Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
571/05.5TBVGS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HÉLDER ROQUE
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
CUMPRIMENTO DO CONTRATO
Data do Acordão: 07/15/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VAGOS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 410.º; 651.º; 667; 730.º; 786.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Sendo o contrato-promessa, em substância, um negócio de segurança ou de garantia, de que o contrato definitivo constitui o cumprimento, consumado este, com a realização da escritura pública, e cumprida a obrigação principal, extingue-se a garantia, como consequência necessária da sua natureza acessória, porquanto o seu conteúdo é o contrato definitivo, e, celebrado este, esgotou-se o objecto daquele.
2. O contrato-promessa, em que o autor baseou a causa de pedir da acção, não é meio idóneo para obter o cumprimento das cláusulas, então, acordadas, mantendo-se válido o contrato prometido, por ser aquele a única via disponível para o alcançar.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

A.....e marido, B....., residentes na Rua …… propuseram a presente acção declarativa, com processo sumário, contra C....., residente na Rua ….., pedindo que, na sua procedência, esta seja condenada a pagar aos autores a quantia de €6.273,12, a título de indemnização por danos patrimoniais, e de €4.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, alegando, para tanto, que os autores e a ré celebraram entre si um contrato-promessa de compra e venda, mediante o qual prometeram vender a esta que, por seu turno, prometeu comprar-lhes, uma fracção autónoma, destinada a comércio, serviços e/ou indústria, ficando a mesma, desde logo, por efeito do contrato-promessa, investida na posse do referido imóvel, desde a data da assinatura do respectivo contrato-promessa, suportando o pagamento da prestação mensal, ao Banco Millenium, de que os autores eram devedores, no montante de €350,00, com início no mês de Dezembro de 2003 e até à data da celebração da escritura definitiva de compra e venda, e ainda o pagamento de todos os encargos inerentes à utilização do imóvel, nomeadamente, com electricidade, água e condomínio.

Invocam ainda que a ré não pagou ao Banco as prestações referentes aos meses de Dezembro de 2003, Janeiro, Março, Abril e Maio de 2004, bem assim como as despesas do imóvel relativas aos meses de Dezembro de 2003, Janeiro, Março, Abril e Maio de 2004, o que lhes causou os danos acima indicados.

Na contestação, a ré impugna os factos alegados pelos autores, afirmando que pagou, na data da celebração da escritura de compra e venda, todas as prestações devidas, sustentando ainda que o contrato-promessa perdeu os seus efeitos, a partir da data em que se concretizou a venda prometida.

Em reconvenção, alega que os autores prometeram auxiliar a ré, designadamente, transmitindo-lhe a clientela e cooperando no estabelecimento, o que não sucedeu, tendo mesmo a autora mulher aberto um salão de cabeleireiro, a poucos metros do imóvel transmitido, passando a mover-lhe “séria concorrência”, sendo certo, igualmente, que adquiriu o imóvel na convicção de que o salão se encontrava, devidamente, licenciado, junto da Câmara Municipal, o que não aconteceu, e que os autores esconderam.

 Em virtude destes factos, afirma a ré que sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais, pedindo a condenação dos autores no seu ressarcimento, no montante de 25000,00€.

Na resposta à contestação, os autores impugnam os factos alegados pela ré, concluindo pela falta de fundamento do pedido reconvencional, uma vez que, segundo alegam, transmitiram um imóvel e não um salão de cabeleireiro.

No despacho saneador, julgou-se admissível o pedido reconvencional formulado, quanto aos alegados custos do projecto de licenciamento, no montante de 1000,00€, e aos danos não patrimoniais, no quantitativo de 1500,00€.

A sentença julgou a acção e a reconvenção, parcialmente, procedentes e, em consequência:

1 - Condenou a ré no pagamento aos autores da quantia de €2.311,59 - correspondente às prestações do empréstimo em causa, referentes aos meses de Dezembro de 2003, Janeiro de 2004, Março a Maio de 2004, e juros vencidos, à data desta decisão, acrescida de juros de mora, à taxa em vigor para as operações comerciais, desde esta data até integral pagamento;

2 - Condenou a ré no pagamento da quantia de €263,19, correspondente ao consumo de água, electricidade e de condomínio, durante os meses de Dezembro de 2003, Janeiro de 2004 e Março a Maio de 2004, acrescida dos juros, à taxa em vigor para as operações comerciais, vencidos desde a citação da ré, e naqueles que se vencerem, até efectivo e integral pagamento;
3 - Condenou a ré no pagamento de uma compensação, no valor de €1.000,00, à autora mulher, acrescida de juros de mora vincendos, desde a data da presente decisão;
4 - Condenou os autores-reconvindos no pagamento, à ré-reconvinte, da quantia de €1.000,00, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros, desde a data da notificação da reconvenção, até efectivo e integral pagamento;
5 - Condenou os autores-reconvindos no pagamento, à ré-reconvinte, da quantia de €750,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros, desde a data da presente decisão; e
6 - Absolveu a ré e os autores-reconvindos do restante pedido.

