Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
939/03.1TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: CONTRATO MISTO
COMPRA E VENDA
CRÉDITO AO CONSUMO
MÚTUO
CONTRATO DE ADESÃO
FIANÇA
NULIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 11/25/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 627º, Nº 2, DO C.CIV.; DEC. LEI Nº 359/91, DE 21/09; DEC. LEI Nº 446/85, DE 25/10
Sumário: I – A fiança consiste no vínculo jurídico pelo qual um terceiro (fiador) se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito deste sobre o devedor – artº 627º, nº 2, C. Civ..

II –Sendo a fiança uma garantia de “favor”, salienta-se que tal favor é prestado ao devedor principal e não ao credor, obrigando-se o fiador, tenha ou não atentado devidamente na responsabilidade que contrai.

III – Quem presta fiança não o faz ou não o deve fazer sem adequada ponderação, ou na pressuposição de que nunca lhe será exigida a garantia que presta, em virtude de, designadamente, confiar que o afiançado sempre cumprirá.

IV – O fiador não é devedor do mutuante, não assumindo os direitos e obrigações decorrentes desse negócio, sendo, antes e diferentemente, um mero garante do pagamento da dívida, que o incumprimento contratual do mutuário venha eventualmente a gerar.

V – Tendo as obrigações do mutuário e a do fiador deste objectos distintos, não existe fundamento técnico-jurídico para tornar extensivo ao fiador o regime específico prevenido pelo Dec. Lei nº 446/85, de 25/10 (RCCG).

VI – O fiador do mutuário não pode ser considerado como “consumidor”, à luz do estabelecido no Dec. Lei nº 359/91, de 21/09 – pois que da conjugação das suas normas extrai-se que só assim deve ser tida a pessoa a quem o crédito é concedido -, nem, também, quanto a ele se verifica a razão de ser que está na base da obrigatoriedade da entrega de um exemplar do contrato e da sanção estabelecida para a inobservância da mesma.

VII – Não se podem entender como inconstitucionais as normas do Dec. Lei nº 359/91, de 21/09.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A) - 1 - "A.... Bank,.... ", através da sua representante permanente - Sucursal em Portugal e "B...", instauraram em 18/01/2002, nos Juízos Cíveis da Comarca de Lisboa, acção declarativa, com processo sumário, contra C... e D...., pedindo:

- Que se declarasse válida a resolução do contrato de financiamento para aquisição a crédito do veículo automóvel marca E...., modelo F...., com a matrícula 00-00-GN;

- Que a primeira ré fosse condenada a reconhecer que o referido veículo pertence à autora " B....";

- Que a primeira ré fosse condenada a entregar às autoras o veículo automóvel marca E...., modelo F...., com a matrícula 00-00-GN;

 - Que os réus fossem condenados a pagar à autora " A... Bank ..." a quantia de € 6.605,23, correspondente a seis prestações no valor de € 178,52 e trinta e uma prestações de € 178,52 cada, que se venceram todas com a falta de pagamento da prestação de 7 de Março de 2000;

- Que os réus fossem condenados a pagar à autora " A... Bank ..." juros à taxa indicada, acrescida de dois pontos percentuais, incidentes sobre o montante referido no ponto anterior, desde a data de entrada em mora (07.03.2000) e até efectivo e integral pagamento que, à data de entrada da petição inicial, perfaz a quantia de € 1.720,25.

Alegaram para o efeito, em síntese:

- Que a autora " A..", no exercício da sua actividade comercial, vendeu à primeira ré o veículo automóvel de matrícula 00-00-GN e a autora " A..." financiou a aquisição do referido veículo, concedendo-lhe a quantia de € 5.985,57, através de um contrato de financiamento para aquisição a crédito nos termos do disposto no Decreto-Lei n.° 359/91 de 21/09, acordando que tal quantia seria reembolsada mediante o pagamento mensal de 48 prestações no valor desde 178,52;

- Que a primeira ré deixou de proceder ao pagamento das prestações a partir de 7 de Março de 2000, correspondente à 12.ª prestação, pelo que a primeira autora lhe enviou uma carta datada de 21 de Junho de 2000, interpelando-a para pôr termo à mora no prazo de oito dias, o que a mesma não fez, motivando o envio da uma carta datada de 2 de Agosto de 2000, notificando-a da resolução do contrato de financiamento;

- Que a primeira ré não entregou o veículo automóvel às autoras, sendo que o segundo réu se obrigou como fiador no contrato de financiamento e, como tal, foi interpelado para pôr termo à mora, o que não fez.

