Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
376/99.0 TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: CRIME DE CHEQUE SEM PROVISÃO
Data do Acordão: 11/25/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 11º, Nº1 , AL. A) DO DECRETO-LEI N.º 454/91, DE 28 DE DEZEMBRO, COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELO DL N.º 316/97, DE 19.11,E, 217.º, N.º 1, DO CP
Sumário: 1 Da acusação não consta, expressamente, nem tinha de constar face ao regime então aplicável, que o arguido entregou o cheque na data nele aposta, mas igualmente não consta que o entregou em data anterior. Seja, podia ter sido entregue ao tomador na data que dele consta.
2.Aceitando-se distinta conclusão, pensamos ter o M.mo Juiz recorrido antecipado um juízo inexorável, concebível apenas e só depois de averiguação efectiva sobre o facto que o pode eventualmente suportar.
3.Os termos em que se mostra redigida a acusação, se complementada com a queixa inicialmente apresentada, em contrário, faz, por ora, prevalecer o entendimento de que não estamos perante um cheque post datado, pois ao menos daquela resulta ter sido emitido e entregue no dia e com data de 8 de Junho de 1996 (isto sem olvidarmos o desvalor ou inocuidade que aquela poderá até vir a assumir em audiência).
Decisão Texto Integral:  I – Relatório.

1.1. Nos autos em causa, com data de 19 de Março de 1997, o Ministério Público deduziu acusação[1] contra o arguido F. imputando-lhe a autoria de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelo artigo 11.º, n.º 1, al. a) do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, e, 217.º, n.º 1, do Código Penal.

No dia 1 de Outubro de 1997, recebida a acusação, designou-se data para julgamento mas, atenta a sua ausência em parte incerta, acatadas as formalidades legais, acabou por ser decretada a respectiva contumácia e consequente suspensão dos autos (isto, dia 27 de Maio de 1998, e, fls. 61).

Entretanto, mantendo-se nesse estado, proferiu o M.mo Juiz titular do processo despacho por via do qual considerou extinto o procedimento criminal assim instaurado e deu por finda a dita situação de contumácia.

1.2. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, formulando, após motivação, as seguintes conclusões:

1.2.1. O Ministério Publico deduziu acusação contra o arguido, imputando-lhe factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo artigo 11.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro.

1.2.2. O M.mo Juiz no despacho exarado concluiu que da factualidade vertida na acusação não resulta qualquer indicação sobre a datação e entrega do cheque.

1.2.3. Sendo certo que na acusação deduzida não consta, de forma expressa, a data de preenchimento e entrega do cheque, não menos verdade é que a podemos ver implícita na expressão usada “datado de 8/06/96.”

1.2.4. Trata-se, essencialmente, de uma questão de interpretação literal do texto da acusação.

1.2.5. Se é incontornável que a acusação fixa o objecto do processo, ponto também é que, em nome da justiça formal, não se pode esquecer que seu fim último é o da justiça material.

1.2.6. Caberá em sede de audiência de julgamento, apreciar e concluir se, de facto, estão preenchidos todos os pressupostos do tipo legal de crime.

1.2.7. Constando da acusação todos os elementos factuais necessários ao preenchimento dos elementos objectivos e subjectivo do tipo de crime, mostra-se a acusação válida.

1.2.8. Há razões que justificam a tutela penal com base nos factos acusados e resulta uma possibilidade razoável de ao arguido, com base nos mesmos, vir a ser aplicada, em julgamento, uma pena.

1.2.9. O despacho recorrido violou, por isso, o mencionado preceito legal.

Terminou pedindo que no provimento do recurso seja ele revogado, substituindo-se por outro que não determine a extinção da responsabilidade criminal do arguido e ordene o prosseguimento dos autos.

1.3. Notificado para tanto, nenhuma resposta ofertou o recorrido.

Admitido o recurso, com implícito despacho de sustentação do despacho em crise, foram os autos remetidos a esta instância.

1.4. Aqui, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente a igual provimento.

Seguiu-se o cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

No exame preliminar a que alude o n.º 6 deste inciso, consignou-se nada obstar ao conhecimento de meritis.

Como assim, determinou-se o prosseguimento do recurso, com a recolha dos vistos devidos, o que sucedeu, e submissão à presente conferência.

