Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3197/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: COELHO DE MATOS
Descritores: DEPÓSITO BANCÁRIO
BLOQUEIO DE CONTA
CHEQUE NÃO DATADO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
CARTÕES DE DÉBITO
Data do Acordão: 02/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 1185.º, 1205.º E 1206 CÓDIGO CIVIL; ARTIGOS 13.º, 32.º E 33º DA LEI UNIFORME SOBRE CHEQUES;
Sumário: 1. A par da lei, a fonte de direitos e obrigações emergentes da relação banco cliente reside nas cláusulas contratuais gerais que regem a prática bancária e às quais os clientes aderem no contrato de abertura de conta.
2. Com a entrega do dinheiro ao banco, para crédito em deposito à ordem, este fica proprietário dele, enquanto o depositante fica com o direito à restituição ou à entrega a outrem por sua ordem.

3. O desenvolvimento, a cessação e o bloqueio da conta não constituem direito exclusivo do respectivo titular, na medida em que o banco também tem nela os seus direitos.

4. Parece claro resultar do artigo 13.º, da respectiva Lei Uniforme, que um cheque pode ser assinado pelo sacador a favor do beneficiário a quem o entrega para que posteriormente o complete com a data e o montante.

5. Para a lei este cheque é válido e deve ser pago, à sua apresentação, pelo sacado, ainda que não tenha sido preenchido conforme o acordado.

6. Esse risco corre por conta do sacador, que apenas está protegido contra actuações de má fé ou falta grave, no preenchimento. É, pois, só nessa base que o citado artigo 13.º admite a excepção do preenchimento abusivo.

7. Compete ao sacador (ou a quem o represente), em acção contra o tomador, alegar e provar os factos constitutivos da excepção do preenchimento abusivo (artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil).

8. A violação do pacto de preenchimento de um cheque não é oponível no domínio das relações imediatas.

9. Não tem a virtualidade de evitar o pagamento dum cheque, apresentado ao banco em boas condições, uma carta do herdeiro da herança do sacador a solicitar o cancelamento de todas as contas.

10. Em face do direito bancário, os cartões dependem dum contrato específico, destinado à sua emissão, e o regime aplicável consta de cláusulas contratuais gerais.

11. Tratando-se de um meio de utilização pessoal, só o titular ou a pessoa a quem o confia pode, com ele, movimentar legitimamente a conta que lhe está associada

12. Incorre em responsabilidade civil extracontratual, por uso ilegítimo do cartão, quem, não sendo o seu titular e sem consentimento deste, com ele levantar qualquer quantia.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. A... demandou, na comarca de Aveiro, B... e Agência de Aveiro do E..., pedindo que fossem condenados, solidariamente, a pagar-lhe a quantia de 43.300.980$00 e respectivos juros, alegando em síntese, que é o único herdeiro de C..., tio dele autor, e falecido em 8/12/1993, quando era titular de uma conta e aplicações financeiras no Banco réu.
Acontece que, não obstante ter informado o Banco da sua qualidade de sucessor do falecido cliente C... e ter solicitado o congelamento das contas e aplicações financeiras tituladas pelo falecido, veio a verificar que a ré B..., alegadamente convivente em união de facto com o falecido C... nos últimos tempos da sua vida, levantou um cheque de 35.000 contos (moeda então vigente) por ele emitido, ainda em vida, em seu favor e fez vários levantamentos e pagamentos nas caixas automáticas com a utilização de um cartão de débito, num montante de 1.980.000$00.

2. Os réus contestaram e a acção prosseguiu a sua normal tramitação até chegar a julgamento, posto o que foi proferida sentença que a julgou parcialmente procedente e condenou solidariamente os réus a restituírem ao autor a quantia de 174.579,26 €, acrescida de juros legais vencidos e vincendos relativos aos últimos cinco anos, contados desde 29/01/2004. E condenou ainda a ré B... a restituir ao autor a quantia de 9.876,20 €, acrescida de juros legais vencidos e vincendos também relativos aos últimos cinco anos, contados desde 29/01/2004.

