Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1482/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: SIMULAÇÃO
PROVA
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
Data do Acordão: 05/23/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 394.º 373.º, N.º 1; 374º, Nº 1 E 376º, NºS 1 E 2, TODOS DO CÓDIGO CIVIL , E 659º, Nº 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
Sumário: 1. Inexiste qualquer obstáculo, de natureza legal, no âmbito do acordo simulatório e do negócio dissimulado, à admissibilidade da prova testemunhal como meio complementar de um princípio de prova escrita contextualizada, sendo esta, por si só, insuficiente para demonstrar a simulação, com vista a confirmar ou infirmar a primeira convicção formulada, interpretando-se, restritivamente, o estipulado pelo artigo 394º, do CC, de modo a atenuar a limitação dos meios de prova disponíveis a que a letra da lei conduz, mas sem por em causa a «ratio» do preceito, nem sobrepor à certeza da prova documental a fragilidade e a falibilidade da prova testemunhal.
2. Inexiste fundamento legal para considerar não escrita a resposta a um ponto da matéria de facto, em procedimento cautelar, retirada de um documento particular que constitui prova plena, não se mostrando que a mesma se tenha baseado, exclusiva ou basicamente, em prova testemunhal.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


A... e mulher, B..., interpuseram recurso de agravo da decisão que, nos autos de providência cautelar de arrolamento, em que foram requerentes C... e marido, D..., todos bem identificados, decretou o arrolamento das fracções autónomas infra-identificadas, terminando as suas alegações, onde sustenta que seja proferida decisão que ordene o seu levantamento, com as seguintes conclusões:
1ª - A decisão objecto do presente recurso viola o disposto nos arts. 351°, 394° n°2, 371°, 372°, 374º, 393°, 405°, 406° nº 1 e 2º todos do CC, 421°, 423°, 646º n°4e 655º n° 2 todos do CPC.
2ª - Com efeito, e quanto aos recorrentes diz respeito, consta dos autos a outorga de escritura pública de compra e venda relativamente aos prédios objecto do arrolamento.
3ª - Outrossim, resulta dos autos, a existência de contrato-promessa de compra e venda, em que figuram como promitentes vendedores os requerentes, através do qual prometem vender aos recorrentes, pelo preço de 78.500,00€ as referidas fracções.
4ª - Pelo que da conjugação desta prova documental oponível aos recorrentes, não se poderá concluir peta simulação do negócio.
5ª - Não sendo possível a produção de prova testemunhal.
6ª - Os recorrentes são alheios aos restantes meios de prova, não lhe sendo os mesmos oponíveis, não podendo os mesmos ser apreciados na decretação do arrolamento, uma vez que neles - a serem verdadeiros - os recorrentes não intervieram.
7ª - Pelo que não poderia o Tribunal a quo considerar como provável a declaração de nulidade por simulação dos contratos em segundo lugar realizados.
8ª - Devendo ser declarado por não escrito o ponto 5 da matéria de facto provada, na parte em que refere "pelo preço simulado", por força das disposições conjugadas dos arts. 646º n° 4 e 655º n° 2 ambos do CPC.
Os requerentes não apresentaram contra-alegações.
A Exª Juiz sustentou a decisão questionada, por entender que não foi causado qualquer agravo aos recorrentes.
Na decisão recorrida, declararam-se demonstrados os seguintes factos, que este Tribunal da Relação reproduz:
1. No dia 14 de Julho de 2005, a requerente subscreveu o documento de folhas 12, intitulado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, igualmente subscrito por E..., na qualidade de sócio gerente com poderes para o acto, de “F...”, sociedade comercial por quotas, com sede na Rua 1º de Maio, n.º 58 – C, Edifício Gardénia r/c-B, Chã, Tavarede, Figueira da Foz, pelo qual a requerente prometia adquirir, e E... prometia vender, pelo preço de 275 000,00€, uma vivenda unifamiliar, com obra de pedreiro já concluída, sita no Cabeço dos Moinhos, Casal da Areia, Tavarede, Figueira da Foz, composta por cave, destinada a garagem e arrumos, quatro quartos, sala, cozinha e três casas de banho, edificada no lote G, inscrito na matriz predial urbana, sob o artigo 2124º da freguesia de Tavarede, e descrito na competente Conservatória do Registo Predial, sob o n.º 00988.