Cabe, então, ponderar e decidir.


*

II – Fundamentação.

2.1. Segundo a jurisprudência corrente dos tribunais superiores, o âmbito do recurso afere-se e delimita-se através das conclusões formuladas pelo recorrente na respectiva motivação, mas isto sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido[2].

No caso vertente, e sendo certo não interceder causa que imponha esta intervenção, a única questão suscitada no recurso é a seguinte:

- Pese embora não conste da acusação apresentada a data na qual o arguido entregou à ofendida o cheque que constitui o seu objecto, certo é que, por ora, se mostrava vedado ao M.mo Juiz a quo considerar como assente a emergência da causa negativa plasmada no n.º 3 do encimado artigo 11.º e, logo, não devia precludir, sem mais, a possibilidade de lhe vir a ser aplicada uma reacção penal?

2.2. Relembremos o despacho recorrido:

“O Ministério Público deduziu acusação nos presentes autos contra o arguido F., imputando-lhe factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 11.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, e 217.º, n.º 1 do Código Penal.


*

Face à publicação do Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro (que alterou o referido Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro), com entrada em vigor no dia 1 de Janeiro de 1998, importa ponderar se, no caso em apreço, se verifica a extinção da responsabilidade criminal do arguido, perante a previsão do n.º 3 do art.º 11.º do Regime Jurídico do Cheque sem Provisão (a qual se manteve inalterada com a entrada em vigor da Lei n.º 48/2005, de 29 de Agosto).

Este preceito veio concretizar um dos propósitos do Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, afirmado logo no seu preâmbulo, que foi o de descriminalizar os cheques pós-datados ou também denominados de garantia, isto é, todos os que não se destinassem ao pagamento imediato de uma obrigação subjacente.

Consoante determina o art.º 2.º, n.º 2 do Código Penal, “o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais.”

Actualmente, é, pois, elemento constitutivo do crime de emissão de cheque sem provisão a datação do cheque com data anterior ou contemporânea da sua entrega ao tomador. Na verdade, dizer-se que não há crime “quando o cheque seja emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador” (art.º 11.º, n.º 3 da Lei n.º 48/2005, de 29 de Agosto) é apenas a formulação negativa do que ali já se deixou enunciado (“elemento típico negativo”, nas palavras de Américo Taipa de Carvalho, in “Crime de Emissão de Cheque sem Provisão”, Coimbra, 1998, pág. 45, nota 42).

Ora, da factualidade vertida na acusação (constante de fls. 30 a 31 dos autos) não resulta qualquer indicação sobre a entrega do cheque.

Com efeito, da mesma consta apenas que o cheque se encontra datado de 8 de Junho de 1996, sendo completamente omissa quanto à data em que o arguido procedeu ao preenchimento de tal título de crédito e à sua entrega à ofendida: “o arguido assinou, preencheu e entregou...” (quando?) “… à sociedade M… Lda., o cheque” constante de fls. 3 dos autos.

Deste modo, os factos ali descritos, só por si, e ainda que se dessem como provados em sede de julgamento, nunca poderiam determinar a condenação do arguido.

Além de que, nestes casos, “ocorrendo dúvidas sobre a verificação daquele elemento constitutivo do crime, tal dúvida não pode deixar de ser valorada a favor do arguido, por força dos princípios básicos de todo o ordenamento jurídico processual inserido num Estado de direito democrático, quais sejam os do in dúbio pro reo e do favor reo” (Acórdão da Relação de Coimbra, de 17/06/1998, C.J., Tomo III, págs. 58 e 59).

E porque assim é, para que a condenação do arguido F. pudesse sobrevir, necessário se tornaria que se provasse um outro facto: o de que a data de emissão não tinha sido posterior à data da entrega pelo emitente ao tomador, facto este que não consta da acusação.

E esta define e fixa, como unanimemente se tem entendido, o objecto do processo.

A investigação e prova em julgamento de factos não relatados na acusação, com excepção dos que relevem para a defesa, só pode fazer-se no âmbito do quadro normativo dos artigos 358.º e 359.º, ambos do Código de Processo Penal.

Sucede, porém, que ambos os preceitos visam regular situações em que os factos descritos na acusação (ou na pronúncia, havendo-a) integram a prática de um crime.

