Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1389/04.8TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: ACÇÃO DE DESPEJO
MORA
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 07/15/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 334.º; 813.º; 1039, N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Em acção de despejo fundada na falta de pagamento da renda, cabe ao arrendatário a prova do pagamento;
2. A falta de pagamento da renda só determina a resolução do arrendamento se o arrendatário estiver em mora;
3. Se a renda dever ser paga no domicílio do arrendatário, o que sucede sempre que não seja estabelecido contratualmente outro local, presume-se, em caso de falta de pagamento, a mora do senhorio.
4. A nulidade da sentença, ainda que não arguida, não obsta ao conhecimento de mérito pela Relação.
5. Incorre em abuso do direito o senhorio que cria condições para a resolução do contrato de arrendamento e, depois, pede a resolução do contrato com base nas condições que criou.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


I. Relatório:

A...., casada, residente ….. Viseu, intentou acção declarativa, com forma de processo sumário, contra B...., com sede na Rua Alexandre Herculano, n.º 83, Viseu, e contra Ramiro Duarte Carvalho, residente em …. Viseu, alegando, em resumo, que:
Por escritura de partilhas por óbito de C...., com quem foi casada, foi-lhe adjudicado o usufruto vitalício da uma casa de habitação com rés do chão e 1.º andar, sita ……, Viseu, inscrita na matriz urbana sob o artigo 1213.
Em data imprecisa de 1995, ao que supõe, o seu falecido marido, por contrato de arrendamento verbal, cedeu a utilização do rés-do-chão da dita casa à ré B...., mediante a renda mensal de 3.250$00, com a finalidade de aí ser instalado um posto de recepção de leite, renda que, no ano de 1996, era de 3.370$00.
O locado está licenciado, apenas, para habitação, o que acarreta a nulidade do contrato de arrendamento, o mesmo sucedendo, aliás, com a circunstância de o contrato não ter sido celebrado por escrito; por outro lado, desde o óbito do seu finado marido, ocorrido em 06.03.1997, que a arrendatária não paga a renda estabelecida; acresce que não é visto no local movimento algum de pessoas ou veículos relacionados com a ré B...., nem conhecida qualquer actividade desta conexionada com o comércio de leite. De resto, é o réu D....que abre e fecha as portas do local, que é visto neste e que aí se movimenta como se fosse o titular do contrato de arrendamento, desconhecendo a autora qualquer cessão onerosa ou gratuita da posição da ré B...., até porque lhe não foi comunicada a cedência do gozo e, consequentemente, não deu autorização à cedência a quem quer que seja. O réu Ramiro deixa, por vezes, detritos e sujidade na propriedade da autora e, numa atitude de afrontamento, permite que dejectos das vacas conspurquem a entrada da sua habitação; para além disso, passou, com habitualidade, a deslocar-se ao local a horas tardias da noite, onde faz barulhos que incomodam a autora e perturbam o descanso de quem reside na habitação; perante tal, pressionou-o para entregar livre e devoluto o espaço ocupado e deu conta à CM de Viseu e às entidades sanitárias e económicas das condições de funcionamento da actividade desenvolvida no referido rés-do-chão, até porque constatou que, apesar do seu ex-marido ter falecido em 1997, alguém, abusando do nome dele, tentou legalizar o espaço para tal actividade posteriormente ao óbito, vindo o Ministério da Agricultura a encerrar o local como posto de recepção de leite; não obstante, o réu Ramiro continua a deslocar-se ao local e a manter em funcionamento uma máquina que é fonte de barulhos e incómodos para a autora.
Um espaço idêntico ao ocupado é susceptível de proporcionar uma renda mensal de € 50,00, montante esse de que deve ser compensada pela ocupação que vem sendo feita desde, pelo menos, o início de 1997 até efectiva entrega.
Concluiu pelo pedido de declaração de nulidade do contrato de arrendamento ou, subsidiariamente, pelo da sua resolução, sempre com a correspectiva condenação dos réus na entrega do espaço, livre e devoluto de pessoas e bens, bem como pelo pedido de condenação solidária dos réus no pagamento de uma importância mensal de € 50,00, desde 1997 e até efectiva entrega do espaço.
Regularmente citados, os réus contestaram por excepção e por impugnação, tendo, ainda, a ré B.... deduzido pedido reconvencional.
Excepcionando, sustentaram a ilegitimidade do réu Ramiro e da autora, aquele por não ter subscrito o contrato de arrendamento e esta por estar desacompanhada dos demais herdeiros de C...., tendo acrescentado, ainda, que a exigência de licença de utilização só entrou em vigor um ano depois da celebração do contrato em causa.
Por impugnação, negaram alguns dos factos alegados pela autora e declararam ignorar, sem obrigação de conhecer, outros.
Especificadamente, declarou o réu Ramiro que deposita leite no arrendado, na qualidade de produtor de leite, como outros produtores já o fizeram, que não conspurca o local, que a autora cortou o fornecimento de água como forma de inviabilizar a utilização do locado e que não ocorreu o seu encerramento, mas, tão-só, a suspensão do levantamento do leite, por acto culposo daquela.
