Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3501/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. BELMIRO ANDRADE
Descritores: INSTITUTO DO CASO JULGADO
Data do Acordão: 01/14/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIME
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ART.º 29.º DO CPP
Sumário:

I - Ainda que o CPP não regule o instituto do caso julgado, resulta desde logo do princípio ne bis in idem consagrado no ar. 29º da C.R.P..
II - O caso julgado pressupõe a identidade do objecto do processo, tendo por referência os poderes de cognição do tribunal e os factos que constituem “o mesmo crime”, na acepção jurídico-penal.
III - No crime continuado o efeito consuntivo do caso julgado abrange todos os factos que, ainda que não constituam total sobreposição, hão-se considerar-se englobados no “recorte de vida” anteriormente julgado, enquanto unidade de sentido.
Decisão Texto Integral:

Recurso n.º 3501/03-5 /// Tribunal Judicial de A – 1º Juízo – Despacho de não pronúncia (Rel. n.º34)


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA


1. No presentes autos, o digno magistrado do Ministério Público deduziu a acusação de fls. 1716 a 1724 contra:
- B;
- C; E
- D, melhor identificados nos autos, imputando-lhes a prática de:
- um crime continuado de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos art.s 24°, n.ºs 1 e 2 e 5º do RJIFNA ou pelo art. 105º do DL 15/2001 de 05.07, consoante o regime em concreto mais favorável.

Requerida a abertura da instrução, a Mª Juíza proferiu despacho, no qual, considerando que os arguidos já haviam sido acusados do mesmo crime e, após instrução determinado o arquivamento dos autos, por despacho de não pronuncia transitado em julgado, no processo n.º 141/96.7IDAVR do mesmo Juízo, decidiu: “Por verificação da excepção de caso julgado, julgo inadmissível o procedimento criminal a que respeitam os presentes autos e, consequentemente, determino o seu arquivamento”.


2. É desse despacho de não pronúncia que vem interposto o presente recurso, pelo digno magistrado do Ministério Público, que formula, a final, as seguintes CONCLUSÕES:
- Os 3 arguidos nestes autos vêm acusados da prática de crime continuado de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo art. 24º nos 1 e 2 e 5º do RJIFNA e art. 30º do C. Penal.
- A actividade de facto que está descrita na acusação proferida nestes autos nunca foi objecto de apreciação nem decisão no âmbito de qualquer outro processo de natureza penal.
- A circunstância de a factualidade destes autos poder estar em continuação criminosa com outros factos praticados pelos arguidos, factos estes já apreciados no âmbito de outro processo, não impede o procedimento criminal, isto porque sendo o delito continuado constituído por várias infracções parcelares a decisão que incidir sobre parte delas não produz efeito de caso julgado sobre as demais e não obsta ao procedimento das que forem descobertas depois.
- A decisão recorrida violou o disposto nos art.s 29º, n° 5 da C.R.P. e 30º n° 2 do C. Penal.


3. Respondeu o arguido D, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, louvando-se essencialmente na argumentação ali aduzida. Mais alega que: o primeiro despacho de não pronúncia teve por fundamento que o arguido D não tinha intervenção na gestão financeira da sociedade; e tal conhecimento genérico não basta manifestamente para afirmar o seu dolo; também relativamente aos demais arguidos não resultam dos autos elementos bastantes para poder afirmar que os mesmos intencionaram as mencionadas relações de confiança e apropriação; pelo contrário há elementos bastantes para concluir que a utilização das quantias retidas para entrega ao Fisco foi na expectativa de os impostos seriam pagos logo que fossem resolvidas as dificuldades financeiras ... com efeito propuseram ao Fisco diversas formas de pagamento ... em 1996 ... em 1998 a já referida adesão ao plano Mateus ... em 1999 a proposta de procedimento de conciliação que integrava proposta de dação em pagamento ... houve efectiva entrega de avultadas quantias. Não há assim indícios suficientes da prática pelos mesmos da prática do crime imputado, não se prefigurando que, submetidos a julgamento, lhes venha a ser aplicada uma pena.


