Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1868/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: HÉLDER ROQUE
Descritores: CONTRATO A FAVOR DE TERCEIRO
REVOGAÇÃO DE MANDATO
JUSTA CAUSA
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 07/11/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA MISTA DE COIMBRA - 2ª SECÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 443.º N.º1, 444.º N.ºS 1 E 2, 448.º N.º 1 E 2, 1170.º N.º2 E 334.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. No contrato a favor de terceiro, quando o terceiro não manifestou a sua adesão à promessa e inexiste estipulação em contrário esta é revogável pelo promissário, a menos que tenha sido feita no interesse de ambos os outorgantes, como acontece na hipótese de mútuo oneroso, a favor de outrem, em que os dois contraentes são interessados na promessa, dependendo a sua revogação do consentimento do promitente.

2. O mandato conferido também no interesse do mandatário não pode ser revogado pelo mandante sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa.

3. A conduta assumida pelo réu, ao utilizar uma procuração que continha um negócio consigo mesmo, contra a vontade da autora, sem ter efectuado o pagamento da dívida à CCAMC e registando, a seu favor, a hipoteca do imóvel, propriedade da autora é fundamentadora de justa causa da revogação do mandato.

4. O exercício do direito, pelo réu, de constituir uma hipoteca, a seu favor, sobre o prédio da autora, sem pagar a dívida de que aquela era garantia e de, em sede de reclamação de créditos, inicialmente reclamar uma quantia muito superior daquela que representava o valor do mútuo dado à autora, viola o princípio da boa fé, representando um acto abusivo, ilegítimo, na modalidade da “surrectio”, que determina a nulidade do contrato de constituição da hipoteca voluntária.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


