Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
19883/21.4T8PRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
BENS A ENTREGAR EM ESPANHA
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA SERTÃ, COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 26.º DO REGULAMENTO (UE) N.º 1215/2012
Sumário: I. A aplicação do regime comunitário prevalece sobre o regime interno, em razão do primado do direito europeu, alcandorado a fonte hierarquicamente superior.

II. Para que a apreciação da causa seja da competência dos tribunais portugueses em atenção às normas jurídicas europeias que decorrem do regime comunitário contido no Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, importa que a causa trazida a Juízo esteja compreendida no respectivo âmbito territorial (o regulamento é aplicável em todos os Estados-Membros; a causa tem conexão com o território de Estados-Membros vinculados pelo Regulamento, as partes estão domiciliadas em diferentes Estados-Membros); no âmbito material (a demanda tem por objecto matéria comercial não excluída do âmbito do Regulamento), e no âmbito temporal (o Regulamento aplica-se apenas às acções intentadas após a sua entrada em vigor).

III. Resulta do art.º 7º do referido Regulamento ter sido adoptado um conceito autónomo de lugar do cumprimento para as acções fundadas em contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, identificando as obrigações que são características de um (entrega dos bens) e de outro (prestação do serviço).

IV. No caso, por se tratar de um contrato de compra e venda, sendo a entrega dos bens concretizada em Espanha, a competência não pertence aos tribunais portugueses.

V. A entrega concretiza-se quando o comprador adquire o poder de dispor efetivamente dos bens, não sendo de adotar o critério da entrega dos bens ao transportador.

VI. Se na contestação (oposição motivada), a Ré invocou a incompetência, além de outras exceções, apesar de já antes ter deduzido uma oposição meramente formal à injunção europeia, a sua posição não deve ser interpretada como “comparência”, na aceção do art. 26.º do referido Regulamento.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            Está em causa a seguinte decisão:

A autora/requerente C..., LDA., com sede na Zona Industrial ..., concelho ..., interpôs contra a ré/requerida P..., S. L., com sede na ..., Espanha, o vertente requerimento de injunção de pagamento europeia, indicando como Fundamento para a competência do tribunal o código 02 (Local de execução da obrigação em questão); indicando como residência habitual/sede da requerente e requerida, respectivamente Portugal e Espanha; para a cobrança do valor global de €11.870,40; crédito esse, ainda de acordo com o formulário da injunção, decorrente de um “contrato de compra e venda”; o “não pagamento” do mesmo; relativo à “venda de resíduos plásticos”, com a menção das datas de 19/11/2014 e 26/11/2014, nos montantes parcelares de €6.744,00 e €5.126,40, respectivamente; titulados nas facturas n.º...00 e ...14, também respectivamente.

“Em sede de declarações adicionais, alega-se ainda, entre o mais, que “No âmbito da sua actividade comercial, a Requerente foi contratada pela sociedade Requerida para que lhe fornecesse bens no âmbito do seu comércio, nomeadamente, resíduos plásticos, mas concretamente, plástico, borracha, cintas PET e PP, plástico colorido e plástico transparente.”

“Em sede da CONTESTAÇÃO, a ré P..., S. L., defendeu-se POR EXCEÇÃO: alegando EXCEÇÃO DILATÓRIA DE INCOMPETÊNCIA INTERNACIONAL DO TRIBUNAL PORTUGUÊS.

“Para tanto, entre o mais, alega que quando a ação estiver compreendida no âmbito de aplicação do regime comunitário, é esse regime que prevalece sobre o regime interno por ser de fonte hierarquicamente superior e face ao princípio do primado do direito europeu.

“A presente ação está compreendida no âmbito de aplicação do regime comunitário, porque está em causa uma transação comercial intra-comunitária, ou seja, celebrada entre empresas sedeadas em diferentes Estados-membros da União Europeia, in casu Portugal e Espanha.

“O regime comunitário relativo à Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial está contido no Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012.

“Em regra, em matéria civil e comercial, o domicílio do requerido (localizado num Estado-Membro), é o critério fundamental de conexão, para fixação da competência internacional, independentemente da sua nacionalidade.

“No entanto, apesar de o regime regra de competência ser o do domicílio do demandado, o Regulamento enumera nas secções 2 a 7 (artigos 7.º a 26.º) um conjunto de critérios especiais.

“Nos termos do artigo 7.º, n.º 1, al. b), primeiro travessão: as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro, em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão, sendo que, para efeitos da aludida disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será, no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues.

“No caso dos autos, como decorre das próprias faturas juntas pela Autora com o requerimento de injunção europeia de pagamento, a mercadoria vendida pela Autora à Ré deveria e foi, efetivamente, entregue na sede da Ré, em Espanha.

“Em razão do que é a ordem jurisdicional espanhola a competente para dirimir o presente litígio, já que é em Espanha que se situa o lugar de cumprimento da obrigação emergente do contrato de compra e venda de bens celebrado entre a Autora e a Ré.