2. Simultaneamente, na mesma data, os mesmos outorgantes, acima referidos, mais, concretamente, aquele E... e a requerente, elaboraram outro documento, intitulado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, no qual a requerente promete vender àquele, pelo preço de 125 000,00€, os seguintes bens:
a) fracção autónoma, designada pela letra “P”, correspondente ao 3º andar direito, do lado Poente, destinado a habitação, com um arrumo no sótão, do lado Norte, o segundo a contar do Poente, situado em Vale Sampaio, Tavarede, Figueira da Foz e
b) fracção autónoma, designada pela letra “B”, correspondente a uma garagem na cave, do lado Norte, a primeira a contar do Poente, do prédio urbano, sito em Vale Sampaio, Tavarede, Figueira da Foz, ambos inscritos na matriz urbana respectiva, sob o artigo 2660º, e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz, sob o n.º 01571.
3. Pretextando que se encontrava numa situação de divórcio com sua esposa, também sócia gerente da referida “F....”, aquele E... conseguiu convencer os requeridos a efectuarem novos contratos promessa de compra e venda, alterando o valor e os sujeitos das respectivas transacções.
4. A “F...”, nesse acto, de novo, representada pelo sócio gerente E..., prometia vender aos requeridos a mesma vivenda, pelo preço global e simulado de 195 000,00€.
5. Por sua vez, noutro documento, intitulado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, os requerentes prometiam vender, pelo preço simulado de 78 500€, as mesmas fracções de que eram proprietários, a A... e mulher B..., irmã daquele E....
6. Os requerentes só conheceram A... e mulher, B..., no acto da escritura, e nunca com eles, até essa altura, tiveram qualquer tipo de contactos ou negócios.
7. Porque toda esta negociação levantasse fundados receios aos requerentes, aquele E... deslocou-se, propositadamente, ao Algarve, onde os requerentes se encontravam a passar férias, tranquilizando-os e garantindo-lhes que para eles não havia qualquer prejuízo, elaborando, de imediato, uma declaração com os seguintes dizeres:
“A empresa “F...”, com sede em (…) representada por E..., declara que indicou o nome de A... e B... para que lhe fosse vendido o apartamento tipo T3 com garagem e arrumo no sótão, constituído pela fracção P e B respectivamente, sito na praceta António de Oliveira Lopes, n.º 4 – 3º Dto., Tavarede, Fig. Foz, pelo preço real de 125 000 €, considerando que esse montante corresponde à entrada inicial conforme consta no contrato de promessa compra e venda celebrado a 14 de Julho do corrente ano, entre esta empresa e a Sr.ª C.... Deste modo, ficará só por fazer a escritura de transmissão da propriedade da vivenda sita na Urbanização de Cabeço dos Moinhos, Lote G, Tavarede – Figueira da Foz contra a entrega da quantia de 150 000€, uma vez que como se refere o apartamento acima indicado foi avaliado em 125 000€”.
8. Ambos os negócios, ou seja, ambos os contratos promessa de compra e venda, se encontravam conexionados, ou seja, o preço real de 125 000€ pelo qual os ora requerentes prometiam vender as fracções de que eram proprietários, funcionava como sinal e princípio de pagamento da vivenda que aquela empresa “F...” àqueles prometia vender, pelo preço real de 275 000€.
9. Foram marcadas, em Coimbra, ambas as escrituras, a das fracções autónomas, de que a requerente era proprietária, para o dia 30 de Agosto de 2005, e a da vivenda, de que a sociedade “F....” é proprietária, para o dia 6 de Setembro de 2005, nas instalações do “Banco Santander Totta SA”, Atrium Solum, em Coimbra.