3. Inconformados, apelam da decisão os réus e também o autor, este apenas quanto à prescrição de juros vencidos há mais de cinco anos, prevista na sentença.
Com as apelações vem um agravo, interposto pelos réus, da decisão de fls.414 e 415, que atendeu um requerimento de ampliação do pedido feito pelo autor, no decurso da audiência de julgamento, entendendo os réus que não se tratava de ampliação, mas alteração do pedido, que a lei já não admite neste momento processual.
Foram apresentadas, então as respectivas conclusões e oportunamente mantido o despacho.
Na sua apelação o Banco réu conclui a alegação com as extensas conclusões, como se segue:
1) A presente recurso é interposto da sentença proferida nos autos à margem referenciados da parte que condenou, solidariamente, o ora recorrente e a outra Ré (B...) a restituírem ao Autor a quantia de Euros 174.579,26 acrescida dos juros legais relativos aos últimos 5 anos.
2) O pedido deduzido pelo Autor, ora recorrido, é o seguinte: "termos, em que, nos melhores de direito, pede seja a presente acção procedente e provada, por via disso, se condenando solidariamente os R.R. a restituir ao Autor a quantia que concertadamente subtraíram à herança, acrescida dos proventos que aquele normalmente auferiria, em aplicações a prazo, a juro anual nunca inferior a 8% no total, presentemente de Esc. 46.300.980$00 (quarenta e seis milhões, trezentos mil, novecentos e oitenta escudos), bem como no que, ao mesmo titulo e à mesma taxa se vencer, até integral pagamento, a liquidar oportunamente em execução de sentença, devendo ainda os R.R. ser condenados no pagamento das custas, procuradoria e no mais que for legal".
3) Para fundamentar aquele pedido o Autor, ora recorrido, alegou, nomeadamente, que foi o gerente da Agência deste Banco que preencheu o cheque em causa no referente à data e local de emissão e quantitativo, quer por extensão quer por algarismos e que a Ré B... e o gerente do Banco actuaram de forma concertada e em evidente conluio para subtrair à herança o valor do cheque (35.000 contos) movimentando a conta e aplicações com ela conexas mediante cartão de crédito apropriado, a fim de reunirem a quase totalidade dos dinheiros do falecido, defraudarem o Autor e apossarem-se dessa importância.
4) Tal matéria, que veio a constar nos arts, 25.º e 29.º do Questionário, não ficou provada,.
5) Não ficaram provados factos que permitissem ao Tribunal a quo julgar procedente o pedido do Autor, que se fundamentou em sede responsabilidade civil extra -contratual.
6) O Tribunal ao condenar o ora recorrente fê-lo em sede de responsabilidade civil contratual, violando o princípio do pedido que está consagrado na nossa Lei Adjectiva (vide nomeadamente o arte 264.º do CPC.
7) Mas ainda em sede de responsabilidade civil contratual o Tribunal a quo não decidiu bem. Na verdade,
8) O cheque está integralmente preenchido e foi assim que foi apresentado a pagamento.
9) A assinatura conferia com a existente nos ficheiros do Banco
10) A conta sacada tinha provisão para lhe dar cobertura.
11) A data de emissão do cheque era anterior à data do óbito do sacador.
12) No artigo 33.º da Lei Uniforme do Cheque pode ler-se: "a morte do sacador ou a sua incapacidade posterior à emissão do cheque não invalidam os efeitos desta".
13) Pelo menos, à data do pagamento não havia menor indício de que a outra Ré (B...) não fosse legítima portadora do cheque, que o cheque tivesse sido preenchido em data posterior ao óbito do sacador (resulta da resposta aos pontos 36 e 37 que o preenchimento teve lugar após o óbito do Sr. C... e que tal facto era do conhecimento da 1.º Ré - não ficando provado que também fosse do conhecimento do Banco Réu, ora recorrente) e que esse preenchimento fosse abusivo e contra a vontade do sacador.
14) Aliás todos os indícios apontavam no sentido oposto, pois a outra Ré e o sacador assumiam-se publicamente como vivendo em comunhão de facto.
15) Diz o Autor, ora recorrido, apenas nos arts. 29° a 31° das suas Alegações nos termos do art.657° do CPC (e não antes) que quando o cheque foi apresentado a pagamento já tinha decorrido o prazo de oito dias pelo que era livremente revogável.
16) No entanto não se mostra assente nos autos - nem mesmo sequer alegado antes das alegações do demandante nos termos do art. 657 do CPC - que o cheque tivesse sido revogado.
17) A revogação é o acto pelo qual o sacador de um cheque ordena ao Banco sacado que o não pague (vide art. 32° da Lei Uniforme sobre Cheques).
18) Na carta de 20/12/93 em momento algum é ordenado ao Banco, ora recorrente, o não pagamento do cheque em causa (ou de qualquer outro) nem é mencionado que o saldo da conta pertencia exclusivamente ao falecido (e a conta tinha dois titulares), nem o podia mencionar, em 20/12/93, pois só depois de 6/1/94 é que o herdeiro do falecido soube que assim era (vide respostas aos quesitos 17°,18° e 19°).
19) Acresce que a conta em causa tinha dois titulares (conta solidária), um o Sr. C... já falecido) e o Sr. D... (vide alínea F) da Especificação) pelo que a dita carta de 20/12/93 não tinha a virtualidade que o Tribunal lhe atribuiu pois só se encontra assinada pelo herdeiro de um dos titulares.
20) Como se pode "congelar" uma conta que tem dois titulares e só o herdeiro de um é que solicita o "congelamento" e estamos perante uma "conta solidária"? (em que, como se sabe, qualquer um dos seus titulares a pode movimentar sem a intervenção e muito menos consentimento do outro).
21) Do que antecede decorre que o Banco ao pagar o cheque procedeu conforme a lei aplicável (art. 1161.º n° 1 al. a) do Código Civil, 3.º e 33.º da .Lei Uniforme sobre Cheques) não lhe podendo ser imputada qualquer responsabilidade.
22) O Banco, ora recorrente, não violou pois qualquer disposição legal ou contratual -pelo contrário, cumpriu a sua obrigação para com o sacador de pagar o cheque emitido por aquele e apresentado a pagamento pois a conta sacada tinha provisão.
23) Carece de fundamento a afirmação constante na sentença recorrida de que o saldo da conta era um bem da herança -a conta tinha dois titulares e sob o regime da solidariedade pelo que quanto muito apenas se pode presumir que metade do saldo era bem da herança (presunção elidível).
24) Aliás se o Banco tivesse, porventura, procedido erradamente ao pagar (e debitar na conta) o cheque em apreço (pelas razões referidas na sentença que não foram as que fundamentaram o pedido deduzido pelo Autor) então deveria agora ser condenado (na hipótese de raciocínio em presença) a repor na conta o montante erradamente debitado (acrescido de juros) e não a pagar ao herdeiro de um dos titulares o montante em causa.
25) Acresce ainda que o F... e a outra Ré não podem ser condenados, solidariamente a restituir ao Autor a importância em causa quando o Banco o foi (ainda que mal, de acordo com a sentença em crise) em sede de responsabilidade civil contratual e a outra Ré o foi em sede de responsabilidade civil extra-contratual, sendo certo que o pedido foi deduzido com base num alegado conluio entre ambos os Réus que não ficou provado.
26) A sentença recorrida violou nomeadamente o princípio do pedido que é corolário ou consequência do princípio dispositivo (vide nomeadamente o art. 264 do CPC), os arts. 3°, 32° e 33° da Lei Uniforme sobre Cheques e ainda o art. 1161° n° 1 al. a) do Código Civil.