“De notar que o que releva não é, pois, o lugar do pagamento, nem o lugar em que os bens foram entregues ao transportador, louvando-se em jurisprudência que cita, sublinhando que constituindo a causa de pedir um contrato de compra e venda, não é o lugar do pagamento, nem o lugar em que os bens foram entregues ao transportador, mas o local do destino final dos bens adquiridos pela compradora…

“No caso dos autos, o destino dos bens vendidos pela Autora à Ré foi a sede da Ré, em Espanha, pelo que serão os Tribunais do Estado espanhol os internacionalmente competentes para decidir estes autos.

“Em abono da tese, cita ainda a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (como decidido pelo TJUE no caso Car Trim GmbH vs KeySafety Systems Srl, de 25.02.2010).

“Conclui, pois, pela incompetência internacional do Tribunal português, exceção dilatória que argui, devendo, por isso, a Ré ser absolvida da instância.

“A Autora C..., LDA., em sede de articulado ulterior, sustenta entendimento diferente.

“Em síntese, alega que à competência judiciária nas injunções europeias aplica-se o disposto no art. 6.º do Regulamento (CE) n.º 1896/2006, de 12 de dezembro, segundo o qual “Para efeitos da aplicação do presente regulamento, a competência judiciária é determinada em conformidade com as regras de direito comunitário aplicáveis na matéria, designadamente, o Regulamento (CE) n.º 44/2001”.

“Este diploma veio a ser revogado em 2012, pelo Regulamento (CE) n.º 1215/2012, estabelecendo no seu art. 4.º “Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-membro”.

“Não esquecer, contudo, que o art. 5.º do mesmo diploma veio estabelecer regras possíveis para que as pessoas domiciliadas num Estado-membro sejam demandadas nos tribunais de outro Estado-membro.

“Estas regras encontram-se previstas no art. 7.º do mesmo diploma legal, estipulando este, no n.º 1, al. a), que “as pessoas domiciliadas num Estado-membro podem ser demandadas noutro Estado-membro em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão.

“Acrescenta a al. b) que “Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar do cumprimento da obrigação em questão será, no caso de venda de bens, o lugar num Estado-membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues”.

“Ora, no seu requerimento de injunção europeia, a Autora começou por alegar que se dedica à “reciclagem de desperdícios não metálicos, reciclagem de sucata e de desperdícios metálicos, ao comércio por grosso de combustíveis líquidos, sólidos, gasosos e produtos derivados, ao aluguer de máquinas e equipamento não especificado, à recolha e tratamento de outros resíduos, ao transporte de mercadorias por conta de outrem e à fabricação de produtos petrolíferos a partir de resíduos”.

“Indicando a sede da Ré como sendo em Espanha,

“E que, para prova dos factos por si ali alegados, juntou 2 (duas) faturas e extrato de conta corrente [cfr. Doc. n.º ..., ... e ...].

“Alegou a Ré, porém, na sua oposição, que o destino dos bens vendidos pela Autora à Ré foi a sede da Ré, em Espanha, não relevando “o lugar do carregamento da mercadoria para iniciar o transporte, mas sim o lugar da entrega material e final da mercadoria ao comprador”,

“Acontece, porém, que, atendendo aos moldes em que a entrega dos bens vendidos foi realizada junto da Ré, verifica-se que o caso concreto enquadra-se na alínea a) e b) do n.º 1 do art. 7.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 Dezembro de 2012.

“E, por essa razão, fica afastada a regra geral prevista no n.º 4 do mesmo diploma legal. Isto porque, como bem sabe a Ré, foi esta quem veio a Portugal levantar os bens/mercadoria que havia comprado junto da Autora.

“Todas as cargas foram transacionadas nas instalações da Autora, sitas em Portugal.

“Por conseguinte, no momento em que a Ré procede ao levantamento da mercadoria, a Autora emite as competentes faturas, uma vez que a mercadoria iria ser transportada pela Ré até Espanha.

“Significa isto que a Autora cumpriu a sua obrigação em Portugal – lugar onde entregou a mercadoria aos transportadores para que a entregassem em Espanha, junto da Ré,

“Transportadores esses que não tinham qualquer ligação ou conexão com a Autora.

“A Autora desconhece quaisquer dados sobre os transportadores “contratados” pela Ré, até porque todos os transportes e movimentações dos bens vendidos pela Autora à Ré foram levados a cabo por esta,

“A partir deste instante, ou seja, a partir do momento em que a Autora cumpriu a sua obrigação – entrega da mercadoria na sua sede, em Portugal - deixou de ter qualquer responsabilidade sobre a mesma.

“Desconhecendo, aliás, se o destino final terá sido mesmo em Espanha, ou em qualquer outro local escolhido pela Ré.

“A Autora transmitiu, naquele momento, a propriedade dos bens para a Ré, tendo nesse preciso instante cumprido a obrigação a que estava adstrita – entrega da coisa – como se disse.

“Assim, face ao facto de a mercadoria, objeto da compra e venda, ter sido entregue à Ré nas instalações da própria Autora, resulta evidenciado que os tribunais competentes para julgar o presente litígio são os tribunais portugueses, in concreto, o Tribunal Judicial da comarca ....

“Sem prejuízo, mesmo que se entendesse não estar verificado alguns dos critérios especiais acima identificados, o que não se concebe à luz do exposto supra, sempre se dirá que os tribunais portugueses seriam competentes por força da competência exclusiva prevista no art. 26.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 dezembro de 2012.