2 - Apenas o réu D.. - a quem foi concedido o benefício do apoio judiciário na modalidade do pagamento de honorários ao patrono escolhido e dispensa do pagamento de taxa de justiça e dos demais encargos do processo -, veio contestar a acção, arguindo, para além da incompetência territorial do tribunal, a nulidade do contrato, nulidade esta que estriba - invocando a sua qualidade de “consumidor” e o disposto nos art.ºs 2.º, 6.º, n.ºs 1 e 2, c) e 7.º, n.º 1, do DL. 359/91, de 21/09 -, no facto de não lhe ter sido entregue uma cópia do documento escrito que formalizou o dito contrato, bem assim como na circunstância de naquele não constarem as condições em que podia ser alterada a TAEG.

Sustentando nada lhe poder ser exigido, “nem sequer nos termos do art. 289° do Código Civil ou através do instituto do enriquecimento sem causa”, pugnou, o réu, pela sua absolvição da instância, em resultado da procedência da excepcionada incompetência, ou, na eventualidade de assim se não entender, pela declaração de nulidade do contrato, com a sua absolvição do pedido.

As autoras responderam, sustentando, em síntese:

- Que o Decreto-Lei n.° 359/91 de 21/09 apenas exige a entrega de um duplicado do contrato ao comprador, isto é, à primeira ré e não já ao fiador;

- Que a circunstância de o contrato ser omisso quando às condições em que a TAEG pode ser alterada, apenas tem como consequência que a primeira autora não o pode fazer.

3 - Na procedência da excepção arguida pelo réu foi declarada a incompetência territorial do Tribunal e ordenada a remessa do processo ao Tribunal Judicial da Comarca de Figueira da Foz (fls. 106 e ss.).

4 - Já nesse Tribunal, considerando-se ser inepta a petição inicial, julgou-se nulo todo o processado e absolveram-se os réus da instância, decisão que, contudo, no provimento do agravo que dela foi interposto, veio a ser revogada por Acórdão de 06/12/2005 deste Tribunal da Relação.

B) - No despacho saneador, entendendo-se que os autos possuíam já factos assentes que habilitavam a proferir uma decisão de mérito, o Tribunal “a quo”, decidindo-se pela total improcedência das excepções arguidas pelo réu, julgou a acção parcialmente procedente, tendo-se consignado, na parte dispositiva desse saneador-sentença, a decisão que, suprimida da matéria atinente às custas, ora se transcreve:

« a) declaro válida a resolução do contrato de financiamento para aquisição a crédito do veículo automóvel de marca E...., modelo F...., com a matrícula 00-00-GN;

b) condeno a primeira ré a reconhecer que o referido veículo pertence à autora " B...";

c) condeno a primeira ré a entregar à autora " B...", o veículo de marca E...., modelo F...., com a matrícula 00-00-GN;

d) condeno os réus a pagarem à autora " A... Bank ..." a quantia de € 6.605,23, acrescida de juros de mora à taxa legal prevista para os juros comerciais, acrescida de dois pontos percentuais, desde 7 de Março de 2000 e até efectivo e integral pagamento, deduzido do valor comercial do veículo na data e no estado em que a primeira ré o entregar;

e) absolvo os réus do demais peticionado pelas autoras.».

II - Inconformado com o assim decidido, apelou o réu D.. para este Tribunal da Relação, terminando a sua douta alegação recursiva com as seguintes conclusões:

[……………………………………….]

Terminou pedindo que se alterasse a sentença recorrida, substituindo-a por uma outra que, “julgando inválido o contrato e, designadamente, a fiança, absolva o R. do pedido…”.

Nas suas doutas contra-alegações as Apeladas defenderam a improcedência do recurso, pugnando pela manutenção da decisão da 1.ª Instância.

Corridos os “vistos” e nada a isso obstando, cumpre decidir do objecto do recurso.

III - A) - As questões:
Em face do disposto nos art.ºs 684º, nºs. 3 e 4, 690º, nº 1 do CPC [1], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões de que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660, n.º 2, “ex vi” do art.º 713, nº 2, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos, que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586 [2]).
As questões que é mister resolver no presente recurso consistem em saber se se verificam as nulidades e a inconstitucionalidade que o réu/apelante invoca.

