Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2777/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO PIÇARRA
Descritores: REGISTO PREDIAL
TERCEIROS
Data do Acordão: 12/06/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ - 1º JUIZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 5º, NºS 1 E 4, DO C. REG. PREDIAL .
Sumário: I – O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário, não tendo natureza constitutiva .
II – Um comprador de um imóvel em acção executiva não é terceiro para efeitos de registo em relação a um anterior adquirente directamente do proprietário desse imóvel, por escritura pública, uma vez que o direito daquele não provém de um autor comum, segundo o conceito restrito de terceiro, que nele inclui apenas os actos negociais, com exclusão da penhora ou venda executiva .

III – Flui dessa concepção, que parece ter sido a adoptada pelo Ac. STJ nº 3/99, uniformizador de jurisprudência, que ocorrendo conflito entre uma aquisição por compra e venda anterior e não levada ao registo, e uma penhora posterior registada, aquela obsta à eficácia desta última e da venda executiva subsequente, prevalecendo sobre estas – a realidade substantiva sobrepõe-se à registral .

IV – Independentemente da adopção da sobredita tese, mesmo que se entendesse que o conceito de terceiro para efeitos de registo abrange a venda executiva – concepção ampla – ainda assim a aquisição realizada em segundo lugar sempre necessita do pressuposto da boa fé para poder usufruir da protecção derivada do registo, na medida em que ao comprar o prédio não pode saber que o mesmo não seja propriedade da entidade executada .

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Relatório
I – A..., residente em Bégles, França, intentou acção declarativa, com processo ordinário, contra B..., sua mulher, C..., residentes em Charneca, Pombal, e D..., com sede na Figueira da Foz, pedindo que se declare ser proprietária do lote de terreno destinado à construção urbana, com a área de 1.658 m2, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Alhadas sob o art.º 0305, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz, sob o n.º 466, e se ordene o cancelamento da penhora e inscrição da aquisição a favor dos réus B... e C....
Fundamentou essa pretensão no seguinte:
Através de escritura pública outorgada, no 2º Cartório Notarial da Figueira da Foz, no dia 26 de Agosto de 1991, comprou à ré D... aquele lote de terreno, procedeu à sua inscrição na matriz a seu favor, liquidando, desde então, a respectiva contribuição autárquica, ocupou-o e benfeitorizou-o, na convicção de ser coisa sua, mas não registou de imediato a aquisição.
Entretanto, em execução movida pelo réu B... à ré D..., o referido prédio veio a ser penhorado, sob nomeação do primeiro, que também o comprou, apesar de saber que não pertencia já à última.
Não obstante a anterioridade do registo da penhora, deverá prevalecer a sua aquisição do direito de propriedade sobre o prédio.
Regularmente citados, apenas contestaram os réus B... e mulher, arguindo a sua ilegitimidade, por estarem desacompanhados da pessoa a quem entretanto venderam o prédio, e sustentando, em síntese, terem agido de boa fé quando o nomearam à penhora e compraram, pelo que sendo o registo daquela anterior ao da aquisição pela autora, deverá prevalecer a sua aquisição sobre a dela, desse modo, concluindo pela improcedência da acção.
Replicou a autora, pugnando pela improcedência da invocada excepção e provocando a intervenção principal de E... e mulher, F..., os compradores do prédio aos réus B... e mulher, já depois de proposta a acção.
Admitido o chamamento, foram aqueles citados, tendo contestado apenas o interveniente Manuel, que, no essencial, sustentou a sua boa fé, por ignorar a existência de qualquer litígio quando comprou o prédio, e pugnou pela prevalência do seu direito de propriedade.
Foi proferido despacho saneador em que se desatendeu a excepção de ilegitimidade e se afirmou a validade e regularidade da instância. Condensou-se a matéria de facto, com especificação da já assente e organização da base instrutória.
Realizada a audiência de julgamento, com gravação dos depoimentos nela prestados, e dirimida a matéria de facto, sem censura, foi, então, proferida sentença que julgou improcedente a acção e absolveu os réus e os chamados do pedido.
