Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1793/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO DE ANDRADE
Descritores: PROVA
ÂMBITO
POR RECONSTITUIÇÃO DE FACTO
VÍCIOS DA SENTENÇA
ERRO NOTÓRIO
APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 11/16/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TORRES NOVAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 127º, 150º, N.º1, 340º E 410º, N.º 2, AL. C), DO C. P. PENAL
Sumário: I- O art.º 340º do C. P. Penal não tem por finalidade permitir aos sujeitos processuais produzir novas provas não arroladas oportunamente ou para suprir as inconcludências daquelas
II- A reconstituição de um facto, estabelecida no art.º 150, n.º 1, do CPP, não tem por finalidade apurar a existência do facto em si, mas “se podia ter ocorrido de determinada forma”.

III- O vício “erro notório na apreciação da prova”, porque relativo à apreciação da prova, apenas pode verificar-se relativamente a factos tidos como provados ou não provados e já não às interpretações ou conclusões de direito com base nesses factos.

IV- A convicção de quem julga não pode ser confundida nem substituída pela convicção dos que esperam a decisão.

V- Não resultando da discussão da causa perspectiva diferente, o julgamento está vinculado à temática da acusação.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM, EM AUDIÊNCIA, NO TRIBUNALDA RELAÇÃO DE COIMBRA

