2000, se deslocava na companhia de seu filho “EE” e da sua esposa, na viatura KK, isto ao lado do seu filho no banco da frente, a fim de se deslocarem a uma Quinta, pertencente ao Senhor HH. A certa altura, a sua esposa começou a gritar, tocando no braço de se u filho e quando isto aconteceu, o veículo guinou para o lado direito e muito embora seu filho o tentasse controlar o mesmo, não o conseguiu, entrando em despiste. Que o ora depoente, depois de tudo isto acontecer nada mais se recorda relacionado com o referido acidente”.

Recurso de apelação da ré seguradora.
Começa a recorrente por sustentar que a sentença enferma das nulidades previstas nas als. b) e d) do nº 1 do artº 668º, não esclarecendo, no entanto, concretamente, em que consistem tais nulidades.
Com efeito, a esse propósito, afirma a recorrente na sua alegação (fls. 291/292):
“1º- As respostas aos Quesitos, no que ao acidente se reporta, assentaram numa convicção de Inteligibilidade (segundo o Mmº Juiz “a quo”), isto é, que se compreende bem, perceptível que existe apenas na ideia das testemunhas ouvidas (diremos nós, não presenciais) em julgamento.
2º- Tais respostas aos quesitos mostram-se, antes do mais, porque assentes numa convicção de inteligibilidade, deficientes, não fundamentadas e obscuras.
3º- A não se verificarem, apenas, assentes numa convicção de inteligibilidade, mas antes
4º- No depoimento de quem presenciou, assistiu aos factos (constantes da Certidão junta aos autos que aqui se dão por reproduzidas para os legais efeitos), a acção teria sido onsiderada improcedente e a Ré absolvida do pedido. Assim,
5º- A douta sentença apelada enferma, entre outras, das nulidades previstas nas alíneas b) e d) do artº 668 do Cód. Proc. Civil”.


Parece-nos haver, da parte da recorrente, uma certa confusão na destrinça entre a decisão sobre a matéria de facto e a sentença, que, normalmente, correspondem a dois momentos processuais distintos.
Na decisão sobre a matéria de facto, que antecede, temporalmente, a sentença, é que se exige que o tribunal indique os factos que julga provados e os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (cfr., para o processo ordinário o artº 653º, nº 2, e para o processo sumário o artº 791º, nº 3).
A omissão desta decisão implica uma nulidade processual, com previsão no artº 201º.
Na sentença exige-se que o juiz discrimine os factos que considera provados, tomando em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal colectivo deu como provados (na aludida decisão proferida sobre a matéria de facto), fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer – cfr. artº 659º, nºs 2 e 3.
A falta de especificação dos fundamentos de facto gera a nulidade da sentença com previsão na al. b) do nº 1 do artº 668º.
Se alguma das partes não estiver de acordo com as respostas dadas aos pontos de facto constantes da Base Instrutória o que tem a fazer é requerer a sua alteração ao abrigo do disposto no nº 1 do artº 712º.
A invocação da nulidade sentença, por parte da recorrente, não tem, assim, cabimento, visto que o que ela pretende é a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Da análise da sentença recorrida, verifica-se que esta não enferma de qualquer das nulidades invocadas pela recorrente, uma vez que, por um lado, se encontra fundamentada de facto e de direito, e, por outro lado, o Sr. Juiz não deixou de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, nem conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento.
*
Alega, depois, a recorrente que a certidão de fls. 78/91 é documento autêntico, que não foi impugnado pelos ora recorridos quanto à sua força probatória formal e material, pelo que o Mmº Juiz só podia dar como provada a matéria constante


dos artºs 31º a 34º, assim devendo ter-se por não escritas aquelas respostas e substituídas por outras diametralmente opostas às que lhe foram dadas, donde resultará a absolvição da recorrente, sendo que se mostram violados os princípios legais consagrados nos artºs 369º, 370º, nº 1, e 371º, nº 1, do Cód. Civil e 653º, nº 2 do C.P.C.
Com esta argumentação pretende a recorrente impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, embora não faça expressa referência ao já atrás aludido artº 712º.
Este normativo permite que a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto possa ser alterada pela Relação nos casos especificados nas três alíneas do seu nº 1.
No presente caso, a impugnação da recorrente só pode enquadrar-se no disposto na 1ª parte da alínea a), a qual permite a alteração se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa.
Os pontos 31º a 34º da Base Instrutória têm a seguinte redacção:
31º- Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em A) e em 4º, e antes do que vai dito em 7º, a GG veio tocar no braço do condutor, seu filho, obrigando-o a guinar para a direita?
32º- Tendo ele tentado voltar à via?
33º- O que não lhe foi possível já que a viatura entrou em despiste?
34º- A GG tinha frequentemente quedas de tensão ou a tensão alta?
Todos estes pontos de facto foram dados como não provados.
Na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto consta, em relação aos pontos dados como não provados, que a convicção do Tribunal assentou na falta de prova.
A matéria de facto constante dos pontos 31º a 34º foi alegada pela ré na sua contestação, baseando-se nas declarações prestadas no inquérito do Mº Pº pelos aqui autores AA e EE.
Tais declarações constam da certidão extraída do aludido inquérito do Mº Pº, junta de fls. 78 a 91, e indicada no factualismo atrás dado como provado.
A certidão em causa é, sem dúvida, um documento autêntico, cuja força probatória só pode ser elidida com base na sua falsidade (cfr. artºs 363º, nº 2, 371º, nº 1 e 372º, nºs 1 e 2 do Código Civil), o que não sucedeu.