B) - 1 - Os factos:

Na sentença da 1.ª Instância foi considerada como factualidade assente a seguinte matéria:

[……………………………………………..]

2 – O direito:

 Não se mostra controvertida a conclusão retirada na sentença sob recurso, no sentido de entender que entre as autoras e a 1ª ré - esta na qualidade de mutuária e compradora - foi celebrado um contrato misto de compra e venda e de crédito ao consumo, sob a modalidade de mútuo, com a utilização de cláusulas particulares e gerais, contrato esse sujeito à disciplina estabelecida no Decreto-Lei n.° 359/91, de 21 de Setembro, bem como, no que concerne às referidas cláusulas gerais, nessa parte consubstanciando contrato de adesão, ao regime previsto no Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro.

O ora Apelante, 2.º réu, só enquanto fiador da mutuária, a ré C..., teve intervenção, declarando constituir-se fiador do pontual cumprimento das obrigações decorrentes do acordo referido em F) e G) para a primeira ré, declaração essa que ficou a constar das condições particulares do documento escrito em que se formalizou o aludido contrato.

Estando assente que não lhe foi entregue cópia do contrato, sustenta o ora Apelante que essa entrega consubstancia dever que resulta do art.º 5.º do DL-446/85, de 25.10, segundo o qual "1 - As cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las; 2 - A comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência; 3-O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais".

Vejamos.

Não se vê, de facto, ao contrário daquilo que o Apelante sustenta, que a comunicação do atinente à fiança, no âmbito contratual em análise, só se tenha por adequadamente efectuada se fornecida uma cópia do contrato ao fiador.

Faz-se notar que a falta de comunicação adequada, no que concerne à nulidade do contrato, ou, mais restritamente, à da fiança, não foi alegada na contestação do réu ora apelante, que aí circunscreveu a conduta omissiva gerador de nulidade à circunstância de não lhe ter sido entregue uma cópia do contrato. Nem esta omissão de entrega de um exemplar do contrato poderá ser vista, em relação ao fiador, como consubstanciando falta de comunicação adequada dos termos contratuais.

Mas, outra ordem de razões leva a que não se possa atender o alegado pelo Apelante quanto à violação do disposto no art.º 5.º do DL-446/85, de 25.10, preceito este que, acentua-se, o réu, no que concerne à arguida nulidade do contrato, não invocou na contestação.

Vejamos.

A fiança consiste no vínculo jurídico pelo qual um terceiro (fiador) se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito deste sobre o devedor - cfr. art.º 627º, n.º 2, do Código Civil (CC).

De harmonia com o preceituado no art.º 634º CC o fiador é, salvo estipulação em contrário, responsável pelas consequências legais ou contratuais da mora ou culpa do devedor.

Sendo a fiança uma garantia de "favor", salienta-se que tal "favor" é prestado ao devedor principal e não ao credor, obrigando-se o fiador, tenha ou não atentado devidamente na responsabilidade que contrai[3].
Sublinhe-se, contudo, que o fiador do mutuário, não é, como se diz no Acórdão da Relação de Lisboa de 18/09/2007 (Apelação 4890/2007-7)[4], devedor do mutuante, “não assumindo os direitos e obrigações decorrentes desse negócio, sendo, antes e diferentemente, um mero garante do pagamento da dívida, que o incumprimento contratual do mutuário venha eventualmente a gerar[19].”.
De facto, conforme se refere nesse aresto: “O objecto da fiança reconduz-se, em termos jurídicos, à garantia do pagamento da dívida emergente do mesmo contrato de mútuo[18], este sim indubitavelmente sujeito ao regime das Cláusulas Contratuais Gerais, consagrado pelo Decreto-lei nº 446/85, de 25 de Outubro.”.
E assim, não obstante o disposto no art.º 637, n.º 1, do CC, tratando-se, a do mutuário e a do fiador deste, de obrigações com objectos distintos, não existe, como se diz nesse Acórdão de 18/09/2007, fundamento técnico-jurídico para tornar extensivo ao fiador o regime específico prevenido pelo Decreto-lei nº 446/85, de 25 de Outubro.