I.1. Após realização da audiência de discussão e julgamento, pelo Tribunal Colectivo, foi proferido acórdão mediante o qual foi decidido:
- julgar improcedente a pronúncia deduzida contra o arguido A..., melhor identificado nos autos, absolvendo-o da prática de: um crime de ofensas corporais qualificadas p e p pelo art. 146º, n.º1 e 2, 143º, n.º1, 132º n.º2 als. d) e g); e de um crime de homicídio qualificado, com dolo eventual p e p pelos artigos 131º e 132º n.º1 e 2 als. d) e g), todos do C. Penal.
- julgar parcialmente procedente a pronúncia deduzida contra o mesmo o arguido A... condenando-o: como autor de um crime de ofensa à integridade física qualificado p e p pelos art, 146º, n.º1 e 2, 143º n.º1, 132º n.º2 al. g) do CP, na pena de 10 (dez) meses de prisão; e como autor de um crime de participação em rixa p e p pelo art. 151º do CP, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão; e, em cúmulo jurídico, na pena unitária de 18 (dezoito) meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos.
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2. De tal decisão recorre o assistente B..., formulando as seguintes CONCLUSÕES (reprodução):
1ª. Desde logo, é urgente chamar a atenção de V.as Ex.as para o facto de o Acórdão recorrido, ao absolver o arguido de um crime de homicídio após este se ter furtado à acção da justiça anos a fio e quando o faz contra a prova produzida, ser uma decisão injusta, a que não é alheio o facto de um dos elementos do Tribunal Colectivo, nos presentes autos, ter assinado a decisão ora recorrida vencido (cfr. voto de vencido anexo à decisão recorrida) sendo que tal voto expressa a discordância do seu signatário face à ao exame da matéria de facto operada pelo Tribunal a quo.
2ª. Por outro lado, o tribunal a quo tomou esta decisão de absolver o arguido – alegadamente por falta de prova – quando se furtou a realizar outras diligências probatórias, tendo indeferido todas as requeridas pelo assistente que no julgamento arguiu a nulidades dessas decisões, tendo interposto recurso sobre essa matéria que deu entrada em 31 de Dezembro de 2004, pelo que mantém interesse em que o mesmo seja apreciado.
3ª. Os factos que constituem os 7º e 8º parágrafos do acórdão recorrido foram incorrectamente considerados como provados (cfr. art. 412º nº 3 alínea a) do C.P.P.), ou seja, a conclusão tirada pelo tribunal a quo de que o primeiro disparo foi efectuado por José Fernandes e só depois o arguido ripostou, não tem suporte na prova produzida em audiência que o tribunal a quo - na fundamentação daquela decisão - reputou determinante para a formação da sua convicção.
4ª. Assim, de toda a prova documental e pericial que serviu de base à formação da convicção do Tribunal, (nomeadamente autos de apreensão, relatórios periciais, relatório de autópsia, exames médicos, fotografias, informações clínicas, documentos de fls. 265. a 285 e 442 a 453 e C.R.C), nada serve para fundamentar a tese que o Tribunal recorrido "criou".
5ª. Por outro lado, a única prova testemunhal relativa aos factos da pronúncia que o tribunal a quo valorou - depoimento de Urbino Loures e de Orlando Leitão, inspector da polícia judiciária - não serve para formar aquela convicção. O inspector da PJ, porque não assistiu aos factos, não podendo saber quem disparou primeiro, e o de Urbino Loures porque disse peremptoriamente que não viu quem disparou primeiro.
6ª. A prova produzida e que o tribunal valorou, impunha a condenação do arguido pelo crime de homicídio (Artigo 412º nº 3 alínea b) do C.P.P.)
7ª. Apesar disso, o tribunal a quo fundamentou nos seguintes elementos o facto de não ter dado como provado que o tiro que vitimou Ilda Salinas tivesse sido disparado pelo arguido A...:
- A posição dos intervenientes na discussão e disparos; a trajectória do disparo; o momento em que a vítima é atingida pelo disparo; a arma.
8ª. Quanto à posição dos intervenientes na discussão e disparos o tribunal recorrido admite que José Fernandes e A... se encontravam de frente, levantando contudo duas hipóteses: uma primeira em o arguido se encontra de frente para a barraca do José Fernandes e para este, e uma segunda na qual eles se encontram de frente, estando as barracas do lado esquerdo do arguido e direito de José Fernandes.
9ª. Ora, a prova produzida não permitia suscitar quaisquer dúvidas ao tribunal quanto a esta matéria, isto porque o documento de fls. 442 a 453 elaborado pelo Sr. Inspector da Polícia Judiciária é um dos elementos que serviram para formar a convicção do tribunal (vide fls. 10 do acórdão recorrido, primeira frase), e este documento tem assinaladas correctamente a posição dos intervenientes, sendo que o Sr. Inspector da PJ prestou os necessários esclarecimentos sobre o mesmo, a testemunha Ana Maria Salinas prestou esclarecimentos confrontada com este documento e esclareceu com precisão o local onde se encontrava a sua mãe (vítima), o arguido e José Fernandes no momento dos disparos; e mesmo que não se valore este depoimento, foi exactamente igual ao que prestou Urbino Loures sobre esta matéria o qual o tribunal valorou.
10ª. Assim, face à prova produzida, não ficaram quaisquer dúvidas de que A... se encontrava de frente para José Fernandes e para Ilda Salinas (vítima) que se encontrava atrás de José Fernandes, sendo que o arguido tinha as suas bancas de venda do seu lado esquerdo e José Fernandes tinha as suas bancas de venda do seu lado direito.
11ª. E mais, se dúvidas existiam no Tribunal em relação à posição dos intervenientes, então porque indeferiu o requerimento do assistente para se proceder à reconstituição do crime, e também para se proceder a uma mera inspecção judicial?
12ª. Quanto à trajectória do disparo, o tribunal entende que, mesmo que a posição dos intervenientes com o arguido de frente para José Fernandes com a vítima por trás seja verdadeira, esta descrição é incompatível com a trajectória do disparo, referindo a este propósito o tribunal a quo o seguinte:
" Mas mesmo a dar como verdadeira tal "descrição" ela é, em nosso entender incompatível com a trajectória do disparo que atingiu a Ilda Salinas - esta foi atingida da direita para a esquerda, de cima para baixo e de frente para trás.
Se o arguido se encontrava de frente - aparentemente dextro - como é que o disparo atinge a vítima pelo lado direito?"
13ª Ora, sucede que o disparo não atingiu a vítima pelo lado direito. NA VERDADE, O RELATÓRIO DA AUTÓPSIA NÃO REFERE QUE A VÍTIMA FOI ATINGIDA PELO LADO DIREITO COMO PRETENDE O TRIBUNAL, MAS SIM NO ABDOMEN, OU SEJA DE FRENTE!!! (vide relatório da autópsia fls. 195 a 200)
14ª “A direcção do trajecto, seguido pelo projéctil de arma de fogo foi: da direita para a esquerda, de cima para baixo e de frente para trás." (cfr. relatório da autópsia fls. 195 a 200). Ora, se o trajecto da bala é DE FRENTE PARA TRÁS, a vítima nunca poderia ter sido atingida de lado ou no lado direito como pretende o tribunal, pois nesse caso o trajecto da bala não seria de frente para trás, mas sim da direita para a esquerda, atravessando o corpo transversalmente. Sucede que a bala entra de frente no lado direito do corpo e sai atrás no lado esquerdo, sendo que na explicação que deu o Sr. Inspector da PJ, basta um pequeno movimento do corpo para justificar este trajecto.
15ª Por outro lado, o assistente explicou ao tribunal que embora o arguido estivesse de frente para a vítima e para o José Fernandes, não estavam todos em linha recta; um podia estar um metro mais para um lado e outro um metro mais para outro lado. E o que é certo é que a filha da vítima, que confrontada com o croqui da polícia explicou correctamente onde todos se encontravam no momento dos disparos, colocou o arguido em frente à sua mãe, demora desviado para o lado direito, o que explica a trajectória do disparo.
16ª Quanto ao momento em que a vítima é atingida pelo disparo, para afastar que tenha sido pelo primeiro tiro que A.... disparou, como era referido na pronúncia, o tribunal a quo procede a um exercício deveras curioso, ou seja, apesar de ter referido não valorar os depoimentos das testemunhas familiares dos intervenientes por terem todas mentido, acaba por referir os depoimentos de todas estas testemunhas para fazer valer a sua tese.
17ª Mas vai ainda mais longe e refere que o assistente disse que andava de relações cortadas com a sua filha Ana Maria Salinas, O QUE É ABSOLUTAMENTE FALSO E TRATA-SE DE UMA AFIRMAÇÃO QUE O ASSISTENTE NUNCA FEZ.
18ª Quanto a esta matéria, o tribunal apenas tinha que se basear na prova que valorou (já que não valorou o depoimento da filha da vítima, que encontrando-se ao lado da mesma, referiu que a mãe foi atingida pelo primeiro disparo - ou seja, o depoimento do assistente, que referiu que de inicio só viu o arguido e o José Fernandes a disparar, e encontrando-se o José Fernandes de costas, o tiro só podia vir do arguido que atingiu a sua mulher logo com os primeiros disparos.
19ª E o tribunal a quo também omitiu que várias testemunhas referiram, nomeadamente o Sr. Inspector da PJ cujo depoimento foi valorado, que as armas utilizadas - baseado nos invólucros que foram recolhidos - tinham carregadores que podiam disparar entre 8 a 12 tiros de seguida, pelo que o lógico para qualquer homem médio é deduzir que o arguido disparou vários tiros de seguida e não que tenha disparado um único tiro e tenha ficado à espera para ser atingido!
20ª A propósito da arma o tribunal a quo refere o seguinte:
"No entanto a própria pronuncia acaba por ser um pouco incongruente:
Refere que o primeiro disparo foi efectuado pelo arguido com uma arma de calibre 22 LR, para logo de seguida referir que o arguido disparou sobre o José Fernandes com uma arma cujas características não foi possível apurar…então foram utilizadas duas armas por parte deste arguido? Foi sempre utilizada uma de calibre 22LR? Só a utilizou para aquele tiro? ou foi sempre utilizada a outra cujas características não foi possível apurar!?
Perante tanta interrogação e contradição, manifestamente, se em sede de indícios era legítimo, ainda assim acusar e pronunciar, em sede de julgamento o tribunal não pode concluir por um juízo de certeza, indispensável a qualquer condenação"
21ª Ora, a questão da arma é apenas uma falsa questão levantada pelo tribunal recorrido, sendo que o tribunal acaba por entrar em contradição consigo mesmo ao dar como provado que o arguido utilizou uma arma cujas características não foi possível apurar para disparar sobre José Fernandes, e nessa medida o acórdão recorrido acaba por ser tão incongruente como acusa o despacho de pronúncia de ser.
22ª Uma coisa é certa: O TRIBUNAL DEU COMO PROVADO QUE O A..., SERVINDO-SE PARA O EFEITO DE UMA ARMA CUJAS CARACTERISTICAS NÃO FOI POSSÍVEL APURAR, DESFERIU UM TIRO NA DIRECÇÃO DO PÉ DE JOSÉ FERNANDES, QUE SE ENCONTRAVA PRÓXIMO DE SI, VISANDO ATINGI-LO, O QUE CONSEGUIU. (cfr. acórdão recorrido fls. 5), pelo que o tribunal deu como provado que o arguido EFECTUOU DISPAROS DE UMA ARMA DE CARACTERÍSTICAS NÃO APURADAS, donde resulta que PODE PERFEITAMENTE TER SIDO UM DESTES DISPAROS A ATINGIR A ILDA SALINAS.
23ª Tendo ficado provado que o arguido tinha uma arma e que fez disparos com a mesma, tendo resultado do depoimento do Urbino - que o tribunal valorou - que o arguido estava de frente para a sua mulher e para o José Fernandes e que este ultimo estava de costas, e que só viu o José Fernandes e o arguido a disparar, e que a sua mulher foi atingida logo pelos primeiros disparos, não RESTAM QUAISQUER DÚVIDAS QUE A PROVA PRODUZIDA IMPUNHA A CONDENAÇÃO DO ARGUIDO PELO CRIME DE HOMICÍDIO.
24ª Estamos assim perante um caso de ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA (art. 410º nº 2 alínea c) do C.P.P.), que se extrai do próprio texto da decisão recorrida, já que o tribunal a quo formou a sua convicção no relatório de autópsia de fls. 195 a 200 (vide fls. 9 do acórdão recorrido) e no documento de fls. 442 a 453 (croqui elaborado pela polícia judiciária com a posição dos intervenientes), conforme se refere a fls. 10. Contudo, destes documentos nos quais o tribunal baseou a sua convicção, resulta com toda a evidência uma conclusão contrária à que chegou o tribunal recorrido.
25ª Afigura-se também no acórdão recorrido um caso de CONTRADIÇÃO INSANAVEL DA FUNDAMENTAÇÃO (art. 410º nº 2 alínea b) do C.PP.) porquanto o tribunal a quo valora e refere que o assistente Urbino merece credibilidade quando refere que membros de ambas as famílias tinham armas, referindo que na imputação dos factos ao arguido é que o seu depoimento é diferente do prestado no inquérito. Contudo, o que se extrai de mais diferente no seu depoimento em inquérito é exactamente ter referido que não viu ninguém com armas ou a disparar.
26ª Por outro lado, o tribunal a quo não procedeu ao exame crítico das provas, como se encontra obrigado por lei, e era de extrema importância no caso em apreço, em que a lógica do julgador extravasa qualquer dedução lógica com base na prova, perceber que depoimentos valorou para formar a sua convicção e chegar à conclusão de que o José Fernandes foi o primeiro a disparar, e que só depois o arguido ripostou, já que o tribunal parte desta dedução para vir a absolver o arguido do crime de homicídio.
27ª Ora, nos termos do disposto no art. 379º nº 1 alínea a) do C.P.P., é nula a sentença que não contiver as menções referidas no art. 374º, nº 2 do mesmo diploma legal, pelo que ora se arguí a nulidade do acórdão recorrido por violação do disposto no art. 374º nº 2 do C.P.P. .
28ª Apesar de referir dúvidas quanto à posição dos intervenientes no momento dos disparos, às distâncias, e a quem estava a disparar, o tribunal indeferiu os requerimentos do assistente para realização da reconstituição do crime e de inspecção ao local, tendo o assistente arguido a nulidade dessas decisões por o tribunal a quo estar a omitir a realização de diligências que seriam indispensáveis à descoberta da verdade, (art. 120 nº 2 alínea d) do C.P.P),. Como o tribunal a quo indeferiu a arguição destas nulidades o assistente interpôs recurso em 31 de Dezembro de 2004, recurso este que pretende ver apreciado, na medida em que as diligências que o tribunal omitiu teriam permitido afastar quaisquer dúvidas nomeadamente no que à posição dos intervenientes respeita - e que foi um dos argumentos para absolver o arguido do crime de homicídio - o permitiria com grande grau de certeza a sua condenação.
DEVERÁ O ACÓRDÃO RECORRIDO SER REVOGADO, CONDENADO-SE O ARGUIDO PELO CRIME DE HOMICÍDIO, OU O PROCESSO REENVIADO PARA NOVO JULGAMENTO.
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3. O mesmo assistente havia interposto recurso – declarando no recurso da decisão final que mantém o interesse na respectiva apreciação - da decisão exarada em acta que indeferiu o requerimento de reconstituição do facto e a inspecção ao local.
Nele formulando em tal recurso as seguintes CONCLUSÕES:
1ª Nestes autos deparamos com duas versões radicalmente opostas dos factos: a versão das testemunhas familiares do arguido e a versão dos familiares do assistente José Fernandes.
2ª Existem contudo pontos comuns nos relatos que todos fazem dos factos nomeadamente no que concerne ao local em que se encontrava o arguido no momento em que a vítima Ilda Salinas é atingida.
3ª Contudo, temos ainda a versão dos factos que é relatada pelos familiares da vítima - que não fazem parte das duas famílias que tiveram intervenção no tiroteio ocorrido no mercado de Torres Novas - a qual é coincidente com as conclusões a que chegaram os elementos da Polícia Judiciária que tiveram a seu cargo a investigação, ou seja foi o arguido A... que atingiu mortalmente Ilda Salinas.
4ª Perante duas versões tão diversas dos factos e as contradições manifestas entre os relatos dos intervenientes processuais que os presenciaram, impunha-se diligenciar, com prontidão e de forma rigorosa, no sentido do apuramento da verdade.
5ª Assim face à dificuldade de apurar a distância a que o arguido se encontrava da vítima, e o posicionamento de ambos de forma a confirmar o teor do croqui elaborada pela Polícia Judiciária e que se encontra a fls. 434 dos autos na sua 1ª numeração, o assistente finda a prova da acusação e face à dificuldade em apurar estes elementos através desta prova, requereu ao abrigo do disposto nos artigos 150º e 340º do C.P.P., a reconstituição do facto.
6ª Porém, a Meritíssima Juiz “a quo”, indeferiu o requerido porque presumiu que tal diligência não permitiria apurar a verdade material.
7ª Inconformado com a posição do Tribunal e do Ministério Público, o assistente requer de seguida uma mera inspecção ao local para no fundo se eliminar as dúvidas que restaram no que respeita a distância localização dos intervenientes.
8ª Esta diligência era de uma importância VITAL PARA A DESCOBERTA DA VERDADE pois permitiria confirmar o depoimento do inspector da Policia Judiciária, Orlando Leitão O QUAL EXPLICOU AO TRIBUNAL PORQUE É QUE SÓ PODIA SER O ARGUIDO O AUTOR DO DISPARO QUE VITIMOU ILDA SALINAS. Por outro lado permitiria ao Tribunal concluir que encontrando-se o arguido no local que o próprio refere não estava seguramente a mais de 10 metros de Ilda Salinas pelo que só podia estar a vê-la quando efectuou o disparo fatal.
9ª Porém, o tribunal indeferiu a realização da INSPECÇÃO AO LOCAL, coarctando, uma vez mais, as garantias processuais do assistente, garantidas pelo art. 32º nº7 da C.R.P., o seu esforço de contribuição para a descoberta da verdade.
10ª Assim, a localização da vítima e do arguido no momento dos disparos e a distância entre eles constituem factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência de crime, bem como para a punibilidade ou não do arguido, pois só esses factos constituem objecto de prova (cfr. artigo 124º do C.P.P.), logo tais factos são essenciais e o seu esclarecimento permitir-nos-ía alcançar a verdade material aqui subjacente.
11ª Por este motivo, e ao abrigo do disposto no art. 120 nº 2 alínea d) do C.P.P., o assistente arguiu a nulidade dos despachos de indeferimento das diligências.
12ª Arguição de nulidade que o despacho recorrido indeferiu acobertando-se no disposto no art. 340 º do C.P.P..
13ª No entanto, sendo as diligência de prova requeridas: legalmente admissíveis, relevantes e pertinentes, adequadas e de obtenção possível, o artigo 340º do C.P.P. não habilitava o Julgador a travar a produção desta prova essencial, requerida pelo assistente.
14ª O Tribunal “a quo” não podia ter negado ao assistente o seu direito processual de intervenção no processo garantido pelo artigo 32º nº 7 da Constituição da República Portuguesa, escudando-se no artigo 340º do C.P.P.. Ao fazê-lo, a Meritíssima Juiz violou a norma por si invocada - o artigo 340º do C.P.P..
15ª Esta interpretação "à letra" do art. 340º do C.P.P., que é plasmada no despacho recorrido é inconstitucional por violação da norma inserta do nº 7 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa.
16ª Ao indeferir as diligências requeridas o Tribunal tomou uma decisão ferida de nulidade pois omitiu diligências que podiam reputar-se essenciais para a descoberta da verdade (cf. art. 120 nº 2 alínea d) do C.P.P.).
17ª Logo o despacho recorrido está eivado de ilegalidade ao indeferir a nulidade que foi arguida em tempo, acobertando-se no disposto no art. 340º do C.P.P., sem fundamentar porque motivo as diligências requeridas não podem reputar-se essenciais.
18ª Ora se o MP e o Tribunal consideram que há dificuldades com a prova testemunhal então este elemento por si só é suficiente para que as diligências requeridas se reputem essenciais.
19ª Assim, ou o Tribunal acha que tem prova suficiente para condenar o arguido - e não se compreende como o coloca em liberdade nessa mesma sessão, apesar de ter existido por parte de um digno senhor Doutor Juiz um voto de vencido - ou então se tem dúvidas de que o mesmo foi o autor do homicídio não pode omitir diligências de prova e por fim absolver o arguido com base no principio " In Dúbio Pro Réu", quando várias testemunhas referem que o mesmo disparou sobre a vítima.
20ª O Tribunal violou assim, no despacho recorrido, o disposto no art. 120 nº 2 alínea d) do C.P.P., pelo que deve ser revogado o despacho recorrido deferindo-se a arguição de nulidade dos despachos que indeferiram a realização de diligências - que face à dificuldade da prova testemunhal - só podem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.
Deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e revogado o despacho recorrido, com as legais consequências.