“E no qual se extrai que “para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do presente regulamento, é competente o tribunal de um Estado-Membro no qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objetivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do artigo 24.º.

“Ora, tendo a Ré comparecido em Portugal para contestar os presentes autos, podia fazer valer a sua tese se o único objetivo dessa sua comparência fosse para arguir a alegada incompetência – o que, como é bom de ver, não fez.

“Com efeito, a Ré não comparece com o intuito único de arguir a incompetência dos tribunais portugueses, mas insurge-se, também, contra a qualidade dos bens vendidos pela Autora e redução do preço devido a esta.

“O que significa, à semelhança do que aconteceria se a alegada incompetência internacional não tivesse sido por si arguida, que os tribunais portugueses sempre serão competentes por força do disposto no n.º 1 do art. 26.º do Regulamento aplicável in casu.

Razão pela qual, conclui, inexistem quaisquer razões ou fundamento para que que haja lugar à procedência da exceção dilatória suscitada pela Ré, com a consequente absolvição desta da instância.

“Cumpre decidir.

“II - FACTUALIDADE PERTINENTE AO CONHECIMENTO DA QUESTÃO (que emerge dos termos do requerimento de injunção em causa; conexos documentos; dos demais articulados; ponderando ademais o posicionamento das partes relativamente à matéria alegada pela parte contrária):

“1- A autora/requerente C..., LDA., com sede na Zona Industrial ..., concelho ..., interpôs contra a ré/requerida P..., S. L., com sede na ..., Espanha, o vertente requerimento de injunção de pagamento europeia, para a cobrança do valor global de €11.870,40.

“2- Indicou como Fundamento para a competência do tribunal o código 02 (Local de execução da obrigação em questão).

“3- Indicou como residência habitual/sede da requerente e requerida, respectivamente Portugal e Espanha.

“4- O crédito em causa, ainda de acordo com o formulário da injunção, decorre de um “contrato de compra e venda”; e o “não pagamento” do mesmo; relativo à “venda de resíduos plásticos”, com a menção das datas de 19/11/2014 e 26/11/2014, nos montantes parcelares de €6.744,00 e €5.126,40, respectivamente; titulados nas facturas n.º ...00 e ...14, também respectivamente.

“5- Em sede de declarações adicionais, alega-se ainda, entre o mais, que “No âmbito da sua actividade comercial, a Requerente foi contratada pela sociedade Requerida para que lhe fornecesse bens no âmbito do seu comércio, nomeadamente, resíduos plásticos, mas concretamente, plástico, borracha, cintas PET e PP, plástico colorido e plástico transparente.”

“6- Resulta do compulso das facturas em causa, juntas pela requerente, que as mesmas apresentam como locais de carga “...” e “...”, mostrando-se ambas endereçadas à requerida, com a sobredita sede, sita em Espanha, constando de ambas ainda a menção de “isento de Iva abrigo do 14.º RITI (Exp. bens p/outro E.M.).

“7- A requerida tem a sua sede social em Espanha.

“III - Da competência internacional dos tribunais portugueses

“Como notam o prof. Antunes Varela e outros (in “Manual de Processo Civil, 2ª ed. revista, Coimbra Editora, pág. 198”), “a competência internacional, aquela aqui em causa, designa a fracção do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros, para julgar as acções que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídica internacionais”, tratando-se, no fundo, de “definir a jurisdição dos diferentes núcleos de tribunais dentro dos limites territoriais de cada Estado”. Refere-se, nas palavras do prof. Teixeira de Sousa (in “A Nova Competência dos Tribunais Civis, pág. 21”), a causas que comportam uma ou várias conexões com uma ou várias ordens jurídicas distintas do ordenamento do foro.

“Os critérios de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses encontram-se especificados nos arts. 59.º, 62.º e 63.º do CPC.

“Neste âmbito, releva, antes de mais, aquilo que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, como decorre expressamente do disposto no art. 59.º do CPC.

“De harmonia com o disposto no artº 59º do Código de Processo Civil (CPC) “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º.”

“Aos tribunais portugueses cabe, assim, aferir a sua própria competência internacional, de acordo com as regras de competência internacional vigentes entre nós.

“Todavia, essas regras não são apenas as que constam do Código de Processo Civil. Sobre estas prevalecem as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas, enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português, bem como as que se inserem em regulamentos comunitários e leis especiais.

Isso decorre, não só do próprio texto constitucional (cf. o artº 8º, da CRP), como do artº 59º do CPC, que enuncia as circunstâncias de cuja verificação depende a competência internacional dos tribunais portugueses, mas expressamente aí esclarecendo e advertindo, no seu proémio, “sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais.”

“Tal consubstancia o reconhecimento e a afirmação do primado do direito internacional convencional ao qual o Estado Português se encontre vinculado sobre o direito nacional.

“É indiscutível que, in casu, estaremos perante uma situação de competência internacional, dado que o litígio que suporta a acção apresenta elementos vários de conexão (vg. quanto à sede dos sujeitos processuais e ao lugar do cumprimento da obrigação) com a nossa ordem jurídica e com a ordem jurídica espanhola.