4. Neste Tribunal o Ex.mo Procurador- Geral Adjunto emitiu PARECER no sentido de que, sem embargo de entender que o despacho recorrido só deveria ter sido proferido após o debate instrutório, não sendo equiparável à falta de instrução, deve ser mantido o despacho da M. ma Juiz de Instrução que, dando por verificada a excepção de caso julgado, julgou inadmissível o procedimento criminal e ordenou o arquivamento dos autos. Se a primeira decisão foi absolutória, por certo que a segunda não poderá ser condenatória.


5. Corridos os vistos legais, na falta de questões prévias, cumpre conhecer e decidir.

5.1. Se bem que o despacho de não pronúncia só deva ter lugar depois do debate instrutório, não é menos certo que, no caso, a omissão do debate não afectou a posição dos sujeitos processuais, uma vez que a questão apreciada e julgada procedente tinha sido objecto do requerimento de abertura de instrução. Pelo que não obsta ao conhecimento do mérito do despacho em si.

5.2. O objecto do recurso consiste em apurar se a decisão instrutória que pôs termo ao anterior processo que correu termos contra os ora arguidos constitui caso julgado que obste ao recebimento da acusação deduzida nos presentes autos.
No anterior processo, que em fase de instrução teve o n.º 150/99 do mesmo 1° Juízo Criminal do Tribunal de A, foi também deduzida acusação pelo Ministério Público contra os ora arguidos e ainda contra F, de que aqueles eram administradores, imputando-lhes a prática de um crime continuado de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos art.s 24°, n.ºs 1 e 2, do RJIFNA (cfr. certidão junta aos presentes autos com o requerimento para abertura de instrução pelos arguidos, a fls. 1802 a 1812).
Finda a instrução foi determinado o arquivamento dos autos (cfr. certidão de fls. 1833 a 1841) com os seguintes fundamentos: – relativamente aos ora arguidos, por se ter entendido que não se mostrava indiciado que tivessem actuado (ao não procederem à entrega dos valores dos impostos liquidados) com o dolo pressuposto no tipo legal de crime por que haviam sido acusados; e ainda - relativamente à sociedade de que os arguido eram administradores, devedora dos impostos em causa, por extinção do procedimento criminal por declaração de falência.
E tal decisão transitou em julgado, como se alcança da certidão junta de fls. 1890 a 1895.


5.3. Para apurar se existe caso julgado importa ter presentes os factos constitutivos dos crimes imputados em concreto aos arguidos em ambos os processos.
Ora, nos presentes autos estão em causa, nos termos da acusação, OS SEGUINTES FACTOS:
«««««««« Os arguidos, enquanto gerentes, membros do conselho de administração e consequentemente representantes legais da sociedade F, liquidaram IVA relativo a venda de produtos e prestações de serviços no valor total de 120.471.600$00 nos meses de:
- Dezembro de 1994;
- Agosto de 1995;
- Junho de 1996 a Dezembro de 1996,'
- Março de 1997 a Novembro de 1997,'
- Março de 1998 a Dezembro de 1998 e
- Janeiro de 1999 a Dezembro de 1999.
Retiveram também das remunerações de trabalhadores e outras prestações sujeitas a IRS valores devidos para pagamento deste imposto, no valor total de 41.593.944$00, nos meses de:
- Agosto de 1996 a Outubro de 1997 e
- Junho de 1998 a Dezembro de 1999.
Descontaram ainda para pagamento de IS sobre os recibos de vencimento, no valor total de 1.182.402$00, nos meses de:
- Agosto de 1996 a Outubro de 1997 e
- Julho de 1998 a Setembro de 1998.
A sociedade recebeu os referidos valores de impostos liquidado e retidos, todavia os arguidos não o entregaram ao Estado nos prazos devidos, entregando apenas em 29 de Maio de 1998 os valores referentes a 1996 e 1997 relativos a IV A e IRS.
Os arguidos agiram na execução de um plano inicial, que sempre foram cumprindo ao longo do tempo, sempre com a mesma intenção de enriquecimento ilícito e em prejuízo do Estado, fazendo com que as quantias relativas às referidas prestações tributárias fosse despendida em proveito próprio da sociedade. »»»»»»»»

