Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3291/07.2TVLSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: NUNES RIBEIRO
Descritores: APREENSÃO DE VEÍCULO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
CRÉDITO AO CONSUMO
ADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 03/11/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALBERGARIA-A-VELHA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 15º, N.º1 E 18º, N.º1 DO CITADO DECRETO-LEI N.º 54/75 DE 12 DE FEVEREIRO E DEC. LEI Nº 358/91, DE 21/09
Sumário: 1. Os art.ºs 15º, n.º1 e 18º, n.º1 do Dec. Lei nº 54/75 de 12 de Fevereiro, não conferem legitimidade ao mutuante para instaurar a providência cautelar de apreensão de veículo, requerida, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, com fundamento no incumprimento contrato de crédito ao consumo, que teve por objecto o financiamento da aquisição pelo requerido, a terceiro, de uma viatura automóvel, ainda que o mutuante tenha conseguido registar a seu favor a reserva de propriedade do veículo vendido.

2. Muito embora seja titular do registo de reserva de propriedade do veículo, não é legítimo ao mero mutuante o recurso à providência cautelar de apreensão prevista no Dec. Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, uma vez que, não tem legitimidade para intentar a acção de resolução do contrato de alienação, de que é dependência o procedimento e a que se reporta o mencionado art.º 18 nº 1 (parte final) daquele Dec. Lei.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

A..., com sede na ....., em Lisboa, requereu, nas Varas Cíveis de Lisboa, ao abrigo do Dec. Lei nº 54/75, de 12/02, contra B... , residente na ......, procedimento cautelar de apreensão do veículo automóvel, com a matrícula X...., invocando, para o efeito, a falta de pagamento das prestações n.º 15 a 19, correspondentes aos meses de Junho a Outubro de 2006, relativas a um contrato de financiamento, no montante global de € 32 279,16, celebrado com o requerido, tendo em vista a compra, por parte deste, a C.... , de um veículo automóvel da marca BMW, com a aludida matrícula X..., e de que foi constituída reserva de propriedade a favor da requerente, conforme certidão do registo comercial de fls. 25 dos autos.

Conclui, assim, pelo decretamento da presente providência cautelar, sem audiência do requerido, ordenando-se a restituição imediata da viatura, o que passa pelo sua apreensão, bem como os respectivos documentos, ao abrigo do disposto no artigo 15º do aludido Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, os quais deverão ficar à guarda de fiel depositário, que indica.

Excepcionada a incompetência territorial das Varas Cíveis e remetidos, em consequência, os autos à comarca de Albergaria-a-Velha, aqui veio a ser proferida decisão que indeferiu liminarmente a providência, com fundamento, em resumo, de que a cláusula de reserva da propriedade invocada pela requerente não era legalmente admissível e que a acção, de que depende a providência e a que aludem os artºs 15º, n.º1 e 18º, n.º1 do citado Decreto-Lei n.º 54/75, se trata de uma acção de resolução do contrato de alienação, para a qual não tem legitimidade o mutuante ainda que tenha conseguido registar a seu favor a reserva de propriedade do veículo vendido.  

Inconformada, a requerente interpôs o presente agravo, cuja alegação conclui sustentando a revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que ordene a restituição do veículo à recorrente, por ser legítimo o recurso por parte da mutuante, como reserva de propriedade, à providência cautelar regulada no Dec. Lei nº 54/75 e, consequentemente, à acção principal referida no art.º 18º deste mesmo diploma, dado estarmos, em última análise, na presença de «uma sub-rogação quer nos riscos quer nas garantias do mutuante pelo vendedor», conforme o disposto no art.º 591º do C. Civil. 

O Sr. Juiz recorrido sustentou o seu despacho.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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                  Os Factos

Os factos pertinentes ao conhecimento do objecto do recurso são os que emergem do precedente relatório e aqui se dão por integralmente reproduzidos.

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O Direito
 Como é sabido são as conclusões da alegação que delimitam o objecto do recurso (art.ºs 684º n.º 3 e 690º n.º 1 do C.P.Civil), não podendo o tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.
Vejamos, então, se deve ou não ser admitida a providência cautelar de apreensão de veículo, requerida, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, com fundamento no incumprimento contrato de crédito ao consumo, que teve por objecto o financiamento da aquisição pelo requerido, a terceiro, de uma viatura automóvel, encontrando-se, todavia, a reserva de propriedade constituída não favor do vendedor do veículo, mas sim a favor da requerente mera mutuante.
Antes, porém, convirá dizer que esta é uma questão que tem dividido a jurisprudência dos nossos tribunais, já que enquanto uma parte aceita a possibilidade legal da financiadora da aquisição poder servir-se do procedimento cautelar previsto no citado Dec. Lei nº 54/75, outra boa parte nega essa possibilidade.[2]