Inconformada com tal decisão, apelou a autora, tendo finalizado a sua alegação, com conclusões seguintes:
1. A venda executiva de que os autos tratam foi uma venda de bens alheios, visto a recorrente ter adquirido por escritura a propriedade do prédio em data anterior e tal foi, se não antes pelo menos no acto da hasta pública, do conhecimento do recorrido.
2. O registo de aquisição consequente a uma venda judicial não retrotrai os efeitos translativos dessa venda à altura do registo da penhora, sendo que o art.º 34º, n.º 2 do CRP dispõe tão só sobre a desnecessidade de intervenção do titular inscrito no procedimento para nova inscrição, sendo uma disposição que versa apenas sobre as solenidades necessárias e as dispensáveis à regra do trato sucessivo.
3. Não sendo a penhora aliás um direito real para efeitos de integração no conceito das incompatibilidades registrais de domínio que o Cód. Reg. Predial resolve.
4. Houve, no caso dos autos, uma venda judicial de bens alheios, sendo assim uma venda nula.
5. Terceiros para efeitos de registo são os que recebem direitos incompatíveis do mesmo titular prevalecendo o direito primeiramente registado e não o eventualmente primeiramente transmitido, numa excepção derrogativa já do princípio da aquisição derivada material.
6. Deve, pois, prevalecer o registo de aquisição de propriedade da recorrente sobre o registo efectuado a seu próprio favor pelo recorrido comprador na hasta pública, visto aquele ser prévio a este.
7. Sob pena de estarmos perante a protecção judiciária do confisco, legal e constitucionalmente inadmissível.
8. A decisão recorrida viola os art.ºs 408º e 892º do Cód. Civil, 5º, 6º e 7º do Cód. Reg. Predial, 821º do Cód. Proc. Civil e 62º da CRP.
Os apelados ofereceram contra-alegações a pugnar pelo insucesso do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre agora apreciar e decidir.
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II - Fundamentação de facto
A factualidade dada como provada, na 1ª instância, é a seguinte:
1. Com a intenção de nele construir uma moradia, a autora firmou com a ré D..., em 14/08/90, um contrato-promessa de compra e venda do lote de terreno destinado à construção urbana, com a área de 1.658 m2, designado por lote 10, omisso na matriz e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz, sob o n.º 466 da freguesia de Alhadas, vindo depois a adquiri-lo em 26/08/91 por escritura de compra e venda celebrada no 2º Cartório Notarial da Figueira da Foz.
2. Actualmente o referido lote está inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Alhadas sob o art.º 0305, a favor da autora, que desde 1991 tem sido quem tem liquidado a contribuição autárquica respectiva, e que em Agosto de 1992 pagou à Direcção de Serviços Regionais de Hidráulica do Mondego a quantia de 1.800$00 referente a limpeza e desobstrução de uma vala com ele confinante, sendo ainda que numa das visitas anuais que fazia ao prédio, o pai da autora nele colocou marcos, estando então ela convicta de o prédio ser coisa sua.
3. O réu B... intentou contra a ré D... execução de sentença com processo ordinário para pagamento de 42.500.000$00 e juros, a qual correu termos pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, primeiro com o n.º 390/A/99, e em cujo âmbito nomeou à penhora o prédio referido em 1., juntando ali aos autos certidão de registo predial emitida em 08/09/95, comprovativa de estar então o prédio inscrito a favor da ré D... e dela não constando registo de quaisquer ónus ou encargos.
4. Ordenada a penhora por despacho de 09/09/1995, foi a mesma efectuada em 11/10/95 e depois registada provisoriamente por dúvidas em 05/03/96, com conversão da inscrição em definitiva em 02/05/96, e vindo-se a ordenar a venda do prédio por propostas em carta fechada, para abertura das quais se designou o dia 10/11/97, pelas 14.30 horas.
5. Por alterações na sua vida, que entretanto ocorreram, a autora deixou de se interessar pela construção do imóvel que pretendia edificar naquele lote, sendo que a inscrição do prédio a seu favor na Conservatória data de 03/09/96.