Desta sentença, os autores e a ré interpuseram recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

                                         OS AUTORES:

1ª - Constata-se que na douta sentença proferida pelo tribunal a quo, há uma contradição entre a matéria de facto dada como provada e a fundamentação da decisão proferida, ou seja, verifica-se que há contradição entre a fundamentação plasmada na alínea b) da decisão sobre a matéria de facto controvertida (fls.153 dos autos) e a resposta ao quesito 13° da base instrutória (dado como provado - fls. 152, e ainda com a alínea t) dos factos dados como provados na douta sentença proferida pelo Tribunal "a quo" (fls. 159).

2ª - Na base instrutória, foi formulado o seguinte quesito identificado como artigo n° 13: "No sentido de obter o licenciamento em causa a R teve de suportar os custos de um projecto de arquitectura e outro de segurança no que gastou € 1.000,00?".

3ª - Após a realização de audiência de Julgamento, o tribunal respondeu à matéria vertida neste quesito, dando o mesmo como provado (fls. 152).

4ª - Sucede que, fundamentou esta resposta da seguinte forma: "Quesitos 6°, 7°, 8°, 9°, 11°, 12°, 13°, 14° e 15°: depoimento das testemunhas ….. (mãe da R) e …… (namorado da R). A primeira, esclareceu os termos em que foram realizadas as negociações que conduziram à celebração do acordo referido na A), designadamente, o que antes existia, as garantias que foram dadas pela A. mulher quanto ao licenciamento (afinal inexistente) e o que foi efectivamente transmitido, (...). Ainda a mesma testemunha referiu (...) os custos dos encargos que a R teve de suportar (foi a própria testemunha que lhe emprestou o dinheiro) com as formalidades necessárias à obtenção da licença para o estabelecimento poder funcionar. Estes mesmos factos (abertura de novo cabeleireiro pela A. mulher, depressão e custos dos projectos para a licença) foram também confirmados pela testemunha Nelson (embora sem dizer um valor concreto quanto ao custo)...".

5ª - Assim, verifica-se que existe uma contradição entre a referida fundamentação e a resposta ao quesito n° 13 da base instrutória, uma vez que o tribunal a quo fundamentou que da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento não se conseguiu apurar um valor concreto dos custos que a ré suportou relativamente aos projectos para a obtenção de licença (fls. 153 dos autos).

6ª - Havendo ainda contradição com a aliena T) da fundamentação da douta sentença recorrida (fls. 159 dos autos), uma vez que o tribunal a quo dá como provado o seguinte: “T) No sentido de obter o licenciamento em causa, a R. teve se suportar os custos de um projecto de arquitectura e outro de segurança no que gastou € 1.000,00".

7ª - Entendem ainda os recorrentes que relativamente a essa matéria de facto, e atendendo à referida fundamentação proferida pelo tribunal a quo, deveria este ter relegado esta matéria para liquidação de execução de sentença.

8ª – Consequentemente o Tribunal a quo violou o artigo 659º do Código de Processo Civil.

9ª - Pelo que, é nula a sentença na parte em que condena os AA. no pagamento da quantia de € 1.000,00 à Ré a título de despesas com um projecto de arquitectura e outro de segurança nos termos do artigo 668° n° 1 c) do Código de Processo Civil.