10. No dia 30 de Agosto de 2005, no 2º Cartório Notarial de Coimbra, foi celebrada uma escritura pública, intitulada “Compra e Venda”, na qual figuram, como outorgantes, os requerentes e os requeridos, e da qual fazem parte, nomeadamente, os seguintes dizeres:
“Pela primeira outorgante (C...) foi dito: Que pela presente escritura vende aos segundos outorgantes pelo preço global já recebido segundo declarou de setenta e oito mil e quinhentos euros, as seguintes fracções autónomas:
UM – Por setenta e cinco mil euros, a fracção identificada pela letra “P” – terceiro andar direito do lado poente, destinado a habitação, com um arrumo no sótão do lado norte, o segundo a contar do poente (…); e
DOIS – Por três mil e quinhentos euros, a fracção identificada pela letra “B” – garagem na cave do lado norte, a primeira a contar do poente (…), que fazem parte do prédio urbano sito em Vale Sampaio, lote “A”, freguesia de Tavarede, concelho da Figueira da Foz, inscrito na matriz sob o artigo 2660, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Figueira da Foz sob o número mil quinhentos e setenta e um, freguesia de Tavarede (…)
Disseram os segundos outorgantes (A... e mulher B...) que aceitam este contrato (…)
Pelo terceiro outorgante (D...) foi dito que dá o consentimento a sua esposa a efectuar a presente venda (…)”.
11. Neste acto, os requerentes receberam dos requeridos um cheque, no montante de 78 500,00€, por estes passado, em nome daquela.
12. Encontrando-se marcada, para o dia 6 de Setembro de 2005, a escritura de compra da vivenda em causa, nas instalações do Atrium Solum, em Coimbra, do “Banco Santander Totta SA”, foram os requerentes, por este, informados, em 5 de Setembro, de que a mesma escritura não podia ser realizada, porque o banco tinha tido conhecimento, via fax, que sobre o imóvel pendia uma acção de arresto, entregue no Tribunal Judicial da Figueira da Foz, em 5 de Setembro de 2005, o que inviabilizava a formalização da escritura, acto que não podia ser imputado aos requerentes, mas sim à empresa vendedora.
13. Foi marcada uma reunião, na instituição bancária referida em 11, entre os requerentes, o gerente do banco e E..., que se realizou, no dia 8 de Setembro de 2005.
14. O E..., na presença de todos os intervenientes nessa reunião, afirmou que nunca tinha sido sua intenção arrastar os requerentes para os seus problemas pessoais, e que dava o negócio da vivenda sem efeito, ao mesmo tempo que devolveu aos requerentes o cheque de sinal, no montante de 45 000€, que tinha na sua posse.
15. Na reunião referida em 13, e na presença de todos os nela intervenientes, é passado um cheque visado de 80 000€, em nome da requerente, com o n.º 3300000001, relativo a uma conta titulada por Maria Manuela Santos Jordão Mota Pereira.
16. O referido cheque ficou guardado, nas instalações do “Banco Santander Totta”, Atrium da Solum, em Coimbra.
17. Por fax, datado de 25 de Outubro de 2005, a requerente solicita ao referido banco que deposite o cheque na conta que no mesmo tinha.
18. A requerente foi informada, telefonicamente, que o cheque havia sido devolvido.
19. Os requeridos, intervenientes na escritura, eram conhecedores de toda esta situação.
20. Já houve pessoas que procuraram os requerentes para verem as referidas fracções, no sentido de as adquirirem.
21. Os requerentes estão ainda a ocupar as fracções referidas em 2.

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Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir no presente agravo, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC), são as seguintes:
I – A questão da admissibilidade da prova testemunhal na simulação invocada pelos simuladores contra escritura pública.
II – A questão da oponibilidade aos requeridos dos restantes meios de prova produzidos.