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4. Respondeu o digno magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido, pronunciando-se no sentido de que o recurso deve improceder, alegando, designadamente que o princípio da investigação tem o seu limite traçado pela necessidade e oportunidade na produção da prova. E no caso tal não se verifica quer a reconstituição do facto quer a inspecção ao local requerida depois de aquela haver sido indeferida. A acusação assentava no pressuposto de que o projéctil que atingiu a vítima mortal – Ilda Salinas - foi disparado pela arma do arguido (legalizada em seu nome). Vindo posteriormente a prova pericial a concluir, além do mais que “é muitíssimo provável que não tenha sido essa arma a disparar o dito projéctil”, tal pressuposto caiu por terra, sendo por isso destituídas de sentido as diligências que o assistente pretendeu ver realizadas em audiência.
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Respondeu o arguido, pronunciando-se no sentido de que deve ser mantida porquanto a leitura atenta e desapaixonada da matéria dada como provada e não provada e da extensa fundamentação, preocupação sem limites da actividade investigatória produzida em julgamento, a produção da prova foi insuficiente para poder imputar ao arguido o crime por que vinha acusado (homicídio).
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No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso interlocutório deve improceder elas razões aduzidas na resposta e o recurso da decisão final deve também improceder porque não resultam do texto da decisão os vícios que lhe são apontados e no que toca à valoração da prova rege o princípio da livre apreciação da prova, tendo o tribunal interpretado e valorado globalmente essa prova, fundamentando devidamente a sua convicção.
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Realizada a audiência, não se verificando obstáculos ao conhecimento de mérito, cumpre conhecer e decidir.
Importando desde já apreciar o recurso interlocutório, o qual, a proceder, prejudica a apreciação do recurso da decisão final.

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II. Recurso do despacho proferido em audiência
Os meios de prova que o recorrente entende que deviam ter sido produzidos – reconstituição do facto e inspecção ao local - não constavam do rol da acusação ou de qualquer outro rol apresentado pelo assistente.
A produção de tais meios de prova foi requerida pelo ora recorrente, durante a audiência de discussão e julgamento, já depois da produção de todos os meios de prova arrolados pela acusação, invocando para o efeito o disposto no art. 340º do CPP.
Postula o referido art. 340º, no seu n.º1: O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e á boa discussão da causa.
O objecto do processo é definido pela acusação e pronúncia, das quais devem constar todos os meios de prova em que assentam e as fundamentam, carreados para os autos e apreciados indiciariamente durante o inquérito e a instrução. Provas essas a ser (re)produzidas, discutidas e analisados, publicamente, em audiência.
O artigo 340º não tem por finalidade permitir aos sujeitos processuais produzir novas provas, não arroladas no momento oportuno ou para suprir a inconcludência daquelas.
Devendo os meios de prova que sustentam a acusação, ser individualizados logo na acusação – cfr. art. 283º, n.º 3, alíneas d), e) e f) e art. 284º (este para a acusação do assistente), ambos do CPP.
Tal dispositivo visa antes permitir ao tribunal, quando emerge da discussão da causa (e por isso não pôde resultar logo da acusação) a existência de provas não arroladas na acusação mas relevantes para a decisão a tomar, que determine oficiosamente ou a requerimento dos sujeitos processuais, a produção de tais provas que não puderam ser requeridas no momento oportuno mas agora se revelam pertinentes e adequadas para contribuir, de forma relevante, para a criterioso esclarecimento do caso ou do “recorte de vida” submetido à sua apreciação.
Aliás, como resulta do nº4 do artigo 340º do CPP, “Os requerimentos de prova devem ainda ser indeferidos se for notório que: a) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas; b) O meio de prova é inadequado …”.
Por outro lado, como decidiu o AC. STJ de 26.11.1998, processo 504/98, citado por Maia Gonçalves no seu Código de Processo Penal Anotado, 13ª ed., em anotação ao art. 340º “o juízo de necessidade ou desnecessidade de diligências de prova não vinculada é tributário da livre apreciação crítica dos julgadores, na própria vivência e imediação do julgamento”.
De onde resulta que a procedência do recurso pressupõe a demonstração de que tal juízo é infundado. Pelo que se impõe que o recorrente demonstre a falta de fundamento desse juízo de oportunidade e necessidade formulado pelo tribunal quando indeferiu o requerimento de produção de novas provas.
No que concerne à reconstituição do facto, estabelece o art. 150, n.º1, do CPP: “Quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo”.
Resulta assim que a produção de tal meio de prova está também dependente não só do pressuposto da “necessidade”, como ainda que se trate da necessidade de apurar se o facto poderia ter ocorrido de certa forma.
Não tem assim por finalidade apurar a existência do facto em si, mas se “podia ter ocorrido de determinada forma”. No caso, não apurar se o autor do disparo letal foi o arguido - o que, pela natureza da reconstituição e pela lógica das coisas a reconstituição não pode determinar. Mas antes e apenas, como resulta do teor da lei, se o facto (disparo, no caso) “poderia ter ocorrido de certa forma”. Ou nas “condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido”.
Não incide assim este meio de prova directamente sobre o facto em discussão (único e irrepetível, como facto histórico), mas sobre uma determinada versão desse facto, necessariamente pretérito, tal como é previamente fornecida por um outro qualquer meio de prova.
A reconstituição tem em vista uma versão hipotética do facto, tendo por referência um outro meio de prova - pode-se reconstituir o facto das mais variadas formas, em função de qualquer um dos vários meios de prova produzidos sobre a sua verificação. Serve para confirmar ou infirmar a veracidade ou possibilidade intrínseca de outros meios de prova ou da forma como é relatado ou resulta de outros meios de prova, que não para provar o facto em si.
Ora no caso em apreço, o recorrente, resume a sua pretensão, na conclusão 5ª, nos seguintes termos: “face à dificuldade de apurar a distância a que o arguido se encontrava da vítima, e o posicionamento de ambos de forma a confirmar o teor do croqui elaborado pela Polícia Judiciária e que se encontra a fls. 434 dos autos na sua 1ª numeração, o assistente finda a prova da acusação e face à dificuldade em apurar estes elementos através desta prova”.
Ou seja pretende o recorrente, “face à dificuldade em apurar estes elementosatravés da prova produzida, apurar a distância e o posicionamento do arguido e da vítima e assim confirmar o teor do croqui.
Sendo certo a descrição do local efectuada no “croquis” de fls. 434 nunca estive em causa – o que evidencia a desnecessidade da inspecção ao local para examinar a sua configuração nunca posta em causa.
Por outro lado, quanto à posição dos intervenientes ali descrita, ou forma como os factos terão ocorrido, teve o mesmo por base, não a razão de ciência específica de quem elaborou o dito croquis, que não presenciou os factos, mas os elementos de prova recolhidos pela PJ no inquérito preliminar e que deram corpo à tese vertida na acusação.
Ora, para que se justificasse o apuramento sobre se o disparo pode ter ocorrido de determinada maneira, importava antes ter presente se a prova produzida permitia atribuir, para lá da dúvida razoável, a autoria desse mesmo disparo ao arguido.
E o tribunal, pelas razões que a decisão enuncia (que resultam melhor explicitadas na decisão final que será objecto de apreciação no respectivo recurso) entendeu não haver necessidade nem ser oportuna a respectiva produção, para a boa decisão da causa, em virtude de a prova da acusação quanto à autoria do facto ter naufragado. Isto porque a dedução da acusação contra o arguido – com base na tese que o croqui acolhia - neste ponto, assentava essencialmente no pressuposto de ter sido a arma apreendida ao arguido que efectuou o disparo letal (sendo certo que pela quantidade e variedade de invólucros de bala recolhidos no local, foram disparadas pelo menos 4 armas diferentes, numa contenda entre duas famílias, em que havia várias pessoas a disparar, como o assistente refere alas claramente no seu depoimento). Pressuposto esse arredado pela prova pericial, cujo relatório foi junto aos autos já após a dedução da acusação. O que é reconhecido e aceite, aliás, de forma explícita, pelo digno magistrado do MºPº que sustentou a acusação em julgamento e não só se conformou com a decisão recorrida como sustenta a sua justeza.
De onde resulta que da reconstituição pretendida, para além de o “croqui” que se pretendia ver confirmado não ter qualquer valor intrínseco como meio de prova do facto (disparo da arma de fogo) que importasse confirmar, nenhuma utilidade prática poderia resultar para a dilucidação do caso, na altura em que foi requerida.