Disse, por sua vez, a ré B.... o seguinte: no arrendado está instalado um posto de recepção de leite, em virtude de contrato de arrendamento celebrado em 1 de Janeiro de 1991; as rendas mensais, sucessivamente actualizadas, sempre foram atempadamente pagas; é falso estar o local licenciado, apenas, para habitação; para instalação do posto de recepção de leite, foram feitos melhoramentos no locado, que descreve; depois da morte do marido da autora, por sugestão desta, foi acordado o pagamento semestral da renda, por forma a evitar transtornos do seu pagamento mensal, pelo que a alegada constituição em mora procede de culpa sua, uma vez que se recusou a receber a renda; a autora, unilateralmente, em 31 de Março de 2003, cortou o abastecimento de água, inutilizando o arrendado, contra o estipulado na cláusula oitava do contrato de arrendamento e apresentou uma queixa de salubridade que levou a Divisão de Intervenção Veterinária de Viseu a suspender o levantamento de leite até estar regularizado o abastecimento; a partir do corte da água, a autora recusou receber as rendas; mesmo depois da recusa da A. em receber as rendas, a ré continuou a proceder ao seu pagamento, mediante o respectivo depósito na CGD, para além de que efectuou o pagamento de todas as rendas em atraso nos termos e para os efeitos dos artigos 1041º e 1048º do Código Civil.
Reconvindo, mas, apenas, para o caso de não serem julgadas procedentes as excepções deduzidas e improcedente a acção, alegou a ré B.... que levou a cabo no arrendado as obras necessárias ao normal desempenho da sua actividade, que orçaram em Esc. 1.617.000$00, e que, por causa do corte do abastecimento de água abusivamente levado a cabo pela autora, que provocou a suspensão do depósito e recolha de leite no arrendado, se viu obrigada a proceder à recolha de leite noutro local, distante mais de 15Km daquele, desde 1 de Abril de 2003, calculando em € 12.750,00 os prejuízos advenientes das deslocações diárias e das distâncias percorridas.
Terminaram pela procedência das excepções deduzidas e pela improcedência da acção.
Para o caso de assim se não entender, pugnou a ré B.... pela procedência da reconvenção, com a consequente condenação da autora no pagamento da importância de € 20.815,56, acrescida de juros comerciais moratórios vencidos e vincendos à taxa legal.
A autora apresentou articulado de resposta, onde rebateu as excepções deduzidas e impugnou os factos alegados em sede de reconvenção, cuja improcedência peticionou.
Admitido o pedido reconvencional e ordenada a conversão da forma processual de sumária para ordinária, por via do novo valor da acção, foi convocada audiência preliminar, que não surtiu efeitos práticos, mormente em termos de conciliação.
Na data designada para a audiência, foi apresentado pela ré B.... articulado superveniente, onde alegou que, depois de notificada para a diligência, a autora vedou o acesso ao locado, fechando à chave o respectivo portão, sendo que no interior daquele funciona em permanência equipamento de refrigeração, propriedade da ré, o qual tem de ser vigiado permanentemente e carece de manutenção, sob pena de irreparáveis danos para o mesmo, cujo custo, em novo, foi de € 2.500,00, acrescentando, ainda, que a suspensão da recolha de leite apenas aconteceu por acto culposo da autora, por ter efectuado unilateralmente o corte de água, tanto mais que a licença sanitária tem validade até 31 de Dezembro de 2004.
Retorquiu a autora, dizendo que não realizou qualquer acto que impedisse o acessos ao locado e que o equipamento de refrigeração só teria de funcionar se houvesse leite, o que não acontece, pelo que o funcionamento do equipamento se destina, unicamente, a provocar barulhos que se repercutem na sua habitação dia e noite e perturbam o seu normal descanso; quanto ao corte da água, contrapôs que o mesmo já havia sido alegado, não havendo, por conseguinte, nesta parte, superveniência que justifique a repetição, tudo sem prejuízo de não terem sido observados os prazos do artigo 506º, n.º 3, do C.P.C.
Subsequentemente, foi elaborado despacho de saneamento e selecção da matéria de facto, onde foram apreciadas as excepções de ilegitimidade activa e passiva suscitadas – improcedendo a primeira e procedendo a segunda, com a consequente absolvição do réu Ramiro da instância –, declaradas, no mais, a validade e a regularidade da lide e fixadas, sem reclamação, a matéria de facto assente e a que constitui a base instrutória.
No início da audiência de julgamento, foi apresentado outro articulado superveniente, agora por parte da autora, que alegou estar o local encerrado há mais de um ano e requereu a resolução do contrato de arrendamento com base nessa circunstância.
Depois da resposta da ré, que afirmou dever-se o encerramento a acto da autora, ou seja, ao corte do abastecimento de água, foi o articulado admitido e a selecção da matéria de facto aditada dos factos considerados relevantes para a decisão do pleito.
Realizado o julgamento e dadas, sem reparo, as respostas aos pontos da base instrutória, foi proferida sentença, que julgou a acção improcedente, absolveu a ré B.... dos pedidos contra ela deduzidos e declarou prejudicada a apreciação do pedido reconvencional.
Inconformada, a autora interpôs recurso, alegou e formulou as seguintes conclusões:
1) A ré só procedeu ao depósito das rendas relativas ao período de Janeiro de 2003 a Novembro de 2007;
2) Mas não provou, como lhe competia, o pagamento das rendas vencidas desde a morte do ex-marido da autora, C...., que ocorreu em 6 de Março de 1997, até Janeiro de 2003;
3) Por outro lado, deixou de pagar as rendas devidas depois de Novembro de 2007;
4) A falta de pagamento da renda é causa de resolução do contrato e de condenação nos pagamentos em falta até efectiva entrega do espaço locado;
5) Da matéria provada resulta que o locado se destina a posto de recepção de leite, que a licença sanitária caducou em 31.12.2003 e que o espaço se encontra encerrado e sem qualquer actividade;
6) Tal factualidade é causa de resolução do contrato de arrendamento;
7) A sentença deve ser revogada, a acção julgada procedente e a ré condenada a entregar o arrendado, livre de pessoas e bens, e a pagar à autora as rendas em dívida.
A ré não contra-alegou.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
As questões a resolver, balizadas pelas conclusões da alegação da recorrente, são as de saber se se verificam as causas de resolução do contrato de arrendamento a que se referem as alíneas a) e h) do artigo 64.º do RAU.