A..., viúva, residente na Rua General Humberto Delgado, Ribeira de Frades, Coimbra, propôs a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra B... e esposa, C..., residentes em Miranda do Corvo, pedindo que, na sua procedência, seja revogada a procuração outorgada pela autora, a favor do réu marido, cancelado o registo de hipoteca, a favor dos réus, sobre o prédio descrito, e declarada perdida, a favor da autora, a quantia recebida como sinal, no montante de 49879,79€, alegando, para o efeito, e, em síntese, que, em 2 de Julho de 2001, a autora subscreveu um documento de confissão de dívida, nos termos do qual se considerava devedora, para com o réu marido, da quantia total de 112.229,52€, sendo certo que, apesar dessa declaração, apenas recebeu o montante de 49879,79€, obrigando-se o réu a destinar o restante, no quantitativo de 42397,82€, para entrega na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Coimbra (CCAM), com vista ao pagamento de uma dívida de e sua ex-mulher a essa instituição, e 19951,92€, para entrega à autora, na data da outorga da escritura pública de hipoteca do prédio que, na mesma data, foi objecto de contrato promessa com vista a garantir o valor da confissão de dívida ao ora réu.
Prossegue a autora, alegando que, com a promessa de constituição de hipoteca, constituiu o réu como seu procurador, conferindo-lhe os poderes necessários para, em nome dela e a seu favor, constituir hipoteca sobre o prédio, para garantia do empréstimo, sendo certo, porém, que este não efectuou o pagamento da dívida à CCAM, como, também, não entregou à autora o valor do remanescente a que se obrigara.
Ora, o réu, munido da procuração, registou a seu favor a hipoteca do imóvel, vindo, no processo de execução instaurado pela CCAM, a reclamar um crédito, no montante da suposta dívida, não tendo, contudo, cumprido a promessa de mútuo, o que confere à autora o direito a fazer sua a quantia que recebeu, a título de sinal.
Na contestação, os réus alegam, além do mais, que o débito do réu para com a autora é de apenas 49879,79€, quantia esta que o réu marido pagou, acrescentando que, depois de um longo processo negocial com a CCAM, quando se aprestava para pagar a dívida, foi surpreendido pela informação de que um terceiro, em nome da autora, liquidara aquilo que o réu estava para pagar, acompanhando o réu o desenvolvimento da execução, inexistindo, assim, qualquer risco de venda do bem penhorado, tendo a autora dito ao réu para fazer a escritura, quando quisesse, pois que tinha procuração para o efeito.
O réu pagou ainda, por conta do devido à autora, para além dos 49879,79€, mais 11420,81€, tendo cumprido os pagamentos, propondo-se satisfazer o restante, não fora a autora ter entrado, injustificadamente, em litígio consigo.
A reclamação de créditos, na acção executiva, ocorreu por mera cautela, com a concordância da autora, para evitar que outros credores pudessem colocar-se à frente do réu.
Que a procuração já cumpriu o seu fim, não se entendendo qual o efeito útil pretendido, tendo sido a autora quem impediu o réu de cumprir o prometido, concluindo no sentido da improcedência da acção.
A sentença julgou a acção, improcedente por não provada e, em consequência, absolveu os réus do pedido.
Desta sentença, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com o pedido da sua revogação, formulando as seguintes conclusões:
1ª – Não se conformando a ora apelante com a estrutura decisória ínsita na sentença de mérito proferida nos presentes autos,
2ª - Interpôs recurso ordinário de apelação à luz do comando normativo circunscrito no artigo 691°/1 do Código de Processo Civil (CPC).
3ª - Considera a ora apelante que o douto Tribunal a quo, ao decidir-se pela improcedência da acção, absolvendo os réus do pedido, não relevou convenientemente quer a dinâmica dos factos dados como provados, quer ainda o sistema jurídico enquanto complexo de normas, valores e princípios.
4ª - Temos de afirmar, em conformidade com o lastro doutrinal em matéria processual civil elaborado pelo conceituado autor Crisanto Mandriou, Corso di Diritto Processuale Civile, II, 1997, pág. 359 que estamos perante uma decisão injusta, uma vez que há na sentença ora recorrida uma referência inexacta dos factos ao direito.
5ª - Atenta a dinâmica factual do caso sub iudice considerou o Tribunal que o acordo firmado a 2 de Julho de 2001 consubstanciava "um contrato final, definitivo (misto de mútuo e de obrigação por parte do réu de pagamento de quantia a terceiros)". Porém, salvo o devido respeito,
6ª - Considera a ora apelante que esta tese é, atenta a moldura fáctica que informa o presente caso, insustentável. Isto porque,
7ª - No caso em apreço não estamos perante um só negócio jurídico, cujos elementos essenciais respeitam a tipos contratuais diferentes, mas face
8ª - A uma verdadeira e insofismável união ou coligação de contratos.
9ª - Como ensina o autor Ennecerus kipp Wolf, Tratado II, págs. 7 a 18 "Na união há uma pluralidade de contratos, mantendo cada negócio a sua autonomia".
10ª - A doutrina de João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações Em Geral, Vol. I, 10.a Edição, Almedina, pág. 282, de acordo com a qual "A união ou coligação de contratos trata de dois ou mais contratos que, sem perda da sua individualidade, se acham ligados entre si por certo nexo".
11ª - Esclarece este Autor, ob. citação, págs. 282 e 283 que o nexo que preside a muitos desses contratos é um nexo funcional: “trata-se de um vínculo substancial que pode alterar o regime normal de um dos contratos ou de ambos, por virtude da relação de interdependência que eventualmente se crie entre eles".