Relativamente à inspecção ao local, requerida depois de a reconstituição ter sido indeferida, pressupõe ainda a existência, no local, de algo que o tribunal possa examinar ou inspeccionar, com relevo para a decisão a tomar.
Com efeito, postula o art. 171º, n.º1 do CPP que “dos lugares e das coisas inspeccionam-se os vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado…”.
Ora, quanto à configuração do local em si, nenhuma dúvida relevante se suscitou em audiência que a inspecção do mesmo pelo tribunal pudesse suprir ou esclarecer, existindo aliás nos autos o “croqui” do mesmo a que se fez referência.
Assim, concluindo, assentando a decisão recorrida num juízo sobre a desnecessidade e falta de oportunidade que as alegações de recurso não infirmam, sendo pelo contrário corroborados pelos elementos do processo atendíveis, o recurso interlocutório tem que improceder, como improcede.

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III. Recurso da decisão final
1. São as questões sumariadas pelo recorrente nas conclusões que o tribunal de recurso tem que apreciar, sendo o âmbito do recurso definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação – Cfr. Germano Marques as Silva, Curso de processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), bem como Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 74 e decisões ali referenciadas.
Conclusões que têm por finalidade definir, com precisão, a pretensão do recorrente, assim habilitando, do mesmo passo, o tribunal de recurso, a poder conhecer das mesmas com exactidão.
Isto sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente os vícios indicados no art. 410º, n.º2 do CPP, de acordo como o Ac. STJ para fixação de jurisprudência de 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95.
No caso em apreço o assistente recorre da decisão da matéria de facto, sustentado que a prova produzida impõe que se dê como provado ter sido o arguido o autor do disparo que vitimou sua mulher (conclusões 1ª a 23ª), invocando depois, com o memo escopo final os vícios de erro notório na apreciação da prova (conclusão 24º) e de contradição insanável da fundamentação (conclusão 25º), invocando, por ultimo, a nulidade do acórdão por falta de exame crítico das provas (conclusões 26 e 27).
Sendo estas as questões a decidir, apesar de suscitadas pela ordem que acaba de ser descrita, serão apreciadas pela ordem de precedência lógica indicada nos artigos 368º/369º do CPP, por remissão do art. 424, n.º2, do mesmo diploma. Ou seja, pela ordem inversa daquela por que foram mencionadas.
Para a sua apreciação importa, porém, ter presente a decisão da matéria de facto recorrida.

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2. É a seguinte a decisão da matéria de facto recorrida
A) Factos provados:
No dia 04 de Junho de 1998, no mercado que se realizou na cidade de Ourém, ocorreram discussões entre Maria Eugénia Lopes, esposa do arguido A..., e Vera da Conceição Pinto, nora do arguido José Fernandes.
Discussões essas motivadas pelo facto de a Vera colocar as suas mercadorias em locais que a Maria Eugénia entendia tirarem a visibilidade das peças de vestuário, que tinha expostas para venda.
Tais discussões azedaram as relações entre as respectivas famílias.
No dia 09 de Junho, no recinto do mercado que, semanalmente, se realiza na cidade de Torres Novas, ambas as famílias ocupavam os espaços de vendas que lhes estavam destinados: sendo o n.º21 de A... e os n.ºs 19 e 20 de José Fernandes e seus familiares.
O local situado defronte do espaço de venda n.º 46 era ocupado por Ilda Salinas e seu marido B..., os quais tinham relações de parentesco com ambas as famílias.
Cerca das 7 horas desse dia, no aludido recinto, desencadeou-se nova discussão, entre a esposa do arguido (A...) e o filho do José Fernandes, motivada de o filho deste último ter fixado uma corda frente ao espaço de venda daquele, acabando por nela se envolverem A.... e José Fernandes.
Então, José Fernandes, usando arma não apurada, que trazia consigo, efectuou um disparo em direcção a A...., visando atingi-lo, o que conseguiu.
Com efeito, o projéctil respectivo perfurou a bexiga de A..., alojando-se na vizinhança do cóccix, tendo resultado de tal lesão 189 dias de doença, todos com incapacidade para o trabalho.
E A..., servindo-se para o efeito de uma arma, cujas características não foi possível apurar, desferiu um tiro na direcção do pé de José Fernandes, que se encontrava próximo de si, visando atingi-lo, o que conseguiu.
O respectivo projéctil entrou na zona de transição do bordo interno para a planta do pé esquerdo e saiu pela parte mediana da região plantar, lesão essa que lhe determinou um período de 30 dias de doença, todos com incapacidade para o trabalho.
Ao actuar da forma descrita, envolver-se em discussão e disparar arma de fogo naquelas circunstâncias -numa zona de mercado, com várias pessoas algumas delas também a dispararem - o arguido A.... tinha consciência de que poderiam ferir-se ou morrer pessoas que ali se encontravam, conformando-se com tal facto.
Por outro lado, também ao actuar pela forma descrita, A,,,, previu e quis molestar fisicamente José Fernandes servindo-se para o efeito de arma de fogo, cujo poder letal conhecia, porque susceptível de causar ferimentos de elevada gravidade.
O arguido conhecia o carácter proibido da sua conduta, tendo capacidade de determinação segundo as prescrições legais, não se inibiu de a realizar.
Foram ainda atingidas por disparos de armas:
a) Ilda Salinas, tendo o projéctil, de calibre 22 LR, entrado no seu abdómen, segundo uma trajectória da direita para a esquerda, de cima para baixo e de frente para trás, causando-lhe graves lesões traumáticas abdominais, a que sobreveio uma sépsis, causa necessária da sua morte;
b) Maria Hortênsia Limas, tendo o respectivo projéctil atingido a sua nádega esquerda, causando três feridas perfurantes, as quais determinaram um período de 10 dias de doença, todos com incapacidade para o trabalho;
c) José Eugénio Lopes Lima, atingido, com projéctil de calibre 22 LR, na região lombar direita, vindo a bala a alojar-se no campo pulmonar esquerdo, a nível do mediastino superior, tendo feito hematorax, que foi drenado, tendo as lesões provocadas demandado um período de 365 dias de doença, sendo os 60 com incapacidade para o trabalho.
O arguido não tem antecedentes criminais.
É tido, pelas testemunhas de defesa, como pessoa educada, correcta, social e laboralmente inserido sendo pessoa considera na zona onde vive.

Factos dos pedidos cíveis (…)

B) Factos não provados:
No dia 5 de Junho de 1998, nos mercado que se realizou na cidade de Tomar, ocorreram fortes discussões entre Maria Eugénia Lopes, esposa do arguido A..., e Vera da Conceição Pinto, nora do arguido José Fernandes.
Que, na sequência, os chefes de ambas as famílias - A... e José Fernandes - decidiram que os membros das mesmas transportassem consigo armas para o mercado que se realizaria no dia 9 de Junho de 1998, em Torres Novas, a fim de tirarem desforço, caso a situação se viesse a agravar.
Que o arguido A...., servindo-se para o efeito de uma arma cujas características não foi possível apurar, mas de calibre ponto 22 Long Rifle, disparou com ela um disparo em direcção ao arguido José Fernandes, visando atingi-lo vindo a atingir Ilda Salinas.
Que, não satisfeito com tal conduta, A... tornou a disparar, agora na direcção de Maria Hortênsia Limas, que se encontrava também próximo de si, visando molestá-la, o que conseguiu.
Que ao actuar como se descreve, o arguido A.... admitiu como provável que o disparo que efectuava na direcção de José Fernandes, pudesse atingir e tirar a vida de Ilda Salinas, que se encontrava diante de si e, não obstante, não hesitou em o desferir, aceitando que tal consequência se pudesse verificar.
Que a arma utilizada por José Fernandes fosse um revólver de marca Smith &Wesson, calibre ponto 32, com o número de série H 145630.