5.4. Por sua vez no processo anterior, os FACTOS cuja prática era imputada aos arguidos, na acusação do Ministério Público ERAM, em síntese, OS SEGUINTES:
«««««« Os arguidos, enquanto gestores e membros do conselho de administração e consequentemente representantes legais da sociedade F, liquidaram 1VA relativo a venda de produtos e prestações de serviços no valor total de 13.867.471$00 nos meses de:
- Outubro e Novembro de 1994 e
- Janeiro e Fevereiro de 1995.
Retiveram também das remunerações de trabalhadores e outras prestações sujeitas a 1RS valores devidos para pagamento deste imposto, no valor total de 26.088.110$00, nos meses de:
- Outubro de 1994 a Junho de 1996.
Descontaram ainda para pagamento de IRS sobre os recibos de vencimento, no valor total de 2.092.410$00, nos meses de:
- Outubro de 1994 a Junho de 1996.
A sociedade recebeu os referidos valores de impostos liquidado e retidos, todavia os arguidos não o entregaram ao Estado nos prazos devidos.
Os arguidos B, C e D decidiram que a sociedade não cumpriria a obrigação de entrega ao Fisco dos montantes resultantes da liquidação efectuada em sede de IVA e descontados e retidos relativos a 1RS e Imposto de Selo.
(...)
A falta de entrega ao Fisco dos montantes referidos arrastou-se ao longo do tempo, integrando-se na forma de actuação usual da sociedade, que há muito, deixara de cumprir as suas obrigações com pontualidade»»»»»».


6. A questão a decidir, como se referiu, consiste no apuramento do chamado “efeito consuntivo” do caso julgado.
6.1. A Primeira constatação a fazer em termos do ordenamento vigente é a falta de regulamentação sistemática e específica do caso julgado em processo penal, constituindo os arts. 84º e 467º do CPP referências insuficientes.
Nem o disposto no art. 358º quanto à alteração dos factos em audiência resolve a questão, dado que não pode definir-se previamente quais os factos que podem resultar da discussão da causa, a qual é limitada previamente pela acusação.
Tão-pouco o mecanismo do art. 471º/472º do mesmo diploma que obriga à realização de audiência para efectivação de cúmulo jurídico, uma vez que está limitado ao conhecimento superveniente do concurso de crimes.
Esta omissão de regulamentação terá sido uma das facetas em que o novo CPP poderia, porventura, ter aproveitado melhor a experiência acumulada no âmbito da vigência do CPP de 1929 que nos seus art.s 148º, 149º, 153º e 446º estabelecia critérios definidores do âmbito deste instituto, para além de nos artigos 447º/448º delimitar os poderes de cognição do juiz de forma a que os efeitos do caso julgado se articulavam com esses poderes.
Dada a especificidade da delimitação do objecto do processo penal tendo por referência designadamente os seus efeitos nos direito de defesa do arguido, a aludida falta de regulamentação expressa não pode ser colmatada com recurso, nos termos do art. 4º do CPP, às disposições sobre este tema do CPC (que, no art. 498º, n.º1 define o caso julgado em função da identidade da acção tendo como pressuposto a identidade de partes, pedido e causa de pedir) – v. conclusões do Ac. STJ para fixação de jurisprudência n.º2/95, de 16.05, publicado no DR IS-A de 12.06.1995; Ac STJ de 18.12.1997, CJ/STJ, 1997, t. 3, 259; Ac. STJ de 18.06.1998, CJ/STJ, 1998, t. 3, 167.
Mas a falta de norma expressa sobre o caso julgado, não implica que o legislador não tenha querido consagrá-lo, tanto mais que se trata de um instituto fundamental do direito de defesa, como ainda da paz social, que tem sido reconhecido uniformemente pela doutrina e pela jurisprudência – cfr. FREDERICO ISASCA, in Alteração Substancial dos Factos e Sua Relevância em Processo Penal, p. 227.
Aliás trata-se de instituto que o direito português, na sequência da tradição romana, tem consagrado ininterruptamente desde as Ordenações Afonsinas que nesta parte reproduzem uma lei de D. Dinis – cfr. EDUARDO CORREIA, Unidade e Pluralidade de Infracções / Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Almedina, Colecção teses, 1983, p. 381.
E era o que estabelecia o C P Penal de 1929 nos seus art.s 128º e segs., em particular no artigo 149º, que estabelecia: "Quando por acórdão, sentença ou despacho com trânsito em julgado, se tenha decidido que um arguido não praticou certos factos, que por eles não é responsável ou que a respectiva acção penal se extinguiu, não poderá contra ele propor-se nova acção penal por infracção constituída, no todo ou em parte, por esses factos, ainda que se lhe atribua comparticipação de diversa natureza”.
Apesar do o CPP vigente não conter norma expressa sobre o caso julgado, resulta indirectamente consagrado por via de regulamentação em sede de admissibilidade de recursos e de execução das decisões penais, designadamente da conjugação dos arts. 396º, n.º4; 399º; 400º; 411º; 427º; 432º; 438º; 447º, n.º1; 449º, n.º1; 467º; 487º: 492; 498º, n.º3; etc. – cfr. FREDERICO ISASCA, cit., p. 227.