12ª - Dilucida o mesmo autor, ob. citação, pág. 283 que "A relação de dependência (bilateral ou unilateral) assim criada entre dois ou mais contratos pode revestir as mais variadas formas. Pode um dos contratos funcionar como condição, contraprestação ou motivo do outro; pode a opção por um ou outro estar dependente da verificação da mesma condição; muitas vezes constituirá um deles a base negocial do outro (cfr. arts. 252°/2 e 1437°,1), etc.
13ª - Os contratos celebrados entre a ora apelante e apelado porquanto à sua função económica, porquanto aos seus sujeitos, porquanto às suas vicissitudes, estão indissoluvelmente ligados, reflectindo-se a vigência de um na vigência do outro.
14ª - Parece indefectível que entre a ora apelante e o apelado se terá, desde logo, realizado um contrato de mútuo tal como o mesmo é configurado pelo artº 1045º, do CC, mas com a obrigação do réu de pagamento de quantia a terceiros.
15ª - Não podemos ignorar que ao lado do mencionado contrato de mútuo coabita um contrato-promessa de hipoteca sobre o prédio urbano sito em Outeiro de Cima, freguesia de Ribeira de Frades, concelho de Coimbra, inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia de Ribeira de Frades sob o art. 601 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n°688/19960411 da dita freguesia de Ribeira de Frades, propriedade da ora apelante.
16ª - Como se depreende do acordo firmado a 2 de Julho de 2001 tal contrato-promessa de hipoteca destinar-se-ia a garantir o valor do mencionado contrato de mútuo cuja clausula acessória, relembramos, consistia na entrega pelo ora apelado de parte da coisa mutuada (€42.397.821 à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Coimbra, instituição bancária perante a qual existia uma dívida em nome de D... e ex-mulher, E..., dívida essa garantida por hipoteca voluntária sobre o prédio urbano melhor descrito supra.
17ª - Não é pois de estranhar que, como se lê no referido acordo junto aos autos, só após o pagamento da dívida à citada Instituição Bancária podia o ora apelado outorgar a escritura de hipoteca sobre o mencionado prédio urbano.
18ª - Foi ainda celebrado um contrato de mandato nos termos do artigo 1770º do Código Civil (CC), através do qual a apelante constitui o ora apelado seu procurador para, em seu nome, constituir hipoteca sobre o imóvel referido.
19ª - Não podemos ignorar, e perfilhando as eloquentes palavras de Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, 1995, pág. 219 que "na base de todos estes contratos reside um nexo de carácter funcional que desempenha um papel tal que lhe podem ser imputados efeitos ou consequências jurídicas novas e diferentes que são próprias de cada um dos contratos unidos entre si, postulando a necessidade para as partes de recorrer à vinculação para alcançarem o efeito pretendido".
20ª - No caso dos autos, o apelado não só não efectuou o pagamento da dívida à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo (Cfr. ponto 10 dos factos
dados como provados), como ainda, munido da procuração que a apelante lhe outorgara, registou a seu favor a de sua mulher a hipoteca do imóvel propriedade da autora (Cfr. ponto 5 dos factos dados como provados).
21ª - Não tendo sido paga a dívida, a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Coimbra fez prosseguir a execução para pagamento da mesma (cfr. ponto 6 dos factos dados como provados).
22ª - E foi também no âmbito dessa execução que surpreendentemente veio o ora apelado com base na hipoteca entretanto constituída sobre o prédio da ora apelada reclamar créditos (cfr. ponto 8 dos factos dados como provados).
23ª - E tendo em conta o nexo funcional que ligava todos aqueles contratos, nunca o ora apelado deveria ter celebrado o contrato de hipoteca sem antes ter efectuado o pagamento da dívida junto da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, configurando esta conduta um exemplo clássico não só de má-fé como ainda de abuso de direito.
24ª - Atenta a moldura fáctica que informa o caso sub iudice e não tendo o ora apelado procedido ao pagamento da divida exequenda junto da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, afigura-se claramente contrário aos ditames da lealdade e probidade não só a celebração pelo ora apelado do contrato definitivo de hipoteca, como ainda a reclamação de créditos feita pelo mesmo na acção executiva instaurada por aquela instituição bancária.
25ª - E nem o facto de ter sido outorgado pela apelante um contrato de mandato irrevogável, no âmbito do qual se conferiam poderes necessários ao apelado para constituir a referida garantia real, derroga tal conclusão.
26ª - O exercício do direito a celebrar o contrato definitivo de hipoteca, ainda que não tendo pago a dívida exequenda à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo porque ofensivo do incindível nexo funcional que liga os contratos celebrados pelos ora apelante e apelado, excede claramente os limites impostos pelo principio da boa-fé, revelando-se, pois, verdadeiramente abusivo nos termos do art. 334° do CC.
27ª - A celebração do contrato definitivo de hipoteca é, face ao regime jurídico vigente, um negócio claramente antijurídico e ilícito, pelo que a ordem jurídica trata o titular do direito cujo exercício se mostre abusivo como se este direito não existisse.
28ª - Afigura-se, de iure, legítimo o pedido de cancelamento do registo de hipoteca a favor do apelado sobre o prédio descrito nos autos, pelo que o mesmo deve ser atendido.
29ª - Não obstante no acordo firmado a 02/07/2001 as partes não terem
expressamente declarado que atribuíam ao montante de €49.879,79 entregue à ora apelante o carácter de sinal, não podemos daí retirar que fica in casu afastado o regime previsto no art. 442° do CC.
30ª - Como esclarece Ana Prata, O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil, Almedina, pág. 743 "A atribuição dessa qualificação pode ser feita tacitamente".