                                                A RÉ:


1ª – Nos termos do artigo 786º do Código Civil, com a assinatura do contrato definitivo de compra e venda, presume-se efectuado todo o pagamento do preço acordado para o bem pelo mesmo transmitido.
2ª – Inexiste fundamento legal para a condenação da ré-reconvinte no pagamento das quantias peticionadas pela autora, após a assinatura definitiva da escritura de compra e venda, onde são reclamados valores alegadamente devidos antes da assinatura do mesmo.
3ª – A presunção de pagamento não pode ser ilidida através de prova testemunhal.
Nas suas contra-alegações, os autores defendem que a decisão recorrida deve ser mantida, na parte ora impugnada, pelo facto de a sentença não merecer qualquer reparo, nesse ponto.
Na sentença apelada, declararam-se demonstrados, sem impugnação, os seguintes factos, que este Tribunal da Relação aceita, nos termos do estipulado pelo artigo 713º, nº 6, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
Autores e ré celebraram entre si, em 29 de Novembro de 2003, um contrato-promessa de compra e venda, mediante o qual os primeiros, e aqui autores, prometeram vender à segunda, ora ré, que prometeu comprar-lhes, a fracção autónoma, destinada a comércio, serviços e/ou indústria, sita no rés do chão centro, designado pela letra B, com a área de 32,70 m2, com garagem de 21 m2, no logradouro, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Avenida José Estêvão, nº 322, na cidade e freguesia da Gafanha da Nazaré, concelho de Ílhavo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo, sob o número 7116, e inscrito na Repartição de Finanças de Ílhavo, sob o artigo nº 7662 – A).
Nos termos desse contrato, a segunda outorgante, e ré nos presentes autos, ficava investida na posse do referido imóvel, desde a data da assinatura do contrato-promessa de compra e venda, suportando o pagamento da prestação, ao Banco Millenium, de que os primeiros (e aqui autores) eram devedores, no montante de €350,00 (trezentos e cinquenta euros), com início no mês de Dezembro de 2003, até à celebração da escritura definitiva de compra e venda – B).
Ficou ainda acordado, no referido contrato-promessa, que a escritura pública de compra e venda seria outorgada, assim que a segunda outorgante, ora ré, obtivesse financiamento necessário à outorga da mesma, junto do BPI, ficando a segunda outorgante, ora ré, obrigada a avisar os primeiros outorgantes, ora autores, do dia, hora e local da celebração da escritura, mediante simples telefonema, com a antecedência mínima de oito dias – C).
Autores e ré acordaram ainda que esta teria que suportar o pagamento de todos os encargos inerentes à utilização do imóvel objecto do referido contrato-promessa, nomeadamente, electricidade, água e condomínio – D).
A ré não pagou ao Banco as prestações bancárias, no valor global de €1.750,00 (mil setecentos e cinquenta euros), nos meses de Dezembro de 2003, Janeiro, Março, Abril e Maio de 2004 – E).
(…) E só, em 2 de Fevereiro de 2004, pagou a prestação referente ao mês de Fevereiro de 2004 – F).
A ré, também, não pagou as despesas do imóvel acima indicado, nos meses de Dezembro de 2003, Janeiro, Março, Abril e Maio de 2004, ou seja, consumo de água, no montante de €92,22, electricidade, no montante de €120,97, e condomínio, no montante de €50,00 – G).
Em Dezembro de 2003, os autores começaram a receber telefonemas do Banco Millenium para proceder ao pagamento da prestação que se encontrava por liquidar – H).
Os autores enviaram à ré, respectivamente, em 20 de Janeiro de 2004 e em 27 de Janeiro de 2004, as cartas constantes de folhas 34 e 35, que a ré recebeu – I).
Foram os autores que pagaram ao Banco Millenium as prestações referidas em E) – J).
A escritura definitiva de compra e venda entre autores e ré foi celebrada, no dia 4 de Maio de 2004 – L).
O pagamento das prestações, referidas em E), foi efectuado ao Banco, com o vencimento do autor marido, que tinha de fazer face, não só ao pagamento das prestações em causa, bem como ainda a todas as despesas domésticas da família – 1º.
Uma vez que o vencimento do autor marido não era o suficiente para custear todas as despesas domésticas, os autores tiveram de recorrer à ajuda dos irmãos da autora mulher, que os ajudavam, sobretudo, na alimentação dos seus filhos – 2º.
Por força da situação descrita, a autora mulher entrou em estado de ansiedade e depressivo, tendo insónias, irritabilidade e inquietação – 3º.
Antes do acordo, referido em A), a autora explorava, no local, um estabelecimento comercial de cabeleireiro, e a ré celebrou o referido acordo, com o fim de abrir, no local, um estabelecimento comercial de estética e cabeleireiro, o que era do conhecimento da autora – 6º.
A autora comprometeu-se a ajudar a ré, nos primeiros tempos, após o início da sua actividade no estabelecimento, o que não fez – 7º e 8º.
Após o acordo, referido em A), a autora mulher abriu, na mesma rua do estabelecimento da ré, um outro estabelecimento de cabeleireiro – 9º.
Aquando do contrato, referido em A), a autora mulher afirmou à ré que o estabelecimento comercial se encontrava licenciado, facto que não correspondia à realidade – 11º e 12º.
No sentido de obter o licenciamento em causa, a ré teve de suportar os custos de um projecto de arquitectura e outro de segurança, no que gastou €1.000,00 – 13º.
Após algum tempo, a ré desistiu de explorar, directamente, o cabeleireiro – 14º.
Por força do descrito nos pontos nºs 9, 11, 12, 13 e 14, a ré andou transtornada, deprimida e desgostosa – 15º.