4. A apelante Maria Eduardo apresenta, por seu turno, as seguintes conclusões:

1) O pedido formulado pelo A. recorrido na sua petição foi a condenação solidária dos RR. a restituir-lhe a quantia que, concertadamente, subtraíram à herança acrescida dos proventos que aquela normalmente auferiria estribando-se, para isso, num alegado conluio entre a Recorrente e o gerente da agência do F... em Aveiro, imputando a este o preenchimento de um cheque de 35.000.000$00 no referente à data, local de emissão e quantitativo, quer por extenso quer por algarismos, assim agindo concertadamente com a Recorrente, com evidente conluio para subtrair à herança aquele valor, movimentando a conta e aplicações com ela anexas, mediante cartão de crédito apropriado, a fim de reunirem a quase totalidade dos dinheiros do falecido, defraudarem o A. e apossarem-se dessa importância, delineando assim tal pedido em sede de responsabilidade civil extra-contratual.
2) Sucede, porém, que a matéria acima enunciada, levada ao Questionário nos Art°s 25° e 29°, não ficou provada; não obstante, a sentença recorrida viria a condenar o R. F... em sede de responsabilidade civil contratual e solidariamente com ele a Recorrente em sede de responsabilidade civil extra-contratual a restituírem o valor de tal cheque e juros nos termos que da mesma melhor constam.
3) Arredados pela prova os pressuposta da condenação em sede de responsabilidade extra-contratual e condenado o co-R. F... em sede de responsabilidade contratual, como claramente ocorreu, prejudicada ficava, naturalmente, a possibilidade de, pelo mesmo facto, condenar com ele solidariamente a Recorrente.
4) Violou assim a decisão recorrida o princípio do pedido e as regras próprias daqueles tipos de responsabilidade que não permitem a condenação solidária simultânea de duas pessoas jurídicas, pelo mesmos factos, em sede de responsabilidade contratual e de responsabilidade extra-contratual, excepto se a própria obrigação violada tivesse natureza solidária, o que manifestamente não era o caso,
5) A decisão recorrida faz erróneo enquadramento dos factos provados e confusão de conceitos, designadamente em matéria de revogação de cheque, sua emissão e preenchimento.
6) A carta de 20/12/93, dirigida pelo recorrido ao Co-R. F... não contém a virtualidade de uma verdadeira revogação do cheque, tal como definido no Art° 32.º da LU, nem tal foi alegado pelo A,; por outro lado, através dela aquele não se arroga qualquer expectativa fundada ou direito ao saldo total de tal conta.
7) Não resultou provado que tal saldo pertencesse efectiva e exclusivamente ao falecido carecendo assim de fundamento a conclusão retirada na decisão recorrida que o mesmo era bem da herança.
8) A Sentença recorrida confunde conceitos tais como emissão de um cheque e seu preenchimento ao consignar, entre outras, que" ...o cheque não fora emitido pelo falecido tio do A. pois quando ele faleceu o cheque não estava praticamente preenchido ..."para daí concluir pela ilicitude do seu preenchimento e desconto, o que não tem qualquer apoio na lei e na prova, quando é certo, como provado, que tal cheque foi emitido pelo tio do A., emitido com a sua assinatura -ordem de saque -e com a indicação por ele aposta, pelo seu punho do nome da beneficiária, a aqui Recorrente.
9) Cheque é um título cambiário abstracto, formal, resultante de mera declaração unilateral de vontade pelo qual uma pessoa, designada emitente ou sacador, dá contra o banco, em decorrência de convenção expressa ou tácita, uma ordem incondicional de pagamento á vista; o emitente, ao criar o cheque, dá uma ordem de pagamento á vista ao sacado em seu favor ou de terceiro;
10) A morte do emitente ou a sua incapacidade superveniente á emissão não invalidam os efeitos do cheque; o fundamento da norma reside no facto de que o cheque foi sacado pelo emitente quando tinha capacidade jurídica e em razão dos interesses de terceiros de boa-fé e da função económica e jurídica do cheque;
11) O portador tem direito a ser pago pela provisão de fundos em poder do sacado desde a emissão do cheque e se o cheque, incompleto no acto da emissão, for completado com inobservância do convencionado com o emitente, tal facto pode ser oposto ao portador se este tiver adquirido o cheque de má fé;
12) A Lei não estabelece distinção entre título em branco e título incompleto -título em branco é aquele em que o emitente, propositadamente, deixa faltar determinado requisito para futuro preenchimento; cheque incompleto é aquele em que o emitente, involuntariamente, omite uma determinada indicação -A distinção funda-se apenas na intencionalidade ou não da omissão mas, depois de preenchido o título, a diferenciação será difícil e, na dúvida, decide-se a favor do título em branco.
13) A Lei não comina a sanção de nulidade para o cheque em branco ou incompleto, mas apenas estabelece que o seu preenchimento com inobservância do convencionado com o emitente não corresponde a facto que possa ser aposto ao portador, salvo se este tiver adquirido o cheque de má-fé, sendo que a existência ou não de má-fé verifica-se no momento da aquisição do cheque e, assim, compreende o primeiro beneficiário e os portadores posteriores.
14) Quem assina título de crédito em branco ou incompleto outorga ao portador de boa-fé mandato para o seu oportuno preenchimento.
15) Pelo A. recorrido em momento algum foi alegado, quer em sede de providência cautelar quer da presente acção, que a posse de tal cheque pela Recorrente não era legítima, que a aposição da assinatura (saque) o fora contra a vontade do falecido, ou que, por qualquer outra circunstância, tal preenchimento fora abusivo, de que decorresse qualquer tipo de ilícito na sua "apreensão" e desconto, sendo aliás claramente em sentido oposto o conjunto da prova produzida; o A. não o invocou em momento algum, ou seja, não observou o ónus de prova que lhe incumbia em exclusivo para que, no que respeita à Recorrente, obtivesse a sua condenação em sede de responsabilidade civil extracontratual.
16) É requisito fundamental de responsabilidade civil extracontratual, a prática de facto ilícito atentatório dos direitos do A. sem o que a acção não pode ser procedente, decorrendo da diferenciação dos regimes entre a responsabilidade contratual e extracontratual que, quanto a esta, a culpa não se presume e daí que ao A. incumbisse nos termos gerais, artigo 342.º do Código Civil, a prova do facto ilícito, o que não fez.
17) Como provado, a Recorrente tinha acesso ao cartão de débito em função do seu relacionamento e vivência em comum com o falecido de há longa data e, pelo menos nos três anos anteriores á morte, como se marido e mulher se tratasse pelo que dizer-se, neste contexto, que a mesma tinha acesso ao cartão, significa forçosamente que o utilizava com o expresso consentimento do seu titular, assumindo o mesmo a responsabilidade por tal utilização.
18) De todo o modo não tendo ficado provado que o saldo da conta a que esse cartão estava agregado fosse exclusivamente do falecido, pelo que bem de herança, não é possível ordenar a restituição das quantias levantadas ainda que posteriormente ao decesso.
19) Em última análise, a responsabilidade por essa utilização haveria que ser repartida entre o seu titular, pela sua apontada negligência, e o banco emissor, com distribuição equitativa dos prejuízos causados, no sentido em que a instituição bancária enquanto entidade emissora de cartões de débito e proprietária e gestora dos sistemas electrónicos utilizados, responde nos termos gerais na medida do incumprimento do seu dever de garantir a segurança desses sistemas, considerando a data do falecimento do tio do A., do seu conhecimento, e as das movimentações efectuadas.
20) A sentença recorrida violou assim, nomeadamente, os Art°s 264° do Código de Processo Civil, 3°, 12°, 13° e 33° da Lei Uniforme sobre Cheques, 342° e 513° do Código Civil devendo por isso, concedendo-se provimento ao presente recurso, ser revogada absolvendo-se a recorrente dos pedidos, com as devidas consequências legais.