31ª - Sustenta a doutrina que o critério da distinção entre declaração tácita e declaração expressa consagrada pelo art. 217° é o proposto pela teoria subjectiva. Resulta claramente da formulação legal que a inequivocidade dos factos concludentes não exige que a dedução, no sentido de auto-regulamento tacitamente expresso, seja forçosa ou necessária, bastando que, conforme os usos do ambiente social, ela possa ter lugar com toda a probabilidade.
32ª - Em conformidade com o critério de interpretação dos negócios jurídicos consagrado no art. 236° deve entender-se que a concludência de um comportamento, no sentido de concluir "a latere" um certo sentido negocial, não exige a consciência subjectiva por parte do seu autor desse significado implícito, bastando que, objectivamente, de fora, numa consideração de coerência, ele possa ser deduzido do comportamento do declarante.
33ª - Atendendo ao montante do contrato de mútuo em causa e não perdendo de vista os termos do negócio, os usos da prática, as finalidades prosseguidas pelos declarantes e os interesses em jogo no(s) negócio(s) temos de afirmar, em conformidade, que a tranche de €49.879,79 entregue à ora apelante reveste, sem dúvida, a natureza de sinal.
34ª - Assiste à ora apelante o direito de convocar a letra do artigo 442°/2 do CC, de acordo com a qual "Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue", in casu o montante de €49.879,79.
Nas suas contra-alegações, os réus entendem que o recurso deve ser julgado improcedente, confirmando-se, integralmente, a sentença recorrida.
Na sentença recorrida, declararam-se demonstrados, sem impugnação, os seguintes factos, que este Tribunal da Relação aceita, nos termos do estipulado pelo artigo 713º, nº 6, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz, acrescentando-lhe, porém, um facto suplementar, sem submissão a alíneas ou números:
Em 2 de Julho de 2001, a autora e o réu marido emitiram as declarações constantes do documento de folhas 6 a 8, que titularam como «confissão de dívida», cujo teor aqui se dá por, integralmente, reproduzido – A).
Nessa mesma data (2001/07/02), a autora emitiu a declaração constante de folhas 10 a 12, cujo teor aqui se dá por reproduzido, tendo o ora réu declarado aceitar o conteúdo da declaração efectuada pela autora e a «promessa de hipoteca» - B).
Em 2 de Julho de 2001, a autora emitiu a declaração constante de folhas 135, cujo teor aqui se dá por reproduzido, constituindo como seu procurador o ora réu, conferindo-lhe os poderes aí exarados – C).
Por escritura pública de 18 de Outubro de 2001, junta a folhas 176 a 179, e cujo teor aqui se dá por reproduzido, os ora réus declararam, ele, por si próprio e na qualidade de procurador da aqui autora, que a mesma A... se confessa devedora dos aqui réus da quantia de 22.500.000$00, constituindo, a favor destes, uma hipoteca sobre o imóvel aí identificado – D).
Por apresentações de 3 de Julho e 26 de Novembro de 2001, foi efectuado o registo definitivo da hipoteca, referida em D) - ( fls. 97 a 100 ) – E).
Corre os seus termos, pela 1ª Secção da Vara Mista de Coimbra, o processo de execução, registado sob o nº 109/2001, em que é exequente a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Coimbra e executadas a aqui autora, E... e D.., destinada à cobrança coerciva do montante de 5.546.121$00, emergente de um empréstimo concedido pela exequente aos executados E...e D..., nos termos de folhas 136 a 157, que aqui se dão por reproduzidos – F).
Nessa execução, a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Coimbra declarou, em 3 de Abril de 2002, que a quantia exequenda se encontrava paga – G).
Por apenso a essa execução, corre o processo de reclamação de créditos nº 109-A/2001, em que os aqui réus, B... Carvalho e , reclamaram sobre a executada, aqui autora, o montante de 22.500.000$00, nos termos que constam a folhas 172 a 174 – H).
Nesse processo, o aqui réu ofereceu a resposta à impugnação, cuja cópia figura a folhas 119 a 124, cujo teor aqui se dá por reproduzido, e onde, de entre o demais, reduziu o pedido para a quantia de 12.289.666$00 – I).
O réu não efectuou o pagamento de qualquer quantia, na execução, referida em F) – J).
Através do documento, referido em A), o réu comprometeu-se a pagar a quantia exequenda exigida na acção, referida em F) – 1º.
Face ao não pagamento, referido em J), até Fevereiro de 2002, a autora, através de um seu familiar, liquidou à CCAM a quantia exequenda, por esta reclamada na acção, referida em F) – 2º.
Apesar do declarado nos documentos de folhas 6 a 8 e 163 a 166, o réu apenas procedeu à entrega à autora dos seguintes valores: 10.000.000$00, em 2 de Junho de 2001; 1.000.000$00, em 22 de Agosto de 2001, através do cheque nº 8873874117 do BPI, e 300.000$00, em 26 de Outubro de 2001, através do cheque nº 9379069167 do BPI – 3º.
Foi um irmão da autora que, a pedido desta, procedeu à liquidação à CCAM da quantia exequenda, por esta reclamada na acção, referida em F) – 4º.
Existiram negociações entre o réu marido e a CCAM, com vista ao pagamento da quantia exequenda reclamada na acção, referida em F) – 5º.
Em 22 de Agosto de 2001, o réu marido pagou à autora €4987,98 e mais €1496,39, estes através de D... – 8º.
Na reclamação de créditos deduzida pelos réus, B... e esposa, C..., por apenso à execução ordinária movida pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Coimbra contra os executados-reclamados, D... e esposa, E..., e a autora, A..., foi proferido despacho de arquivamento, desde 27 de Abril de 2004, em consequência de requerimento apresentado pelos reclamantes, recebido em juízo, a 6 de Maio de 2002, manifestando a falta de interesse na prossecução da execução, para exigência do crédito por si reclamado, por o mesmo não se encontrar vencido - Documento de folhas