Só que essa certidão, como documento autêntico, apenas faz prova plena dos factos que refere como praticados pelo funcionário que a passou, assim como dos factos que nele são atestados com base nas percepções do mesmo.
A força probatória da certidão já não abrange, porém, as declarações dela constantes (declarações prestadas no inquérito pelo AA e pelo EE), sendo o documento, quanto a elas mero meio de prova, a apreciar livremente pelo tribunal, de acordo com a livre convicção do julgador
Essas declarações poderiam ser impugnadas pelos seus autores, invocando a falta e vícios de vontade, nomeadamente, a sua simulação.
No entanto, e como atrás se disse, os autores não impugnaram a certidão em causa, invocando a sua falsidade, assim como não impugnaram a veracidade do seu conteúdo.
Ora, como se vê das actas do julgamento e da decisão proferida sobre a matéria de facto, nenhuma das testemunhas inquiridas na audiência o foi à matéria de facto constante dos pontos 31º a 34º da Base Instrutória.
Restam-nos as declarações prestadas pelo AA e pelo EE no inquérito, que, não tendo sido impugnadas, não vemos porque razão não devam ser levadas em consideração para apurar a forma como ocorreu o acidente, já que aqueles seguiam no veículo KK, um como condutor e outro como passageiro, estando, portanto, em condições privilegiadas para esclarecer tal situação.
Por isso, com base em tais declarações, alteramos as respostas dadas aos pontos 31º, 32º e 33º, dando-as como provadas.
O mesmo já não sucede em relação ao ponto 34º, uma vez que as quedas de tensão ou a tensão alta são situações distintas e, até, opostas, não esclarecendo tais declarações qual delas afectava a GG.

Dando como provada a matéria de facto constante dos pontos 31º, 32º e 33º, importa agora ver quais as consequências daí resultantes.
A principal consequência é a de que a actuação da vítima foi causal da produção do acidente.
E ao condutor EE, será que é de lhe assacar alguma parcela de culpa na ocorrência do acidente?


A matéria de facto dada como provada não permite tirar tal conclusão e os pontos de facto que poderiam inculcar tal ideia (ponto 5º - “No dia e hora referidos em A) e no local referido em 4º o condutor do KK seguia a uma velocidade não inferior a 60 Km/hora?”, e ponto 6º - “Nesse momento e local o seu condutor seguia desatento à condução?”) foram dados como não provados.
Ora, sendo o acidente de imputar à própria vítima GG, verifica-se a exclusão da responsabilidade da ré seguradora, de acordo com o disposto no artº 505º do Código Civil.
É certo que na sentença recorrida se decidiu que o condutor do veículo KK, EE, o fazia por conta de seu pai AA e como a ré não ilidiu a presunção de culpa prevista no nº 3 do artº 503º do Código Civil, o acidente ficou a dever-se a culpa do condutor do veículo.
Independentemente de discordarmos da decisão no que diz respeito à conclusão a que chegou de considerar o EE comissário, para efeitos do disposto naquele normativo (artº 503º, nº 3) – Para nós a “comissão” pressupõe uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, que autorize aquele a dar ordens ou instruções a este, pois só essa possibilidade de direcção é capaz de justificar a responsabilidade do primeiro pelos actos do segundo, sendo certo que, como dispõe o nº 2 do artº 500º, a responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for cometido pelo comissário no exercício da função que lhe foi confiada, ainda que intencionalmente ou contra a instruções daquele -, que não podemos estar aqui a apreciar aprofundadamente por não ter sido expressamente impugnada pela recorrente, entendemos que a culpa efectiva e exclusiva da vítima afasta a culpa presumida do condutor EE (cfr., entre outros, Acs. do S.T.J. de 18/05/1989, BMJ 387-553, de 19/01/1977, BMJ 263-250 e de 05/03/1974, BMJ 235-253, Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I-350, Prof. Antunes Varela, Das Obrigações Em Geral , I-544 e RLJ 101º-250 e ss.).
Por isso, estando excluída a responsabilidade da ré seguradora, não pode a acção deixar de ser julgada improcedente, com a consequente absolvição da mesma ré em relação aos pedidos formulados pelos autores e pelos Hospitais da Universidade de Coimbra.
*


Perante a posição tomada quanto à exclusão da responsabilidade da ré, está prejudicada a apreciação das restantes questões suscitadas pela recorrente.
No entanto, sempre se dirá que uma dessas questões, concretamente a de que o AA, tomador do seguro, segurado e proprietário do veículo KK, não é terceiro, não estando, por isso, a ré obrigada a indemnizá-lo pelos danos que sofreu em consequência do acidente, não poderia aqui ser apreciada, uma vez que já foi decidida no despacho saneador em sentido afirmativo (não importando agora saber se bem, se mal), não tendo a ré recorrido de tal decisão, pelo que transitou em julgado.
*
Recurso de apelação das autoras DD e BB.
Também a apreciação deste recurso se encontra prejudicada, face à posição tomada no recurso da ré quanto à exclusão da responsabilidade desta, em virtude de o acidente ser de imputar à própria vítima GG, mãe das recorrentes.
*
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em:
A) - Negar provimento ao recurso de agravo, mantendo o despacho recorrido, com custas a cargo da recorrente.
B) - Dar provimento ao recurso de apelação da ré, revogando a sentença recorrida e julgando a acção improcedente, absolvendo a mesma ré dos pedidos contra ela formulados pelos autores, com custas a cargo destes.
C) - Negar provimento ao recurso das autoras DD e BB, com custas a cargo destas.