“Estamos, assim, perante um litígio privado internacional, sendo que a competência do Estado do foro competente para o julgar terá que ser encontrada à luz do que dispõe o Regulamento(UE) n.º 1215/2012, de 12 de dezembro, relativo à COMPETÊNCIA JUDICIÁRIA, RECONHECIMENTO E EXECUÇÃO DE DECISÕES EM MATÉRIA CIVIL E COMERCIAL (com as alterações decorrentes do Regulamento(UE) n.º 542/2014, de 15/05 e do Regulamento(UE) n.º 281/2015, de 25/02). Regulamento comunitário esse relativo à competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial, que veio substituir entre os Estados Membros o Regulamento (CE) n.º 44/2001.

“Sempre que um litígio cai no âmbito de aplicação do Regulamento(UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro – como é o caso (vide o artigo 1.º/1, do Regulamento) - relativo à competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial –, as suas normas prevalecem sobre as normas de direito interno que regulam a competência internacional, numa afirmação do primado do direito comunitário sobre o direito nacional, pelo que será à luz das regras estatuídas nesse Regulamento, e só delas, que deverá ser averiguado se os tribunais portugueses são ou não internacionalmente competentes para julgar a acção que neles foi interposta (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, p.512/09.0TBTND.C1, de 28-09-2010, relatado por ISAÍAS PÁDUA, disponível no sítio www.dgsi.pt, que vimos seguindo, ainda proferido no contexto do Regulamento anterior (Regulamento (CE) n.º 44/2001).

“Ora, da conjugação do disposto nos artºs 4º, nº 1, e 5.º/1, do Regulamento resulta que o legislador comunitário estabeleceu, em matéria de determinação de competência internacional, um critério geral (o domicílio do réu) e vários critérios especiais (plasmados secções 2ª a 7ª do Capítulo II), podendo o autor escolher, para instaurar a sua acção, indistintamente qualquer um dos tribunais cuja competência lhe seja atribuída pela aplicação de um desses critérios (e desde que o litígio não envolva uma situação do competência exclusiva prevista no artº 24º).

“No caso ajuizado, o critério especial que rege encontra o seu assento no artigo 7.º/1, segundo o qual, em matéria contratual (como sucede no caso vertente), uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão.

“Mais estabelece tal Regulamento que, para efeitos da presente aferição e salvo convenção em contrário, o lugar do cumprimento da obrigação em questão será:

“- No caso de venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues (cf. a alínea b), do n.º1, do artigo 7.º, do mencionado Regulamento).

“Como se depreende deste normativo, no que tange às obrigações pecuniárias, o Regulamento afastou-se do prevenido no artigo 774.º, do Código Civil, que estabelece o lugar do domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento a título de lugar da prestação.

“No caso, no âmbito do requerimento de injunção de pagamento europeia ajuizado, a requerente documentou os respectivos invocados créditos com uma série de facturas emitida em nome da requerida, respeitantes ao fornecimento de “Plástico e borracha”, apresentando as mesmas como locais de carga situados em Portugal.

“A autora/requerente C..., LDA., com sede na Zona Industrial ..., concelho ..., interpôs contra a ré/requerida P..., S. L., com sede na ..., Espanha, o vertente requerimento de injunção de pagamento europeia, para a cobrança do valor global de €11.870,40.

“Indicou como Fundamento para a competência do tribunal o código 02 (Local de execução da obrigação em questão).

“Indicou como residência habitual/sede da requerente e requerida, respectivamente Portugal e Espanha.

“O crédito em causa, ainda de acordo com o formulário da injunção, decorre de um “contrato de compra e venda”; e o “não pagamento” do mesmo; relativo à “venda de resíduos plásticos”, com a menção das datas de 19/11/2014 e 26/11/2014, nos montantes parcelares de €6.744,00 e €5.126,40, respectivamente; titulados nas facturas n.º ...00 e ...14, também respectivamente.

“Em sede de declarações adicionais, alega-se ainda, entre o mais, que “No âmbito da sua actividade comercial, a Requerente foi contratada pela sociedade Requerida para que lhe fornecesse bens no âmbito do seu comércio, nomeadamente, resíduos plásticos, mas concretamente, plástico, borracha, cintas PET e PP, plástico colorido e plástico transparente.”

“Resulta do compulso das facturas em causa, juntas pela requerente, que as mesmas apresentam como locais de carga “...” e “...”, mostrando-se ambas endereçadas à requerida, com a sobredita sede, sita em Espanha, constando de ambas ainda a menção de “isento de Iva abrigo do 14.º RITI (Exp bens p/outro E.M.).

“A requerida tem a sua sede social em Espanha.

“A conjugação destes dados, leva a que se deva concluir que os bens em apreço destinavam-se a ser transferidos de Portugal relativamente a outro Estado Membro da União Europeia.

“É certo que neste contexto, a autora alega que: “como bem sabe a Ré, foi esta quem veio a Portugal levantar os bens/mercadoria que havia comprado junto da Autora.

“Todas as cargas foram transacionadas nas instalações da Autora, sitas em Portugal.