5. E, finalmente, o autor conclui do seguinte modo:
1) O pagamento de juros de mora à taxa legal é um dos modos de indemnização do credor pela prática de um acto ilícito, contratual ou não, sendo o modo típico de indemnização nas obrigações com expressão monetária, como resulta do disposto nos artigos 566.º e 806.º do Código Civil.
2) Logo no requerimento inicial do apenso de procedimento cautelar de arresto o Autor formulou inequivocamente essa pretensão indemnizatória, da qual os Réus tiveram conhecimento quando foram citados para o mesmo procedimento em Abril de 1994 e, mais tarde, em Fevereiro e Março de 1997, quando foram citados para a presente acção -assim se interrompendo os prazos de prescrição em curso e ainda não completados aquando das citações, deixando a prescrição de correr na pendência da acção -cfr. artigos 323.º n.ºs1 e 2 e 327.º n.º 1, do Código Civil.
3) O aditamento ao pedido formulado pelo Autor é, apenas, a concretização ou opção por uma das modalidades de indemnização, cuja pretensão fora muito antes manifestadas e comunicada aos Réus por citação, assim não se verificando a ocorrência da invocada prescrição.
4) Acresce que o Banco Réu na sua qualidade de depositário, tinha à sua guarda, conservação e administração a quantia de capital peticionada, assim estando suspensa a prescrição, cujo prazo, relativamente a ele, nunca começou nem correu, como resulta do disposto nos artigos 1.187.º e 318.º, c), do Cód Civil.
5) Salvo sempre o devido respeito, na douta Sentença recorrida, foram violadas as citadas disposições legais.
6) Deve ser revogada a sentença recorrida na parte em que declara prescrita parte dos juros peticionados, em sua substituição se declarando que os Réus devem ao Autor os juros de mora, às taxas legais sucessivamente em vigor, desde a prática dos actos ilícitos que lhes foram imputados.


6. A ré B... contra-alegou no recurso interposto pelo autor em defesa do julgado em matéria de prescrição de juros. Estão colhidos os vistos legais. Cumpre conhecer e decidir.
Os factos provados, por não terem sido objecto de recurso e por não vermos motivos para a sua alteração, são os seguintes, seguindo a ordem por que constam na sentença recorrida.
Da especificação:
1) No pretérito dia 8 de Dezembro de 1993, faleceu no estado de solteiro e sem descendentes ou ascendentes ou irmão que lhe sobrevivessem, C..., que teve a sua última residência habitual na Rua Aires Barbosa, n.º 31, 2.º Esq. (doc. de tis. 27 dos autos de providência cautelar em apenso).
2) Ao dito obituário pré-faleceu o seu único irmão, Virgílio Dinis de Carvalho Catarino (doc. de tis. 28 a 31 daqueles autos).
3) Por escritura pública de habilitação celebrada no Segundo Cartório da Secretaria Notaria! de Aveiro em 14 de Dezembro de 1993, foi declarado que o Autor é o único e universal herdeiro, por direito de representação, de C..., não havendo quem lhe prefira ou com ele concorra na sucessão à herança (doc. de tis. 32 a 35 e que aqui se tem por integralmente reproduzido).
4) O falecido C..., pessoa de recursos, deixou património de algum vulto em bens imóveis e também em bens móveis, em cuja titularidade, como herdeiro único, foi encabeçado o Autor, sem necessidade de inventário.
5) Este tio do Autor era reformado bancário, tendo sido gerente do Banco Réu.
6) E era ali que tinha depositadas ou aplicadas algumas poupanças, tendo aberta a conta n.º 3363767, do balcão de Gafanha da Nazaré, em que era titular juntamente com D..., em regime de solidariedade, podendo qualquer dos titulares, livre, ou total ou parcialmente, movimentá-la sem a autorização do outro.
7) Foram a Ré B... e os funcionários do Banco Réu., Palminha e Rodrigues, quem providenciou pelo traslado do corpo do tio do Autor para Aveiro, bem como do funeral, e foi igualmente este Sr. Rodrigues quem prestou as necessárias declarações para que fosse lavrado o assento de óbito.
8) Em 27 de Dezembro de 1993, o Réu Banco descontou na dita conta n.º 03363767 o cheque n.º BCO212881, apresentado a pagamento na mesma data, no valor de Esc. 35.000.000$00, assinado pelo punho do falecido tio do Autor.
9) O referido cheque apresenta-se com cruzamento geral e nele foram apostas os dizeres que constam do doc. de tis. 64 dos autos de providência cautelar em apenso e que aqui se dá por reproduzido para todos os legais efeitos.
10) Quer a Ré B... quer o gerente (Sr. Rodrigues) da Agência de Aveiro do BPA e o seu Director de Zona, Sr. Palminha, para além do número elevado de funcionários daquela agência e mesmo quadros superiores do mesmo Banco, estiveram pessoalmente presentes no funeral do tio do A.
11) Vinculado à conta a que se alude no facto 6., foi emitido um cartão eurocheque, que permitia a movimentação da conta através das máquinas automáticas desde que o utilizador tivesse a sua posse, conhecesse e digitasse o número pessoal de identificação, que autoriza esse acesso nas referidas máquinas.
12) Através deste cartão, foram efectuados da dita conta em «Lojas BPA» e através de máquinas automáticas, sendo em 9 de Dezembro de 1993 (4 operações, no total de Esc. 980.000$00), em 10 de Dezembro de 1993 esc 500.000$00) e em 13 de Dezembro de 1993 (Esc. 500.000$00).
Do questionário:
13) O C... encetou com a Ré B... uma relação amorosa muitos anos antes de falecer, tendo mesmo vivido como se marido e mulher se tratassem durante pelo menos os 3 anos anteriores à data do seu falecimento, na sequência do que a Ré B...tinha as chaves da casa por ambos habitada, tinha acesso ao seu recheio, ao cofre, aos documentos particulares existentes na casa a ainda ao cartão eurocheque aludido.
14) O falecido tio do Autor era muito conhecido e tinha amigos de longa i data no Banco Réu, designadamente, o seu Director de Zona, Sr. Palminha, e o gerente da filial, agência ou sucursal de Aveiro, ora R., Sr. Rodrigues.
15) O Autor ignorava o quantitativo exacto dos montantes que o seu tio tinha depositados ou aplicados no Banco ora R.
16) O tio do Autor faleceu repentinamente, sem que nada o fizesse prever e nem o A. contava que tal sucedesse.
17) Primeiro que o Autor, souberam do falecimento, a ora Ré B... e os ditos funcionários do Banco Réu.
18) A Ré B..., os identificados funcionários do Banco Réu, Srs. Palminha e Rodrigues, sabiam que o Autor era o único e universal herdeiro do tio.
19) Porém, nenhum deles lhe comunicou o óbito, de que o Autor apenas j teve conhecimento por terceiros e apenas decorridas muitas horas após o falecimento.
20) No início da manhã do dia do óbito a Ré B... estava a ocupar a casa, sendo que nela encontravam-se também outras pessoas, concretamente não identificadas.
21) A Ré B... manteve-se na posse das chaves da casa ~ cerca de 8 dias após o falecimento de C..., apesar de o Autor lhe ter pedido antes para lhe entregar as ditas chaves, tendo este apenas tido acesso à casa do tio em 15.12.1993.
22) Cerca de 2 ou 3 dias após o falecimento do tio o Autor solicitou ao gerente da agência de Aveiro do Banco Réu, Sr. Rodrigues, informação verbal sobre as contas bancárias ou outros valores que o falecido tivesse no dito Banco, tendo-se o gerente recusado a dar qualquer informação enquanto não fosse exibida a habilitação de herdeiros e o assento de óbito.
23) Nessa altura começou a verificar que, pela correspondência ali chegada a partir dessa data (15 de Dezembro de 1993) que andavam a ser efectuados movimentos na respectiva conta no Banco e balcão do Réu Banco posteriormente ao óbito do respectivo titular.
24) Porque os ditos documentos sugeriam que haveria outro contitular da conta, o Autor, desconhecendo quem seria esse contitular, procurou de novo o Sr. Rodrigues pedindo-lhe tal informação, ao que ele respondeu que não lhe dava essa informação verbalmente, pois que a mesma teria de ser transmitida por escrito, tendo o Autor, em 20.12.1993, entregue no Banco, naquele balcão de Aveiro (ao director do BPA, pessoa distinta dos Srs. Rodrigues e Palminha) a carta de fls. 37 a 38 dos autos de arrolamento apensos, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido, ao que este igualmente respondeu que as informações lhe seriam dadas por escrito.
25) Posteriormente, em 06.01.1994, o Banco Réu deu resposta ao pedido de informação do Autor nos termos que constam de fls. 53 a 59 dos autos de arrolamento apensos e cujo teor se tem aqui por inteiramente reproduzido, resposta que vem assinada pelo então gerente da agência de Aveiro.
26) De imediato o Autor contactou o 2.º titular da dita conta - Sr. D... -pretendendo saber o que efectivamente se passou e qual a sua "quota parte" nos valores da conta, ao que o mesmo lhe disse que apesar de contitular da conta a pedido e por amizade do falecido tio daquele, todos os valores da mesma eram do obituado, não tendo ele, 2.º titular, qualquer "quota parte" nesses valores, informando-o ainda que nunca efectuou qualquer movimento na conta ou carteira de títulos ou fundos com ela conexos, antes ou depois do falecimento do tio.
27) Foi então que o Autor pediu e obteve do Banco Réu o extracto de todos os movimentos da conta em referência posteriores ao falecimento do tio.
28) Em 07.01.1994, o Autor solicitou ao Banco Réu a fotocópia do cheque mencionado em 8.
29) Ao que o Banco Réu respondeu nos termos constantes do doc. de tis. 63 dos autos de providência cautelar em apenso, cujo teor se dá aqui por reproduzido, enviando a solicitada fotocópia.
30) Através de ordens dadas, após o falecimento do tio do Autor, pela Ré B... com o cartão Eurocheque (aludido em 11. destes factos) nas máquinas ATM privativas das "Lojas BPA", foram sendo vendidos todos os "títulos" cotados em bolsa de que o falecido era titular e que estavam associados à conta, e creditados nessa conta os valores das respectivas vendas.
31) Foi creditado em 23.12:1993 na mesma conta o valor da aplicação li;, financeira em "Imoprimos Renda" na data do seu vencimento, com os respectivos juros, no montante de 30.589.986$00.
32) Logo no dia 24.12.1993 a Ré B... apressou-se a depositar o cheque referido em 8 destes factos na sua conta.
33) Tendo o Banco Réu autorizado o débito do cheque na conta descrita -em 6. destes factos, pelo que o montante nele inscrito foi creditado na conta n.o 280/789119 da titularidade da Ré B....
34) O cheque não se encontra endossado.
35) A Ré apropriou-se também de Esc. 1.980.000$00 através de levantamentos e transferências da conta identificada do falecido tio do Autor, efectuadas pelo cartão eurocheque, a que se alude em 11. e 12. destes factos.
36) O Banco Réu tem os seus serviços informatizados, sendo todos os movimentos da conta efectuados por computador, pelo que agência de Aveiro tinha acesso à dita conta, controlando todos os seus movimentos e podendo introduzir-lhe quaisquer ordens.
37) O Autor poderia aplicar os dinheiros, obtendo taxa de juros remuneratórios de valor não apurado.
38) O cheque mencionado em 8. foi preenchido na parte referente à quantia (em algarismos e por extenso), à data e ao local de emissão pelo Sr. D..., e na parte referente ao beneficiário pelo punho do falecido tio do Autor.
39) O preenchimento realizado pelo Sr. D... teve lugar após o óbito do Sr. C..., facto que era do conhecimento da Ré B...