Mas, ainda que se veja como extensível ao fiador o regime do Decreto-lei nº 446/85, de 25 de Outubro, sempre se teria este de confinar às cláusulas contratuais gerais, de onde se retira que, estando o contrato em causa, no que tem de essencial, plasmado nas cláusulas particulares, não poderia a falta de entrega de um exemplar ao fiador redundar em invalidade de todo o contrato, nem, sequer, diga-se, na nulidade da fiança, pois que a esta nenhum vício substancial se encontra ou é apontado, tendo, designadamente, objecto perfeitamente determinável em face do estatuído nessas cláusulas particulares.

Sempre valeria, pois, nessa hipótese, “mutatis mutandis”, o entendimento seguido no Acórdão do STJ de 22-01-2008 (Revista n.º 4319/07), aresto este assim sumariado[5]: «I - O dever de comunicação adequada consagrado no art. 5.º do DL n.º 446/85, de 25-10, reporta-se apenas às condições gerais do contrato, e não às particulares, onde constam os elementos essenciais do negócio, pelo que, sendo aquelas substituídas pelas normas supletivas aplicáveis, nada impõe a nulidade da fiança.

II - Com efeito, os elementos essenciais do mútuo e da fiança encontram-se integrados nas cláusulas particulares que precedem as assinaturas, no que se refere ao montante do financiamento, prazo de amortização, 1 AEG, e montante da entrada inicial e das prestações, podendo o restante do respectivo regime ser integrado por normas supletivas, e, se necessário, com recurso às regras de integração do negócio jurídico, nos termos do art. 9.º do mesmo DL, que precisamente consagra a subsistência dos contratos singulares nos casos previstos no art. 8.º, vigorando na porte afectada as normas supletivas aplicáveis, com recurso se necessário àquelas regras (n.º 1), apenas com duas excepções, em que estabelece a sanção da nulidade: quando, não obstante o recurso às regras supletivas afastadas pelas cláusulas contratuais gerais e aos elementos de integração dos negócios jurídicos, se apure uma indeterminação insuprível de aspectos essenciais do contrato, ou um desequilíbrio nas prestações gravemente atentatório da boa fé.».

Pretende o réu ser considerado como “consumidor”, enquanto fiador, por força do estatuído no DL n.º 359/91, de 21 de Setembro, e que, consequentemente, se veja na circunstância de não lhe haver sido entregue uma cópia do contrato - facto este assente - a omissão prevista no n.º 1 do art.º 6º, deste diploma legal, e nele sancionada com a nulidade do contrato (art.º 7.º, n.º 1) . Carece de razão, a nosso ver.

O referido DL 359/91, regulando o contrato de crédito, define este como “o contrato por meio do qual um credor concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante” (artigo 2º, n.º 1, a)), considerando consumidor “a pessoa singular que, nos negócios jurídicos abrangidos pelo presente diploma actua com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional.” (art.º 2.º, n.º 1, b)).

No n.º 1 do seu art.º 6º, dispõe o referido DL 359/91: “O contrato de crédito deve ser reduzido a escrito e assinado pelos contraentes, sendo obrigatoriamente entregue um exemplar ao consumidor no momento da respectiva assinatura”.

A sanção para o incumprimento do estatuído nesta norma é a nulidade do contrato (art.º 7º, n.º 1), nulidade esta que, contudo, se preceitua só poder ser invocada pelo consumidor (art.º 7º, n.º 4).

A razão de ser da obrigatoriedade da entrega de um exemplar do contrato prende-se com a necessidade de o mutuário estar em plenas condições de reflectir para, no período legalmente estabelecido no art.º 8º do DL n.º 359/91, poder exercer o direito de revogação aí previsto.

Do exposto resulta, em nosso entender, que nem o fiador do mutuário pode ser considerado “consumidor” à luz do estabelecido nas citadas disposições do DL n.º 359/91 - pois que da conjugação das mesmas extrai-se que só assim deve ser tida a pessoa a quem o crédito é concedido -, nem, também, quanto a ele se verifica a razão de ser que está na base da obrigatoriedade da entrega de um exemplar do contrato e da sanção estabelecida para a inobservância da mesma.