“Por conseguinte, no momento em que a Ré procede ao levantamento da mercadoria, a Autora emite as competentes faturas, uma vez que a mercadoria iria ser transportada pela Ré até Espanha.

“Significa isto que a Autora cumpriu a sua obrigação em Portugal – lugar onde entregou a mercadoria aos transportadores para que a entregassem em Espanha, junto da Ré,

“Transportadores esse que não tinham qualquer ligação ou conexão com a Autora.

“A Autora desconhece quaisquer dados sobre os transportadores “contratados” pela Ré, até porque todos os transportes e movimentações dos bens vendidos pela Autora à Ré foram levados a cabo por esta,

“A partir deste instante, ou seja, a partir do momento em que a Autora cumpriu a sua obrigação – entrega da mercadoria na sua sede, em Portugal - deixou de ter qualquer responsabilidade sobre a mesma.

“Desconhecendo, aliás, se o destino final terá sido mesmo em Espanha, ou em qualquer outro local escolhido pela Ré.”

“O essencial da alegação da autora, permanece controvertido.

“De todo o modo, é à luz do acionamento inicial da autora que a questão ajuizada deve ser conhecida, de acordo com os dados constantes no formulário e documentos anexos.

“Ora, como se disse, resulta do compulso das facturas em causa, juntas pela requerente, que as mesmas apresentam como locais de carga “...” e “...”, mostrando-se ambas endereçadas à requerida, com a sobredita sede, sita em Espanha, constando de ambas ainda a menção de “isento de Iva abrigo do 14.º RITI (Exp bens p/outro E.M.).

“Conjugando que a requerida tem a sua sede social em Espanha (o que é consensual), tudo leva a que se deva concluir que os bens em apreço destinavam-se a ser transferidos de Portugal relativamente a outro Estado Membro da União Europeia, que se conclui ser Espanha.

“É a própria requerente quem alega que “no momento em que a Ré procede ao levantamento da mercadoria, a Autora emite as competentes faturas, uma vez que a mercadoria iria ser transportada pela Ré até Espanha.”

“Ora, neste ponto, como se conclui no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11-02-2016, p. 2561/14.8T8BRG.G1, relatado por ESPINHEIRA BALTAR, disponível no site www.dgsi.pt, “no domínio das relações contratuais vigora o princípio do domicílio do cumprimento da obrigação; no caso de estar em causa um contrato de compra e venda de bens o domicílio a ter em conta será o do lugar da entrega dos bens (foram ou devam ser entregues) como resulta da al. b); (…) ,o da entrega efectiva, o destino final e não o da colocação à disposição (…)”

“No caso de tal aresto estava em causa uma situação em que os bens foram entregues a um transitário que os levou para o país de destino, atribuindo-se competência em função do país de destino final (seguindo e defendendo esta orientação veja-se igualmente o Ac. Do Tribunal da R.G. de 09-06-2016, p. 3077/15.0T8BRG.G1, relatado por MARIA PURIFICAÇÃO CARVALHO, disponível no mesmo site).

“E tal tem sido igualmente a orientação do TJUE (vide acórdão de 25. 2. 2010 — PROCESSO C-381/08; no processo Car Trim GmbH contra KeySafety Systems Srl, igualmente citado pela requerida).

“Observa-se, entre o mais, em tal aresto que “Nenhuma disposição do regulamento define os conceitos de «entrega» e de «lugar de entrega» na acepção do artigo 5.º, n.º 1, alínea b), primeiro travessão, do regulamento.”

“O pedido de decisão prejudicial tinha por objecto a interpretação do artigo 5.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, sendo que tal disposição transitou sem alteração para o Regulamento vigente, sendo por isso jurisprudência aplicável.

“Nos termos daquele aresto, salientou-se que em primeiro lugar cumpre examinar se o lugar de entrega decorre das disposições do contrato.

“Se for assim possível identificar o lugar de entrega, sem fazer referência ao direito material aplicável ao contrato, é esse lugar que é considerado como o lugar onde os bens foram ou devam ser entregues, por força do contrato, na acepção do artigo 5.º, n.º 1, alínea b), primeiro travessão, do regulamento.”

“Não sendo possível aferir nos termos das disposições do contrato, consideraram-se dois lugares que poderiam servir de lugar de entrega, para efeitos da fixação desse critério autónomo, aplicável caso não haja uma disposição contratual. O primeiro é o da entrega material do bem ao comprador e o segundo é o da entrega do bem ao primeiro transportador, tendo em vista a sua transmissão ao comprador.