6. No dia 10/11/97, no acto de abertura das propostas referido em 4., compareceu um mandatário da autora, munido de procuração com os mais amplos poderes forenses em direito permitidos e juntou aos autos cópia da escritura de 26/08/91 referida em 1., e nesse dia e na dita execução elaborou, para todos os efeitos legais, termo de protesto.
7. O prédio foi adjudicado ao réu B..., ali exequente, pelo preço de 4.550.000$00, sendo ele dispensado do pagamento da quantia que não fosse necessária para pagamento do credor graduado e custas e assim vindo a depositar para pagamento àquele a quantia de 650.000$00 e para pagamento destas a de 164.000$00 (ou seja, a quantia global de 814.000$00).
8. Paga a sisa, no montante de 455.000$00, foi proferido o despacho de adjudicação em 07/02/98, sendo que a inscrição do prédio na Conservatória a favor dele tem data de 04/09/98, ali constando que o adquiriu em venda judicial em execução que moveu contra a ré D....
9. Em 27/03/01, a autora contactou a G..., com sede na Figueira da Foz, no sentido de esta lhe promover a venda do prédio pelo preço de 5.000.000$00, recebendo por telecópia de 09/04/01 resposta em que era informada da situação registral dele.
10. Por escritura pública outorgada em 03/07/01, no Cartório Notarial de Coimbra, os réus B... e C... venderam o prédio a E....
11. Até ser adjudicado ao réu B..., o prédio estava com mato e pinheiros novos, e antes de vendê-lo o B... mostrara-o a outro eventual comprador, convicto de exercer direito seu e que não lesava direitos de outrem.
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III – Fundamentação de direito
A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação da apelante (art.ºs 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil), passam pela determinação de qual das aquisições deve prevalecer – a primeiramente efectuada, mas não levada a registo (a da apelante), ou a efectuada posteriormente, mas objecto de registo (a do apelado B....).
A questão não é pacífica e sobre ela têm divergido tanto a doutrina como a jurisprudência. A 1ª instância, em douta sentença muito bem elaborada e fundamentada, optou por fazer prevalecer a aquisição posterior à da apelante, mas previamente registada, e é precisamente contra esse entendimento que esta se rebela, visando com o recurso fazer prevalecer a sua aquisição e inscrição registral em detrimento da aquisição do apelado B..., através da venda executiva.
A solução para a questão tem a ver essencialmente com o conceito de terceiros, para efeitos de registo predial.
Como se sabe, os factos sujeitos a registo podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros, mesmo que não registados (art.º 4º, n.º 1 do Cód. Reg. Predial). Já no que respeita à oponibilidade do registo predial a terceiros prescreve o art.º 5º, n.º 1 do Cód. Reg. Predial que "os factos sujeitos a registo só produzem efeitos em relação a terceiros depois da data do respectivo registo". Significa isto que, inter partes, os factos sujeitos a registo são plenamente eficazes, mesmo que não registados; para com terceiros interessados, a sua eficácia depende do registo.
Importa, todavia, ter presente que o registo predial se destina essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário (art.º 1º do Cód. Reg. Predial), não tendo natureza constitutiva. Entre nós, os actos existem fora do registo, sendo o efeito deste simplesmente declarativo, não conferindo, a não ser excepcionalmente, quaisquer direitos.
O conceito de terceiros deve reflectir, assim, essa função declarativa do registo e ser entendido à luz das finalidades publicitárias deste. Após longa controvérsia doutrinal e jurisprudencial, o conceito de terceiros obteve consagração legal, através do Dec-lei 533/99, de 11 de Dezembro, que aditou ao art.º 5º do Cód. Reg. Predial o n.º 4, do teor seguinte:
Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.