C) Motivação / análise crítica das provas
Os factos dados como provados fundam-se numa apreciação global da prova produzida no seu conjunto e, em especial:
Prova documental e pericial:
Autos de apreensão de fls. 10 a 12, 15, 158;
Relatórios periciais de fls. 483 a 513, 533 a 539 82 a 485, 487 a 493 e 510 a 516, 799 a 802 e 827 a 828;
Relatórios de autópsia de fls. 195 a 200;
Exames médicos de fols. 264,253, 269, 580, 591, 592, 593 e 640, 834 e 835, 838, 841a 842;
Fotografias de fls.112 a 114v., 157 239 a 241 e 330 a 332;
Informações clínicas de fls. 30, 31, 33, 35, 56 a 110, 124 a 141, 162 e 163, 173, 187 a190, 169, 183 a 186, 246, 267, 574 a 624 e 631 a 637, 905 a 907;
Doc. de fls. 265 a 285, 442 a 453.
CRC. Junto a fls. 1450.
Da prova testemunhal:
No que concerne á situação social e familiar do arguido, foram relevantes os depoimentos das testemunhas de defesa por si indicadas que demonstraram, com credibilidade e convicção conhecimento directo de tais factos depondo com isenção.
Quanto à restante prova testemunhal (excepção feita ao Sr. Inspector da P.J. o qual, pese embora o trabalho meritório que efectuou, não presenciou os factos, acabando por transmitir a sua opinião e conclusão sobre a investigação que colheu) pouca relevância pode ser dada.
Na verdade, os familiares do arguido imputam os factos aos elementos da outra família envolvida (José Fernandes) dizendo que nenhum deles trazia ou disparou qualquer arma ou disparou - sendo que os familiares do José Fernandes dizem precisamente o contrário: que quem disparou foram os familiares do arguido José Lima e que não traziam nem dispararam qualquer arma,
A única pessoa envolvida com a situação que referiu terem armas membros de ambas as famílias foi o assistente Urbino que, por esse facto mereceu ao tribunal credibilidade, pese embora, depois, na imputação dos factos ao arguido, tenha prestado depoimento substancialmente diferente do prestado em sede de inquérito, conforme se referira.
Certo é que foram disparados tiros de parte a parte (foram atingidas pessoas de ambas as famílias).
Foram várias as pessoas que dispararam (atente-se ao número e variedade de invólucros encontrados no local e ao depoimento do assistente Urbino).
De qualquer modo, as testemunhas inquiridas foram minimamente coincidentes no que se refere ao facto de no mercado de Ourém ter havido já uma discussão entre a esposa do arguido e a nora do José Fernandes, por questões relacionadas com a venda de roupa;
Que em Torres Novas tal ocorreu também entre a esposa do arguido e um filho (David) de José Fernandes logo quando encontravam a montar as tendas - ao colocar uma corda para estender roupa - vindo de seguida a envolverem-se o arguido e o José Fernandes.
Ora tendo ambos sido atingidos mutuamente, sendo alegadamente os chefes das famílias, usando - corno é do conhecimento comum - armas, ponderando que o arguido foi atingido de frente na zona do ventre, é manifesto que foi o José Fernandes quem disparou sobre ele o que, leva também a entender que tenha sofrido um tiro no pé dado pelo arguido. Isto porque, estando o arguido virado para o José Fernandes (quer fosse a posição Sul/ Norte quer fosse Norte/Sul etc.) obviamente que tenta disparar de molde a atingi-lo. O facto do tiro não ter sido direccionado para outra zona do corpo, em nosso entender, prende-se com o facto de ter sido atingido no ventre e, como tal, a tendência é para se contrair disparando de imediato frente para baixo.
Este raciocínio como é manifesto, já não pode ser usado quanto aos estilhaços que atingiram a assistente Hortênsia - não é crível que o arguido José Lima se dirigisse ao chefe da outra família e disparasse logo de imediato contra a sogra! - e não qualquer outro dado seguro das circunstâncias concretas em que foi atingida (iria a fugir? Foram ricochetes de projécteis, vindos de onde e por quem?)
Quanto aos factos subjectivos, entendemos que os factos objectivos provados, de acordo com as regras da experiência comum e com base em presunção natural, permitem inferir tal factualidade.
Finalmente
A questão fundamental que, nos autos cumpre explicitar, prende-se com o facto do tribunal não ter dado como provado que o tiro que vitimou Ilda Salinas tivesse sido disparado peio arguido A....
Vejamos então
Começando logo pela posição dos intervenientes na discussão e disparos verificamos o seguinte:
A família do arguido refere que nenhum dos seus membros tinha armas...
A família do ex-arguido José Fernandes refere que nenhum do seus membros tinha armas...
Manifestamente, todos estão a faltar á verdade.
Quero assistente Urbino quer a testemunha (falecida José Clara Beirolas referem o contrário)
Aliás, só assim se compreendo que tenha havido ferimentos em vários indivíduos pertencentes a ambas as famílias.
Mas mais, documentalmente está demonstrado que foram disparadas varias armas (pelo menos quatro) tendo sido encontrados no local 28 invólucros de calibre 22 sendo 7 do tipo LR e 21 do tipo S22 e duas munições do mesmo calibre, invólucros de armas.
Assim, desde logo, o depoimento de todas as testemunhas inquiridas e familiares dos intervenientes, não pode merecer total credibilidade senão até quase nenhuma (cada “grupo” imputa ao outro os factos ocorridos e cada grupo tenta omitir ou distorcer os factos de molde a não se conseguirem imputar aos respectivos familiares).
Certo é que o arguido Mário Lima e o ex-arguido José Fernandes se encontravam frente a frente quando dispararam (estando a discutir um com o outro é plausível, razoável e crível tal posição).
No entanto, a família do arguido José Mário referem que o José Fernandes de se encontrava junto à sua barraca vindo o José Limas ter com ele - a posição frontal tanto pode ser de frente para a barraca (e mais provável já que, àquela hora, se encontravam a montar e colocar as roupas nas barracas) como, conforme parece deduzir-se do croqui elaborado pelo Sr. Inspector da polícia judiciária, de frente estando as barracas do lado esquerdo e direito dos arguidos José Limas e José Fernandes, respectivamente.
No entanto, não podemos esquecer que, aquele croqui, nada prova já que foi elaborado de acordo com os depoimentos das testemunhas, recolhidos pelo Sr. Inspector não sendo mais do que uma análise, desses depoimentos, por ele feita.
Mas, mesmo a dar como verdadeira tal “descrição” ela é, em nosso entender, incompatível com a trajectória do disparo que atingiu a Ilda Salinas - esta foi atingida da direita para a esquerda, de cima para baixo e de frente para trás.
Se o arguido se encontrava de frente - aparentemente destro - como é que o disparo atinge a vítima pelo lado direito? Fisicamente, (analisando o croqui) a probabilidade era precisamente a inversa - ou seja atingir a vítima pelo seu lado esquerdo...
Colocada esta questão ao Sr. Inspector o mesmo referiu que, pese embora a colocação, por ele feita, da vítima no croqui certamente a mesma já se deslocava em direcção ao local da discussão e então assim seria atingida daquela forma... isso também o tribunal sabe mas restava apurar que tinha sido precisamente no momento em que se deslocava que tinha sido atingida.
Ora, do depoimento da testemunha Urbino (que, em sede de audiência disse mais do que em sede de inquérito, pese embora tenha sido confrontado com tais declarações) a sua esposa estava frente a frente com o arguido, sido peremptório nesta afirmação. Mas, depois de confrontado com a trajectória do projéctil que a atingiu referiu que, provavelmente iria a fugir!!!
Mas vejamos ainda outro aspecto - o momento em que é atingida pelo disparo:
A acusação partiu do pressuposto que o disparo inicial - o primeiro disparo ocorrido - foi aquela que atingiu a Ilda Salinas (tal como o relatório da policia judiciária) o que, conjugado com as alegadas posições dos intervenientes, levaria à conclusão da probabilidade de ter um disparo efectuado pelo arguido José Limas.
No entanto tal versão foi afastada por quase todos os inquiridos (excepção da testemunha Ana Maria filha da vítima Ilda Salinas cujo depoimento foi totalmente oposto ao prestado em sede de inquérito) e alegadamente presentes no local.
Os familiares do arguido porque referiram que o mesmo não tinha qualquer arma.
Os familiares do José Fernandes dizem que o José Limas disparou imediatamente sobre os membros da família “rival “que se encontrava na banca n.º 19 onde se encontrava a sogra daquele (Maria Hortênsia Limas) tendo de seguida disparado sobre o José Fernandes... e como é óbvio não o arguido ser atingido (a Hortênsia que disse ter o arguido disparado primeiro par si e depois para o genro, o filho do arguido o David peremptoriamente refere que o arguido 1º disparou três tiros sobre a avó e depois disparou e atingiu o pai).
Vera Pinto e David Salinas (sendo que aquela vive maritalmente com um irmão do José Fernandes sendo “cunhada deste”) referem que logo no início dos disparos se refugiaram para a Rodoviária (passando, necessariamente junto ao local onde se encontrava Ilda Salinas e não a viram (ou não passaram por ali ou a Ilda ainda não tinha sido atingida e se não passaram por ali porque motivam insistiram tanto nesse ponto? Por que motivo insistiu David Salinas em dizer que levou uma paulada e desmaiou, (e depois fugiu logo!); por que motivo a sua avó vem dizer o mesmo quando quer a filha do arguido José Limas quer o falecido José Beirolas foram peremptórios em dizer que o David tinha uma arma que disparou; por que motivo, José Fernandes, pai do David, aquando do interrogatório referiu que…“pretendeu proteger os seus familiares” quando confrontado com o facto de ter assumido a responsabilidade dos disparos perante os agentes de autoridade - fls. 48 dos autos.
Por que motivo o assistente Urbino referiu andar de relações cortadas com a filha, que vive maritalmente com um irmão do José Fernandes por causa deste caso…?
O que levou a filha do assistente Urbino, em sede de audiência a depor de forma totalmente diferente e incriminatória do ora arguido relativamente ao seu depoimento em sede de inquérito (cfr. Acta de audiência e fls. 378 dos autos aqui referindo que ouviu tiros, foi em direcção ao seu filho que estava no carro não tendo visto a mãe ser atingida)?
O assistente Urbino, a instâncias do Sr. Procurador, várias vezes e, peremptoriamente, disse que ouviu vários tiros e só depois é que a Ilda foi atingida - está convencido que foi o arguido porque foi quem viu de frente para a sua esposa - mas, como já referido, em sede de inquérito referiu que não sabia quem tinha disparado sendo mais provável que fosse o arguido ou um seu familiar devido à posição dos mesmos e só depois de ouvir alguns tiros é que se dirigiu á esposa vendo então que esta tinha sido atingida (fls.223)
Finalmente vejamos a arma:
Conforme resulta do relatório da polícia judiciária, no qual se funda a acusação, partiu-se do pressuposto de que a arma que disparou o projéctil que atingiu a Ilda Salinas foi arma do arguido José Limas - “a arma utilizada terá sido seguramente a pistola… Vicenzo Bernardelli, calibre 22 LR” isto porque, o projéctil que atingiu a Ilda Salinas, foi recuperado e verificou-se ser de calibre 22LR e o arguido tinha registada em seu nome tal arma.
No entanto, após exame pericial, veio a concluir-se que:
Eugénio Limas e Ilda Salinas foram atingidos por projécteis de calibre 22 LR, sendo muitíssimo provável terem sido disparados por armas diferentes (exame pericial de fls. 511) sendo ainda muitíssimo provável não ter sido disparado pela arma Vicenzo Bernardeili o projéctil que atingiu Ilda Salinas - basta atentar nas manifestas divergências entre os valores de campo, conforme exame pericial de fls. 827.)
Pese embora tal conclusão, o arguido foi pronunciado, sendo excluída da pronúncia apenas a identificação da arma.
No entanto, a própria pronúncia acabava por ser um pouco incongruente:
Refere que o primeiro disparo foi efectuado pelo arguido com uma arma de calibre 22LR, para logo de seguida referir que o arguido disparou sobre o José Fernandes com uma arma cujas características não foi possível apurar... então foram utilizadas duas armas por parte deste arguido’? Foi sempre utilizada uma de calibre 22 LR? Só a utilizou para aquele tiro? ou foi sempre utilizada a outra cujas características não foi possível apurar!?
Perante tanta interrogação e contradição, manifestamente, se em sede de indícios era legítimo, ainda assim acusar e pronunciar, em sede de julgamento o tribunal não pode concluir por um juízo de certeza, indispensável a qualquer condenação.