*

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
A questão a decidir, na presente apelação, em função da qual se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC), consiste em definir a qualificação contratual das relações jurídicas celebradas pelas partes e estabelecer as consequências jurídicas correspondentes, em função dos pedidos formulados.

I

DA QUALIFICAÇÃO CONTRATUAL E SUAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS

Efectuada uma síntese da factualidade que ficou consagrada, importa reter que a autora, no dia 2 de Julho de 2001, confessou-se devedora do réu marido da importância de 22500000$00, declarando aquela ter recebido, na mesma data, por conta desse montante, uma primeira prestação de 10500000$00, enquanto que o restante quantitativo, no valor de 12500000$00, seria destinado ao pagamento das dívidas de D e sua ex-mulher, E..., para com a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Coimbra (CCAMC), que ascendiam a cerca de 8500000$00, e que se encontram garantidas, por hipoteca voluntária, constituída sobre um prédio urbano da autora, devendo a importância restante, de cerca de 4000000$00, ser entregue a esta última, na data da celebração da escritura pública de hipoteca do aludido prédio, naquela data objecto de contrato promessa, a efectuar no prazo de 60 dias, destinada a garantir o valor da confissão de dívida ao réu marido, ficando a sua marcação, a cargo deste, na falta de cumprimento da promessa pela autora, com base em procuração irrevogável que, então, lhe foi conferida, pela mesma autora, e que aquele poderia outorgar quando quisesse.
O pagamento à CCAMC, referente à dívida de 12500000$00, seria efectuado, directamente, pelo réu marido, contra documento de distrate do prédio em causa e simultânea outorga de escritura de hipoteca do mesmo, a seu favor, para garantia do valor global do empréstimo, na importância de 22500000$00.
Por escritura pública, datada de 18 de Outubro de 2001, o réu marido, em seu nome próprio e na qualidade de procurador da autora, declarou que esta se confessa devedora, perante os aqui réus, da quantia de 22.500.000$00, constituindo, a favor destes, uma hipoteca sobre o imóvel em causa, tendo os réus declarado que aceitavam a confissão de dívida e a hipoteca constituída.
Na execução movida pela CCAMC contra a ora autora A..., E... e D..., destinada à cobrança coerciva do montante de 5.546.121$00, emergente de um empréstimo concedido pela primeira aos executados E...e D..., a exequente declarou, em 3 de Abril de 2002, que a quantia exequenda se encontrava paga, sendo certo que, no processo de reclamação de créditos, apenso a essa execução, os aqui réus reclamaram, em relação á executada, ora autora, o montante de 22.500000$00 que, posteriormente, reduziram para a quantia de 12.289.666$00.
Não tendo, porém, o réu efectuado o pagamento de qualquer montante da quantia exequenda, não obstante se haver comprometido a fazê-lo, a autora satisfez à CCAMC a quantia exequenda em apreço.
Apesar do teor do documento de «confissão de dívida» e da escritura pública de «empréstimo com hipoteca», o réu apenas entregou à autora, faseadamente, o quantitativo global de 11.600.000$00, correspondente a 57860,55€.
Assentes os factos, importa, de seguida, subsumi-los ao Direito aplicável, com vista à decisão do objecto da apelação.
Declarando-se a autora devedora do réu marido, pela importância de 22500000$00, mas que, comprovadamente, dele apenas recebeu o quantitativo global de 11.600.000$00, este comprometeu-se, perante aquela, a pagar as dívidas de D... e sua ex-mulher, E..., junto da CCAMC, que ascendiam a cerca de 8500000$00, devendo o remanescente do empréstimo, no montante de 12500000$00, ser entregue pelo réu, à autora, após o pagamento da aludida responsabilidade, perante a CCAMC.
Ora, como garantia do pagamento da dívida confessada, a autora, desde logo, passou, a favor do réu, uma procuração irrevogável, destinada à constituição de uma hipoteca voluntária sobre um prédio da mesma, em simultâneo, para a hipótese de não cumprimento de um contrato promessa, na ocasião, celebrado com esse fim.
Tendo o réu constituído, a seu favor, hipoteca voluntária sobre o aludido prédio da autora, com base naquela procuração, não efectuou, porém, o pagamento da quantia a que se comprometera, perante a CCAMC, como ainda, em sede de execução por esta movida contra a autora e os demais executados, reclamou aquele crédito de 22500000$00, posteriormente, reduzido para 12.289.666$00, tendo sido, afinal, a autora quem efectuou o pagamento da totalidade da quantia exequenda.
A linha mestra do raciocínio desenvolvido pela sentença recorrida assenta na consideração de que não se está perante um qualquer contrato-promessa, mas antes face a um contrato final, definitivo, misto de mútuo e de obrigação, por parte do réu, do pagamento de quantia a terceiros.
Porém, a autora, nas suas alegações, defende que se trata antes de uma união ou coligação de contratos que, sem perda da sua individualidade, se acham ligados entre si, por certo nexo.
Quando duas ou mais pessoas concluem entre si, e no seu próprio nome, um contrato destinado, e eficaz, a fazer surgir um direito, verdadeiro e próprio, para uma outra pessoa, que ficou, completamente, estranha à sua conclusão, está-se perante a figura do contrato a favor de terceiro[ Vaz Serra, Contratos a Favor de Terceiro. Contratos de Prestação por Terceiro, BMJ nº 51, 29.].
O contrato a favor de terceiro define-se, por outras palavras, como aquele em que um dos contraentes (promitente) atribui, por conta e à ordem do outro (promissário), uma vantagem a um terceiro (beneficiário), estranho à relação contratual[ Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 251; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 2ª edição, revista e actualizada, 133 e 134. ].
Porém, não deixa de se estar perante um contrato estabelecido, a favor de terceiro, quando o contrato ou negócio, a favor de terceiro, se insere no contexto de um outro contrato, ao lado dele, sem prejuízo de um e outro se integrarem, unitariamente, na mesma relação contratual[ Antunes Varela, Ensaio sobre o Conceito do Modo, nº 24.].
Efectivamente, o terceiro não é contraente, mesmo depois da aceitação, mas titular definitivo do direito, e não mero beneficiário ou destinatário do mesmo.
Sucede, frequentemente, que o promitente se encontra determinado a obrigar-se para com um terceiro, quer pela sua relação com o promissário, quer pela sua relação com o terceiro.
No contrato a favor de terceiro, a estipulação é feita em nome próprio, e não em nome de terceiro, podendo e devendo o promissário ter um interesse pessoal nela, digno de protecção legal, atento o disposto pelo artigo 443º, nº 1, do Código Civil (CC), porquanto quem estipula para outrem age em nome próprio, mas em proveito desse terceiro.
Não há qualquer razão para negar validade à obrigação do promitente para com um terceiro, mediante contrato com o promissário, do qual derivam direitos e obrigações para os contraentes, mas que, igualmente, os pode criar, a favor de terceiros, em derrogação do princípio genérico de que a eficácia dos contratos se restringe às partes que o subscreveram, constante do artigo 406º, nº 1, do CC.
O direito do terceiro não é criado pela mera vontade do promissário ou do promitente, sendo antes um direito de crédito autónomo, adquirido, imediatamente, pelo primeiro, em virtude do contrato, que pode reclamar o cumprimento da prestação principal, independentemente de aceitação, nos termos do disposto pelo artigo 444º, nº 1, do CC[ Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 1970, I, 251 e 259; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 2ª edição, revista e actualizada, 134.].