6.2. Um correcto entendimento deste instituto passa desde logo pelo plano Constitucional, atento não só a natureza “regulamentar” do seu texto em matéria de direitos fundamentais, como o princípio da interpretação da lei ordinária em conformidade com a Lei Suprema.
Postula na verdade o artigo 29º, n.º 5 da Constituição da República que "Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime”.
Trata-se de imperativo constitucional ao qual é devida imediata obediência por força do disposto no art. 18°, n.º l da Constituição da República Portuguesa.
Referindo-se a Constituição da República apenas a “julgamento”, poderia considerar-se que a questão do caso julgado se coloca apenas relativamente a decisões proferidas nessa fase e não também relativamente às proferidas em fases processuais que não sejam a final. Porém impõem-se a sua aplicação não só à sentença, como a outras decisões finais equiparadas, designadamente o despacho de não pronúncia.
O princípio ne bis in idem consagrado no art. 29°, n.º5, da Constituição da República, “embora pensado e estruturado em razão da segurança e paz jurídica”, “assume também uma garantia fundamental do cidadão que se traduz na certeza , que se lhe assegura, de não poder voltar a ser incomodado pela prática do mesmo facto” – cfr. Frederico Isasca, cit. p. 218 e 226.
A dificuldade está porém em determinar, quando se diz que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, em determinar o que pode entender-se pela expressão "mesmo crime”.
Não pode desde logo ser considerada no seu estrito sentido técnico-jurídico, mas em função do que pode ser definido como objecto do processo e dos poderes de cognição do tribunal.
Na verdade, como evidenciou Eduardo Correia, no estudo mais laborado da doutrina sobre o tema Unidade e Pluralidade de Infracções já referido, p. 386 “o efeito de caso está em íntima correlação com os poderes de cognição do juiz”.
Em termos de qualificação jurídica, no caso em apreço não há dúvida de que o ilícito criminal imputado aos arguido é, em ambos os processos, o de abuso de confiança fiscal.
Importa porém apreciar se pode considerar-se que se trata do “mesmo crime”, tendo por referência os factos imputados em ambos os processos aos arguidos.