E não, diversamente, as hipóteses em que a acusação previamente deduzida, padecendo, à luz dos novos diplomas, da falta de descrição de um dos elementos constitutivos do crime, possa vir a ser completada em julgamento, designadamente pela prova de tal elemento em falta.


*

Pelo exposto, declaro extinta a responsabilidade criminal do arguido F. declarando ainda cessada a sua situação de contumácia.

(…).”

2.3. É certo que posteriormente quer à dedução da acusação pública, quer ao despacho proferido nos termos do artigo 311.º do Código de Processo Penal, foi publicado o DL n.º 316/97, de 19.11, o qual procedeu à alteração do regime jurídico do cheque sem provisão e entrou em vigor no dia 01.01.1998.

Com a publicação desse diploma legal operou-se a descriminalização de determinadas condutas anteriormente consideradas ilícitas nos termos do também citado artigo 11.º do DL n.º 454/91, de 28.12.

Na verdade, com a entrada em vigor do DL n.º 316/97, de 19.11, excluíram-se as condutas relacionadas com uma data de entrega do cheque diferente daquela que nele constava, as quais deixaram de considerar-se penalmente relevantes e merecedoras desta específica tutela.

Este novo regime reforçou e clarificou a função natural do cheque, vocacionado para a utilização como meio de pagamento, visando pôr cobro à abusiva utilização que daqueles títulos se vinha fazendo nos circuitos comerciais, em que a prática corrente se vinha estabelecendo no sentido de os receber sem data ou com data posterior à da sua emissão – logo, não como meio de pagamento, mas como promessa de pagamento numa data determinada pelo sacador (cheques com data futura) ou a determinar pelo tomador (cheques com data em branco) – deixando nas mãos do tomador a opção pela tutela penal sempre que ocorresse falta de pagamento, situação inadmissível do ponto de vista dos princípios que nortearam a construção dogmática dos crimes patrimoniais, porquanto o que está em causa nas situações apontadas não é senão um “risco de crédito conscientemente assumido pelo tomador do cheque, contando apenas para diminuir o risco com a ameaça da sanção penal em caso de não pagamento.”[3]

Dada a relevância jurídico-penal da indicação da data da entrega do cheque ao tomador, por passar a constituir agora requisito do tipo legal de crime a correspondência entre a data da entrega do cheque e a data nele aposta, a omissão dessa indicação, na medida em que se trata de um dos “… factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena …”, tornou-se susceptível de gerar a nulidade da acusação, por violação do disposto no artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal.

Deste modo, passou a ser indispensável investigar e apurar-se qual a data da entrega do cheque, fazendo-se constar da acusação tal elemento.

Relativamente aos processos então pendentes, como o era o presente, e perante o princípio do tratamento mais favorável, impôs-se o conhecimento de tal questão superveniente.

A tanto não obstando a circunstância de a acusação ter sido recebida, com prolação do despacho a que se refere o artigo 311.º do Código de Processo Penal, pois que os princípios da estabilidade da instância e da preclusão têm por limites, seguramente, as questões suscitadas até então – até à prolacção do dito despacho.

Ora, a mencionada descriminalização operada através do DL n.º 316/97, de 19.11, surgia como uma questão superveniente relativamente àquele despacho e sobre ela não se debruçara o Juiz que recebera a acusação.

Sabe-se que, havendo notícia de um crime, a lei manda que se instaure inquérito, cuja finalidade é investigar a sua existência, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (artigos 241.º e 262.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal). Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público deduz acusação contra aquele (artigo 283.º, n.º 1), cumprindo ao acusador fixar o se e o objecto concreto da actividade processual, mencionando os factos puníveis que se imputam ao acusado – sobre a forma como se chega ao objecto do processo, cfr. António Leones Dantas, “A definição e a evolução do objecto do processo no processo penal”, RMP 1995, n.º 63, página 89: “o objecto do inquérito mais não é do que o caso concreto da vida, na sua dimensão histórica, que se pretende ver valorado pelas normas penais. O que se vai indagar nesta primeira fase do processo são, pois, os aspectos desse acontecimento susceptíveis de se subsumirem às normas incriminadoras, ou portadores de referentes normativos relevantes para a determinação de reacções criminais, tal como resulta do artigo 283.º, n.º 3, do CPP.” -.