7. Começando por conhecer dos agravos, como impõe o n.º 1 do artigo 710.º do Código de Processo Civil.
Na audiência de julgamento o autor requereu, e a sra. Juiz deferiu, a ampliação do pedido inicial no sentido de, caso não fosse apurada taxa anual de juros que as quantias levantadas poderiam render (8%), se condenassem os réus no pagamento de juros contados à taxa legal. Nos agravos os réus defendem que, em vez de ampliação, havia uma alteração do pedido.
Apreciando o decidido diremos que o que se requereu na audiência de julgamento, não deixa de ser um desenvolvimento do primitivo pedido de juros compensatórios, não obstante vir agora o autor falar em juros de mora. E se inicialmente era pedido o que resultasse da aplicação da taxa de juro de 8% ao capital a devolver, o que agora se pretende é que essa taxa seja a taxa legal, que, podendo ser inferior, também pode ser superior. De resto, subscrevemos os argumentos vertidos no despacho recorrido, que confirmamos nos termos do disposto no artigo 713.º, n.º 5 do Código de Processo Civil.

Das apelações dos réus.
O que no essencial se colhe da matéria de facto é que o falecido C... tinha, em vida, assinado um cheque a favor da ora ré B..., cheque esse que apenas continha a assinatura do emitente e o nome da pessoa a favor de quem era dada a ordem de pagamento, na circunstância, a B.... Logo após a morte do C... foi o cheque acabado de preencher, com uma data anterior e a quantia de 35.000.000$00.
O Catarino faleceu em 8/12/1993, o cheque foi datado de 5/12/1993 e foi descontado a favor da beneficiária em 27/12/1993, sendo que, em 20/12/1993 o Banco foi informado pelo autor de que era herdeiro único do falecido Catarino, ao mesmo tempo que lhe solicitava o congelamento de todas contas e aplicações financeiras que aí detinha.
A B... tinha ainda, em seu poder, um cartão eurocheque associado a uma conta do falecido Catarino, que lhe permitia aceder a essa conta com a utilização de um código de acesso, e com esse cartão não só levantou 1.980.000$00, como ainda de ordem de venda de títulos do falecido Catarino, cujo produto veio a ser creditado na conta da qual foi descontado o montante do cheque. Tudo isto após a morte do C....
Entendeu a sentença recorrida que o Banco deve agora responder pela quantia descontada com a apresentação do cheque, porque não só já sabia que a conta era bem da herança aberta por óbito do titular falecido, como também sabia quem era o sucessor exclusivo, que a tinha aceite e que tinha o direito de preservar o respectivo património até à sua liquidação, devendo ainda, pela natureza da relação Banco/cliente, obediência às instruções deste, sendo que, na violação dos deveres que de tal relação derivam para o Banco, este deve restituir a importância do cheque.
Já a B... deve responder, conforme o decidido em 1.ª instância, por preenchimento ilegítimo do cheque, na medida em que a relação que legitimou o seu preenchimento deveria ingressar no património hereditário como passivo.