I

DA ADMISSIBILIDADE DA PROVA TESTEMUNHAL NA SIMULAÇÃO

Entendem os requeridos que não é possível a produção de prova testemunhal na simulação, quando invocada pelos simuladores, reportada, na hipótese em apreço, a uma escritura pública realizada, eventualmente, por um preço inferior ao real.
Na fundamentação de direito, a Exª Juiz considera que da conjugação do acervo documental carreado para os autos com os depoimentos das testemunhas inquiridas, resulta, indiciariamente, provado que a outorga da escritura em apreço foi realizada por um valor inferior ao real, e que os intervenientes na mesma, mormente os requeridos, o fizeram para que o verdadeiro interessado no negócio não tivesse que participar no mesmo, em virtude de se encontrar em processo de divórcio.
Por seu turno, importa registar que o Tribunal formou a sua convicção, com base na conjugação dos depoimentos das testemunhas inquiridas e dos documentos juntos aos autos, a folhas 12 a 42.
Assim, a este propósito, as testemunhas António Augusto Cavaleiro Ângelo e Nuno Alexandre Costa mostraram saber da existência dos contratos promessa que foram outorgados e quem foram os seus intervenientes, iniciais e posteriores, o motivo da mudança de outorgantes e de valores, nos segundos contratos promessa, e da conexão havida entre as duas vendas.
A isto acresce que, da parte mais impressiva dos documentos, consta que E..., em representação da empresa “F...”, declarou, em documento complementar, que indicou o nome de A... e B..., ou seja, os requeridos desta providência, em substituição do seu, para que lhes fossem vendidos o apartamento, tipo T3, com garagem e arrumo no sótão, pelo preço real de 125000 €, quando é certo que, no respectivo contrato de promessa, anteriormente celebrado, a 14 de Julho de 2005, havia sido acordado o mesmo preço, enquanto que na escritura pública de compra e venda, celebrada a 30 de Agosto seguinte, ficou a constar o correspondente preço de 78500€.
Esta singela factualidade significa, pura e simplesmente que, desde a feitura do contrato promessa até á celebração da escritura pública, apenas o imóvel e a pessoa do seu proprietário e promitente vendedor se mantiveram constantes, tendo sido alterados o preço e as pessoas dos promitentes compradores, mas não sem que, em documento complementar, redigido entre estes dois momentos temporais, o promitente comprador reiterasse o preço inicial convencionado e indicasse as pessoas a quem o prédio deveria ser vendido, muito embora o contrato promessa não fosse na modalidade de pessoa a designar, que funcionaram como verdadeiras testas de ferro, numa altura em que aquele, por se encontrar numa situação de divórcio com o cônjuge, não pretendia comunicar-lhe o património que adquirisse, mas sem querer prescindir das vantagens do negócio.
A simulação traduz-se, nos exactos termos do disposto pelo artigo 240º, nº 1, do Código Civil (CC), na divergência intencional entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, mediante acordo entre este e o declaratário, com o intuito de enganar terceiros.
Efectivamente, não é admissível a prova testemunhal, designadamente se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, quando o facto estiver, plenamente provado, por documento ou por outro meio com força probatória plena, ou se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores, como decorre do preceituado pelos artigos 393º, nºs 1 e 2 e 394º, nº 1, ambos do CC.
Constituindo exigência legal da validade do contrato de compra e venda de bens imóveis a sua celebração, através de escritura pública, em conformidade com o estipulado pelos artigos 875º, do CC, e 80º, nº 1, do Código do Notariado, o negócio jurídico é nulo quando tal formalidade não for observada que, assim, se eleva a uma formalidade «ad substantiam», atento o disposto pelos artigos 220º e 364º, nº 1, ambos do CC, sendo, portanto, irrelevante qualquer outra espécie de prova, para além da documental, ficando, assim, excluída a prova testemunhal.
Porém, o valor probatório pleno do documento autêntico não respeita a tudo o que nele se diz ou contém, mas, tão-só, aos factos que se referem como praticados pela autoridade ou oficial público, e bem assim como quanto aos factos que neles são atestados, com base nas percepções da entidade documentadora, nos termos do preceituado pelo artigo 371º, nº 1, do CC.