6.3. Para o que importa determinar qual a identidade do facto criminoso pressuposto do efeito de consunção do exercício da acção penal ou do caso julgado.
Com efeito só se compreende que o tribunal não possa voltar a reapreciar aquilo que apreciou, ou ainda que não tenha apreciado, podia e devia tê-lo feito.
Pode dizer-se que definindo a acusação o objecto do processo e os poderes de cognição do juiz – a vinculação temática do tribunal – só os factos que constam dessa acusação estão abrangidos pelo referido efeito consuntivo de caso julgado, não podendo mais constituir objecto de futuro processo.
No entanto este entendimento seria redutor, tendo desde logo em atenção que o conceito de acção, em processo penal, não é um conceito naturalístico, mas sim um conceito normativo, ou seja da “consagração, nos mais latos termos da teoria normativa da identidade do objecto processual” – cfr. Eduardo Correia, Concurso, cit., p. 407.
Como refere Frederico Isasca, ob. cit., p. 220/221, citando GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA: «crime significa, aqui, um comportamento de um agente espácio-temporalmente delimitado e que foi objecto de uma decisão judicial, melhor, de uma sentença ou decisão que se lhe equipare» ... «a expressão “crime” não pode ser tomada ao pé da letra, mas antes entendida como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar. O que o nº 5 do Art. 29º da Constituição da República Portuguesa proíbe é, no fundo, que um mesmo concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal».
Fazendo o levantamento dos entendimentos possíveis no que toca à definição do objecto do processo, tendo por referência os ensinamentos de Eduarado Correia e de Castanheira Neves, Figueiredo Dias e a evolução da doutrina, conclui Frederico Isasca, cit. p. 240: “O objecto do processo penal será, assim, o acontecimento histórico, o assunto ou pedaço de vida vertido na acusação e imputado, como crime, a um determinado sujeito e que durante a tramitação processual se pretende reconstituir o mais fielmente possível”.
Ou como refere o mesmo autor (ob. cit., p. 229): "Nestes termos, o que transita em julgado é o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade de sentido, se submeteu à apreciação de um tribunal. Isto significa que todos os factos praticados pelo arguido até à decisão final que directamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam a aludida unidade de sentido, ainda que efectivamente não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, não podem ser posteriormente apreciados”.
Aliás, como refere EDUARDO CORREIA, Unidade, cit. pág. 337 “Que a actividade do agente se desdobre numa série de actos de vontade não é por si só suficiente para fragmentar o todo assim resultante da sua referência ao mesmo bem jurídico. Os limites da individualidade de uma conduta, ainda que descontínua, que preenche o mesmo tipo legal de delito só podem efectivamente encontrar-se onde um novo juízo de censura, e de culpa, onde, pois, uma diversa resolução de vontade, se possa afirmar. Até lá, ou seja, verificado que entre as actividades do agente existe uma conexão no tempo tal que, de harmonia com a experiência comum e as leis psicológicas conhecidas, se deva presumir que tê-las ele executado a todas sem renovar o respectivo processo de motivação, estamos em presença de uma unidade jurídica, de uma só infracção”
Ou como mais incisivamente refere o mesmo autor, in Lições de Direito Criminal, II vol., p. 202 “É pelo número de resoluções que se afere da existência de diversos crimes, quando diversas condutas violam o mesmo tipo de crime”.