8. Os réus reagem à sentença com os argumentos que sintetizam nas conclusões supra consignadas, questionando alguns pontos comuns, em defesa duma decisão que a revogue e afaste as suas responsabilidades.
O que se nos afigura é que tudo deve passar pela análise das questões essenciais a que este caso conduziu, desde a abertura de conta e passando pela natureza do depósito bancário, o cheque em branco, a sua eficácia post mortem, a eficácia da solicitação do congelamento da conta, até ao regime jurídico dos cartões bancários, donde resultará a regularidade ou irregularidade do pagamento do cheque e da utilização do cartão de débito.
A problemática da herança, a nosso ver, só pode ser desencadeada à margem daquelas questões, pressupondo-as resolvidas. É uma questão autónoma que não deve condicionar as soluções que o direito tem para dirimir o litígio que aqui opõe autor e réus. E sendo assim, será irrelevante para a causa.
A abertura de conta ( Para mais pormenores veja-se Meneses Cordeiro, Manual de Direito Bancário, Coimbra 1998, pags. 457 e seguintes.) é um negócio bancário, por excelência, que “marca o início duma relação bancária complexa entre o banqueiro e o seu cliente e traça o quadro básico entre essas duas entidades”. O regime jurídico que dela resulta para as partes assenta nas cláusulas contratuais gerais de bancos representativos dos principais grupos bancários nacionais que os clientes, eventualmente, subscrevem no acto de abertura de conta. São elas que regulam a correspondência e a informação que as partes devem trocar entre si; que se referem aos depósitos, à convenção de cheques, à emissão de cartões, ao descoberto, etc.
Daqui resulta que, a par da lei, a fonte de direitos e obrigações emergentes da relação banco/cliente reside nas cláusulas contratuais gerais que regem a prática bancária e às quais os clientes aderem no contrato de abertura de conta.
Se delas resultam direitos para o cliente, também resultam para o banco; e assim bem pode acontecer que este nem sempre tenha de obedecer cegamente às ordens, instruções ou solicitações do cliente, daí dependendo a eficácia desses actos.
Com particular acuidade, para o nosso caso, surge a questão de saber se o Banco réu devia ter negado o pagamento do cheque de 35.000.000$00 logo que recebeu a carta junta a fls. 37 e 38 dos autos de procedimento cautelar, cujo teor é dado como assente no ponto 24 do capítulo da sentença referente à matéria de facto.
Da noção de depósito dada pelo artigo 1.185.º do Código Civil – contrato pelo qual uma das partes entrega a outra uma coisa móvel ou imóvel, para que a guarde, e a restitua quando for exigida – resulta que, se esse fosse o depósito bancário, o depositário teria que obedecer imediatamente à ordem do depositante, não podendo descontar um cheque para depósito em conta de outro cliente, por lho proibir o artigo 1.189.º do Código Civil.
Mas o depósito bancário está longe de integrar o tipo de contrato de depósito previsto no artigo 1.185.º do Código Civil, desde logo porque o objecto a restituir não é exactamente o que se depositou, mas uma coisa equivalente, - ou importância igual - à depositada (coisa fungível). Por essa razão tem sido entendido, por alguma jurisprudência ( Cfr. acórdãos do STJ, de 8/10/91,BMJ 410, 813; de 9/2/95,CJ/STJ, (1995) I, 75-77; acórdãos da RLx, de 27/01/95, CJ (1995), 3, 136-137 ), que se trata de um depósito irregular, regulado nos artigos 1.205.º e 1206.º do Código Civil, em que a entrega do objecto depositado é efectuada no interesse do depositante; e por outros ( Cfr. Paula Camanho, Do contrato de Depósito Bancário (Coimbra 1998), págs. 172 e sgs.) como um contrato de mútuo bancário, em que o fim principal do depósito é realizado no interesse do banco, uma vez que é com as quantias provenientes daqueles que os bancos financiam as suas operações activas. Isto, sem esquecer que o depósito irregular é regulado, na medida do possível, pelas normas relativas ao contrato de mútuo (artigo 1.206.º do Código Civil).
Menezes Cordeiro ( Manual de Direito Bancário, 2.ª edição (2001), pág. 520) classifica-o de “contrato misto, com elementos do depósito e do mútuo e que, por estar há muito nominado e autonomizado, podemos apresentar como tipo próprio: precisamente o de depósito irregular”.
Em qualquer dos casos importa reter duas coisas, para as quais já aponta a natureza do depósito bancário: i) com a entrega do dinheiro ao banco, este fica proprietário dele, enquanto o depositante fica com o direito à restituição ou à entrega a outrem por sua ordem, quer por meio de transferências, quer por cheque (que contém uma ordem de pagamento); ii) o desenvolvimento, a cessação e o bloqueio da conta não constituem direito exclusivo do respectivo titular, na medida em que o Banco também tem nela os seus direitos.
De registar que o banqueiro não é obrigado, pura e simplesmente, a abrir conta. A regra é que, por lei, não é obrigado a fazê-lo. Apenas o fará se aderir ao protocolo previsto no Decreto-Lei n.º 27-C/2000, de 10 de Março.