A decisão recorrida que se filia nesta segunda orientação – por nós também perfilhada – concluiu, além do mais, que os art.ºs 15º, n.º1 e 18º, n.º1 daquele mencionado Dec. Lei nº 54/75 não conferem legitimidade ao mutuante para o efeito, ainda que este tenha conseguido registar a seu favor a reserva de propriedade do veículo vendido; e, por isso, indeferiu a requerida providência .  
E a questão foi na decisão recorrida - merecedora do nosso total aplauso - tão criteriosa, pormenorizada e cabalmente analisada e tratada que se justifica fazer uso do disposto no art.º 713º n.º 5 do C. P. Civil e, consequentemente, remeter, fazendo-os nossos, para os fundamentos nela expendidos.
 De todo o modo, sempre adiantaremos que também nós não conseguimos descortinar, desde logo, como é que – dependendo sempre o procedimento cautelar da acção cujo efeito útil visa acautelar (art.º 383º nº 1 do C.P.Civil), o qual caduca se a acção não vier a ser proposta tempestivamente ou no caso de vir a ser julgada improcedente (art.º 389º do C.P.Civil), e estabelecendo, por outro lado, o citado artigo 18º, n.º 1 (parte final) do Dec. Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, que a acção correspondente à providência cautelar de apreensão é a acção de resolução do contrato de alienação – um mero mutuante ou financiador poderá pedir a resolução do contrato de compra e venda em que não é parte.  
E isto sem sequer questionarmos, por outro lado, a licitude ou possibilidade legal de um simples financiador poder ficar como titular da reserva de propriedade de um bem que não vendeu, por não ser seu (o único contrato celebrado por requerido e requerente e por esta junto aos autos, a fls 24, é um contrato de crédito, no qual não intervém o vendedor da viatura que esse contrato visou financiar). 
Não é que, por acordo entre alienante e comprador, a transferência de propriedade não possa ser livremente colocada na dependência, nomeadamente do pagamento de uma dívida de terceiro (acordo que se, no caso, existiu não consta dos autos); o que não se compreende é que um mutuante possa tomar a iniciativa de reservar para si a propriedade de um bem que não é seu. Pois que, como decorre do art.º 409º do C. Civil, a reserva de propriedade é uma convenção estabelecida entre vendedor e comprador pela qual o alienante reserva para si a propriedade da coisa, até ao pagamento integral do respectivo preço, só então se transmitindo a propriedade dela.
Diferentemente, porém, do que alegou nos art.º 20 e 21 do requerimento inicial (em que se afirmara «única e legítima proprietária da viatura» e com «o direito à restituição da mesma», pelo facto de o requerido não ter «cumprido o contrato celebrado» consigo), a agravante vem agora dizer nas suas alegações que o recurso à providência cautelar por si instaurada e à acção principal aludida no art.º 18º do Dec. Lei nº 54/75 se justifica, a afinal, por estar em causa «uma sub-rogação quer dos riscos quer das garantias, do mutuante pelo vendedor», nos termos do art.º 591º do C. Civil. Só que, se assim é, isso devia resultar do contrato junto aos autos a fls 24 pela requerente, e não resulta.
Com efeito – como ressalta do nº 2 do citado art.º 591º do C. Civil e esclarecem Pires de Lima e Antunes Varela[3] – muito embora a sub-rogação em consequência de empréstimo feita pelo devedor não necessite de consentimento do credor, exige, todavia, que no documento do empréstimo seja feita, tanto a declaração de sub-rogação, como a de que a coisa emprestada se destina ao cumprimento da obrigação.
 Mas, como já dissemos, do exame do contrato, junto a fls. 24, celebrado pela ora agravante A... e pelo requerido B..., constata-se que nada ficou consignado a tal propósito.
Assim, não se tratando o crédito ajuizado de um crédito hipotecário, não era legítimo à requerente, muito embora titular do registo de reserva de propriedade do veículo, o recurso à providência cautelar de apreensão prevista no Dec. Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, uma vez que, enquanto mera mutuante, não tem legitimidade para intentar a acção de resolução do contrato de alienação, de que é dependência o procedimento e a que se reporta o mencionado art.º 18 nº 1 (parte final) daquele Dec. Lei, como bem decidiu o tribunal recorrido.
Aliás, se fosse intenção do legislador conferir ao mero concedente de financiamento para aquisição de bens de consumo, interveniente em contrato de crédito ao consumo regulado no Dec. Lei nº 358/91, de 21/09, igual faculdade à que aquele referido Dec. Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, concede ao vendedor do veículo a prestações com reserva de propriedade, não lhe teriam faltado oportunidades de o fazer nas posteriores e sucessivas alterações que lhe introduziu, concretamente pelo Dec. Lei nº 182/2002, de 20/08, Dec. Lei nº 178-A/2005, de 28/10, Dec. Lei nº 85/2006, de 23/05 e, muito recentemente, pelo Dec. Lei nº 20/2008, de 31/01.

Decisão
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao agravo e confirmar a douta decisão recorrida.
Custas pela agravante.


[1] Relator: Nunes Ribeiro
  Desembargadores Adjuntos: Dr. Hélder Almeida e Dr. Alexandre dos Reis
[2] Vide, entre outros, o Ac R.L. de 22-05-07, in Col Jur. Ano XXXII, tomo III pag. 80 e segs, e jurisprudência nele citada.
[3] Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed. revista e actualizada, pag 607.