III. Na sentença impugnada foi dada por assente a seguinte matéria de facto:

1. No dia 1 de Janeiro de 1991 foi celebrado, entre C.... e a aqui ré, um contrato de arrendamento, tendo por objecto a dependência nascente, r/c, sito em Casal, Torredeita, Viseu (documento de fls. 63).
2. O locado destinava-se a posto de recepção de leite.
3. No dia 17 de Março de 2000, no segundo cartório notarial de Viseu, foi declarado que no dia 6 de Março de mil novecentos e noventa e sete, faleceu na freguesia de Santo António dos Olivais, concelho de Coimbra, e natural da Freguesia de Torredeita, Concelho de Viseu, onde teve a sua última residência, no lugar de Casal, C.... (documento de fls. 20).
4. Mais foi declarado ser adjudicado à aqui autora o usufruto vitalício da casa de habitação, com rés do chão e andar, com área coberta de 224 metros quadrados e área descoberta de 1286 metros quadrados, sita ao Lameirinho, casal, limite e freguesia de Torredeita, Viseu, inscrita na matriz urbana sob o artigo 1213 (documento de fls. 20).
5. No dia 24 de Setembro de 2003, o Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas notificou a ré para suspender o levantamento de leite no Posto de Recepção licenciado em nome de C...., sito no lugar de Casal, freguesia de Torredeita, concelho de Viseu (documento de folhas 31).
6. No dia 3 de Junho de 2004, foi declarado que a ré fez o depósito condicional posterior com indemnização das rendas relativas aos meses de Janeiro a Junho de 2003, na Caixa Geral de Depósitos de Viseu, à ordem do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, para fazer cessar a mora e indemnizar pela mora (documento de folhas 81).
7. No dia 9 de Setembro de 2003, foi declarado que a ré fez o primeiro depósito definitivo das rendas relativas aos meses de Julho, Agosto e Setembro de 2003 na Caixa Geral de Depósitos de Viseu, à ordem do Tribunal Judicial de Viseu, para fazer cessar a mora por recusa infundada do recebimento de renda pelo senhorio (documento de fls. 76).
8. No dia 7 de Outubro de 2003, foi declarado que a ré fez o depósito posterior da renda relativa ao mês Outubro de 2003 na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, para fazer cessar a mora por recusa infundada do recebimento da renda pelo senhorio (documento de fls. 75)
9. No dia 7 de Novembro de 2003, foi declarado que a ré fez o depósito posterior da renda relativa ao mês de Novembro de 2003 na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do Tribunal Judicial da Comarca se Viseu, para fazer cessar a mora por recusa infundada de recebimento de renda pelo senhorio (documento de fls. 74).
10. No dia 5 de Dezembro de 2003, foi declarado que a ré fez o depósito posterior da renda relativa ao mês de Dezembro de 2003 na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do Tribunal Judicial da Comarca se Viseu, para fazer cessar a mora por recusa infundada de recebimento de renda pelo senhorio (documento de fls. 73).
11. No dia 6 de Janeiro de 2004, foi declarado que a ré fez o pelo depósito posterior da renda relativa ao mês de Janeiro de 2004 na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do Tribunal Judicial da comarca de Viseu, para fazer cessar a mora por recusa infundada de recebimento de renda senhorio (documento de fls. 72).
12. No dia 6 de Fevereiro de 2004, foi declarado que a ré fez o depósito posterior da renda relativa ao mês de Fevereiro de 2004 na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do Tribunal Judicial da comarca de Viseu, para fazer cessar a mora por recusa infundada de recebimento de renda pelo senhorio (documento de fls. 71).
13. No dia 5 de Março de 2004, foi declarado que a ré fez o depósito posterior da renda relativa ao mês de Março de 2004 na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do Tribunal Judicial da comarca de Viseu, para fazer cessar a mora por recusa infundada de recebimento de renda pelo senhorio (documento de fls. 70).
14. No dia 6 de Abril de 2004, foi declarado que a ré fez o depósito posterior da renda relativa ao mês de Abril de 2004 na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do Tribunal Judicial da comarca de Viseu (documento de fls. 69).
15. No dia 4 de Maio de 2004, foi declarado que a ré fez o depósito posterior da renda relativa ao mês de Maio de 2004 na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do Tribunal Judicial da comarca de Viseu, para fazer cessar a mora por recusa infundada de recebimento de renda pelo senhorio (documento de fls. 79).
16. No dia 3 de Junho de 2004, foi declarado que a ré fez o depósito posterior da renda relativa ao mês de Junho de 2004 na Caixa Geral de Depósitos, à ordem do Tribunal Judicial da comarca de Viseu, para fazer cessar a mora por recusa infundada de recebimento de renda pelo senhorio (documento de fls. 80).
17. A ré B.... requereu aos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento (SMAS) a ligação da água da rede pública ao espaço identificado em 1, não tendo os referidos Serviços aceitado proceder a tal ligação de água da rede pública ao referido local.
18. A licença sanitária do posto de recepção do leite caducou a 31 de Dezembro de 2003.
19. Actualmente, e já há mais de um ano, que o espaço identificado em 1 se encontra encerrado e sem qualquer movimento, não retirando a R. do mesmo qualquer proveito.
20. No local referido em 1 não existe movimento de pessoas que tenham uma relação de trabalho com a ré.
21. Não é visto no local qualquer veículo (ligeiro ou comercial) com qualquer referência, como dizeres publicitários, à ré.
22. Até ao encerramento do espaço identificado em 1, aludido em 19, era o Sr. D....que abria e fechava as portas do mesmo e que era visto no local.
23. Não foi comunicada à A. qualquer cedência do gozo do local.
24. A autora não autorizou qualquer cedência.
25. Um espaço idêntico ao aludido em 1 é susceptível de proporcionar uma renda mensal de montante não concretamente apurado.