“Recebidos os autos no tribunal, a delimitação do objecto do processo prossegue com a realização do julgamento, devendo porém ter-se presente que uma tal delimitação progressiva é em princípio incompatível com variações substanciais.

O efeito por assim dizer mais marcante do princípio da acusação consiste na chamada vinculação temática do tribunal. A tese do respeito integral pelo princípio da acusação aponta para a rigidez do objecto do processo. Nesta perspectiva, os factos relatados na acusação (a chamada base fáctica) deverão permanecer idênticos no percurso que vai da acusação à sentença (rectius: ao trânsito da sentença), respeitando-se um princípio de identidade. A acusação só poderá incidir sobre elementos obtidos no inquérito, a pronúncia só poderá encontrar suporte em elementos colhidos durante o inquérito e a instrução, mas sempre constantes dos autos; o julgamento, a cargo de distinta entidade, só pode realizar-se sobre os factos descritos na acusação / pronúncia. Ficando o julgador impossibilitado de apreciar o que estiver fora da peça acusatória, pode a acusação ser rejeitada exclusivamente a partir do que o texto em si revelar [artigo 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alíneas a) a d)]. Por outro lado, sublinhada a importância do princípio de investigação ou da verdade material no nosso processo penal, de estrutura basicamente acusatória, no julgamento, o juiz, podendo conhecer de factos instrumentais da acusação, não o pode fazer relativamente a factos novos e não instrumentais (artigo 359.º) — a não ser de modo excepcional, o que significa que a rigidez apontada não é afinal absoluta.”[4]

A intervenção reclamada mostrou-se pacífica nos processos em que era assente estarmos perante um cheque post datado, bem como naqueloutros em que a resposta era negativa, isto é, ter o sacador subscrito o título em data coeva à data que nele se encontrava aposta.

Situação distinta foi a que ocorreu nos processos em que a fórmula antes comummente utilizada se mostrava equívoca, ao menos para algum dos intervenientes processuais. O caso vertente de dissídio entre acusador e julgador.

De facto, a mais das vezes, a acusação pública mostrava-se omissa na indicação da data de entrega dos cheques à tomadora, isto porque então os requisitos legais do crime de emissão de cheque sem provisão eram diversos, não se exigindo para a verificação do tipo em apreço o requisito negativo decorrente do n.º 3 do art. 11.º do DL n.º 316/97, de 19 de Novembro.

Duas correntes emergiram, em consequência: uma primeira, apontando para a impossibilidade de indagação actualizada da data efectiva de tal entrega e datação do título, porque atentatória do mencionado princípio do acusatório; uma outra, entendendo da não infracção a tal princípio, mesmo que facultando-se ainda, em julgamento, a delimitação dos termos exactos da aludida subscrição.

O dizer-se, como na acusação aqui deduzida, que o arguido assinou, preencheu e entregou à ofendida, o cheque em causa, datado de 8/06/96, embora, ressalvado o devido respeito, até pareça mais indiciar que ele foi entregue e datado nessa data (utiliza-se o termo “preencheu… datado”), também não menospreza, como se entendeu no despacho sindicado, que tenha ocorrido uma dissintonia entre entrega e datação. A experiência comum revelava até ao tempo que muitas vezes e pelas mais variadas razões, essa coincidência não se verificava, donde que, aliás, o realce que a intervenção legislativa operada mencionou.

Mas, a explicitação que ainda possibilitamos, põe em causa o erigido princípio do acusatório em cuja preterição se sustentou o despacho recorrido?

A resposta mostra-se, obviamente, intui-se, negativa.

Vários arestos tecem comentários que apoiam o arrimo que precisamos.

No primeiro, prolatado pelo Ex.mo Desembargador J. Jacob[5], escreveu-se:

“A alteração substancial deve ser aferida em abstracto, em função do crime imputado ao arguido pela acusação, e não em concreto, em função da valoração dos factos constantes da acusação, visto que segundo a al. f) do n.º 1 do art. 1.º do CPP, alteração substancial dos factos é apenas “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”. O que com a proibição da alteração substancial sem acordo dos sujeitos processuais afectados se visa é “impedir que o arguido seja surpreendido ou confrontado, na sua defesa, com factos novos, diferentes, daqueles que lhe foram imputados pela e na acusação e apenas naqueles casos em que esses novos e diferentes factos sejam o fundamento, por si só ou em conjunto e conexionados com os alegados pela acusação, da imputação de um crime diverso ou permitam a agravação dos limites máximos das sanções que lhe poderiam ser aplicáveis não fosse exactamente a adução desses novos factos.”[6]