“Ora, no confronto entre os sobreditos critérios, reconheceu o TJUE que “o lugar onde os bens foram ou devam ser materialmente entregues ao comprador, no destino final destes, corresponde melhor à génese, aos objectivos e ao sistema do regulamento, como o «lugar de entrega» na acepção do seu artigo 5.º, n.º 1, alínea b), primeiro travessão. Este critério tem um elevado grau de certeza jurídica. Responde também ao objectivo de proximidade, na medida em que assegura a existência de uma conexão estreita entre o contrato e o tribunal chamado a conhecer dele. Há que recordar, em especial, que os bens, que constituem o objecto material do contrato, devem estar, em princípio, nesse lugar, depois do cumprimento desse contrato. Além disso, o objectivo fundamental de um contrato de compra e venda de bens é a transferência destes, do vendedor para o comprador, operação que só fica completa no momento da chegada dos referidos bens ao seu destino final. Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o artigo 5, nº 1, alínea b), primeiro travessão, do regulamento deve ser interpretado no sentido de que, em caso de venda à distância, o lugar onde os bens foram ou devam ser entregues, por força do contrato, deve ser determinado com base nas disposições desse contrato. Se for impossível determinar o lugar de entrega nessa base, sem fazer referência ao direito material aplicável ao contrato, esse lugar é o da entrega material dos bens, através da qual o comprador adquiriu ou deva ter adquirido o poder de dispor efectivamente desses bens, no destino final da operação de venda.”

“Como vimos, a citada jurisprudência nacional e a europeia navegam nas mesmas águas.

“Da nossa parte, acompanhamos integralmente os argumentos aduzidos pelo TJUE.

“Afigura-se, com efeito, que a competência internacional deve ser aferida em função do destino final da operação de venda, o destino final da venda.

“Convenhamos, por exemplo, que serão à partida os Tribunais do país de destino final que em melhor posição estarão para aferir da existência de desconformidades na qualidade de bens vendidos, podendo aí eventual fazer as observações e inspecções judiciais aos produtos em apreço e/ou determinando e controlando as perícias pertinentes.

“Assim, seguindo este critério, e assentando que o destino final da mercadoria em apreço era (e foi) Espanha, serão competentes para conhecer do litígio os Tribunais Espanhóis. Neste contexto, é indiferente que tivesse sido a própria ré a promover o levantamento das mercadorias em Portugal, por si ou por interposto transportador, ponto é que tivesse como destino final Espanha.

“Dito isto, é certo que o artigo 26.º/1, do Regulamento em causa plasma que “Para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do presente regulamento, é competente o tribunal de um Estado-Membro no qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objetivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do artigo 24.º.”

“Porém, sob pena de compressão (potencial e efectiva) dos direitos de defesa das partes, da violação até do princípio da concentração da defesa consagrado entre nós, e, na prática, de potencial inutilização prática das regras de competência internacional, deverá entender-se que “a comparência do réu não fundamenta a competência do tribunal se o mesmo, além de contestar a competência, apresentar a sua defesa quanto ao mérito da causa. Ponto é que essa contestação da competência seja prévia a toda a defesa de mérito (…)” – vide, neste sentido, acórdão do TRG de 09-06-2016, relatado por MARIA PURIFICAÇÃO CARVALHO, disponível no referido site.

“Nesta medida, é de afastar a competência internacional dos tribunais portugueses para conhecimento da acção vertente.

“IV - Por conseguinte, declarara-se a incompetência absoluta dos tribunais portugueses, por razões de ordem internacional, para conhecerem do objecto da causa, com a consequente absolvição da Ré da instância.” (Fim da citação.)


*

Inconformada, a Autora recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

I. O recurso ora interposto pela Recorrente versa sobre a sentença proferida em 04.10.2022, no âmbito da Injunção Europeia em curso, que julgou verificada e procedente a exceção dilatória de incompetência absoluta dos tribunais portugueses para apreciar o litígio em questão.

II. Ali, entendeu o tribunal a quo que, tendo os bens cujo pagamento se peticiona sido entregues em Espanha, como destino final, a competência para dirimir o litígio pertence aos tribunais Espanhóis nos termos do disposto no art. 7.º, n.º 1 do Regulamento n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro.

III. Facto com o qual a Recorrente não se conforma, carecendo o mesmo de manifesta razão de ser e até legal.

IV. Entende a Recorrente que o tribunal a quo, ao decidir como decidiu, incorreu na errada interpretação e aplicação das normas aplicáveis in casu.

V. Isto porque, como veio a responder a própria Recorrente ao abrigo do princípio do contraditório, foi a Recorrida quem veio a Portugal levantar os bens/mercadoria que havia comprado junto da Recorrente, designadamente, em ... e ....

VI. Ad effectum, atento os factos alegados pela Recorrente e prova documental já junta nos presentes autos, não poderia a tribunal o quo decidir como decidiu no que respeita à invocada (in)competência dos tribunais portugueses.

VII. E, mesmo que existissem quaisquer dúvidas quanto à mesma, devia aquele tribunal a quo, ao abrigo do princípio da adequação formal consagrado no art. 547.º do C.P.C., diligenciar no sentido de se produzir prova a esse respeito.

VIII. Pretende, assim, a Recorrente a revogação da douta sentença da qual se recorre, devendo o tribunal ad quem decidir que estão verificados todos os elementos necessários a aferir da competência internacional dos tribunais portugueses.

IX. É certo que, atendendo aos moldes em que a entrega dos bens vendidos foi realizada junto da Recorrida, verifica-se que o caso concreto enquadra-se na alínea a) e b) do n.º 1 do art. 7.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 Dezembro de 2012,

X. Mas, como bem sabe a Recorrida, e foi alegado pela Recorrente, foi aquela quem veio a Portugal levantar os bens/mercadoria que havia comprado junto desta.