                                                    *

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

As questões a decidir, na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto dos recursos, considerando que o «thema decidendum» dos mesmos é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do CPC, são as seguintes:

I – A questão da nulidade da sentença.

II – A questão dos efeitos da celebração do contrato definitivo de compra e venda em relação ao articulado do contrato-promessa em que aquele se baseou.

                            I. DA NULIDADE DA SENTENÇA

Sustentam os autores que a sentença é nula, desde logo, porque se verifica uma contradição entre a fundamentação constante do despacho que respondeu à matéria controvertida na base instrutória e a resposta ao ponto nº 13° da mesma peça processual.

O enunciado singelo desta invocação, tal como os autores o concretizam, demonstra, com o muito devido respeito, que não é de uma causa de nulidade da sentença de que se trata.

Efectivamente, tendo merecido resposta de “provado” o ponto nº 13 da base instrutória, segundo o qual “no sentido de obter o licenciamento em causa, a ré teve de suportar os custos de um projecto de arquitectura e outro de segurança, no que gastou €1.000,00”, consta do respectivo despacho de fundamentação, neste particular, que a mesma se baseou no “depoimento das testemunhas …. (mãe da R) e …… (namorado da R). A primeira, esclareceu os termos em que foram realizadas as negociações que conduziram à celebração do acordo referido na A), designadamente, o que antes existia, as garantias que foram dadas pela A. mulher quanto ao licenciamento (afinal inexistente) e o que foi efectivamente transmitido, (...). Ainda a mesma testemunha referiu (...) os custos dos encargos que a R teve de suportar (foi a própria testemunha que lhe emprestou o dinheiro) com as formalidades necessárias à obtenção da licença para o estabelecimento poder funcionar. Estes mesmos factos (abertura de novo cabeleireiro pela A. mulher, depressão e custos dos projectos para a licença) foram também confirmados pela testemunha Nelson (embora sem dizer um valor concreto quanto ao custo)...".

Assim sendo, não obstante a testemunha …. não haver indicado um valor concreto quanto aos custos dos projectos de arquitectura e de segurança, confirmou a sua existência, tendo o Tribunal «a quo» recolhido os respectivos valores, conforme consta do mesmo despacho, através do depoimento da testemunha ……, o qual, conjugado com aquele, foi bastante para formar a convicção do julgador.

A isto acresce que, sem prejuízo da correcção oficiosa, pelo Tribunal da Relação, do eventual vício de deficiência apontado na decisão proferida em 1ª instância, nos termos do estipulado pelo artigo 712º, nº 4, e que acabou de realizar-se, deveriam os autores ter reclamado contra o mesmo, após o Tribunal «a quo» ter decidido sobre a matéria de facto, sem possibilidade de nova reclamação dessa decisão, nem de apresentação de recurso próprio, atento o disposto pelo artigo 653º, nº 4, ambos do CPC.

Por outro lado, defendem os autores que a sentença é nula, na parte em que os condena no pagamento da quantia de €1.000,00, a título de despesas com um projecto de arquitectura e outro de segurança, a favor da ré, porquanto tal deveria ter sido relegado para liquidação de execução de sentença, considerando que, devido à precedente contradição, por inexistência de fundamentação, não se provou o valor dos custos dos projectos.

Contudo, não ocorrendo a arguida contradição da fundamentação, pelo que se expôs, não se verifica, outrossim, a nulidade, por eventual condenação além do pedido, não se justificando a condenação no que se liquidar em execução de sentença quando o processo fornecia já todos os elementos para ser pronunciada uma condenação em montante líquido.

Não ocorrem, assim, as nulidades da sentença invocadas pelos autores, a que aludem o artigo 668º, nº 1, c) e e), do CPC.