9. Vejamos agora como enquadrar e solucionar a questão da carta remetida pelo autor ao Banco e acima referida. No essencial o autor diz que é herdeiro único do falecido C... e solicita ao Banco que proceda ao congelamento de todas as contas em nome deste.
Como refere Menezes Cordeiro ( Obra citada, pág. 508) “a cessação duma conta bancária provoca o termo dos diversos negócios dela dependentes. Encerrada a conta, caducam as convenções de cheque, contratos de depósito, os acordos relativos a cartões e outros acordos acessórios. As cláusulas contratuais gerais dos bancos atribuem ao banqueiro o direito de cancelar livremente as contas à ordem, isto é, as contas que prevejam meros depósitos à ordem. Os depósitos de outra natureza têm prazos próprios de cessão, prazos esses que, automaticamente, se aplicam às inerentes contas, devendo ser respeitados pelo banqueiro.”
Muito embora nada se refira nas cláusulas contratuais gerais sobre o cancelamento da conta por iniciativa do cliente, este autor é de opinião que, por aplicação analógica dos artigos 349.º do Código Comercial e 771.º, n.º 1 do Código Civil, este pode, a todo o tempo, tomar essa iniciativa.
Já quanto ao bloqueio da conta ele é decidido pelo banqueiro, por razões que vão desde o pedido do próprio cliente, a ordem do tribunal ou morte do cliente, hipótese em que o saldo será entregue aos herdeiros, extinguindo-se a conta. ( Obra citada, pág. 509).
Ora o teor da comunicação do autor ao Banco réu não é no sentido da cessação da conta. O que ele pretende é que o Banco mantenha as contas do de cuius no estado em que ele as deixou, recusando o pagamento de quaisquer cheques que lhe viessem a ser apresentados. Trata-se, ao que tudo indica, de um pedido de bloqueio de contas que, ainda que suposta a sua legitimidade, dependeria sempre de decisão do banqueiro, na medida em nela também tinha direitos, como acima observamos.
E entre esses direitos não pode deixar de estar o interesse na defesa da dignidade do cheque, cuja matriz reside na respectiva Lei Uniforme e na própria convenção de uso, o que bem pode reservar-lhe o direito (ou até impor-lhe o dever) de pagar um cheque que se apresente isento de vícios, sem que o sacador lhos aponte como motivo da sua revogação, prevista no artigo 32.º da LUCH.
No nosso caso o Banco teria ainda de ponderar a circunstância de a conta ter dois titulares, razão por que não lhe era imposto o bloqueio da conta por indicação exclusiva de um deles.
A revogação do cheque, diz o citado artigo 32.º, só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação. Se o cheque não tiver sido revogado, o sacado pode pagá-lo mesmo depois de findo o prazo.
Este artigo 32.º decreta a ineficácia da revogação do cheque durante o prazo de apresentação a pagamento, permitindo ainda que o sacado (o Banco) satisfaça a importância respectiva, esgotado aquele prazo e desde que não surja a revogação.
Ora, com aquela carta, o autor não revogou o cheque; nem sequer se referiu a um qualquer cheque. A carta contém uma solicitação genérica e não se dirige a um qualquer acto concreto de movimentação da conta, designadamente um cheque, apontando-lhe um qualquer vício que o afectasse enquanto tal, e que, por isso, justificasse a respectiva ineficácia.
Logo, o cheque que, em 27 de Dezembro de 1993, foi apresentado ao Banco réu, para ser descontado na conta do falecido C..., não estava envolvido em qualquer pedido de revogação e por aí não estava o Banco impedido de o pagar.
É certo que o Banco sabia da morte do cliente sacador, mas também sabia que a morte do sacador ou a sua incapacidade posterior à emissão do cheque não invalidam os efeitos deste, como diz o artigo 33.º de LUCH. Logo, também por aqui nada impedia que o pagasse. Nem pelo bloqueio da conta, nem pela revogação do cheque.

10. Resta a validade formal do título. Sabe-se que o cheque foi assinado pelo falecido C..., que também nele apôs o nome da B... como beneficiária. Após a morte daquele (08/12/1993), foi acabado de preencher com a indicação do montante (35.000.000$00) e da data (05/12/1993), tendo sido o contitular da conta, D..., quem assim concluiu o preenchimento do título.
Diz o artigo 13.º da LUCH que se um cheque incompleto no momento de ser passado tiver sido completado contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido o cheque de má fé, ou, adquirindo-o, tenha cometido uma falta grave.
Tem-se entendido que este artigo prevê expressamente o cheque em branco, autorizando que o portador complete o preenchimento com qualquer requisito omitido pelo sacador. É igualmente admissível a conclusão de que a entrega de um cheque com a data em branco faz presumir o acordo das partes ao seu preenchimento pelo portador, como há muito referiu alguma jurisprudência ( V. acórdãos do STJ, de 10/03/944, in B.O. 4-196), que mantém pertinente actualidade, face à Lei Uniforme.
Parece claro resultar deste artigo que um cheque pode ser assinado pelo sacador a favor do beneficiário a quem o entrega para que posteriormente o complete com a data e o montante. Supostamente tal só acontecerá quando o sacador confia em que o beneficiário o completa com a importância e a data acordadas. Para a lei este cheque é válido e deve ser pago, à sua apresentação, pelo sacado, ainda que não tenha sido preenchido conforme o acordado.
Esse risco corre por conta do sacador, que apenas está protegido contra actuações de má fé ou falta grave. É, pois, só nessa base que o citado artigo 13.º admite a excepção do preenchimento abusivo. Competia ao autor alegar e provar os factos constitutivos da excepção (artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil). Como o não fez, o cheque terá de considerar-se validamente preenchido e o seu pagamento foi correctamente efectuado.
Além disso ressalta da norma do citado artigo 13.º da LUCH que a violação do pacto de preenchimento de um cheque não é oponível no domínio das relações imediatas, ( cf. Acórdão do STJ, de 04/05/2000, n.º convencional 00040689, www.dgsi.pt ) exactamente o caso dos autos.
Ou seja, o Banco pagou bem e a ré B... recebeu bem. Quanto a esta carece de fundamento o argumento de que o cheque deveria voltar à herança, como se diz na sentença recorrida. A herança tem de lidar com isto e não o contrário, como já acima o dissemos. De recordar ainda o facto de o preenchimento do cheque ter sido feito pelo outro titular da conta que, embora não fosse proprietário dos fundos, revela uma relação de confiança com o outro titular falecido e supostamente a sua intenção sobre a emissão daquele cheque a favor da sua companheira. E isto releva para efeitos de observância de cumprimento do acordo de preenchimento.

11. Sobre o uso do cartão eurocheque, tudo indica que se tratava de um cartão de débito, ou pelo menos foi utilizado como tal. É sabido que, em face do direito bancário, os cartões dependem dum contrato específico, destinado à sua emissão, e o regime aplicável consta de cláusulas contratuais gerais.
A sua emissão depende da aceitação, pelo banqueiro, duma proposta de adesão constante dum impresso normalizado, subscrito pelo cliente, e é sempre associado a uma conta deste. O cartão é considerado propriedade do banqueiro e o seu uso depende da utilização de um código que identifica o utilizador. Trata-se de um código pessoal, do conhecimento exclusivo do titular do cartão, que não deve ser comunicado a terceiros. A responsabilidade da utilização, salvo comunicação de extravio, é sempre do titular. ( Cfr. Menezes Cordeiro, obra citada,pág.568/69)
Como se escreveu e decidiu num acórdão do STJ, “os cartões de débito apresentam-se como cartões de pagamento imediato, que operam uma mobilização das disponibilidades monetárias do titular através do acesso directo à sua conta bancária.
Os cartões dependem de um contrato específico, destinado à sua emissão, cujo regime consta, entre nós e como na generalidade dos países, de cláusulas contratuais gerais, pré-fixadas pelos bancos, a que os clientes se limitam a aderir - é o contrato de adesão. É à luz deste contrato - que se pode denominar contrato de utilização - que as posições do banco e do cliente deverão ser prioritariamente aferidas, no quadro das normas que disciplinam a actividade bancária, bem como as matérias da responsabilidade civil e da prova.”( Acórdão STJ, de 23-11-1999, Processo. 99A796, www.dgsi.pt )
Tratando-se de um meio de utilização pessoal, só o titular ou a pessoa a quem o confia (exceptuada a utilização abusiva) pode movimentar legitimamente a conta a ele associada. No nosso caso só o falecido Catarino e supostamente a ré B... podiam movimentar a conta, considerando que o fazia com autorização daquele, já que não vem colocada a questão de uso fraudulento enquanto foi vivo.
Após a morte do titular, o consentimento do uso já só podia ser dado por quem legitimamente representasse a herança, como parece óbvio. Na falta de tal consentimento o uso do cartão, por banda da B..., passou a ser ilegítimo e, consequentemente, o levantamento de quantias, que então era já um direito da herança, fê-la incorrer em responsabilidade civil, como muito bem vem decidido na douta sentença recorrida.
Esta responsabilidade tem apenas a ver com o levantamento da quantia de 1.980.000$00 e não já com a ordem de venda de acções, porquanto o produto da venda foi creditado na conta, continuando o dinheiro a ser propriedade do banco, com direito de utilização pelo titular da conta, conforme os argumentos acima expostos sobre esta matéria. A ré não levantou com o cartão o produto da venda de acções. Acabou por o levantar com o cheque, mas sobre isso já nos pronunciámos.