26. A autora, de forma unilateral e desde data não concretamente apurada, mas antes do encerramento do espaço aludido em 1, referido em 19, cortou o abastecimento de água ao referido espaço, facto que inviabilizou a utilização do mesmo.
27. A autora, a partir de data não concretamente apurada, recusou-se a receber as rendas.
28. Foram revestidos a cimento as paredes, o tecto e chão do imóvel.
29. Foram colocadas portas metálicas de exterior.
30. Foi colocada instalação eléctrica.
31. Foi implantado um sifão e um ralo.
32. Foi feita a ligação da fossa à rede de esgotos.
33. Obras necessárias ao normal funcionamento do posto de leite.
34. Tais obras custaram 1. 617 000$00 (€ 8065,56).
35. Por causa do corte de abastecimento de água, a ré/reconvinte viu-se obrigada a proceder à recolha de leite num local que dista mais 15 quilómetros do local em apreço, desde o encerramento do espaço aludido em 1, referido em 19.
36. O que causou um prejuízo de montante não concretamente apurado relativo a deslocações e mão-de-obra.
37. Em data não concretamente apurada, mas posterior ao encerramento do espaço aludido em 1, referido em 19, a autora fechou à chave o portão de acesso ao referido espaço, impedindo o acesso ao mesmo.
38. A ré B.... efectuou à ordem deste Tribunal e com referência aos presentes autos um depósito condicional, no montante de € 151,25, com vista à cessação da mora e relativo à indemnização pela mora, depósito que se mostra junto a fls. 81.
39. A ré B.... efectuou os depósitos na Caixa Geral de Depósitos, a que se reportam os documentos juntos a fls. 192-206 e 273-298, à ordem do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, referentes às rendas dos meses de Julho de 2004 a Novembro de 2007, para fazer cessar a mora por recusa infundada de recebimento de renda pelo senhorio (documento de fls. 80).


III. O direito:

A. A resolução do contrato de arrendamento com fundamento na alínea a) do n.º 1 do artigo 64.º do RAU.

Arrendamento urbano é o contrato pelo qual uma das partes concede à outra o gozo temporário de um prédio urbano, no todo ou em parte, mediante retribuição (artigo 1.º do RAU, diploma de que serão as restantes normas legais a citar sem indicação de origem).
O preceito não passa, no fundo, da reprodução dos artigos 1022.º e 1023.º do Código Civil, onde, respectivamente, se define locação (contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição) e se distingue o arrendamento do aluguer (o arrendamento é a locação sobre imóvel e o aluguer a locação sobre móvel).
Da leitura de tais normativos, resulta claro que são três os elementos essenciais do contrato de arrendamento:
1) A obrigação de proporcionar o gozo de uma coisa imóvel;
2) Assumida por prazo determinado;
3) A obrigação de retribuição.
A obrigação de proporcionar o gozo cabe, naturalmente, ao locador e a obrigação de pagar a retribuição, designada renda, ao locatário (artigos 1031.º e 1038.º, alínea a), do Código Civil).
Trata-se, como se vê destas disposições, de um contrato sinalagmático ou bilateral; não só gera obrigações para ambas as partes, como essas obrigações se encontram unidas uma à outra por um vínculo de reciprocidade ou interdependência: à obrigação do locador de proporcionar o gozo do prédio corresponde a obrigação de o locatário pagar a renda (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, volume I, 7.ª edição, páginas 378/379).
O pagamento da renda, caso outra coisa não seja estipulada, deve ser efectuado no momento da celebração do contrato (a primeira) e as restantes no primeiro dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que diga respeito (artigo 20.º).
O local do pagamento é aquele que as partes ou os usos fixarem; na falta de convenção ou de usos, deve ser feito no domicílio do locatário à data do vencimento (2.ª parte do n.º 1 do artigo 1039.º do C. Civil); nesta hipótese, se a renda não tiver sido paga, presume-se (presunção “juris tantum”) que o locador não veio nem mandou receber a prestação no dia do vencimento (n.º 2 do mesmo artigo).
Com esta disposição, escreve Aragão Seia, foi posta de lado a presunção geral de culpa do devedor – n.º 1 do artigo 799.º do C. Civil –, passando a presumir-se a culpa do credor, quando este se não apresentar a receber a renda (Arrendamento Urbano, página 191).
Postas estas noções básicas, vejamos como foram desenhadas a acção e a oposição, decidida a questão e objectivado o recurso.
Posição da autora na petição inicial – o seu finado marido, C...., deu de arrendamento à ré B...., por contrato verbal celebrado em 1995, o rés do chão do prédio que identifica, mediante a renda mensal de 3.250$00, com a finalidade de aí ser instalado um posto de recepção de leite. Em 1996, a renda mensal era de 3.370$00. O locador faleceu em 6 de Março de 1997. Por escritura pública de partilhas outorgada em 17 de Março de 2000, foi-lhe adjudicado o usufruto vitalício da casa em que se insere o arrendado. A partir do óbito do mencionado Delfim, não lhe foi paga (a ela, autora) qualquer quantia a título de renda. A falta de pagamento da renda é fundamento de resolução do contrato, pelo que a ré deve ser condenada a entregar-lhe o locado livre de pessoas e bens.
Posição da ré – tomou de arrendamento o identificado rés do chão a C...., através de contrato escrito, celebrado em 1 de Janeiro de 1991. As rendas foram sempre pagas, seja ao primitivo locador, seja à autora, depois da morte daquele, e de forma atempada, tendo, aliás, sido actualizadas pelo senhorio, de acordo com a lei. A partir de 31 de Março de 2003, e na sequência do corte unilateral do abastecimento de água, a autora recusou receber as rendas, que passaram a ser depositadas na Caixa Geral de Depósitos. Concluiu pela improcedência do pedido de resolução.