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3. Vista a decisão criticada e os vícios que lhe são apontados, passemos à sua apreciação

3.1. Falta de exame crítico das provas
O art. 374º do CPP, enunciando os requisitos da sentença, estabelece no seu n.º2 (redacção introduzida pela lei 59/98): Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Como refere Marques Ferreira in Jornadas de Direito Processual Penal do C.E.J., O Novo Código de Processo Penal, ed. Almedina, p. 229-230, “de acordo com os princípios informadores do Estado de Direito Democrático e no respeito pelo efectivo direito de defesa consagrado nos arts. 32º, n.º1 e 21º da Constituição a fundamentação deve ser tal que, intraprocessualmente permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico e racional que lhe subjaz. E extraprocessualmente deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários não são apenas os sujeitos processuais, mas a própria sociedade”.
“Quando se trata de decisão do tribunal colectivo tem a fundamentação que traduzir ou reflectir o mínimo de acordo ou convergência consensual maioritariamente apurada no seio desse Tribunal Colectivo... há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação cabal e segura do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo... não através de uma mera indicação ou arrolamento dos meios probatórios mas de uma verdadeira reconstituição e análise crítica do Iter que conduziu a considerar os factos provados ou não provados” - extracto do AC. TC 258/2001, DR IIS de 02.11.2001, citando outros arestos anteriores do mesmo tribunal.
“A exigência legal de fundamentação não se satisfaz com a indicação pura e simples do tipo de prova produzida, visa permitir o exame do processo lógico ou racional subjacente à formação da convicção, bem como averiguar se foi violado norma sobre a proibição de provas” – Ac. STJ de 15.03.2000, CJ/STJ, tomo I, 226.
No caso em apreço o recorrente na fundamentação da falta de exame crítico da provas acaba por se referir a factos relativos ao disparo do arguido contra Manuel Fernandes – que o tribunal deu como provados e condenou o arguido pelo crime correspondente.
Factos estes (relativos ao crime praticado na pessoa de Manuel Fernandes) que embora tendo uma relação de proximidade temporal com o disparo que vitimou a mulher do assistente, dizem respeito a um crime diferente, em que é ofendida pessoa diversa.
Ora, não tendo recorrido o MºPº nem o ofendido de crime, o referido Manuel Fernandes e nada tendo o assistente a ver com tal crime, nem lhe tendo sido conferida procuração para tal, não tem o recorrente legitimidade para questionar tal decisão a cujos pressupostos é estranho, como é estranha a pessoa falecida - cujo óbito confere ao recorrente para se constituir assistente.
Alega o recorrente que o tribunal parte de tal dedução – que José Fernandes disparou antes do arguido – para absolver este da morte de Ilda Salinas, mulher do assistente.
Mas a própria fundamentação do recurso neste ponto é contraditória, uma vez que tal asserção implica que o recorrente bem percebeu o raciocínio lógico subjacente à condenação, tanto que manifesta dele discordar. Não se trata assim de uma questão de falta de exame crítico, mas antes de discordância do exame efectuado.
Que como tal não se enquadra no vício em questão, mas pode, quando muito, constituir motivo de recurso do mérito da decisão, a apreciar sem sede própria.
Aliás para além da circunstanciada análise da prova efectuada pela decisão recorrida – acima transcrita em sede própria, que por isso carece de nova reprodução – apreciando separada e minuciosamente cada um dos vários meios de prova resulta patente o cuidadoso exame crítico dessa mesma prova.
Destacando-se, no passo que o recorrente questiona o seguinte excerto: “ (…) envolveram-se o arguido e o José Fernandes. Ora tendo ambos sido atingidos mutuamente, sendo alegadamente os chefes das famílias, usando - corno é do conhecimento comum - armas, ponderando que o arguido foi atingido de frente na zona do ventre, é manifesto que foi o José Fernandes quem disparou sobre ele o que, leva também a entender que tenha sofrido um tiro no pé dado pelo arguido. Isto porque, estando o arguido virado para o José Fernandes (quer fosse a posição Sul/ Norte quer fosse Norte/Sul etc.) obviamente que tenta disparar de molde a atingi-lo. O facto do tiro não ter sido direccionado para outra zona do corpo, em nosso entender, prende-se com o facto de ter sido atingido no ventre e, como tal, a tendência é para se contrair disparando de imediato frente para baixo”.
De onde resulta claro qual o raciocínio subjacente à decisão (que o arguido disparou depois de atingido pelo disparo de José Fernandes). Ou seja, porque, encontrando-se de frente para ele e visando atingi-lo, tendo o próprio arguido sido atingido, no ventre, com um tiro disparado pelo José Fernandes, se terá contraído sobre o ventre (onde levou o tiro) por isso tendo deixado “descair” o tiro para o pé do visado.
Pode discordar-se de tal exame crítico efectuado pelo tribunal, mas não dizer que não existe e não foi bem compreendido, tanto que é atacada a sua consistência.
Pelo que improcede a arguição de tal vício do acórdão.
*