Ora, no caso vertente, da consideração, após audiência de julgamento, do requisito negativo previsto no n.º 3 do art. 11.º do DL n.º 316/97 não resultaria a imputação de um crime diverso (diverso do que anteriormente lhe estava imputado… na acusação, obviamente!) nem resultariam agravados os limites máximos das sanções aplicáveis, pelo que a alteração não seria, manifestamente uma alteração substancial.

Uma outra consideração… vale também aqui, ainda que para justificação de natureza diversa, que se prende com a sucessão de regimes legais: As normas “ (…) têm sempre um alcance limitado – limitado intencionalmente (pelo critério que prescrevem) e objectivamente (pelo objecto que prevêem) –, pois não são mais do que soluções generalizadas de determinados e circunscritos problemas jurídicos”[7], pelo que só através da dogmática jurídica, entendida esta como pensamento jurídico com uma intenção de elaboração jurídico-sistemática do direito positivo e com uma amplitude explicitante, integrante e construtiva é possível encontrar as soluções jurídicas solicitadas a cada momento e em cada intervenção do direito[8]. Perspectiva que, no caso vertente, se satisfaz com uma interpretação mais abrangente e objectiva do que a que resulta da decisão recorrida. Na verdade, à data da prolacção da acusação, esta respeitava as exigências legais, contendo todos os elementos tipificadores do crime. A introdução do requisito negativo previsto no citado art.º 11.º, n.º 3, implicou a descriminalização apenas da emissão de cheques sem provisão com data ulterior à da entrega ao tomador ou entregues sem data. Este elemento, se bem que nas acusações a proferir após a entrada em vigor do novo regime, tenha que constar obrigatoriamente da acusação, por força do disposto no art.º 283.º, n.º 3, b), do CPP, relativamente às acusações anteriormente deduzidas, que eram válidas (e que não se tornaram nulas - a nulidade é sempre um vício originário), pode e deve ser averiguado em julgamento, com observância do disposto no art.º 358.º, n.º 1, do CPP, não sendo lícito ao juiz, com fundamento na falta desse elemento na acusação, declarar extinto o procedimento criminal antes da fase de julgamento.

(…).”

Por seu turno, num outro[9], consignou-se:

“ (…) Tem por isso toda a razão o Ministério Público recorrente quando sustenta que, nesta altura, uma decisão conducente à descriminalização da conduta só seria legítima e correcta se resultasse directamente do texto da acusação.

A acusação pública foi recebida nos seus precisos termos e, como se disse, dela não se retira que o cheque é de garantia, que tenha sido emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador, pelo que a questão da descriminalização só deverá ser decidida em audiência de julgamento. De outro modo, sairia sempre ofendido o princípio da acusação.

(…).”

Também assim se pensou, escrevendo-se:

“Se a acusação por crime de emissão de cheque sem provisão foi recebida sem qualquer referência à data da entrega do cheque ao tomador, desconhecendo-se se coincide ou não com a data da emissão, só em julgamento se poderá investigar esse facto, sendo irrelevante que conste do inquérito que a data da entrega do cheque ao tomador é anterior à sua data de emissão para o fim de o juiz decidir que a conduta se encontra despenalizada.”[10]

“Não é de rejeitar por manifestamente infundada a acusação deduzida anteriormente ao Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, por crime de emissão de cheque sem provisão, da qual consta que o cheque foi entregue com data de 30 de Agosto de 1996, se não se puder concluir, com certeza, que o cheque foi entregue antes da data constante do mesmo, devendo em sede de julgamento apurar-se a data dessa entrega.”[11]

“Constando da acusação por crime de emissão de cheque sem provisão que o arguido preencheu, assinou e entregou o cheque com data de (…), acusação que foi recebida, e tendo sido posteriormente descriminalizados os cheques post datados, só em sede de julgamento se deverá apurar a data da entrega do cheque ao tomador para concluir se se trata ou não de cheque post datado.”[12]

“Não constando da acusação ser o cheque post datado, só em julgamento se poderá aferir tal facto, não bastando, nessa fase processual (depois da acusação, mas antes do julgamento), a simples declaração do ofendido naquele sentido, para que seja pelo M.mo Juiz julgador extinto o respectivo procedimento criminal.”[13]

Da acusação não consta, expressamente, nem tinha de constar face ao regime então aplicável, que o arguido entregou o cheque na data nele aposta, mas igualmente não consta que o entregou em data anterior. Seja, podia ter sido entregue ao tomador na data que dele consta.