12. Finalmente sobre a prescrição de juros. O que agora se verifica é que foi aceite que, a haver condenação em juros, esta fosse proferida com referência a juros legais. Como a ré só deve ser condenada, com base no ilícito extracontratual, pelo dano correspondente às quantias levantadas com o cartão, e os juros legais pedidos se reportam à data do dano, por se tratar de juros compensatórios, há que ter em conta a prescrição invocada pela ré e, obviamente, a respectiva interrupção invocada pelo autor, sendo caso disso.
Prescrevem no prazo de cinco anos, diz a al. d) do artigo 310.º do Código Civil, os juros legais, ainda que ilíquidos. O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido, se o beneficiário da prescrição não estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação (artigo 306.º, n.º 1 do Código Civil).
Está provado que, em 9 de Dezembro de 1993, a ré levantou 980.000$00, em 10 de Dezembro de 1993, 500.000$00 e em 13 de Dezembro de 1993, 500.000$00, pelo que foi a partir de cada uma destas datas que se iniciou o prazo de prescrição, já que tudo ocorreu após a morte do titular da conta, sr. Canha. Deste modo, atingia-se a prescrição de juros compensatórios em 9,10 e 13 de Dezembro de1998, relativamente à 1.ª, 2.ª e 3.ª das referidas importâncias.
Mas a prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence (artigo 323.º, n.º 1 do Código Civil). Citada a ré em 20/03/1997 aí foi interrompida a prescrição e inutilizado todo o tempo decorrido anteriormente (artigo 326.º, n.º 1). E tendo a interrupção resultado de citação, neste processo, o novo prazo não começa a correr enquanto não transitar em julgado a decisão que lhe puser termo (artigo 327.º, n.º 1).
Por conseguinte os juros, à taxa legal, são devidos desde 9 de Dezembro de 1993, para a quantia 980.000$00 (4.888,22 €), desde 10 de Dezembro de 1993, para a quantia de 500.000$00 (2.493,99 €), e desde 13 de Dezembro de 1993, também para a quantia de 500.000$00 (2.493,99 €), tudo até integral pagamento.

Concluindo:
­ A par da lei, a fonte de direitos e obrigações emergentes da relação banco cliente reside nas cláusulas contratuais gerais que regem a prática bancária e às quais os clientes aderem no contrato de abertura de conta.
­ Com a entrega do dinheiro ao banco, para crédito em deposito à ordem, este fica proprietário dele, enquanto o depositante fica com o direito à restituição ou à entrega a outrem por sua ordem.
­ O desenvolvimento, a cessação e o bloqueio da conta não constituem direito exclusivo do respectivo titular, na medida em que o banco também tem nela os seus direitos.
­ Parece claro resultar do artigo 13.º, da respectiva Lei Uniforme, que um cheque pode ser assinado pelo sacador a favor do beneficiário a quem o entrega para que posteriormente o complete com a data e o montante.
­ Para a lei este cheque é válido e deve ser pago, à sua apresentação, pelo sacado, ainda que não tenha sido preenchido conforme o acordado.
­ Esse risco corre por conta do sacador, que apenas está protegido contra actuações de má fé ou falta grave, no preenchimento. É, pois, só nessa base que o citado artigo 13.º admite a excepção do preenchimento abusivo.
­ Compete ao sacador (ou a quem o represente), em acção contra o tomador, alegar e provar os factos constitutivos da excepção do preenchimento abusivo (artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil).
­ A violação do pacto de preenchimento de um cheque não é oponível no domínio das relações imediatas.
­ Não tem a virtualidade de evitar o pagamento dum cheque, apresentado ao banco em boas condições, uma carta do herdeiro da herança do sacador a solicitar o cancelamento de todas as contas.
­ Em face do direito bancário, os cartões dependem dum contrato específico, destinado à sua emissão, e o regime aplicável consta de cláusulas contratuais gerais.
­ Tratando-se de um meio de utilização pessoal, só o titular ou a pessoa a quem o confia pode, com ele, movimentar legitimamente a conta que lhe está associada
­ Incorre em responsabilidade civil extracontratual, por uso ilegítimo do cartão, quem, não sendo o seu titular e sem consentimento deste, com ele levantar qualquer quantia.

E com esta análise das questões que o caso nos oferecia, fica prejudicado o conhecimento das questões referentes à causa de pedir, à solidariedade da dívida, que interessavam a ambos os réus e devem proceder totalmente as conclusões da alegação do autor e do réu Banco, sendo igualmente de proceder, mas em parte, as da ré B....

13. Decisão
Por todo o exposto acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação do autor e do réu E... (hoje F...), e parcialmente procedente a apelação da ré B..., em consequência do que revogam, em parte, a sentença recorrida, absolvem do pedido o Banco réu e condenam a ré B... a restituir ao autor a quantia de 9.876,20 €, acrescida de juros compensatórios, à taxa legal, desde 9 de Dezembro de 1993, relativamente à quantia parcelar de 4.888,22 €, desde 10 de Dezembro de 1993, relativamente à quantia parcelar de 2.493,99 €, e desde 13 de Dezembro de 1993, relativamente também à quantia parcelar de 2.493,99 €, tudo até integral pagamento. Vai esta ré absolvida do mais que contra ela é pedido.
Custas em ambas as instâncias a cargo do autor e da ré B..., na proporção de vencimento.
Coimbra,
[Relator: Coelho de Matos; Adjuntos: Ferreira de Barros e Helder Roque]