XI. Facto que, aliás, deveria ter sido dado como provado pelo tribunal a quo.

XII. Pois que, como se disse supra, e jamais poderá ser negado por nenhuma das partes, todas as cargas foram transacionadas nas instalações da Recorrente, sitas em Portugal.

XIII. Por conseguinte, no momento em que a Recorrida procedeu ao levantamento da mercadoria, a Recorrente emitiu as competentes faturas, fazendo constar das mesmas a indicação de “Local de carga: ...” e “Local de carga: ...”, uma vez que a mercadoria foi transportada pela Ré, do seu exterior, até ao local por esta pretendido, a expensas suas.

XIV. Significa isto que a Recorrente cumpriu a sua obrigação em Portugal – lugar onde entregou a mercadoria ao(s) transportador(es) contratados pela Recorrida, para que

a fizesse chegar até Espanha, às suas instalações.

XV. Veja-se que a Recorrente, a partir do momento em que liberta a mercadoria junto da transportadora contratada pela Recorrida, não tem sequer de conhecer o destino final onde a mesma será entregue, desconhecendo, assim, se terá sido mesmo em Espanha, ou em qualquer outro local escolhido pela Recorrida.

XVI. E, como tal, entende a Recorrente que a entrega dos bens, tendo sido inequivocamente em Portugal – nas instalações desta – obriga a que os presentes autos sejam apreciados pelos tribunais portugueses, segundo as regras de competência territorial previstas no C.P.C., e fazendo a aplicação direta dos normativos legais supra mencionados,

XVII. Acresce que, e tal não foi sequer objeto de fundamentação por parte do tribunal a quo, conforme pretendido e invocado pela Recorrente, omitindo aquele na sua

pronúncia, que ainda que se entenda que, neste contrato de compra e venda, existem duas obrigações – entrega da coisa por parte da Recorrente e Pagamento do preço por parte da Recorrida – a obrigação que aqui ficou por cumprir foi precisamente esta última – pagamento do preço.

XVIII. Dispondo o art. 774.º do Código Civil que “se a obrigação tiver por objecto certa quantia em dinheiro, deve a prestação ser efectuada no lugar do domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento”, i.e., em Portugal.

XIX. Veja-se, a este propósito, que o próprio tribunal a quo entendeu que “o crédito em causa, ainda de acordo com o formulário da injunção, decorre de um “contrato

de compra e venda”; e o “não pagamento” do mesmo, relativo à venda de resíduos plásticos”.

XX. Logo, deveria o tribunal a quo ter-se pronunciado sobre os critérios de competência internacional à luz do cumprimento da obrigação em falta – pagamento do preço por parte da Recorrida – o que não fez.

XXI. Assim, dúvidas inexistem de que, à luz das regras de direito português, e por confronto com as normas de direito comunitário em vigor, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar o litígio, devendo, por conseguinte, improceder a exceção invocada pela Recorrida e ser revogada a decisão de que se recorre.

Sem prejuízo,

XXII. Apesar de alegado e ter sido rejeitado pelo tribunal a quo, cujo entendimento é contrário ao da aqui Recorrente no que respeita à competência dos tribunais portugueses por força da competência exclusiva prevista no art. 26.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 Dezembro de 2012, mesmo que se entendesse não estar verificado alguns dos critérios especiais acima identificados, o que não se concebe à luz do exposto supra, sempre este estaria verificado.

XXIII. Ora, desta norma extrai-se que “para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do presente regulamento, é competente o tribunal de um Estado-Membro no qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objetivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do artigo 24.º.

XXIV. In casu, tendo a Ré comparecido em Portugal para contestar os presentes autos, podia fazer valer a sua tese se o único objetivo dessa sua comparência fosse para

arguir a alegada incompetência – o que, como é bom de ver, não fez.

XXV. A Recorrida não compareceu com o objetivo único de arguir a incompetência dos tribunais portugueses, mas insurge-se, também, contra a qualidade dos bens vendidos pela aqui Recorrente e preço aplicado por esta.

XXVI. O que significa, à semelhança do que aconteceria se a alegada incompetência internacional não tivesse sido por si arguida, que os tribunais portugueses sempre serão competentes por força do disposto no n.º 1 do art. 26.º do Regulamento aplicável in casu.

XXVII. Posto isto, é por demais evidente que inexistem quaisquer razões ou fundamento, de facto ou direito, para que o tribunal a quo tenha decidido no sentido de julgar incompetentes os tribunais portugueses, dando lugar à procedência da exceção dilatória suscitada pela Ré, com a consequente absolvição desta da instância, nos termos do art. 99.º do C.P.C.

XXVIII. Entende a Recorrente que o tribunal a quo, ao decidir como decidiu, incorreu na violação dos princípios do acesso ao direito, previsto no art. 2.º do C.P.C. e art. 20.º da C.R.P., bem como errada interpretação e aplicação das normas aplicáveis in casu, designadamente, o disposto nos arts. 5.º, 7.º, n.º 1 e 26.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro,

XXIX. Por conseguinte, desde já se requer que seja a decisão revista e substituída por decisão diversa que conclua pela competência dos tribunais portugueses na apreciação do presente litígio.