O que da escritura pública se deve considerar como, plenamente provado, é o que os outorgantes disseram, mas não já que sejam verdadeiras as suas afirmações ou que as mesmas se possam considerar a coberto da alegação do vício de erro, dolo ou coacção ou da falta de vontade, por simulação .
Por isso, nada impede que se recorra á prova testemunhal para demonstrar o vício ou a falta de vontade, com base nos quais se impugna a declaração documentada, não garantindo, portanto, o documento que as declarações não estejam adulteradas por erro, dolo, coacção ou simulação .
O princípio geral da inadmissibilidade da prova testemunhal, relativamente a convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico, com base na formulação irrestrita do artigo 394º, nº 1, do CC, neste caso, a declaração constante de documento complementar anterior à formação da escritura pública de compra e venda , destina-se a defender a autoridade e a estabilidade dos documentos conta a falibilidade da prova testemunhal, de acordo com a máxima «lettres passent témoins» .
Porém, na hipótese de a simulação ter sido tornada verosímil, por um começo ou princípio de prova por escrito, já é admissível a prova por testemunhas para interpretar o contexto dos documentos ou completar a prova documental, desde que se verifiquem, cumulativamente, os requisitos da existência de um escrito, a sua proveniência daquele contra quem a acção é dirigida ou que o represente e, por fim, a verosimilhança do facto alegado , todos eles, aliás, sumariamente, indiciados.
Neste caso, justifica-se uma interpretação restritiva do estipulado pelo artigo 394º, do CC, que, sem por em causa a «ratio» do preceito, nem sobrepor à certeza da prova documental a fragilidade e a falibilidade da prova testemunhal, atenue a limitação dos meios de prova disponíveis a que a letra da lei conduz, a fim de que, a partir dos documentos trazidos aos autos, seja possível formar uma primeira convicção, relativamente à simulação de certo negócio jurídico, recorrendo aos depoimentos de testemunhas com vista a confirmar ou infirmar essa convicção .



Ora, não sendo questionável o valor de prova plena do documento, quanto às declarações negociais das partes nele representadas, atento o preceituado pelo artigo 371º, nº 1, do CC, o mesmo já não se passa, em princípio, quanto à conformidade das suas declarações com a respectiva vontade real, ou seja, quanto ao valor de prova plena da sua veracidade , não tendo ficado provado que sejam sinceras as afirmações dos outorgantes, mas antes que foram afectadas por acto simulado.
Estabelecido que um documento autêntico tem força probatória plena, as declarações dos seus autores, indiscutíveis na sua materialidade, têm a eficácia que lhes competir, segundo outras normas de direito material, alheias ao instituto do documento, ou seja, revestindo a natureza de declarações de ciência, terão, se desfavoráveis, eficácia como confissão, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 376º, nº 2 e 358º, do CC , enquanto que, se forem declarações de vontade, se constituírem ou integrarem um negócio jurídico, a validade deste só poderá ser posta em causa, nas hipóteses tipificadas de divergência entre elas e a vontade real dos declarantes ou de vício na formação desta , porquanto, tratando-se de declarações de índole dispositiva ou negocial, o documento vale como título constitutivo da obrigação, faz prova plena do negócio jurídico realizado, a qual, porém, não se estende, nem à sinceridade, nem à eficácia jurídica das declarações .
Na hipótese em apreço, as declarações de vontade das partes subscritoras do documento em análise, constituem, por si só, um contrato de compra e venda, porquanto este não é um negócio real «quoad constitutionem», mas antes um negócio real «quoad effectum», em que a constituição da relação contratual não depende da entrega da coisa, que não é seu elemento constitutivo, uma vez que basta, para a celebração do negócio jurídico, o consenso das partes, dando-se, por via de regra, a transferência do direito, designadamente real, objecto do negócio jurídico, por mero efeito do contrato, nos termos do disposto pelo artigo 408º, nº 1, do CC .