        II. DO CONTRATO PROMESSA FACE AO CONTRATO PROMETIDO

Efectuando uma síntese do essencial da prova que ficou consagrada, no que interessa à apreciação e decisão da questão controvertida na apelação, importa reter que, por contrato-promessa de compra e venda, datado de 29 de Novembro de 2003, os autores prometeram vender à ré e esta prometeu comprar a fracção autónoma, destinada a comércio, serviços e/ou indústria, supraidentificada, em regime de propriedade horizontal, ficando investida na posse do referido imóvel, desde a data da assinatura do contrato-promessa, e suportando o pagamento da prestação bancária de que os autores eram devedores, no montante de €350,00, com início no mês de Dezembro de 2003, até à data da celebração da escritura definitiva de compra e venda.
Ficou ainda acordado, no referido contrato-promessa, que a escritura pública de compra e venda seria celebrada, logo que a ré obtivesse o financiamento necessário à outorga da mesma, junto do BPI, ficando a ré obrigada a avisar os autores, do dia, hora e local da realização da escritura, mediante simples telefonema, com a antecedência mínima de oito dias.
Autores e ré acordaram ainda que esta teria de suportar o pagamento de todos os encargos inerentes à utilização do imóvel objecto do referido contrato-promessa, nomeadamente, com electricidade, água e condomínio.
Porém, a ré não pagou as prestações bancárias, no valor global de €1.750,00, alusivas aos meses de Dezembro de 2003, Janeiro, Março, Abril e Maio de 2004, nem as despesas do imóvel, referentes aos meses de Dezembro de 2003, Janeiro, Março, Abril e Maio de 2004, devidas pelo consumo de água, electricidade e serviços de condomínio, no montante global de €263,19.
Entretanto, o prometido contrato de compra e venda veio a ser concretizado, por escritura pública datada de 4 de Maio de 2004, onde, porém, estas últimas cláusulas não vieram a obter consagração.
Efectivamente, face à precedente síntese factual, ressalta evidente, desde logo, que os autores basearam o pedido numa cláusula do contrato-promessa que celebraram com a ré.

Ora, o contrato-promessa, a que mais, explicitamente, se poderia chamar contrato-promessa de contratar, consiste na convenção pela qual ambas as partes, ou apenas uma delas, se obrigam a celebrar determinado contrato, a que se dá o nome genérico de contrato prometido, as quais assumem uma obrigação que tem por objecto uma prestação de facto positivo, isto é, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido[1].

Tendo as partes chegado a acordo sobre determinado clausulado contratual, porquanto a celebração do contrato prometido, através de escritura pública, é, por vezes, uma operação morosa, convencionam, para segurança de ambas, ou, por outras razões, como seja, evitar o fisco, transaccionar um bem ainda não existente, «in rerum natura», ou mobilizar meios de pagamento, vincular-se, desde logo, imediatamente, obrigando-se a celebrar um contrato-promessa, devido à maior ligeireza das formalidades a cumprir na sua feitura.

De todo o modo, o contrato definitivo tem de se encontrar determinado ou ser determinável, perante os termos do contrato-promessa, que se encontra, funcionalmente, dirigido à conclusão daquele, fazendo parte do processo genético da sua formação, sendo certo que o contrato prometido já nada traz de novo, no que respeita à regulamentação do seu âmbito negocial, cujos dados se esgotaram na elaboração do contrato-promessa, sob pena de ser modificado o conteúdo deste[2].

Efectivamente, o conteúdo do contrato prometido deve ficar logo concluído, a partir dos próprios termos do contrato-promessa, para que se apresente exequível, por si próprio, sem necessidade de subsequentes negociações, a definir no contrato futuro a celebrar[3].

Ora, os autores filiaram o pedido formulado, no contrato-promessa, que traduz a causa de pedir da acção, e não no contrato prometido, sendo certo que aquele não lhes confere o direito ao cumprimento das cláusulas acordadas, mas, tão-só, à realização deste.