Perfilha-se, pois, o entendimento expendido no Acórdão da Relação de Lisboa de 5/6/2008 (Agravo n.º 4032/2008-6), que refere: ” Evidenciando os autos que entre a exequente e o executado, ora agravante, foi celebrado, tão-somente, um contrato de fiança por força do qual este se assumiu como fiador solidário do também executado J, mutuário, relativamente a todas e quaisquer obrigações que para este resultassem do contrato em crise, entende-se que não pode ser considerado consumidor à luz da definição inserta no artigo 2º nº 1 al. b) do DL n.º 359/91, não lhe sendo extensiva a imposição de entrega de um exemplar do contrato no momento da respectiva assinatura.”.

Não se retire do exposto que não se entende assistir ao fiador o direito a um exemplar do contrato cujo cumprimento das obrigações decorrentes para o seu afiançado garante. Apenas se considera que esse direito não está contido na obrigatoriedade estabelecida no citado art.º 6.º, n.º 1, nem, consequentemente, tem a grave sanção que pelo seu desrespeito se prevê no mencionado art.º 7.º, n.º 1.

Alegando, o fiador, ser o contrato nulo em virtude de não lhe ter sido entregue um exemplar do mesmo, não pode o Tribunal considerar que a nulidade do contrato se verifica em resultado de não haver sido entregue um tal exemplar ao consumidor afiançado.

Não se confunda o ónus da prova, que é esse, realmente, o dispensado ao “consumidor” no art.º 7.º, n.º 4, do DL n.º 359/91, com o ónus da alegação.

Não sendo do conhecimento oficioso, a referida nulidade carece de ser arguida, não sendo, atenta a natureza atípica da mesma, de trazer à colação o disposto no art.º 286º do CC.

Irreleva, no presente caso, saber se o fiador pode arguir a nulidade da falta de entrega do exemplar do contrato ao consumidor seu afiançado.

É que, efectivamente, não foram esses os termos em que assentou a alegação da nulidade do contrato por parte do ora Apelante, fundada que foi a mesma na circunstância de a ele, fiador, não ter sido entregue uma cópia daquele.

O tribunal “a quo” não podia, pois, dar como assente “ex officio”, que não havia sido entregue exemplar do contrato à ré C..., não havendo razão para convocar a presunção estabelecida no mencionado art.º 7.º, n.º 4, e o disposto no art.º 344º, n.º 1, do CC.

Não se entende o motivo pelo qual o Apelante vem na sua douta alegação de recurso invocar “o incumprimento do dever de entrega ao mutuário de uma cópia do contrato”[6], quando estruturou a arguição da nulidade do contrato na falta de entrega dessa cópia, não à mutuária, mas sim a ele próprio, fiador desta, sendo-lhe defeso, como se sabe, transmutar factualmente a sua alegação da nulidade do contrato.

Aliás, o réu na sua contestação manifestou, até, a sua adesão ao que constava do contrato no que concerne à menção da entrega de um exemplar à ré compradora - admitindo desse modo, a nosso ver, que essa entrega teve lugar -, ao alegar na contestação:

«O contrato - todo ele - é NULO em relação ao R. D...a, visto que, conforme claramente resulta do mesmo,

12

foi "Feito em duplicado, ficando o original em poder de E.... CREDIT e sendo o duplicado entregue ao COMPRADOR",

13

ou seja, conforme expressamente consta do contrato e corresponde rigorosamente à verdade, ao fiador - o réu contestante - não foi entregue qualquer cópia do contrato.»[7].

Improcedem, pois, as conclusões da douta alegação do Apelante, no que concerne à nulidade (quer contrato, quer da fiança) derivada da falta de entrega do exemplar do contrato.

Sustenta o Apelante, ainda, que o contrato é nulo porque omite a indicação do elemento referido na alínea c) do n° 2 do art. 6º, do DL n.º 359/91 de 21 de Setembro, ou seja, as condições em que a TAEG pode ser alterada.

A Mma. Juiz do Tribunal “a quo” referiu a esse propósito:

«E o que dizer de não constarem do contrato as condições em que a TAEG pode ser alterada, como exige o Decreto-Lei n.° 359/91 de 21/09 ?

É certo que, como se referiu supra, tal circunstância é causa de nulidade do contrato.

Contudo, entendo que, no caso concreto, e perante a factualidade dada como provada, o contrato em análise não pode ser declarado nulo por tal omissão.

Com efeito, ficou provado que do contrato ficou a constar a TAEG.

Ora, nenhuma das partes alegou nos seus articulados, ter sido, alguma vez alterada a TAEG ou que a mesma sequer o pudesse ser, de onde resulta, a meu ver, que o contrato celebrado pelas partes apenas pode ser interpretado no sentido de não ter sido acordada a possibilidade de tal alteração e que, pelos vistos, nem sequer ocorreu.