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            A Requerida contra-alegou, defendendo a correção do decidido.

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            Questões a decidir:

            A competência internacional dos tribunais portugueses.

            Sub-questões: o critério do pagamento do preço; a entrega dos bens ao transportador; a “comparência” na aceção do art. 26.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012.


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            Estão provados os seguintes factos (não impugnados):

1- A autora/requerente C..., LDA., com sede na Zona Industrial ..., concelho ..., interpôs contra a ré/requerida P..., S. L., com sede na ..., Espanha, o vertente requerimento de injunção de pagamento europeia, para a cobrança do valor global de €11.870,40.

2- Indicou como Fundamento para a competência do tribunal o código 02 (Local de execução da obrigação em questão).

3- Indicou como residência habitual/sede da requerente e requerida, respectivamente Portugal e Espanha.

4- O crédito em causa, ainda de acordo com o formulário da injunção, decorre de um “contrato de compra e venda”; e o “não pagamento” do mesmo; relativo à “venda de resíduos plásticos”, com a menção das datas de 19/11/2014 e 26/11/2014, nos montantes parcelares de €6.744,00 e €5.126,40, respectivamente; titulados nas facturas n.º ...00 e ...14, também respectivamente.

5- Em sede de declarações adicionais, alega-se ainda, entre o mais, que “No âmbito da sua actividade comercial, a Requerente foi contratada pela sociedade Requerida para que lhe fornecesse bens no âmbito do seu comércio, nomeadamente, resíduos plásticos, mas concretamente, plástico, borracha, cintas PET e PP, plástico colorido e plástico transparente.”

6- Resulta do compulso das facturas em causa, juntas pela requerente, que as mesmas apresentam como locais de carga “...” e “...”, mostrando-se ambas endereçadas à requerida, com a sobredita sede, sita em Espanha, constando de ambas ainda a menção de “isento de Iva abrigo do 14.º RITI (Exp. bens p/outro E.M.).

7- A requerida tem a sua sede social em Espanha.


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A decisão recorrida é exaustiva e está correta.

A matéria de facto, não impugnada, está fixada de acordo com o alegado na petição e documentos anexos.

No caso, porque estão envolvidas sociedades sediadas em diferentes Estados membros da União Europeia, sendo a matéria comercial, a competência deve ser determinada pelo disposto no Reg (EU) 1215/2012.

            É aplicável o seu art.7, 1, b).

            Resulta deste Regulamento ter sido adoptado um conceito autónomo de lugar do cumprimento para as acções fundadas em contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, identificando as obrigações que são características de um (entrega dos bens) e de outro (prestação do serviço). (São nucleares a este respeito, os acórdãos do STJ, de 14.12.2017 e de 10.12.2020, nos processos 143378/15 e 1608/19, respetivamente, publicados em www.dgsi.pt.)

               Portanto, não releva a obrigação invocada ou a que esteja em litígio, devendo recorrer-se ao conceito comunitário.

            Assim, fica afastado o critério de direito interno do pagamento do preço.

            Não é posto em causa que estamos perante um contrato de compra e venda.

            A entrega dos bens concretizou-se/devia concretizar-se em Espanha.

O local de carga e o transporte são aqui irrelevantes, sendo indiferente ter sido ou não a própria Ré a promover o transporte para o destino final, em Espanha. (Admite-se, no entanto, que a alegação e demonstração, sem incertezas, do domínio efetivo dos bens logo em Portugal, pela Ré, pudesse conduzir a uma solução diversa.)

(Além da jurisprudência referida pelo Tribunal recorrido, ver acórdão do STJ, de 22.9.2016, no proc.2561/14, em www.dgsi.pt.)

Como referido pelo Tribunal recorrido, serão os Tribunais do país de destino final que melhor se posicionarão para aferir da existência de desconformidades na qualidade de bens vendidos, podendo aí fazer as observações e inspeções judiciais aos produtos em apreço e/ou determinando e controlando as perícias pertinentes.

Por fim, quanto à “comparência” na aceção do art. 26.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012:

“Sob pena de compressão dos direitos de defesa das partes, da violação do princípio da concentração da defesa consagrado em Portugal, e, de potencial inutilização prática das regras de competência internacional, deverá entender-se que “a comparência do réu não fundamenta a competência do tribunal se o mesmo, além de contestar a competência, apresentar a sua defesa quanto ao mérito da causa.”

Além disso, no âmbito da injunção europeia, como a acionada no caso, a oposição inicial (em formulário) é uma oposição meramente formal à injunção. Só na contestação (a oposição motivada) é possível ao requerido invocar a exceção. Por isso, também aquela oposição meramente formal não deve ser interpretada como “comparência”, na aceção do art. 26.º do referido Regulamento. (Ver acórdão do STJ, de 14.10.2014, no proc.147/13, no sítio digital referido.)

Assim, a competência não pertence aos tribunais portugueses.


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Decisão.

            Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pela Recorrente.

Coimbra, 2023-01-10


(Fernando Monteiro)

(Carlos Moreira)

(Rui Moura)