A prestação a que se reporta o contrato ajuizado, como resulta inequívoco dos seus próprios termos, foi convencionada, no interesse do terceiro, e, também, da autora, promissária, razão pela qual esta, na ausência de convenção em contrário, tem, igualmente, direito a exigir do promitente o cumprimento da promessa, nos termos do estipulado pelo artigo 444º, nº 2, do CC, independentemente da promessa haver ou não sido aceita pelo terceiro[ Guilherme Moreira, Instituições, II, nº 206; Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, IV, nº 498.], pois que, tendo o promissário um interesse digno de protecção legal no cumprimento da promessa, goza ainda do direito de exigir o seu cumprimento, como um poder instrumental, acessório, ao serviço do interesse fundamental do terceiro beneficiário[ Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 262; Vaz Serra, Contratos a Favor de Terceiro. Contratos de Prestação por Terceiro, BMJ, nº 51, 29 a 228. ].
Assim sendo, podendo o terceiro e o promissário exigir o cumprimento da promessa, terão ambos, conjuntamente, dois créditos, de igual conteúdo, e não um crédito solidário, porquanto o estipulante não pode reclamar a prestação, para si mesmo, tendo antes o poder que lhe é conferido, como objecto, isto é, a prestação a terceiro.
Efectivamente, enquanto o terceiro tiver a faculdade de exigir a prestação, depois de o seu direito se tornar irrevogável, o promissário já não pode, através da eventual extinção do contrato, destruir esse direito, isto é, a adesão ou aceitação daquele tem o efeito útil de precludir a revogação da promessa, por parte do promissário[Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 260 e 263; Planiol, Ripert e Esmein; Traité Pratique, VI, Obligations, 1ª parte, nºs 364 e 366, citado por Antunes Varela, «in» Das Obrigações em Geral, I, 1970, 261, nota 190; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 1987, 426 e 427. ].
É que a adesão tem de ser feita, mediante declaração, tanto ao promitente, a quem incumbe realizar a prestação, como ao promissário, nos termos do estipulado pelo artigo 447º, nº 3, do CC, a fim de que este não conte com a revogabilidade da promessa, pois que, enquanto lhe não for comunicada, mesmo que o tenha sido ao promitente, pode aquele revogar a promessa[ Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 259 e 260.].
Revertendo ao caso em apreço, importa atentar que o réu não realizou a promessa a que se tinha vinculado, sendo certo, outrossim, que a mesma já foi efectivada pela autora, ao pagar a totalidade da dívida ao CCAMC, de que os terceiros beneficiários se aproveitaram, sem nunca se terem pronunciado, em termos de adesão ou aceitação da promessa, mediante declaração dirigida ao promitente e à promissária, em conformidade com o disposto pelo artigo 447º, nºs 1 e 3, do CC.
Dispõe, a este propósito, o artigo 448º, nº 1, do CC, que “salvo estipulação em contrário, a promessa é revogável enquanto o terceiro não manifestar a sua adesão, ou enquanto o promissário for vivo, quando se trate de promessa que haja de ser cumprida depois da morte deste”, continuando o respectivo nº 2, ao estatuir que “o direito de revogação pertence ao promissário; se, porém, a promessa foi feita no interesse de ambos os outorgantes, a revogação depende do consentimento do promitente”.
Ora, não tendo o terceiro manifestado a sua adesão à promessa e, inexistindo estipulação em contrário, a mesma seria, em princípio, revogável pelo promissário, a menos que tivesse sido feita no interesse de ambos os outorgantes, o que acontece, na hipótese de mútuo oneroso a favor de outrem, como a presente, em que os dois contraentes são interessados na promessa, e que faz depender do consentimento do promitente a sua revogação, o qual, porém, a tal se opôs, no articulado da contestação.
Contudo, na titularidade do estipulante, existe ainda o direito de resolução do contrato, por falta de cumprimento do promitente, pelo menos, quando este não prejudique o direito de indemnização que compete ao terceiro beneficiário[ Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 262 e 263.], condicionante esta que, no caso em análise, não importa considerar, porquanto os terceiros beneficiários, ou seja, os executados D... e Rosa, se mostram, totalmente, libertos do pagamento da quantia exequenda da sua responsabilidade.
Ora, não podendo a autora revogar a promessa, porque feita, igualmente, no interesse de réu promitente, que a tal se opôs, também não goza do direito de resolver o contrato, por inadimplemento do promitente, considerando que não formulou este pedido na acção.
Pretende ainda a autora que seja declarada perdida, a seu favor, a quantia recebida como sinal, no montante de € 49879,79.
Com efeito, as partes, ao abrigo do princípio da autonomia privada, consagrado pelo artigo 405º, nºs 1 e 2, celebraram um contrato-promessa de garantia especial, ou seja, um contrato-promessa de hipoteca, no qual, por via de regra, não é prestado sinal, não sendo, também, normal que se proceda à tradição do bem, o que a autora não demonstrou ter acontecido, como lhe competia, atento o estipulado pelo artigo 342º, nº 1, razão pela qual fica excluída a aplicação do disposto pelo artigo 442º, todos do CC[ Pedro Martinez e Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 4ª edição, 57 e 58. ].
E, não tendo o réu entregue qualquer importância, a título de sinal, natureza esta que, manifestamente, não assume a quantia de 11.600.000$00, que a autora confessa dever aquele, inexiste fundamento legal para decretar a procedência do pedido da autora de poder fazer sua essa aludida importância.
Mas, tendo o réu constituído, a seu favor, hipoteca voluntária sobre o prédio da autora, com base em procuração irrevogável passada por esta, como garantia do pagamento da dívida confessada, não efectuou o pagamento da quantia a que se comprometera com aquela, perante a CCAMC, como ainda, em sede de execução, que esta instituição bancária moveu contra a autora e os demais executados, reclamou aquele crédito de 22500000$00, posteriormente, reduzido para 12.289.666$00, sendo, afinal, a autora quem efectuou o pagamento da totalidade da quantia exequenda.
A autora pede, além do mais, a revogação da procuração outorgada a favor do réu.
Preceitua o artigo 1170º, nº 1, do CC, que “o mandato é livremente revogável por qualquer das partes, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação”, acrescentando o respectivo nº 2 que “se, porém, o mandato tiver sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro, não pode ser revogado pelo mandante sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa”.
O mandato irrevogável, a que se reporta o nº 2 do artigo 1170º, quando conferido no interesse do mandatário, como sucede na hipótese em apreço, em que o réu ficou com poderes para praticar, no futuro, determinados actos, em nome do mandante, isto é, da autora, mas em benefício dele próprio, consagrando-se, igualmente, a possibilidade deste celebrar negócios consigo próprio, nos termos do estipulado pelo artigo 261º, nº 1, ambos do CC, para evitar a anulabilidade do contrato celebrado, pode funcionar como garantia indirecta, prevenindo um eventual incumprimento[ Pedro Pais Vasconcelos, A Procuração Irrevogável, 2002, 94 e ss e 138 e ss.; Pedro Martinez e Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 4ª edição, 237 e 238. ].
A justa causa, como ressalva e condição da revogabilidade do mandato em presença, é qualquer circunstância, facto ou situação, em face da qual e segundo a boa fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual, isto é, todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou de dificultar a obtenção desse objectivo[ Baptista Machado, Pressupostos da Resolução por Incumprimento, 1979, 21. ].