Parece-me que o espírito do legislador não foi exigir que em qualquer contrato ficasse a constar as condições em que a TAEG pudesse ser alterada, mesmo naqueles em que tal questão não se colocava.

No caso "sub judice", de nenhuma cláusula do contrato resulta a alteração da TAEG, ou sequer, que a taxa de juro tenha sido indexada a qualquer factor variável, antes se fazendo referência a uma taxa de juro fixa, de onde se depreende, claramente, que a mesma se mantinha ao longo de toda a sua duração.

Mas mesmo que assim não se entendesse, sempre seria de considerar a invocação da nulidade pelo segundo réu, com tal fundamento, como um claro abuso do direito, nos termos do disposto no art.° 334.° do Código Civil, na modalidade de "venire contra factum proprium".

Com efeito, não pode deixar de chocar a consciência jurídica a invocação da nulidade do contrato, por do mesmo não constarem as condições em que a TAEG poderia ser alterada, ao fim de três anos e meio sobre a data da celebração do mesmo, apenas quando foi chamado a honrar a obrigação que assumiu e não estando demonstrado, ou sequer alegado que tal omissão tenha tido qualquer influência na decisão de contratar.».

Valendo, “mutatis mutandis”, o que se disse quanto aos motivos que levaram ao não atendimento da nulidade consubstanciada na falta de entrega ao réu de um exemplar do contrato, não procede, igualmente, a nulidade relativa à falta de consignação das condições em que a TAEG poderia ser alterada.

Refira-se que, quanto a esta matéria, também já a Relação de Lisboa se pronunciou no sentido de, negando ao fiador a qualidade de “consumidor”, considerar não lhe ser legítimo arguir a invalidade em causa[8].

Mas também se tem por acertado o entendimento da Mma. Juiz do Tribunal “a quo”.

O réu prestou fiança a favor da ré C..., apondo, no “rosto”do documento em que foi formalizado o contrato de financiamento, abaixo das “condições particulares”, a sua assinatura.

Com toda a probabilidade foi essa garantia consubstanciada na fiança que possibilitou que à ré C.., fosse concedido o financiamento para a aquisição do veículo em causa.

O réu não pretende, sabido que a sua afiançada não cumpriu, que essa garantia que prestou funcione, afirmando nada a ele lhe poder ser exigido, o que faz com fundamento nos dois motivos já apontados:

- não lhe ter sido entregue um exemplar do documento escrito que formalizou o contrato;

- não constarem desse documento as condições em que a TAEG poderia ser alterada.

A estes dois fundamentos juntou o Apelante, já em sede de recurso, um terceiro: o da inconstitucionalidade das normas do art.º DL n.º 359/91, por violação do art.º 60.º da CRP, se interpretadas de modo a excluir ao fiador o direito à cópia do contrato e/ou excluir a nulidade da falta de entrega da mesma (pelo menos quanto à fiança) ou da menção das condições de alteração da TAEG.

Não faz sentido, de facto, partindo do princípio que o fiador não carece de legitimidade para a arguir, que a apontada omissão das condições em que a TAEG pode ser alterada tenha a relevância de determinar a nulidade do contrato quando nenhum elemento leve a concluir que tal alteração, embora não plasmada no dito documento, foi contratada.

Na verdade, afigura-se assistir razão às Apeladas quando sustentam que, «… decorrendo a contrario do n.º 7 do art. 4.º do referido decreto-lei a admissibilidade de situações de imprevisão, nos instrumentos contratuais de crédito ao consumo, das condições de alteração da TAEG, é manifesto que tal não afecta a validade formal do contrato em questão.

 (…) In casu, a inalterabilidade da TAEG durante a vigência contratual ou seja, o efeito da falta da sua previsibilidade expressa em nada prejudica, como não prejudicou, o Segundo R., porquanto representa a impossibilidade legal do encarecimento do custo total do crédito. (…) Por outras palavras, tal imprevisão também serve de garantia ao consumidor e ao fiador, ora Apelante de que a TAEG não pode, em caso algum, ser alterada e, como tal, o crédito encarecido.».