2. Erro notório na apreciação da prova
O erro notório na apreciação da prova, constitui um dos três fundamentos de recurso da decisão final enunciados no art. 410º, n.º2 do CPP “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito” – texto do corpo do referido n.º2 do art.410º.
Tratando-se aliás – e por isso mesmo - de conhecimento oficioso do tribunal, conforme decidiu o acórdão do STJ para fixação de jurisprudência de 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95.
No entanto, a alteração da decisão da matéria de facto tomada pelo tribunal recorrido com este fundamento tem o seu âmbito delimitado desde logo pelo texto do mesmo preceito - “desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência”
Trata-se de “um vício de raciocínio na apreciação das provas evidenciado pela simples leitura da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio” – cfr. Ac. STJ de 03.06.1998, processo n.º 272/98, citado por SIMAS SANTOS / LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, Ed. Rei dos Livros, 5ª ed., p. 68.
Devendo tal conceito, como decidiu o Ac. STJ de 06.04.1994, na CJ/STJ, t.2/1994, p. 186 “ser interpretado como o tem sido o conceito de facto notório em processo civil, ou seja, de que todos se apercebem directamente, ou que, observados pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório”.
Verificando-se, por ex., quando se dão como provados factos que, face às regras da experiência comum e à lógica do homem médio, não se poderiam ter verificado ou são contraditados por documentos que fazem prova plena não arguidos de falsos – cfr. Ac. STJ 10-03.99, SASTJ n.º 29, p. 73.
Ou quando, se dão como provados factos que face às regras da experiência comum e à lógica corrente não se podiam ter verificado Ac. STJ 02.06.99, proc. 354/99, citado por Maia Gonçalves, em anotação ao art. 41º do seu C. Anotado, 13ª ed..
Vício relativo à apreciação da prova que apenas pode verificar-se relativamente a factos tidos como provados ou não provados e já não às interpretações ou conclusões de direito com base nesses factos, tal como resulta da letra e da ratio legis.
*
Sustenta o recorrente – conclusão 24ª- que o vício em questão se extrai do próprio texto da decisão recorrida “ já que o tribunal a quo formou a sua convicção no relatório de autópsia de fls. 195 a 200 (vide fls. 9 do acórdão recorrido) e no documento de fls. 442 a 453 (croqui elaborado pela polícia judiciária com a posição dos intervenientes), conforme se refere a fls. 10. Contudo, destes documentos nos quais o tribunal baseou a sua convicção, resulta com toda a evidência uma conclusão contrária à que chegou o tribunal recorrido”.
Portanto resultaria do simples confronto do texto da decisão com o relatório da autópsia e o croqui em que se fundamenta.
No entanto embora conclua que dessa análise resulta com toda a evidência uma conclusão contrária à que chegou o tribunal recorrido, para chegar a tal conclusão acaba por extrapolar as premissas previamente formuladas, assumindo subliminarmente a discordância de fundo da análise que o tribunal faz dos ditos meios de prova (aliás primeiro o recorrente discorda da análise da prova e só depois clama pela verificação dos vícios do art. 410º). O que redunda em discordância da análise material da prova, para que o vício acaba por servir de segundo pretexto.
Ora o relatório da autópsia dá perfeitamente guarida ao exame efectuado pelo tribunal, arredando a tese do recorrente de que o disparo foi “de frente” para Ilda Salinas.
Desde logo porque, como transcreve a própria conclusão 14ª do recurso “A direcção do trajecto seguido pelo projéctil de arma de fogo foi: da direita para a esquerda, de cima para baixo e de frente para trás." (cfr. relatório da autópsia fls. 195 a 200).
Sendo de todo descabida a conclusão que o recorrente retira, logo de seguida, de tal premissa, de que “se o trajecto da bala é DE FRENTE PARA TRÁS, a vítima nunca poderia ter sido atingida de lado ou no lado direito como pretende o tribunal, pois nesse caso o trajecto da bala não seria de frente para trás, mas sim da direita para a esquerda, atravessando o corpo transversalmente”.
Com efeito se a bala seguiu o trajecto “da direita para a esquerda”, como evidencia o relatório da autópsia, não pode dizer-se que o disparo é frontal, como o recorrente pretende, mas antes na referida direcção oblíqua que a bala seguiu.
No que concerne ao “croqui”, não esclarece o recorrente, tendo por referência as normas legais sobre apreciação das provas, quais as razões por que o mesmo seria susceptível de impor decisão diversa da recorrida. Muito menos de forma notória ou manifesta.
Por outro lado o tribunal não fundou a sua convicção – nem podia fazê-lo, no que concerne à autoria do disparo que vitimou a mulher do recorrente – no dito croqui. Pelo contrário, para além de o dito croqui não ter qualquer valor intrínseco como meio de prova dos factos controvertidos, a decisão refere-se ao depoimento do seu autor, explicitando que “o Sr. Inspector da P.J., pese embora o trabalho meritório que efectuou, não presenciou os factos, acabando por transmitir a sua opinião e conclusão sobre a investigação que colheu”.
Pelo que não se verifica, manifestamente, o falado erro notório.
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4. Contradição insanável da fundamentação
A contradição insanável da fundamentação verifica-se quando existem duas proposições, afirmadas em simultâneo, que reciprocamente se excluem logicamente, em que portanto se uma é verdadeira a outra não o pode ser, tendo por referência, como acima se disse, o texto da decisão por si ou conjugado com as regras da experiência comum.
Existe quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que a fundamentação justifica precisamente decisão oposta; entende-se o facto de afirmar e negar ao mesmo tempo uma coisa, ou a emissão de duas proposições que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas – Cfr. Ac.s do STJ de 13.03. 1996 e de 08.05.1996, citados por SIMAS SANTOS / LEAL HENRIQUES, Recursos, cit. p. 65.
O recorrente fundamenta a existência do vício em referência – conclusão 25ª – “porquanto o tribunal a quo valora e refere que o assistente Urbino merece credibilidade quando refere que membros de ambas as famílias tinham armas, referindo que na imputação dos factos ao arguido é que o seu depoimento é diferente do prestado no inquérito. Contudo, o que se extrai de mais diferente no seu depoimento em inquérito é exactamente ter referido que não viu ninguém com armas ou a disparar”.
Ora, estando as declarações do assistente sujeitas à livre apreciação do tribunal – nos termos em que melhor se verá infra – nada obriga a que lhe reconhecesse igual e absoluta credibilidade em toda a sua dimensão. Atribuiu-lhe credibilidade quanto ao n.º de disparos e pessoas envolvidas, porque confirmado pela quantidade e variedade de invólucros de balas recolhidos no local, que foram disparados seguramente por mais de 4 armas. Mas já na parte relativa à atribuição do disparo que vitimou sua mulher, explicitando, além do mais que tal ficou a dever-se à alteração do depoimento na fase de inquérito, quando os factos estavam mais próximos, em que disse não poder especificar quem disparou este tiro (e os invólucros recolhidos no local evidenciam 28 disparos) e em julgamento, em que decorridos muitos anos manifestou a sua “convicção” de que foi o arguido.
De onde resulta que não existe qualquer contradição, muito menos insanável.
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5. Reapreciação da prova
Em matéria de provas, como refere Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo C. de Processo Penal, Ed. do Centro de Estudos Judiciários, p. 221, 222 “O Código de Processo Penal normativizou cuidadosamente a matéria atinente à prova quer em termos genéricos quer de forma específica (…) na preocupação de acatamento dos imperativos constitucionais relativos à dignidade pessoal e integridade física do cidadão e intimidade da vida privada que é legítimo esperar de um processo penal no quadro de um Estado de Direito Democrático e Social em que a justiça seja alcançada exclusivamente por meios processualmente válidos e efectivamente controláveis”.
No entanto, como refere o mesmo autor, local citado p. 227, salvas as referidas limitações em que a apreciação da prova é normativizada, vigora como princípio geral, o princípio fundamental da livre apreciação das provas, princípio esse que entre nós tem sido unanimemente aceite a partir da primeira metade do Séc. XIX com as reformas judiciárias saídas da Revolução Liberal, acolhido, de forma expressa, no art. 127º do CPP.
Continua assim a vigorar o princípio fundamental de que na decisão da “questão de facto”, a decisão do tribunal assenta na livre convicção do julgador, devidamente fundamentada, devendo aparecer como conclusão lógica e aceitável à luz dos critérios do art. 127º do Cód. Proc. Penal.
Do referido princípio da livre apreciação da prova resulta que a decisão não consiste numa operação matemática (“não é a demonstração de um teorema”, numa conhecida expressão de Antunes Varela), devendo o julgador apreciar as provas, analisando-as dialecticamente e procurando harmonizá-las entre si e de acordo com os princípios da experiência comum, sem que o julgador esteja limitado por critérios formais de avaliação.
Não podendo os vários meios de prova ser apreciados isoladamente, retirando-os do respectivo contexto, apenas com base em frases transcritas num suporte documental e em imprecisões de pormenor de algum dos testemunhos – por vezes justificáveis desde logo pelas circunstâncias dialécticas em que são produzidos, durante o interrogatório cruzado, formal, surgindo sempre um novo elemento em cada questão suscitada por cada um dos sujeitos processuais. Questões já de si formuladas dentro da perspectiva antagónica e por vezes conflituante de acordo com a posição cada sujeito processual.
O princípio da livre convicção tem como limite e pressuposto a lógica, a razão, a liberdade de pensamento, sem a amarra de critérios formalistas pré-concebidos. Constituindo uma aquisição civilizacional do pensamento europeu, por contraponto com os processos de cariz medieval, em que se sobrepunham critérios formais de produção e avaliação de prova.
Como refere o Prof. FIGUEIREDO DIAS (Direito Processual Penal, p. 202-203) “ a apreciação da prova é na verdade discricionária, tem evidentemente como toda a discricionalidade jurídica os seus limites que não podem ser ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova, é, no fundo uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» - de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios de objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e de controlo”...”não a pura convicção subjectiva ... se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão ... a convicção do juiz há-de ser .. em todo o caso uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de se impor aos outros ... em que o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável”.
Como refere Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, p. 126-127 “O juízo sobre a avaliação da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.gr. credibilidade que se concede a determinado meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir de factos probatórios e agora já as referidas interferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção de raciocínio, que há-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência”.
Não se trata de uma mera operação voluntarista, mas de conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis). Envolvendo a apreciação da credibilidade que merecem os meios de prova elementos não racionalmente explicáveis, v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova em detrimento de outro – tem essencial relevo a imediação. Mas ainda deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, aspecto que já não depende substancialmente da imediação, mas deve basear-se na correcção do raciocínio, nas regras da lógica, da experiência e nos conhecimentos científicos.
De onde que, como se resume, a dado passo, no Ac. T.C. 198/2004 de 24.03.2004, DR, II S, de 02.06.2004 “A censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”.
A convicção do tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, serenidade, “olhares de súplica” para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos.