E, mesmo para quem entenda que a declaração não é o único elemento da estrutura do negócio jurídico, mas, também, igualmente, a vontade real das partes, tal não significa que esta tenha de ser provada, representando a declaração um facto constitutivo da situação jurídica resultante do negócio jurídico, enquanto que a falta da vontade real correspondente constitui, com sujeição aos requisitos exigidos para cada tipo de divergência entre a vontade real e a vontade declarada, um facto impeditivo dos efeitos da declaração, que, como tal, tem de ser alegado por aquele contra quem o negócio jurídico é feito valer.
Assim, só através da alegação e da prova da ocorrência de algum dos casos tipificados de divergência entre a vontade e a declaração das partes ou de vício na formação da vontade, é que podia ser posta em causa, não já a força probatória do documento que formalizou o contrato de compra e venda, que faz prova plena do facto constitutivo do contrato, mas a sua validade ou eficácia jurídica .
A divergência entre a vontade real e a vontade declarada das partes traduz-se, na simulação, em cindir os efeitos vinculativos do negócio jurídico (internos, entre as partes), dos seus efeitos reflexos (externos, perante terceiros), querendo apenas estes, destacados do seu fundamento normal, que é o próprio vínculo negocial, porquanto, ao celebrarem o negócio, as partes não querem para si o que declaram querer, pretendendo, tão-só, criar uma aparência negocial para enganar terceiros.
Com efeito, a prova da simulação faz-se, quase sempre, por meio de indícios ou presunções, mais ou menos frisantes, de onde transpareça e se deixe inferir a existência da simulação.
Inexiste, pois, qualquer obstáculo de natureza legal, no âmbito do acordo simulatório e do negócio dissimulado, à admissibilidade da prova testemunhal como meio complementar de um princípio de prova escrita contextualizada, sendo esta, por si só, insuficiente para demonstrar a simulação, com vista a confirmar ou infirmar a primeira convicção formulada.
Nesta sequência, alegam os requeridos que deve ser declarado como não escrito o ponto 5 da matéria de facto provada, na parte em que refere "pelo preço simulado" [5. Por sua vez, noutro documento intitulado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, os requerentes prometiam vender pelo preço simulado de €78500 as mesmas fracções de que eram proprietários, a A... e mulher B..., irmã daquele E...], por força das disposições conjugadas dos artigos 646º, n° 4 e 655º, n° 2, ambos do CPC.
Este ponto nº 5 da matéria de facto provada corresponde, no seu núcleo essencial, à matéria alegada pelos requerentes, no artigo 5º do requerimento inicial, referindo-se na respectiva motivação do julgamento de facto que a mesma se formou, com base na conjugação dos depoimentos das testemunhas e dos documentos juntos aos autos que, neste particular, acrescenta-se agora, outro não pode ser senão aquele que consta de folhas 24 a 26, de cujo texto aquela factualidade foi extraída.
Convém, desde já, salientar que a matéria do “quesito” em análise, retirada de um documento particular, cuja genuinidade e autenticidade os requeridos não impugnaram, nem a respectiva falsidade arguíram, prova, plenamente, que os autores do documento fizeram as declarações que lhes são atribuídas, sendo importante não esquecer que, neste documento, são outorgantes os agravantes e a requerente, razão pela qual os factos compreendidos na declaração e contrários aos interesses daqueles valem, a favor desta última, nos termos da confissão, sendo indivisível a declaração, atento o preceituado pelos artigos 373º, nº 1, 374º, nº 1 e 376º, nºs 1 e 2, todos do CC, e 659º, nº 3, do CPC.
Assim, a aludida matéria ficaria a constar dos “factos assentes”, se a presente causa fosse uma acção com processo comum, sumário ou ordinário, o que significa que se trata de factos que se devem considerar provados, com base em documentos, não necessitando de outra prova, por não serem controvertidos e, portanto, não seriam objecto de instrução, atento o estipulado pelo artigo 513º, do CPC, e, consequentemente, não necessitam de qualquer fundamentação fáctica suplementar.