6.4. Ora no caso que nos ocupa, em ambos os processos, o Ministério Público qualificou os diversos factos descritos na acusação como consubstanciando a prática de um só crime continuado, nos termos do Art. 30°, n.º2 do Cód. Penal.
Todavia, neste 2° processo o Ministério Público alega (cfr. supra) que os arguidos "agiram na execução de um plano inicial, que sempre foram cumprindo ao longo do tempo, sempre com a mesma intenção de enriquecimento ilícito e em prejuízo dá Estado".
E no 1 ° processo - alegou (cfr. também supra) que os arguidos "decidiram que a sociedade não cumpriria a obrigação de entrega ao Fisco dos montantes resultantes da liquidação efectuada em sede de IVA e descontados e retidos relativos a IRS e IS.
Pode assim entender-se, de acordo com a descrição dos factos em ambas as acusações que subjacente à prática dos sucessivos actos descritos esteve sempre a presidir uma mesma decisão inicial dos arguidos e que as sucessivas faltas de entrega dos impostos ocorreram no desenvolvimento ou na execução desse resolução inicial.
Com efeito, tal como se conclui na decisão recorrida, não se vislumbra relativamente aos factos descritos em ambas as acusações qualquer circunstância que permita considerar que "a actuação em execução de um plano inicial, que sempre foram cumprindo ao longo do tempo, sempre com a mesma intenção” referida na acusação deduzida nos presentes autos possa corresponder a decisão e intenção diversas das alegadas no 1 ° processo (os arguidos decidiram que a sociedade não cumpriria a obrigação de entrega ao Fisco dos montantes resultantes da liquidação efectuada...)
Assim, quer perante os factos alegados no primeiro processo, quer perante os alegados neste segundo, pode-se dizer que existe apenas um juízo de culpa, podendo concluir-se que - não obstante serem alegados vários actos objectivamente subsumíveis ao tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal – foram executados em obediência a um mesmo desígnio inicial. E portanto constituem um só crime, nos termos do Art. 30°, n.º1, do Cód. Penal (e não nos termos do n.º 2 da mesma disposição legal - crime continuado).
Pelo que nesta perspectiva não sofre dúvida que os novos factos ora trazidos a juízo se encontram dentro do “mesmo crime” e portanto precludida a prossecução dos autos para julgamento dos mesmos, pelo efeito de caso julgado.