Decisão – em sede de facto, consignou-se a seguinte matéria: em 1 de Janeiro de 1991, foi celebrado entre C.... e a ré um contrato de arrendamento, tendo por objecto a dependência nascente, rés do chão, sita em Casal, Torredeita, Viseu, nos termos do documento de folhas 63. O locado destinava-se a posto de recepção de leite. O locador faleceu a 6 de Março de 1997. A 17 do mesmo mês, foi adjudicado à autora o usufruto vitalício da casa onde se situa o arrendado. A partir de altura não determinada, a autora recusou receber as rendas. A ré efectuou o depósito das rendas respeitantes ao período compreendido entre Janeiro de 2003 e Novembro de 2007.
No que toca ao direito, escreveu-se: a autora não logrou provar, como lhe competia (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil), o fundamento da resolução. Da factualidade provada nada resulta que permita a conclusão de que a ré não tenha procedido ao pagamento das rendas até ter começado a fazer os depósitos, o primeiro dos quais em Janeiro de 2003 e que continuou a fazer até Novembro de 2007, para fazer cessar a mora por recusa de recebimento. Além disso, ficando provado que, a partir de data não apurada, a autora recusou receber as rendas, é manifesto que a ré, ao proceder aos depósitos, o fez ao abrigo do disposto no artigo 22.º do RAU, normativo que lhe permite efectuar os depósitos, por ocorrerem, como ocorrem, os pressupostos da consignação em depósito. Assim sendo, não pode proceder a resolução do arrendamento com base na falta de pagamento das rendas.
Posição da autora no recurso – a ré só procedeu ao depósito das rendas relativas ao período de Janeiro de 2003 a Novembro de 2007. Não provou, como lhe competia, o pagamento das rendas vencidas desde a morte de C...., ocorrida em 6 de Março de 1997, até Janeiro de 2003. Por outro lado, deixou de pagar as devidas depois de Novembro de 2007. A falta de pagamento da renda é causa de resolução do contrato e de condenação da ré nos pagamentos em falta até efectiva entrega do locado.
Que dizer?
Em primeiro lugar, que é certo ter sido celebrado entre C.... e a ré B...., ora apelada, um contrato de arrendamento para fins comerciais (posto de recepção de leite), tendo por objecto o rés do chão do prédio identificado pela autora, ora apelante, já que, da matéria de facto acima plasmada, resultam verificados os elementos constitutivos da locação já explicitados: a cedência do gozo de imóvel, o estabelecimento de um prazo temporário (um ano, como se vê do instrumento escrito da celebração, para o qual a sentença remeteu) e a obrigação de retribuição (24.000$00 por ano, a pagar em duodécimos, no primeiro dia útil do mês anterior a que respeitar, como emerge do mesmo documento).
Em segundo lugar, que nem a sentença nem a apelante terão interpretado da melhor maneira o direito aplicável.
O senhorio pode resolver o contrato se o arrendatário não pagar a renda no tempo e lugar próprios nem fizer depósito liberatório – alínea a) do n.º 1 do artigo 64.º.
Estão em causa, de acordo com a alegação da recorrente, dois períodos: um primeiro, que vai de Março de 1997 a 31 de Dezembro de 2003, e um segundo, posterior a Novembro de 2007.
No que se refere ao primeiro, decidiu-se na sentença que não podia proceder o pedido de resolução, por se não ter provado, cabendo a prova à autora, que a ré não tenha procedido ao pagamento das rendas.
Contrapõe a apelante que o senhorio tem de alegar a falta de pagamento, mas não a respectiva prova; ao locatário é que compete alegar e provar o pagamento se quiser eximir-se à decretação do despejo.
E, neste estrito aspecto, a razão está do seu lado, tendo em conta as regras do ónus da prova estabelecidas no artigo 342.º do C. Civil. O cumprimento da obrigação é facto extintivo do direito invocado, pelo que a respectiva prova cabe ao devedor (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, anotação ao mencionado artigo).
Ora, sendo o pagamento da renda obrigação do locatário, como decorre da alínea a) do artigo 1038.º do C. Civil, parece não haver a menor dúvida de que é a ele que compete provar o cumprimento (neste sentido, o acórdão da Relação de Lisboa de 29.06.1995, CJ, Ano XX, Tomo III, página 146).
Mostra-se correcto, por conseguinte, o entendimento da apelante e incorrecto o vertido na sentença.
E a verdade é que a apelada não conseguiu fazer a prova de ter pago ou ter oferecido o pagamento das rendas ao senhorio.
A questão é que a falta de pagamento não determina, sem mais, a resolução do arrendamento e subsequente despejo; é preciso, paralelamente, que o inquilino esteja em mora, isto é, que lhe seja imputável o retardamento da prestação (artigo 804.º, n.º 2, do Código Civil). Por princípio, não há sanção sem culpa.
E é isso, exactamente, que, no caso vertente, se não verifica, ou, pelo menos, se não prova, o que vem a dar no mesmo.
Desconhecendo-se o local em que a renda deveria ser paga, seja porque as partes o não alegaram, seja porque o contrato escrito celebrado é omisso nessa matéria, funciona a regra supletiva da segunda parte do n.º 1 do artigo 1039.º do C. Civil, como acima se disse, que fixa como lugar do pagamento o domicílio do locatário; nesta hipótese, não tendo sido feito o pagamento, presume-se (presunção não ilidida) que o locador não veio nem mandou receber (n.º 2 do mesmo normativo), o que se reconduz, afinal, à mora do credor (artigo 813.º do mesmo Código), com a consequente impossibilidade de este resolver o contrato com base na falta de pagamento (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., volume III, anotação ao artigo 1039.º).