Seguindo a perspectiva do réu, a consignação das condições em que a TAEG poderia ser alterada, seria obrigatória, conduzindo a sua omissão à nulidade do contrato, ainda que as partes tivessem estipulado… não admitir essa alteração.

Quem presta fiança, não o faz, ou não o deve fazer, sem adequada ponderação, ou na pressuposição de que nunca lhe será exigida a garantia que presta, em virtude de, designadamente, confiar que o afiançado sempre cumprirá.

Quem presta fiança a favor de alguém deve procurar certificar-se se pode cumprir o que desse modo garante. Só depois disso, querendo e podendo, afiançará esse alguém[9].

Também por esse motivo a posição do fiador não se equipara à do “consumidor” mutuário, este sim, num pano de sujeição, ao menos quanto às cláusulas não negociadas, que tem de aceitar, para lograr obter do mutuante o financiamento que almeja.

Por isso se subscreve o entendimento expresso no Acórdão do STJ de 03/05/2007 (Revista n.º 06B1650), quando aí se refere que “(…) A ideia de fiança e fiador está, de há muito, no domínio do senso comum - toda e qualquer pessoa sabe que se é fiador de alguém é chamado a pagar quando esse alguém não paga.

 (…) Se não procurou saber qual a quantia exacta dessa aquisição e as condições de pagamento, à sua irreflexão o deve e não pode esgrimir essa irreflexão a posteriori contra quem legitimamente se cuidou antes do negócio efectuado com o 1º réu.”.

No caso “sub judice” o núcleo essencial das obrigações que do contrato decorriam para a afiançada do réu, encontra-se plasmado nas cláusulas particulares que especificam, além do mais, o montante do crédito, o valor total das prestações e seu número e valor, as datas do respectivo vencimento, a taxa de juro e o valor da TAEG[10].

São elementos que, espelhando uma realidade contratual sem qualquer complexidade, dariam ao réu, professor de profissão, um retrato fiel daquilo que, no essencial, garantia ao afiançar a mutuária.

Não obstante, o réu veio arguir as referidas omissões sem que se vislumbre que as mesmas, designadamente a respeitante às condições de alteração da TAEG, pudessem relevar na compreensão das condições contratadas ou ter exercido qualquer influência na decisão de afiançar a ré C....

Excede, de forma manifesta, o princípio da boa fé, a conduta daquele que, possibilitando a outrem, ao prestar fiança a seu favor, a concessão de crédito por parte de terceiro, vem, cerca de 3 anos após a celebração do contrato e a concessão do crédito, ao ser accionado por esse terceiro para honrar a garantia que prestou em face do incumprimento, que não contesta, do seu afiançado, invocar a nulidade do contrato de crédito e da fiança que prestou, arrimando tal nulidade na falta de cumprimento de prescrições legais atinentes às menções que haveriam de constar do contrato - v.g. a indicação das condições em que poderia ser alterada a TAEG - sem que nenhum prejuízo alegue ou se evidencie ter decorrido dessa omissão, designadamente, que a mesma tenha tido qualquer influência na sua decisão de afiançar.

Por isso se concorda, no que concerne à nulidade relativa à omissão das condições de alteração da TAEG, com a Mma. Juiz do Tribunal “a quo”, quanto na sentença recorrida refere que sempre seria de considerar a invocação da nulidade pelo segundo réu, com tal fundamento, como um claro abuso do direito, nos termos do disposto no art.° 334º do CC [11].

Os recursos têm por escopo obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores (art.ºs 676, n.º 1, 684, n.º 4, do CPC), não podendo servir de meio para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, salvo tratando-se de questões que, respeitando directamente ao objecto do processo, sejam de conhecimento oficioso.

Uma vez que a questão da alegada violação do art.º 60º, da CRP, não obstante ser qualificável como “questão nova”, é matéria do conhecimento oficioso, sobre ela cumpre emitir pronúncia.

O art.º 60º da Constituição da República Portuguesa preceitua no seu n.º 1 que “Os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação, à protecção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos.”.

Sendo certo que nada obsta a que seja questionada apenas uma certa interpretação ou dimensão normativa de um determinado preceito, é mister, nestes casos, que se enuncie, de forma clara e perceptível, o preciso sentido normativo dos preceitos que se considera inconstitucional[12].