6.5. A questão não fica porém resolvida caso se entenda que estamos perante uma situação de crime continuado, que supõe a existência de várias resoluções criminosas – mas que a o n.º2 do art. 30º qualifica desde logo como “um só crime continuado”.
A temática do crime continuado, situa-se numa das zonas mais inseguras e controversas da dogmática jurídico-penal, a da fronteira entre unidade e pluralidade de infracções – cfr. CAVALEIRO FERREIRA, Lições de Direito Penal, I. Vol., 1988, pag. 396 e segs.
Tais dificuldades avolumam-se ainda mais quando se pretende articular o referido conceito de crime continuado com o instituto do caso julgado.
Por outras palavras, a apreciação do efeito consuntivo do caso julgado reveste particular melindre quando estamos no âmbito da figura do crime continuado, para determinar quais os factos que integram a continuação criminosa que devem ser considerados como definitivamente julgados ou englobados no efeito de caso julgado de uma anterior decisão.
Ora “renovar o procedimento criminal pela simples adição de qualquer elemento novo aos factos de que o arguido foi absolvido num processo anterior ... traria consigo a negação de toda a paz jurídica e a permanente possibilidade de sucessivos vexames do arguido como novos processos e julgamentos” – Cfr. Eduardo Correia, Unidade, cit., p. 407.
“Esta extensão do princípio ne bis in idem a todas as actividades da continuação tem ainda noutro aspecto a maior importância. Com efeito, desaparecendo o perigo de processos futuros, pode o juiz deixar praticamente de apreciar cada uma dessas actividades em especial, bastando que considere aquelas capazes de dar uma ideia da gravidade do crime – princípio, meio e fim – e que permitam fixar-lhe a pena correspondente. Desta maneira consegue-se evitar na prática certos processos gigantescos e morosos, com os quais nada ganha a justiça. E este é justamente um outro benefício do conceito de crime continuado que, de um ponto de vista processual, aconselha e requer a sua elaboração e reconhecimento” – ob. cit., p. 275.
Na sequência desse entendimento conclui a este respeito, mais uma vez Eduardo Correia, Unidade, cit., p. 273 “Desta forma, apreciado qualquer facto do crime continuado, tudo fica de uma vez por todas resolvido; de uma vez por todas se liquida o problema da valoração juridico-criminal das várias actividades que constituem a continuação criminosa, já que contra a promoção de qualquer novo processo se pode sempre invocar a excepção de caso julgado”.
No sentido de que a eficácia consuntiva do caso julgado preclude em definitivo novo e ulterior conhecimento de qualquer das infracções pertinentes à relação de continuação v. F. Dias, Direito Processual Penal, 1974, p. 145 e em parecer conjunto com Costa Andrade, junto a vários processos de desvio de subsídio em que se verificavam várias actividades integradoras da continuação, o qual foi publicado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano IV, 3º vol..
Este entendimento, em tese geral, pode levantar dúvidas, designadamente no que toca a eventuais condutas englobadas na continuação criminosa desconhecidas das instâncias judiciárias no primeiro processo, que só mais tarde vêm a ser descobertas e porventura mais graves do que as apreciadas. Pode na verdade suceder que o arguido, por total desconhecimento pelas instâncias de investigação e julgamento, tenha sido julgado apenas por uma ínfima parte dos factos integradores da continuação criminosa e só à posteriori se venham a descobrir novos factos que ainda que englobados nessa continuação sejam mais graves do que aquelas que foram objecto de acusação e julgamento.
Mas tal objecção nem se verifica no caso em apreço. Com efeito toda a actividade dos arguidos, descrita em ambas as acusações, era ou podia ser do inteiro conhecimento das instâncias judiciárias - porque dirigida ao próprio Estado em cujas Repartições de Finanças eram entregues regularmente as declarações de IVA e IRC. E entre o bloco de factos da primeira acusação e o bloco de factos descrito na segunda nada de relevante aconteceu que não fosse a continuação e desenvolvimento “normal” e sucessiva de um estado de coisas que já vinha de trás – a não entrega dos impostos no vencimento sucessivo e periódico dessa obrigação “que se prolongou ao longo do tempo ... constituindo a forma de actuação usual da empresa, que há muito deixou de cumprir as suas obrigações”, como se diz na primeira acusação, ou “em observância do mesmo plano inicial que sempre foi cumprido ao longo do tempo”, como se diz na segunda.
Assim, como bem se conclui na decisão recorrida, não se vislumbra qual a circunstância susceptível de permitir a autonomização dos actos por que os arguidos foram acusados neste processo daqueles por que foram acusados no primeiro: não se verifica, designadamente, diversidade de alegados procedimentos ou interrupções temporais que possam considerar-se mais significativas do que as que, por exemplo, terão ocorrido entre Outubro de 1997 e Julho de 1998 (cfr. acusação deduzida nestes autos, onde se incluem factos já de 1994, 1995) ou entre Novembro de 1994 e Janeiro de 1995 (cfr. acusação deduzida no 1 ° processo). As actividades aqui imputadas aos arguidos como aquelas a que se referiu o 1º processo são seguidas no tempo e formam a aludida unidade de sentido com os apreciados no despacho de não pronúncia proferido no 1º processo.
Ainda que não haja inteira coincidência factual, constituem uma única unidade de sentido com os factos apreciados no primeiro processo, fazendo assim parte integrante do mesmo “recorte de vida” essencial que fez parte do objecto do processo e logo do âmbito cognitivo do tribunal.
Pelo que ainda entendendo-se que estamos perante um crime na forma continuada, se entende que também no caso se verifica o efeito consuntivo do caso julgado à actuação dos arguidos descrita na acusação deduzida no presentes autos, o qual obsta à a submissão dos arguidos a novo julgamento.

6.6. Ainda que não entendesse que a apreciação dos factos traduzidos na acusação deduzida nos presentes autos se encontra abrangida pelo efeito consuntivo do caso julgado operado pela primeira decisão, tendo em atenção que tais factos ocorreram, como resulta da prova indiciária recolhida, no quadro de dificuldades económicas e financeiras que haviam de levar á falência da sociedade que os arguidos representavam e que houve adesão ao “Plano Mateus” e várias entregas de dinheiro por conta, não se vê como poderia obviar-se, nos presentes autos, ao juízo de insuficiência de indícios a que chegou o primeiro despacho de não pronúncia, dada a similitude dos factos e a circunstância de os agora em causa serem posteriores, portanto quando a falência estava mais próxima.
E portanto o despacho teria de ser de não pronúncia também por falta de indícios suficientes dos elementos do tipo subjectivo de crime.

Pelo que, em conclusão, não merece censura o douto despacho recorrido.


7. DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos decide-se julgar improcedente o recurso.--------
Sem custas