Aceitando-se distinta conclusão, pensamos ter o M.mo Juiz recorrido antecipado um juízo inexorável, concebível apenas e só depois de averiguação efectiva sobre o facto que o pode eventualmente suportar.

Os termos em que se mostra redigida a acusação, se complementada com a queixa inicialmente apresentada, em contrário, faz, por ora, prevalecer o entendimento de que não estamos perante um cheque post datado, pois ao menos daquela resulta ter sido emitido e entregue no dia e com data de 8 de Junho de 1996 (isto sem olvidarmos o desvalor ou inocuidade que aquela poderá até vir a assumir em audiência).

Tese sufragada, adiantamos por fim, quer por Germano Marques da Silva[14], na qual escreve: “Recebida a acusação sem qualquer referência ao elemento negativo, o tribunal deve indagar, na audiência de julgamento, da verificação desse elemento, pois ele é essencial para a decisão sobre a existência ou não de crime. Se não o fizer verificar-se-á insuficiência da matéria de facto para a decisão.

Entendo que, a partir do momento em que a acusação foi recebida, ter-se-á de proceder a julgamento e só na sentença o juiz pode decidir da existência ou não de crime. A questão tem natureza substancial, respeita à existência ou não de um elemento essencial do crime, e, por isso, após o recebimento da acusação, só após a audiência de discussão e julgamento pode ser decidida.”

Quer, ainda, por António Augusto da Tolda Pinto[15], sustentando mesmo este autor, inclusivamente, que será legalmente inadmissível recorrer aos actos de inquérito ou instrução para se decidir, sem mais, pela descriminalização.


*

IV – Decisão.

São tudo termos pelos quais se concede provimento ao recurso interposto, e, consequentemente, se revoga o despacho recorrido, para que, inexistindo qualquer circunstância que realmente impeça o conhecimento do mérito, se proceda em conformidade.

Sem custas.

Notifique.


*

Coimbra, 25 de Novembro de 2009



[1] “O arguido assinou, preencheu e entregou à sociedade M…., o cheque n.º … no montante de 45.000$00, datado de 8/06/96, sacado sobre o Banco …, Agência de Figueira da Foz.
Destinava-se tal cheque ao pagamento de um aparelho videogravador que o arguido adquiriu àquela sociedade e que lhe foi entregue.
(…).”
[2] Artigo 412.º, n.º 1, do CPP, e Acórdão n.º 7/95 do STJ, em interpretação obrigatória.
[3] Germano Marques da Silva, “O Novo Regime do Cheque sem Provisão”, in “O Novo Regime do Cheque sem Provisão”, edição do Instituto Bancário, página 67.
[4] Acórdão da Relação de Guimarães, de 18.04.05, sendo Relator o Ex.mo Desembargador Miguez Garcia, acessível in www.dgsi.pt/jtrg.
[5] Ac. da Relação do Porto, proferido em 10.10.07, acessível in www.dgsi.pt/jtrp.
[6] Frederico Isasca, in “Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, páginas 108/9.
[7] Transcrito de Castanheira Neves, in “Curso de Introdução ao Estudo do Direito, policopiadas, Coimbra, 1971/72, págs. 343/344.
[8] Neste sentido a obra atrás citada, pág. 334.
[9] Da RG, subscrito pelo Ex.mo Desembargador Miguez Garcia, e supra indicado.
[10] Acórdão da RP, de 28.02.01, proferido no processo n.º 0041466.
[11] Acórdão do mesmo Tribunal, proferido em 21.10.98, no processo n.º 9810664.
[12] Ainda Acórdão deste Tribunal, elaborado em 15.12.99, in processo n.º 9910943.
[13] Acórdão desse Tribunal, de 29.11.00, prolatado no processo n.º 0040600.
[14] Ob. cit., pág. 132.
[15] Cheques Sem provisão, págs. 359/360.