Efectivamente, a conduta assumida pelo réu, ao utilizar uma procuração que continha um negócio consigo mesmo, totalmente, ao arrepio da vontade da autora, sem ter efectuado o pagamento da dívida à CCAMC, não deixando, porém, de registar, a seu favor e de sua mulher, a hipoteca do imóvel, propriedade da autora, é contrária aos interesses desta no prosseguimento da relação jurídica, determinante de uma falta de confiança superveniente do mandante no comportamento do mandatário, como tal fundamentadora de justa causa da revogação do mandato.
Mas, tendo a autora revogado, com justa causa, a procuração outorgada, a favor do réu, a extinção da respectiva relação jurídica limita-se, pela sua própria essência, a fazer cessar o mandato, com eficácia «ex nunc», aproximando-se bastante, neste particular, do caso da denúncia, sendo inatacáveis, com base na revogação, os actos já praticados, imputando-se na pessoa do mandante os efeitos resultantes da actividade, anteriormente, exercida, por conta deste, pelo mandatário, ainda que se possa fazer cessar, desde logo, a intervenção do mandatário na execução dos contratos por ele já realizados[ Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 1997, 809.].
E tudo isto, face ao acabado de expor, independentemente de o réu, á data da propositura desta acção, já haver constituído, a seu favor, a hipoteca sobre o imóvel, propriedade da autora.
Por isso, revogada pela autora, com justa causa, a procuração, cessam, imediatamente, os poderes do réu quanto á execução dos contratos em que outorgou, em representação daquela.
Com efeito, tendo já sido efectuado o registo definitivo da hipoteca, muito tempo antes da instauração da presente acção, não será o mesmo prejudicado, pela via da revogação da procuração, com reflexos no seu eventual cancelamento.
De todo o modo, subsistindo a dívida confessada pela autora, em relação ao réu, no quantitativo global de 11.600.000$00, o cancelamento do registo da hipoteca retiraria a este a garantia real com base na qual e, nos termos do disposto pelo artigo 865º, nº 1, do CPC, deduziu a reclamação de créditos contra aquela e outros, podendo constituir um rude golpe nas expectativas do réu em ver garantido o seu crédito.
Sustenta, porém, a autora que, tendo o réu celebrado o contrato definitivo de constituição de hipoteca, sem ainda ter pago a dívida exequenda à CCAMC, reclamando créditos, na acção executiva instaurada por esta, exerceu um direito que excede, claramente, os limites impostos pelo principio da boa-fé, revelando-se, pois, verdadeiramente, abusivo.
Efectivamente, nos termos do preceituado pelo artigo 334º, do CC, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda, manifestamente, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
O abuso de direito representa a fórmula mais geral de concretização do princípio da boa fé, constituindo um excelente remédio para garantir a supremacia do sistema jurídico e da Ciência do Direito sobre os infortúnios do legislador e as habilidades das partes, mas com aplicação subsidiária, desde que não haja solução adequada de Direito estrito que se imponha ao intérprete aplicar.
A tipologia dos actos consubstanciadores do abuso de direito desdobra-se em seis situações de escola, em que o princípio da boa fé se mostra violado, ou seja, a proibição de deduzir, dolosamente, posições processuais, a designada «exceptio doli», a proibição de «venire contra factum propprium», as inalegabilidades formais, o «tu quoque», o desiquilíbrio no exercício, e a dupla formada pela «suppresio» e a «surrectio».
A «surrectio» ou surgimento, situada nos antípodas da «suppresio» ou neutralização, acontece quando uma pessoa, por força da boa-fé da outra parte, vê surgir na sua esfera jurídica uma possibilidade que, de outro modo, não lhe assistiria[ Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, T1, 2ª edição, 2000, 241 e 248 e ss. ].
Efectivamente, a celebração da escritura pública de hipoteca pelo réu, sobre o mencionado prédio urbano da autora, destinando-se a garantir o valor da confissão de dívida desta aquele, estava dependente do pagamento simultâneo, pelo mesmo, da dívida de 12500000$00, à CCAMC.
Assim não tendo acontecido, o réu utilizou a procuração, com a qual constituiu uma hipoteca, a seu favor, sem pagar a dívida de que esta significava uma garantia, não obstante, em sede de reclamação de créditos ter, inicialmente, reclamado uma quantia superior, em mais do dobro daquela que representava o valor do mútuo dado à autora.
Resulta, assim, que o exercício do direito, pelo réu, de constituir uma hipoteca, a seu favor, sobre o prédio da autora, excedeu, de forma manifesta, os limites impostos pela boa fé, representando um acto abusivo e, portanto, ilegítimo, na modalidade da «surrectio».
E a ilegitimidade do exercício abusivo do direito traz consigo as consequências de qualquer acto ilícito, nomeadamente, a nulidade, a que se reporta o artigo 294º, do CC[ Vaz Serra, RLJ, Ano 107º, 25. ].
Assim, considerando que os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo, como é aquela que proíbe o abuso de direito, a que se reporta o artigo 334º, são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei, nos termos do estipulado pelo artigo 294º, ambos do CC, tendo natureza excepcional as disposições que fixam as sanções da ineficácia, «stricto sensu», ou da simples anulabilidade, tratando-se da violação de normas de interesse e ordem pública[ Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 1987, 269. ], como acontece no caso em apreço, declara-se a nulidade da escritura pública constitutiva da hipoteca sobre o prédio da autora e bem assim como o cancelamento do respectivo registo, existente na Conservatória do Registo Predial de Coimbra.
Ora, considerando que a constituição de hipoteca voluntária que respeite a bens imóveis tem de ser celebrada, mediante um negócio jurídico formal, ou seja, um documento autêntico, em conformidade com o estabelecido pelos artigos 714º, do CC, e 80º, nº 2, h), do Código do Notariado, como condição da validade da declaração negocial, a declaração de nulidade da escritura pública que a suportava, enquanto formalidade «ad substanciam»[ Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 1987, 322 e 323; Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, 145.], por falta da forma, legalmente prescrita, importa a nulidade do respectivo negócio jurídico, nos termos do disposto pelo artigo 220º, seguindo-se o regime geral do estipulado nos artigos 286º e seguintes, todos do CC, nomeadamente, a sua invocabilidade, a todo o tempo, e a possibilidade do seu conhecimento oficioso, pelo Tribunal.
Ora, o negócio jurídico nulo não produz, desde o início, por força da falta ou vício de um elemento, interno ou formativo, os efeitos a que tendia, em atenção a predominantes interesses de natureza pública, podendo ser declarada a invalidade, oficiosamente, pelo Tribunal, a todo o tempo, operando, com eficácia retroactiva, com a consequente repristinação das coisas, no estado anterior ao negócio, restituindo-se tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 286º e 289º, nº 1, do CC.
Como assim, há que concluir pela nulidade do contrato de constituição da hipoteca voluntária.
E isto, sem prejuízo da validade da subsistente declaração de confissão de dívida da autora que servirá, eventualmente, de título executivo ao réu, caso aquela não venha a cumprir, voluntariamente, a prestação debitória a seu cargo, nos termos do preceituado pelo artigo 46º, nº 1, c), do CPC, sendo certo que a reclamação de créditos deduzida pelos réus se encontra arquivada, desde 27 de Abril de 2004, em consequência de requerimento apresentado pelos reclamantes, manifestando a falta de interesse na prossecução da execução, para exigência do crédito por si reclamado, por o mesmo não se encontrar vencido.