De nada vale, portanto, a razão inicial da apelante, uma vez que a falta de pagamento das rendas não produz os efeitos que ela pretendia; já a sentença recorrida, partindo de uma concepção errada (relativamente ao ónus da prova), acabou por chegar, conquanto involuntariamente, à solução material correcta, na medida em que o pedido de despejo não pode, de facto, proceder com este fundamento.
Resta analisar o período posterior a Novembro de 2007; e, aqui, mais evidente é, ainda, se assim se pode dizer, a falta de razão da apelante, porque a Relação não se pode pronunciar, sequer, sobre a alegada falta de pagamento das rendas.
Isto, porque se trata de questão que não foi colocada ao tribunal que proferiu a decisão recorrida, logo, questão nova, que, como é jurisprudência pacífica do nosso mais alto Tribunal, é insusceptível de ser conhecida pelo tribunal de recurso (veja-se, por todos, o acórdão do STJ de 01.10.2002, CJ do Supremo, Ano X, Tomo III, página 65).
Se, de facto, a apelada não pagou as rendas vencidas depois de Novembro de 2007 – a única certeza que se tem é que não estão documentados nos autos depósitos posteriores àquela data –, tinha o senhorio à sua disposição o incidente do despejo imediato, a exercer nos termos consignados na lei, onde se inclui o cumprimento do contraditório (artigo 58.º).
É claro que poderá, ainda, recorrer à instauração de acção autónoma, seja para obter o despejo e a condenação no pagamento das rendas, seja, apenas, para esta última finalidade.
O que não pode é alcançar uma pretensão nunca colocada e em violação de princípios tão básicos como o dispositivo ou o contraditório (artigos 3.º e 264.º do C. Processo Civil).
O despejo com fundamento na falta de pagamento de rendas está totalmente fora de causa, havendo de improceder, assim, e nesta parte, o recurso.

B. A resolução do contrato de arrendamento com fundamento na alínea h) do n.º 1 do artigo 64.º

A posição da apelante, constante do articulado superveniente apresentado em audiência de julgamento, ocorrida em 26.09.2007, é a de que o Ministério da Agricultura ordenou a suspensão do levantamento do leite até à regularização do abastecimento de água, que a ré requereu aos SMAS de Viseu a ligação da rede pública de água ao locado, mas não obteve deferimento do pedido e que, por via disso, o espaço se mantém encerrado, sem qualquer proveito para a ré, há mais de um ano.
A posição da apelada, provinda já da contestação e reafirmada na resposta ao articulado superveniente, é a de que o encerramento se deveu a acto culposo da autora, que cortou, unilateralmente, a ligação da água à rede pública.
A sentença não se pronunciou sobre o referido fundamento de resolução do contrato de arrendamento, em clara violação do disposto na alínea d) do artigo 668.º do C. Processo Civil (omissão de pronúncia).
Nas alegações de recurso, a apelante limitou-se a afirmar que ficou provado que o espaço se encontra encerrado e sem qualquer movimento, que a ré não retira qualquer proveito do mesmo, que não existe no local movimento de pessoas que tenham uma relação de trabalho com a ré e que não são vistos no local veículos com qualquer referência à ré, como dizeres publicitários, e a concluir que tal matéria é causa de resolução do arrendamento, nos termos da alínea h) do artigo 64.º; acrescentou, ainda, que o facto de ter cortado o abastecimento de água não assume relevo algum, na medida em que lhe não cabia essa obrigação no âmbito do contrato.
Afigura-se indubitável que a apelante não atacou a questão da melhor maneira. Nula a sentença, por omissão de pronúncia, como se disse, deveria o recurso ter como fundamento primário a arguição da nulidade, a fim de que o tribunal “a quo” dela conhecesse e a suprisse, sendo caso disso, nos termos dos números 3 e 4 do artigo 668.º do C. Processo Civil, na redacção anterior à introduzida pelo Decreto-lei n.º 303/07, de 24 de Agosto.
Suprindo-a, que é como quem diz, apreciando e decidindo a questão, duas situações se poderiam verificar: ou julgava procedente o fundamento de despejo invocado, ou o julgava improcedente; na primeira hipótese, é evidente que esvaziava o recurso quanto ao problema de fundo; na segunda, o recurso prosseguiria para apreciação do seu mérito pelo tribunal superior.
Suposto, porém, que o tribunal recorrido, chamado a pronunciar-se, desatendia a arguição da nulidade (por entender, por exemplo, que ela se não verificava), caberia, então, ao tribunal superior declarar nula a decisão e proferir, em seu lugar, uma outra que conhecesse da questão omitida, de harmonia com o sistema de substituição, claramente imposto pelo artigo 715.º, n.º 1 do último diploma citado (sobre o tema, Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, páginas 120 e seguintes).
E se, como sucedeu, a nulidade não for arguida nas alegações de recurso?
É claro que o tribunal de recurso não pode anular a sentença, uma vez que as nulidades das alíneas b) a e) do n.º 1 do artigo 668.º não são de conhecimento oficioso, mas deve conhecer do mérito nos seus restantes aspectos, nos termos em que a questão ou questões lhe foram colocadas nas alegações de recurso (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, volume III, páginas 144/145; acórdão da Relação de Lisboa, de 15.12.1994, CJ, Ano XIX, Tomo V, páginas 127 e seguintes).
Tendo a questão do encerramento do locado sido directamente abordada nas conclusões de recurso, dela se passará, pois, a conhecer.
O senhorio pode resolver o contrato se o arrendatário conservar encerrado, por mais de um ano, o prédio arrendado para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, salvo caso de força maior ou ausência forçada do arrendatário, que não se prolongue por mais de dois anos – alínea h) do n.º 1 do artigo 64.º.