O ora Apelante não cumpre tal desiderato, salvo o devido respeito, alegando, em termos que se tem por demasiado latos, designadamente na vertente da explicitação do respectivo antagonismo com a norma do art.º 60º da CRP, ao alegar, com referência ao DL n.º 359/91, que “a interpretação dos respectivos normativos, em particular dos arts. 2.º, 6.º e 7.º, deve ser feita de forma abrangente, à luz dos textos constitucionais, e nunca de forma a reduzir os direitos, designadamente o direito à informação.”.

Não se entende suficiente a atingir esse escopo, na verdade, sustentar-se que “uma interpretação que exclua o direito do fiador à cópia do contrato e/ou exclua a nulidade da falta de entrega da mesma (pelo menos quanto à fiança) ou da menção das condições de alteração da TAEG é inconstitucional, pois viola o art. 60 da Constituição”.

Não obstante, sempre se dirá que o direito consagrado no referido normativo constitucional não obsta a que se entenda careceram de protecção diversa, pois que em situação diversa se encontram, aquele a quem é concedido um crédito e aqueloutro que a seu favor presta fiança.

Assim, dir-se-á que não se detecta, pois, na decisão recorrida, a aplicação de qualquer norma que infrinja os preceitos ou os princípios constitucionais, não se vendo, designadamente, que a interpretação dada na decisão recorrida ao disposto nos art.ºs. 2.º, 6.º e 7.º, do DL n.º 359/91, contrarie tais normas e princípios, nomeadamente, o preceituado no art.º 60º da CRP.

Em suma: Em face de tudo o exposto tem-se por correcta a decidida condenação do réu, entendendo-se que na sentença recorrida não se infringiu qualquer preceito legal, nomeadamente, o que se dispõe nos art.ºs. 286º, 334º e 344º, n.º 1 do Código Civil, nos arts. 2º, 6º, n.º 1, e 7º, n.º 1, todos do DL 359/91 de 21/09, no art.º5.º do DL 446/85, de 25/10, ou no art.º 60º da Constituição da República Portuguesa.

Improcedendo, pois, as doutas conclusões do Apelante, sorte diferente não tem o recurso, sendo de manter “in totum” a douta sentença da 1.ª Instância.  

IV - Decisão:

Em face do exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a Apelação improcedente, mantendo a sentença recorrida.

Em virtude do apoio judiciário de que beneficia não se condena o Apelante nas custas.


[1] Os preceitos deste Código aqui citados, reportam-se, salvo indicação em contrário, à redacção que antecedeu a introduzida pelo DL n.º 303/07, de 24/08.
[2] Consultáveis na Internet, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, endereço este através do qual poderão ser acedidos todos os Acórdãos do STJ, ou os respectivos sumários, que abaixo se assinalarem sem menção de origem de publicação.
[3] Cfr. Acórdão do STJ de 01/07/2008, Revista n.º 08A1583.
[4] Acórdão este, tal como os restantes da Relação de Lisboa que forem citados sem indicação de outra fonte, consultável em “http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/Pesquisa+Termos?OpenForm” e que é assim sumariado no que concerne à matéria de que ora se trata:« II - Num contrato de mútuo com fiança, o fiador, que garantiu o pagamento de todas as responsabilidades que decorrem do contrato para o afiançado, não pode ser considerado aderente, nos termos e para os efeitos do artigo 5.º/1 do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, não podendo, por conseguinte, invocar o regime das cláusulas contratuais gerais.».
[5] “In” http://www.stj.pt/nsrepo/cont/Mensais/Civeis/Cível012008.pdf.
[6] Dizendo: “Para o fiador - ora recorrente - não é indiferente o incumprimento do dever de entrega ao mutuário de uma cópia do contrato, por ser do seu interesse que a obrigação que garantiu só seja assumida depois de devidamente ponderadas as suas implicações.”.
[7] O sublinhado é nosso.
[8] Acórdão de 09/02/2006, processo n.º 371/2006-6.
[9] Cfr. referido Acórdão da Relação de Lisboa de 18/09/2007.
[10] Veja-se o consignado nas alíneas J), L) e M), da matéria de facto provada.
[11] Cfr. tb. Acórdão da Relação de Lisboa de 02/06/2005, (processo n.º 4336/2005-8); Acórdão da Relação do Porto de 28/06/2007 (processo n.º 4307/2007-6), este último consultável através do endereço “http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf?OpenDatabase”.
[12] Cfr. Acórdão nº 269/94 do TC, “in” Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1994.