*

CONCLUSÕES:

I - Não tendo o terceiro manifestado a sua adesão à promessa e, inexistindo estipulação em contrário, a mesma seria, em princípio, revogável pelo promissário, a menos que tivesse sido feita no interesse de ambos os outorgantes, o que acontece, na hipótese de mútuo oneroso, a favor de outrem, em que os dois contraentes são interessados na promessa, fazendo depender do consentimento do promitente a sua revogação.
II – Inexistindo, no contrato-promessa de garantia especial, em que se traduz o contrato-promessa de hipoteca, por via de regra, qualquer quantia prestada, a título de sinal, fica excluída a aplicação do disposto pelo artigo 442º, do CC.
III – O mandato irrevogável, quando conferido no interesse do mandatário, como sucede quando este fica com poderes para praticar, no futuro, determinados actos, em nome do mandante, mas em benefício dele próprio, com a consagração da possibilidade deste celebrar negócios consigo próprio, para evitar a anulabilidade do contrato celebrado, pode funcionar como garantia indirecta, prevenindo um eventual incumprimento.
IV - A conduta assumida pelo réu, ao utilizar uma procuração, que continha um negócio consigo mesmo, totalmente, ao arrepio da vontade da autora, sem ter efectuado o pagamento da dívida a um terceiro, a que se tinha comprometido, não deixando, porém, de registar, a seu favor a de sua mulher, a hipoteca do imóvel, propriedade da autora, é contrária aos interesses desta no prosseguimento da relação jurídica, determinante de uma falta de confiança superveniente do mandante no comportamento do mandatário, como tal fundamentadora de justa causa da revogação do mandato.
V – Sendo a celebração da escritura pública de hipoteca, pelo réu, sobre o mencionado prédio urbano da autora, destinada a garantir o valor da confissão de dívida desta aquele, dependente do pagamento simultâneo, pelo mesmo, da dívida de 12500000$00 a um terceiro, tendo o réu utilizado a procuração, com a qual constituiu uma hipoteca, a seu favor, sem pagar a dívida de que esta representava uma garantia, não obstante, em sede de reclamação de créditos ter, inicialmente, reclamado uma quantia superior, em mais do dobro daquela que representava o valor do mútuo dado à autora, excedeu, de forma manifesta, os limites impostos pela boa fé, representando, como tal, um acto abusivo e, portanto, ilegítimo, na modalidade da «surrectio», que determina a nulidade do contrato de constituição da hipoteca voluntária.

*

DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar a apelação, parcialmente, procedente e, em consequência, revogam a sentença recorrida, declarando verificada a justa causa de revogação, pela autora, da procuração outorgada, a favor do réu, cessando, imediatamente, os poderes deste, quanto á execução dos contratos em que outorgou, em representação daquela, determinando a nulidade do contrato de constituição da hipoteca voluntária e bem assim como o cancelamento do respectivo registo, confirmando-a, quanto ao mais, ou seja, na parte em que a apelação soçobrou.

*

Custas da apelação, a cargo autora e dos réus, na proporção de ¼ e de ¾, correspondentemente.

*

Notifique.