O preceito corresponde a idêntica alínea do artigo 1093.º do C. Civil, mas com a ablação do advérbio “consecutivamente”, antes inserto a seguir à expressão “por mais de um ano”.
Como escreveu Meneses Cordeiro, em comentário efectuado praticamente em cima da hora, eliminou-se uma fonte de dúvidas (saber se bastava que o estabelecimento estivesse aberto um ou dois dias para se considerar que o encerramento não foi consecutivo), mas outras não deixarão de surgir em consequência da eliminação (Novo Regime do Arrendamento Urbano, página 111).
No sentido de a supressão do falado advérbio poder vir a causar perturbações, pronunciou-se, igualmente, Januário Gomes, entendendo, embora, não haver razões para ser alterada a filosofia da corrente jurisprudencial em curso, norteada por critérios de razoabilidade (Arrendamentos Comerciais, página 239).
Tal fundamento de resolução do contrato, que visa acautelar o interesse do senhorio em não ver desvalorizado o prédio com o seu encerramento e proteger o interesse mais geral de fomentar o aproveitamento efectivo de todos os espaços utilizáveis (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., volume II, anotação ao artigo 1093.º), depende da verificação de três pressupostos: a) o arrendamento para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal; b) o encerramento por mais de um ano; c) não se dever o encerramento a caso de força maior ou ausência forçada do arrendatário, mas, se o for, que estas circunstâncias se prolonguem por mais de dois anos (Aragão Seia, ob. cit., páginas 339/340).
O caso de força maior relaciona-se, de modo especial, com os impedimentos resultantes de forças de natureza (abalo sísmico, inundação grave, raio ou descarga eléctrica) ou de actos insuperáveis da autoridade ou, mesmo, de particulares (realização de obras públicas de demolição ou desaterro, ocupação militar de certa zona, revolução, guerra civil, etc.); a ausência forçada tem a ver com a pessoa do arrendatário, na medida em que existam factores que o impeçam de estar no arrendado e à frente da actividade visada pelo contrato (Antunes Varela, R.L.J. 116, páginas 192 e 217).
Os factos que, neste particular, devem ser atendidos são estes: o arrendado destina-se a posto de recepção de leite; a autora, de forma unilateral, cortou o abastecimento de água ao espaço, facto que inviabilizou a sua utilização; a 24.09.2003, o Ministério da Agricultura ordenou a suspensão do levantamento do leite, devido à falta de condições de higiene e sanitárias correlacionadas com o corte da água; a ré requereu aos SMAS de Viseu a ligação da água da rede pública, mas o requerimento foi indeferido com base no entendimento de só ser possível a ligação individualizada para o rés do chão se estivesse constituída a propriedade horizontal, o que não era o caso; por via da falta de água da rede pública, a licença sanitária do posto caducou em 31.12.2003; o espaço encontra-se encerrado, não retirando a apelada qualquer proveito do mesmo.
A tese da apelada é, como foi referido, a de cabe à apelante, por ter cortado o abastecimento de água, e não a si própria, a responsabilidade pelo encerramento do locado.
A versão da apelante é a de que tal corte não releva, por não recair sobre si o dever contratual de fornecer a água.
Mas não parece que a razão esteja do seu lado. Como decorre do disposto no artigo 1031.º, alínea b), do C. Civil, o locador está obrigado a assegurar o gozo da coisa para os fins a que se destina; nessa conformidade, tem de entregar o locado em condições de poder ser utilizado para os fins a que se destina, efectuar as reparações e pagar as despesas necessárias à sua conservação e uso e evitar a prática de actos que impeçam ou diminuam o respectivo gozo (artigos 1032.º a 1034.º, 1036.º e 1037.º do C. Civil).
Nas palavras de Aragão Seia, proporcionar o gozo implica uma prestação de conteúdo positivo e outra de sinal negativo; na primeira, cabe a entrega do arrendado em bom estado de conservação, a sua manutenção ao longo do tempo e o pagamento dos respectivos encargos; na segunda, a omissão de actos que conduzam a que o arrendatário não retire do locado as utilidades tidas em vista com a celebração do contrato (ob. cit., páginas 65 e seguintes).
Mas, tendo a coisa locada vício que a impeça de realizar os fins a que se destina, o locador não será responsável se o locatário conhecia o defeito quando celebrou o contrato ou recebeu a coisa, o defeito já existia ao tempo da celebração do contrato e era facilmente reconhecível, a não ser que o locador tenha assegurado a sua inexistência ou usado de dolo para o ocultar, o defeito for da responsabilidade do locatário ou este não avisou o locador do defeito (artigo 1033.º dito Código).
O vício que impediu a apelada de extrair do arrendado as utilidades pretendidas e contratadas – posto de recepção de leite – só surgiu quando a apelante cortou o abastecimento de água. Até então, nada, que tenha sido alegado, pelo menos, impediu o exercício da actividade visada; e, no entanto, já tinham decorrido cerca de doze anos sobre a celebração do contrato de arrendamento.
Naturalmente, embora isso não venha referido, que, aquando da celebração, as circunstâncias que levaram os SMAS a recusar, mais tarde, à apelada a ligação ao locado da rede pública de água já se verificavam. Todavia, nenhum problema se suscitou, porque, evidentemente, o arrendado estava já ligado à rede ou foi-o nessa altura. Como quer que seja, o primitivo locador entregou a coisa em bom estado de conservação e funcionamento, apto ao exercício da actividade a que se destinava, e nada impediu o seu gozo entre 1991 e 2003.
Conquanto o contrato escrito nada refira nesse plano, parece legítimo inferir que do mesmo fazia parte o abastecimento de água ao arrendado; não é crível, de resto, que a apelada aceitasse tomar de arrendamento um espaço que não podia utilizar para a instalação da actividade a que se dedicava.