Esta formulação legal é tributária de uma das posições doutrinais que, acerca do conceito, se vinham digladiando desde há muito. O próprio legislador não deixou de o assinalar, escrevendo, no preâmbulo daquele diploma que «aproveita-se, tomando partido pela clássica definição de Manuel de Andrade, para inserir no art. 5º do Código do Registo Predial o que deve entender-se por terceiros, para efeitos de registo, pondo-se cobro a divergências jurisprudenciais geradoras de insegurança sobre a titularidade dos bens.»
Deste normativo decorre que o réu B..., comprador do prédio em acção executiva não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que o seu direito e o da apelante não provêm de um autor comum. Parece ser este o entendimento adoptado pelo acórdão do Supremo Tribunal n.º 3/99, de 18.05.99, (uniformizador de jurisprudência) que, revendo a doutrina fixada pelo seu homólogo 15/97, de 20.05.97, retomou, na matéria, a posição de Manuel de Andrade In Teoria Geral da Relação Jurídica, Volume II, págs. 19/20., consagrando um conceito restrito de terceiro, segundo o qual a inoponibilidade de direitos a um terceiro, para efeitos de registo, pressupunha que ambos os direitos tivessem advindo de um mesmo transmitente comum, excluindo «os casos em que o direito em conflito com o direito não inscrito deriva de uma diligência judicial, seja ela arresto, penhora ou hipoteca judicial» Cfr, ac. do STJ de 7/7/99, CJ/STJ, ano VII, Tomo II, pág. 164..
Flui, pois, do que fica referido que, ocorrendo conflito entre uma aquisição por compra e venda anterior não levada ao registo e uma penhora posterior registada, aquela obsta à eficácia desta última e da venda executiva subsequente, prevalecendo sobre estas.
Significa isto que a compra efectuada em 26.08.91 pela apelante, apesar de ter sido levada ao registo em data posterior ao registo da penhora, produz efeitos contra o réu B..., cuja aquisição se operou através da venda em processo executivo, podendo aquela invocar triunfantemente perante este o seu direito de propriedade bem como perante os chamados a quem entretanto alienou o prédio. Parafraseando o aludido acórdão uniformizador n.º 3/99, há que atentar em que o imóvel penhorado já havia saído do património da devedora, a ré D..., quando foi nomeado e sujeito a penhora. A propriedade transferiu-se por mero efeito do contrato de compra e venda celebrado entre a apelante e a ré D..., conforme estabelecem os art.ºs 408º e 879º a) do Cód. Civil, e tal sucedeu independentemente de qualquer registo. Por isso, não podia o prédio objecto dessa venda garantir a dívida daquela perante o credor que o nomeou à penhora (o ora réu B...).
Aliás, mesmo que se entendesse que o conceito de terceiro para efeitos de registo abrange a venda executiva, concepção mais ampla que a preconizada atrás, ainda assim a aquisição do réu B... não poderá prevalecer. É que lhe falta a necessária boa fé para poder usufruir da protecção derivada do registo, na medida em que ao comprar o prédio já sabia que o mesmo não era propriedade da ré D..., mas sim da apelante, que no acto apresentou protesto e juntou até certidão da escritura de compra e venda do prédio Cfr., neste sentido, Consº Quirino Soares, O conceito de terceiros para efeitos de registo predial, Boletim da ASJP, Setembro de 2005, pág. 41, ac. do STJ de 5/5/05 proferido na revista n.º 743/05 - 7.ª Secção (relator: Consº Araújo Barros, cujo sumário é acessível através de www/stj. pt, boletim interno de Fevereiro de 2005..
Deste modo, a douta sentença recorrida não está conforme à doutrina plasmada no referido acórdão n.º 3/99 e n.º 4 do art.º 5.º do CRP e não deverá manter-se, o que implica o êxito do recurso e a sua revogação.
IV - Decisão
Pelo exposto, na procedência da apelação, revoga-se a sentença recorrida e julga-se a acção procedente, condenando-se os réus e chamados a reconhecerem o direito de propriedade da autora sobre o prédio acima identificado e ordenando-se o cancelamento dos registos da penhora e aquisições inscritas a favor dos réus B... e chamados.
Custas pelos recorridos.
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Coimbra, 06 de Dezembro de 2005