O tribunal de recurso poderá sempre sindicar a convicção do julgador na primeira instância quando se mostre contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos, ou seja, o processo lógico que levou à consideração de que era uma, e não outra, a prova que se produziu. Mas não pode olvidar que o tribunal recorrido dispôs de um elemento de relevo, no que toca à apreciação de depoimentos prestados em audiência, de que não dispõe o tribunal de recurso: a discussão em audiência e a imediação com as provas.
Ora, “só os princípios da oralidade e da imediação permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. E só eles permitem, por último, uma plena audiência desses mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso” – Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, p. 233-234.
Os julgadores do tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, perante duas versões dos factos, só podem afastar-se do juízo efectuado pelo julgador da 1ª instância, naquilo que não tiver origem naqueles dois princípios, ou seja quando a convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art. 347º, n.º2 do CPP – Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, p. 126 e 127, que por sua vez cita o Prof. Figueiredo Dias.
No mesmo sentido vai a jurisprudência uniforme deste Tribunal da Relação, designadamente acórdãos 19.06.2002 e de 04.02.2004, nos recursos penais 1770/02 e 3960/03; 18.09.2002, recurso penal 1580/02. Como decidiu, entre outros, o Acórdão da Relação de Coimbra de 06.03.2002, publicado na CJ, ano 2002, II, 44.... “quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face ás regras da experiência comum”.
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Perspectivando o caso dos autos, na análise do recurso interlocutório e dos vícios do erro notório e da contradição da fundamentação, foram já equacionados os aspectos essenciais da apreciação da prova.
Como resulta da análise do recurso interlocutório, o recorrente pretendeu em audiência, através da reconstituição do facto e da inspecção ao local, suprir a inconsistência da prova em que assentava a acusação.
Não constitui, no caso, critério de apreciação do recurso o argumento, a que o recorrente apela logo na conclusão 1ª, da existência, na decisão, de uma declaração de voto de vencido.
Logo porque, no caso, tal declaração de voto não é fundamentada. Pelo que, não explicitando as razões da discordância, não pode o recorrente fazer apelo a razões não identificadas e que por isso desconhece.
Mas ainda porque, em matéria de facto, a lei não consente qualquer declaração de voto – cfr. art. 372º, n.º2 do CPP.
O mesmo sucedendo com o invocado facto de o recorrente nunca ter dito, em audiência, que estava de relações cortadas com a filha. Afirmação que o recorrente retira do respectivo contexto e não demonstra, tendo por base os suportes técnicos, sendo certo que nem estes reproduzem, toda a riqueza da comunicação estabelecida em audiência, em que assumem relevo outros aspectos não verbalizados da comunicação.
Por outro lado não se trata de um facto dado como provado, mas de mera ilação referida na fundamentação da decisão. Que tem apoio na discordância manifestada pelo recorrente quanto ao depoimento da filha, por estar casada, segundo disse, com um filho de Manuel Fernandes e não querer “comprometer-se”, por medo.
Está em causa essencialmente apurar se uma criteriosa análise da prova produzida impõe decisão diversa da recorrida - expressão contida na al. b) do art. 412º do CPP. Saber, em resumo, se devia o tribunal recorrido dar como provado que foi o arguido o autor do disparo com arma de fogo que causou a morte da vítima, mulher do assistente.
Para fundamentar o erro de apreciação da prova, o recorrente acaba por nada adiantar, para além dos aspectos já analisados – necessidade (essencialidade) da reconstituição do facto e inspecção ao local, erro notório e contradição da fundamentação.
De alguma forma a ordem por que o recorrente impugna a decisão de facto, deixando para o fim os vícios que hão-se resultar evidentes do simples exame do texto da decisão, traduz, porventura, a noção da inconsistência dos argumentos de fundo explanados antes.
Estando em causa a morte de uma pessoa, provocada por um disparo voluntário de arma de fogo, importava realizar todas as diligências possíveis e relevantes para a descoberta do respectivo autor. Respeitando-se o luto dos familiares e a sua insatisfação por não verem punido o responsável. Insatisfação que não pode deixar de ser partilhada pela sociedade e pelas suas Instituições mas da qual não pode extrapolar-se para ver condenado, a todo o custo, o arguido em determinado processo.
Em relação ao disparo do tiro que atingiu José Fernandes e respectiva direcção, não tendo recorrido nem o digno magistrado do MºPº nem o arguido nem o referido Manuel Fernandes, o recorrente carece de legitimidade para discutir os pressupostos dessa condenação.
De qualquer forma sempre se dirá nunca se suscitaram dúvidas em que tal disparado foi efectuado pelo arguido, tal como foi reconhecido por arguido e ofendido, designadamente.
Além de que a decisão assenta numa análise racional e objectiva da prova produzida, devidamente fundamentada, a que já se fez referência supra: atingido o arguido por um tiro no abdómen – que lhe perfurou a bexiga - a reacção instintiva e natural era a de se dobrar sobre o ventre, região corporal onde levou o tiro. O que está em conformidade com o facto dado como provado de o seu disparo ter saído “para baixo”, tanto que atingiu José Fernandes no pé, como a prova pericial evidencia.
Trata-se da análise efectuada pelo tribunal que o recorrente, na fundamentação do recurso não destrói, pressupondo-a por incorrecta sem rebater o fundamento.
Sendo certo que assenta ainda na oralidade/imediação/discussão cruzada da prova produzida em audiência, local privilegiado para o efeito.
Como refere o acórdão recorrido, em afirmação que a fundamentação do recurso mais uma vez não rebate especificamente, no relatório da polícia judiciária, no qual se funda a acusação, partiu-se do pressuposto de que a arma que disparou o projéctil que atingiu a Ilda Salinas foi arma do arguido José Limas “a arma utilizada terá sido seguramente a pistola… Vicenzo Bernardelli, calibre 22 LR”. Isto porque, o projéctil que atingiu a Ilda Salinas, foi recuperado e verificou-se ser de calibre 22LR e o arguido tinha registada em seu nome precisamente a referida arma.
Pressuposto que ficou afastado, como já se evidenciou supra acerca dos vícios previstos no art. 410º do CPP, pela prova pericial.
Com efeito resulta da prova pericial que Eugénio Limas e Ilda Salinas foram atingidos por projécteis de calibre 22 LR, sendo “muitíssimo provável terem sido disparados por armas diferentes” (exame pericial de fls. 511) sendo ainda “ muitíssimo provável não ter sido disparado pela arma Vicenzo Bernardeili o projéctil que atingiu Ilda Salinas, bastando atentar nas manifestas divergências entre os valores de campo” (exame pericial de fls. 827).
Conclusões que o recorrente não questiona directamente, mas apenas pela via de apontar à fundamentação a decisão o mesmo tipo de incongruência que aquela aponta à acusação.
Ora se é certo que se o arguido atingiu José Fernandes com um tiro de arma que não foi possível identificar, “podia”, em abstracto, ter disparado também o tiro vitimou Ilda Salinas com essa mesma “arma não identificada”.
Mas é acusação que define a vinculação temática a que está sujeito o tribunal, sendo essa a versão que compete apreciar em julgamento, a menos que outra perspectiva tivesse resultado, de alguma forma, da discussão da causa. O que nem o recorrente invoca. Respondendo à incongruência subjacente à acusação (que não questiona) com uma incongruência meramente abstracta, retirada do contexto, dando como demonstrado aquilo que se impunha demonstrar previamente e não foi objecto de apreciação/discussão em audiência: que a arma que efectuou o disparo que atingiu Manuel Fernandes foi ou podia ter sido a mesma que atingiu Ilda Salinas.
Sendo as dúvidas enunciadas na decisão recorrida - com base na análise, devidamente fundamentada, no resultado da prova pericial que avolumadas, como também dela resulta pela circunstância de terem sido disparadas no local várias armas de fogo pelos vários elementos presentes de cada uma das duas famílias desavindas – foram encontrados no local 28 invólucros de calibre 22 sendo 7 do tipo LR e 21 do tipo S22 e duas munições do mesmo calibre, invólucros de armas.
Multiplicidade de armas (e respectivos portadores/autores de disparos) que o próprio assistente refere claramente no seu depoimento.
Para além da dificuldade de percepção dos autores dos disparos num tiroteio de tal dimensão. Para mais num mercado, à hora da montagem das tendas, a que o próprio assistente refere também no seu depoimento.
Bem como a existência de dois grupos antagónicos (famílias do arguido e de José Fernandes) num meio social onde, mais uma vez segundo o depoimento do assistente, abunda a posse de armas.
Sendo perfeitamente plausível que o projéctil que atingiu Ilda Salinas pudesse ter sido disparado por alguma das várias outras armas utilizadas, para além da empunhada pelo arguido.
Em nada alterando os dados da questão o esforço desenvolvido pelo recorrente relativamente à posição do arguido e da vítima mortal. Desde logo porque se o arguido estava de frente para José Fernandes (com quem antagonizava, de quem levou um tiro e a quem atingiu com outro) se tivesse disparado outro tiro antes daquele com que atingiu José Fernandes no pé, tudo indica que teria acertado no mesmo José Fernandes, seu antagonista directo e com quem se encontrava frente a frente, como o comprova o facto de se terem atingido reciprocamente. Para mais se o disparo tivesse sido antes de o arguido ter sido atingido pelo tiro que lhe perfurou a bexiga e o deixou fisicamente debilitado.
Dúvida que é adensada pelo percurso da bala que atingiu mortalmente Ilda Salinas, descrito no relatório da autópsia e na decisão recorrida: além do mais projecta-se “da direita para a esquerda”. O que contraria a ideia sustentada pelo recorrente de que arguido e vítima se encontravam em posição frontal - e como se referiu em posição frontal ao arguido estava José Fernandes, tanto que ele e o arguido se atingiram reciprocamente com cada um com seu tiro.
E nesta matéria vigora o princípio in dubio pro reo, que constitui «um princípio natural de prova imposto pela lógica e pelo senso moral, pela probidade processual» (Cavaleiro Ferreira, Curso da Processo Penal, II, 310). Ou um princípio fundamental do processo penal em qualquer Estado de Direito (F. Dias, Direito Processual, edição de 1974, p. 214).
Tratando-se de um princípio indiscutível no que concerne à apreciação da prova na decisão da “questão de facto”, tanto no que diz respeito à prova dos elementos constitutivos do crime, como à prova dos factos extintivos ou causas de exclusão da responsabilidade criminal – cfr. Cavaleiro Ferreira, ob., cit., II, 312 e Figueiredo Dias, ob. cit., 215. Do qual resulta que a dúvida razoável após a produção de prova, tem de actuar em sentido favorável ao arguido – formulação de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, ed. de 1974, p. 215, citando a doutrina nacional e estrangeira no mesmo sentido.
Em conclusão, não rebatendo o recorrente os fundamentos da decisão, assentando esta numa apreciação racional e objectiva da prova, em conformidade com os critérios legais, assentando ainda na oralidade e imediação a que o tribunal de recurso não tem acesso, o recurso não pode proceder.
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Improcedendo o recurso quanto à decisão da matéria de facto, dali resulta necessariamente a improcedência em matéria de direito, por não provados os factos constitutivos do crime e da responsabilidade civil conexa com a criminal.
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4. Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em negar provimento quer ao recurso interlocutório quer ao recurso da decisão final, com a consequente manutenção do acórdão recorrido. ----
Custas pelo recorrente, fixando-se taxa [atenta a extensão das questões colocadas, grau de complexidade, total vencimento, situação económica do recorrente – artigos 513º, n.º1 do CPP e 82º, n.º1 e 87º, n.º1, al. b) do CCJ] em 10 (dez) UC.