É que o incumprimento do contrato-promessa não resulta sempre e, tão-só, da recusa da celebração do contrato prometido, podendo ainda dimanar do não cumprimento de várias cláusulas a que se deve obedecer antes da celebração deste, tais como as relativas ao pagamento do preço ou à entrega do objecto da promessa, sendo certo que a inobservância voluntária destas tem como consequência não poder ser celebrado o contrato definitivo, conforme a promessa, e isto por culpa daquele que não cumpriu[4].
E, celebrada a escritura pública que solenizou o contrato prometido, tem de considerar-se cumprido o contrato-promessa, sendo certo que, participando os autores na mesma, omitindo a estipulação anterior quanto às cláusulas inobservadas, ou seja, o pagamento das prestações bancárias de que a ré era devedora e de todos os encargos inerentes à utilização do imóvel objecto do referido contrato-promessa, nomeadamente, com electricidade, água e condomínio, com início no mês de Dezembro de 2003, até à celebração da escritura definitiva de compra e venda, conformaram-se com este resultado, não reagindo, no acto, contra a desconformidade do conteúdo entre a promessa e a compra e venda, pondo em causa a validade do contrato prometido que, até à ocorrência de uma eventual declaração de nulidade, vigora, para todos os efeitos legais, sobrepondo-se ao contrato-promessa.

Porém, ainda que fosse anulado o contrato prometido, os autores não poderiam reclamar o pagamento das aludidas prestações, constantes do contrato-promessa, gozando, apenas, do direito de exigir a celebração do contrato prometido, em conformidade com aquele.

E, mesmo que os autores tivessem invocado, o que não aconteceu, uma divergência entre a vontade declarada e a vontade real dos contraentes, na celebração do contrato prometido, no âmbito dos denominados vícios da vontade, ainda assim o contrato-promessa, mesmo que anulado, não constituiria causa de pedir idónea a sustentar o pedido de cumprimento das cláusulas que, em princípio, deveriam ter transitado para o contrato prometido.

Encontrando-se válido o contrato prometido, celebrado através de escritura pública, não foi com base nele, mas antes com fundamento no contrato-promessa, que os autores demandaram a ré, e não tinham outra via, aliás, para exigir o cumprimento das respectivas cláusulas.

Efectivamente, o contrato-promessa é, na realidade, não sob o aspecto jurídico, mas sob o ponto de vista económico, um negócio de segurança ou de garantia[5], consistindo o contrato definitivo um mero cumprimento do contrato-promessa[6].

E, sendo o contrato-promessa, em substância, um negócio de garantia, de que o contrato definitivo constitui o cumprimento, então, consumado este, com a celebração da escritura pública, cumprida a obrigação principal, extingue-se a garantia, como consequência necessária da sua natureza acessória, em paralelismo com o que acontece com as situações similares das garantias, como seja, a fiança, o penhor ou a hipoteca, atento o preceituado pelos artigos 651º, 677º e 730º, a), todos do Código Civil.

É que o objecto do contrato-promessa, entendendo-se como tal o «quid» sobre que vai recair a regulamentação contratual, isto é, o seu conteúdo, é o contrato definitivo[7], razão pela qual, celebrado este, aquele esgotou o seu objecto.

                                                     *

CONCLUSÕES:


I – Sendo o contrato-promessa, em substância, um negócio de segurança ou de garantia, de que o contrato definitivo constitui o cumprimento, consumado este, com a realização da escritura pública, e cumprida a obrigação principal, extingue-se a garantia, como consequência necessária da sua natureza acessória, porquanto o seu conteúdo é o contrato definitivo, e, celebrado este, esgotou-se o objecto daquele.
II – O contrato-promessa, em que o autor baseou a causa de pedir da acção, não é meio idóneo para obter o cumprimento das cláusulas, então, acordadas, mantendo-se válido o contrato prometido, por ser aquele a única via disponível para o alcançar.

                                                               *

DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar improcedente a apelação interposta pelos autores, mas procedente a apelação apresentada pela ré e, em consequência, na revogação parcial da sentença recorrida, absolvem a ré do pedido contra si formulado pelos autores, confirmando-a, porém, quanto ao demais.

                                                      *

 

Custas da apelação, a cargo dos autores


[1] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1ª edição, 211; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição, reelaborada, 2006, 379 a 383; Galvão Telles, Direito das Obrigações 7ª edição, revista e actualizada, 101 e 102; Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, AAFDL, 1986, reimpressão, I, 453 a 455, 480 e 481.
[2] Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, AAFDL, 1986, reimpressão, I, 455, 456 e 480.
[3] Galvão Telles, Direito das Obrigações 7ª edição, revista e actualizada, 124.
[4] Almeida Costa, Contrato-Promessa, 7ª edição, revista e actualizada, 79, nota 125; STJ, de 26-11-81, BMJ nº 311, 368.
[5] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1ª edição, 210, nota 90, citando Distaso, O Contrato em Geral, I, 1966, 440.
[6] Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, AAFDL, 1986, reimpressão, I, 481.
[7] Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, AAFDL, 1986, reimpressão, I, 464.