Como assim, não se mostrando que a aludida resposta se tenha baseado, exclusiva ou basicamente, em prova testemunhal, não ocorre sustentáculo legal bastante para a considerar como não escrita, em conformidade com o estatuído pelo artigo 646º, nº 4, do CPC.

II

DA OPONIBILIDADE DOS DEMAIS MEIOS DE PROVA

Entendem os requeridos que lhes não são oponíveis os demais meios de prova, por aos mesmos serem alheios, não podendo ser apreciados na decretação do arrolamento.
Neste particular, diga-se, desde já, que, se num dos contratos promessa, assinado com data de 14 de Julho de 2005, apenas figuram como outorgantes a requerente C... e E..., como promitente vendedora e promitente comprador, já, no segundo contrato promessa, referente às mesmas fracções autónomas, assinado com a mesma data, como se de um contrato paralelo de tratasse, figuram a aludida C... e os ora requeridos, como promitente vendedora e promitentes compradores, respectivamente, enquanto que, na escritura pública surgem a requerente e estes, ora recorrentes, como vendedora e compradores, correspondentemente, sendo certo que o aparecimento em cena dos últimos é o corolário lógico de um conluio tripartido, em que participaram a requerente, os requeridos e o aludido E..., forjado por concepção moral deste, a braços com um processo de divórcio com a esposa, a fim de subtrair à comunhão conjugal uma parcela do património adquirido ainda na constância do matrimónio.
A prova, indiciariamente, produzida, já que de uma providência cautelar se trata, aponta neste sentido, e faz convencer o Tribunal, porquanto o direito relativo aos bens a arrolar está dependente de acção de anulação por simulação, proposta ou a propor, da sua procedência, nos termos do disposto pelo artigo 423º, nº 1, sendo certo que o arrolamento, de cuja decisão os requeridos recorrem, foi decretado, a solicitação da requerente, com dispensa do prévio cumprimento do contraditório, em relação aos requeridos, em consonância com o estipulado pelo artigo 385º, nºs 1 e 6, ambos do CPC.
Sendo os requeridos os adquirentes fictícios das duas fracções autónomas, que compraram à requerente, sem aparente realização de qualquer contraprestação da sua parte, só a concertação das suas intenções com o referido E..., verdadeiro cérebro da operação estratégica, justifica a assunção da posição de subalternidade a que se quedaram, na prossecução de interesses que, indiciariamente, parecem não ser os seus, mas antes os daquele, mas à qual os requerentes, durante algum tempo, se associaram.
Não se vê como, com o devido respeito, não sejam oponíveis aos agravantes os demais meios de prova suficientes para alcançar a procedência do arrolamento, não colhendo, assim, as conclusões constantes das alegações dos requeridos.

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CONCLUSÕES:

I - Inexiste qualquer obstáculo, de natureza legal, no âmbito do acordo simulatório e do negócio dissimulado, à admissibilidade da prova testemunhal como meio complementar de um princípio de prova escrita contextualizada, sendo esta, por si só, insuficiente para demonstrar a simulação, com vista a confirmar ou infirmar a primeira convicção formulada, interpretando-se, restritivamente, o estipulado pelo artigo 394º, do CC, de modo a atenuar a limitação dos meios de prova disponíveis a que a letra da lei conduz, mas sem por em causa a «ratio» do preceito, nem sobrepor à certeza da prova documental a fragilidade e a falibilidade da prova testemunhal.
II – Inexiste fundamento legal para considerar não escrita a resposta a um ponto da matéria de facto, em procedimento cautelar, retirada de um documento particular que constitui prova plena, não se mostrando que a mesma se tenha baseado, exclusiva ou basicamente, em prova testemunhal.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar não provido o agravo e, em consequência, em confirmar, inteiramente, a douta decisão recorrida.

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Custas, a cargo dos requeridos-agravantes.