O corte no abastecimento de água efectuado pela apelante constitui, num enquadramento desta natureza, um claro abuso do direito, à luz do preceituado no artigo 334.º do C. Civil, com o conteúdo que lhe tem vindo a ser atribuído pela doutrina e pela jurisprudência.
Decorre do disposto no artigo 762.º, n.º 2, do mesmo diploma, que as partes devem proceder de boa fé, tanto no cumprimento da obrigação, como no exercício do direito correspondente.
Diz, por sua vez, o citado artigo 334.º, que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Já no direito anterior ao actual Código Civil a figura era admitida, apesar de não expressamente prevista.
A concepção adoptada de abuso do direito é a objectiva. Não é necessária a consciência de se atingir, com o seu exercício, a boa fé, os bons costumes ou o fim social ou económico do direito conferido; basta que os atinja. Exige-se, no entanto, que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou na sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., volume I, anotação ao artigo 334.º).
A mesma é a posição de Manuel de Andrade e de Vaz Serra, quando falam em direitos “exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça” e em “clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante” (Teoria Geral das Obrigações, página 63, e BMJ 85, página 253, respectivamente).
Segundo, ainda, Antunes Varela, para que haja lugar ao abuso do direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito. Com a fórmula do manifesto excesso dos limites impostos pelo fim económico ou social do direito tem o artigo 334.º especialmente em vista os casos de exercício reprovável daqueles direitos que são muito marcados pela sua função social. A fórmula do manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé abrange, por seu turno, de modo especial, os casos que a doutrina e a jurisprudência condenam sob a rubrica do venire contra factum proprium. São os casos em que a pessoa pretende destruir uma relação jurídica ou um negócio, invocando uma determinada causa de nulidade, anulação, resolução ou denúncia, depois de fazer crer à contraparte que não lançaria mão de tal direito ou depois de ter dado causa ao facto invocado como fundamento da extinção da relação ou do contrato (ob. cit., páginas 537/538).
Na jurisprudência, que é abundantíssima, podem ver-se, em coincidência de opiniões, e como exemplos mais recentes, os acórdãos do STJ de 04.04.2006, 24.01.2008, 07.02.2008 e 28.02.2008 (CJ do Supremo, Ano XIV, Tomo II, página 33, e Ano XVI, Tomo I, páginas 62, 77 e 122, respectivamente).
A lei não enuncia as consequências do abuso do direito, tendo vindo a entender-se que a sanção varia consoante os casos, podendo compreender a indemnização, a nulidade do negócio, a validade do acto nulo ou a ineficácia da conduta; os efeitos, diz Antunes Varela, serão os correspondentes à forma de actuação do titular (loc. cit.).
Com base nele, o lesado pode requerer o exercício moderado, equilibrado, lógico, racional do direito (Pires de Lima e Antunes Varela, último local citado).
Refira-se, finalmente, que os tribunais, mesmo na fase de recurso, podem conhecer oficiosamente o abuso do direito (acórdãos do STJ de 21.01.1993 e 21.09.1993, in BMJ 423, página 422 e CJ do Supremo, Ano I, Tomo III, página 19, e, bem assim, o acórdão do mesmo Tribunal de 04.04.06, acima mencionado).
Atentos os factos a que nos vimos reportando, é de concluir que a apelante incorreu em abuso do direito, na modalidade do venire contra factum proprium. Não pode deixar de violar gravemente o princípio da boa fé uma conduta como a que os autos documentam, concretizada no corte de abastecimento de água ao arrendado, que sempre fora fornecida desde o início do contrato, para depois, perante o encerramento do estabelecimento, determinado pela entidade competente, devido à falta de água, vir pedir a resolução do contrato de arrendamento, com fundamento, precisamente, no corte da água e no encerramento do arrendado.
Vistas bem as coisas, o deferimento da pretensão da apelante a mais não conduziria do que ao premiar de um comportamento que, aos olhos do sentimento jurídico dominante na sociedade, é clamorosamente ofensivo da justiça.
Nenhum cidadão de recta e sã consciência aprova a deslealdade ou a torpeza de meios para alcançar fins que, de outro modo, não teria a possibilidade de atingir. Bem pelo contrário, comportamentos destes repugnam-lhe e em grau muito elevado.
O certo é que se a apelante não tivesse cortado o fornecimento de água ao locado, que, reitera-se, o primitivo locador autorizou e se prolongou por perto de doze anos, não se teria verificado a proibição do exercício da actividade de recolha de leite por parte da entidade competente nem o consequente encerramento do espaço cuja entrega foi pedida na acção.
O abuso do direito está, pois, plenamente configurado, pelo que não pode obter guarida o pedido de resolução do contrato de arrendamento fundado no encerramento do arrendado por mais de um ano (do mesmo modo, e em caso com alguma similitude, decidiu o STJ, por seu acórdão de 21.01.1993, antes referido).
Improcederá, assim, in totum, o recurso.


IV. Em breve síntese:

a) Em acção de despejo fundada na falta de pagamento da renda, cabe ao arrendatário a prova do pagamento;
b) A falta de pagamento da renda só determina a resolução do arrendamento se o arrendatário estiver em mora;
c) Se a renda dever ser paga no domicílio do arrendatário, o que sucede sempre que não seja estabelecido contratualmente outro local, presume-se, em caso de falta de pagamento, a mora do senhorio.
d) A nulidade da sentença, ainda que não arguida, não obsta ao conhecimento de mérito pela Relação.
e) Incorre em abuso do direito o senhorio que cria condições para a resolução do contrato de arrendamento e, depois, pede a resolução do contrato com base nas condições que criou.


V. Decisão:

Por tudo quanto ficou exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e confirmar, embora por diferentes razões, a sentença apelada.
Custas pela apelante.