Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1865/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA DE BARROS
Descritores: LETRA DE CÂMBIO
REFORMA
Data do Acordão: 06/28/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CONDEIXA-A-NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 39º DA LULL E 542º, N.º4 DO CPC
Sumário: 1. O sacado que paga uma letra pode exigir que ela lhe seja entregue com a respectiva quitação.

2. A letra de reforma consiste em substituir uma letra velha por outra, tendo realmente por fim diferir o pagamento da obrigação constante da letra renovada, traduzindo-se afinal numa espécie de pagamento.

3. A simples reforma não implica a extinção, por novação, da primitiva obrigação cambiária, sendo indispensável para esse efeito, a alegação e prova de expressa e inequívoca manifestação de vontade no sentido de contrair uma nova obrigação cambiária em substituição da antiga.

4. Tendo sido julgado nulo o aceite aposto na letra de reforma, então a letra de reforma não corresponde a qualquer pagamento da letra primitiva, um vez que não reveste as características da letra de reforma que se traduz numa espécie de pagamento.

5. Instaurada execução com base na letra primitiva, e requerida e extinta a execução por pagamento, pressupondo a validade do aceite aposto na letra de reforma, mas que foi, posteriormente, julgado nulo por decisão judicial, nada obsta a que, transitada a decisão na execução baseada na letra primitiva, esta seja entregue ao exequente e seu legítimo portador.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I)- RELATÓRIO

A A... requereu, no dia 25.08.2003, execução cambiária contra B... e C..., servindo de título executivo uma letra no valor de € 45.453,70, emitida em 24.07.2002, com data de vencimento em 31.08.2002, sacada pela 1ª executada e aceite pelo 2º executado.
No dia 14.10.2003, a Exequente requereu a remessa dos autos à conta, alegando que a quantia exequenda foi paga extrajudicialmente.
Após a sustação e a remessa dos autos à conta, por sentença de 10.11.2003, foi julgada extinta a execução, uma vez paga a quantia exequenda e as custas, tendo a sentença transitado em julgado.
No dia 27.01.2005, a Exequente requereu a restituição da letra exequenda, tendo em vista a propositura de acção judicial.
Foi tal requerimento indeferido, tendo a Exequente requerido rectificação, e seguidamente agravado, pugnando pela revogação do despacho e extraindo da sua alegação as seguintes conclusões:
1ª- A letra de € 45.453,70 junta com a petição pertence à Exequente/Agravante;
2ª-O preceituado no art. 542º, n.º4 do CPC permite à parte a quem pertencer o documento requerer a sua restituição após trânsito em julgado que pôs termo à causa;
3ª-Mesmo que tenha havido cumprimento de obrigação exequenda, e neste caso não existiu, a restituição da letra deve processar-se sempre que exista motivo atendível e fique assegurada a sua não transmissibilidade;
4ª-Julgada procedente a nulidade do aceite da letra de € 30.000,00, não pode considerar-se que esta seja reformatória da letra de 45.453,70, porquanto ambas continuaram em circulação e as assinaturas delas constantes não são as mesmas numa e noutra;
5ª-No requerimento que pôs termo à presente execução apenas se diz que a letra foi paga extrajudicialmente, mas não se diz que foi o executado/sacado que procedeu ao seu pagamento;
6ª-O despacho recorrido violou por erro de interpretação e de aplicação o disposto no art. 542º, n.º4 do CPC e no art. 39º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças.

O Executado contra-alegou no sentido da manutenção do julgado e pediu a condenação da Agravante como litigante de ma fé.
Foi mantido o despacho impugnado.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II)- OS FACTOS

Para além da factualidade acima relatada, decorre, ainda, dos autos com interesse ao julgamento do recurso, a seguinte factualidade:
- No dia 10.09.2003, a A... requereu execução cambiária contra B... e D..., servindo de título executivo uma letra emitida no dia 31.08.2002 e vencimento no dia 31.10.02, com o valor de € 30.000, figurando a 1ª Executada como sacadora, a 2ª Executada como aceitante e C... como sacado.
- A Executada D... deduziu embargos contra a execução, alegando que o aceite é nulo, uma vez que é sacado C..., apesar de o nome da Embargante figurar no lugar do aceite;
-Foram os embargos julgados procedentes, por sentença proferida no dia 29.11.2004, com fundamento na nulidade do aceite, por falta de identidade entre sacado e aceitante da letra;
-Foi dado por assente na sentença referida que a letra no valor de € 30.000 consiste numa reforma de uma letra anterior, no valor de € 45.453,70, saque de B... e aceite de C..., emitida em 24.06.2002 e vencida em 31.08.2002;
-Mais foi dado por assente que a Exequente apenas requereu a remessa dos autos à conta, no âmbito da execução cambiária com base na letra no valor de € 45.453,70, em virtude de tal letra ter sido reformada pela letra no valor de € 30.000.

III)- O DIREITO

Tal como resulta das conclusões da alegação a delimitar, em princípio, o objecto do recurso (arts. 690º, n.º1 e 684º, n.º3, ambos do CPC), a única questão colocada consiste em saber se deve ou não ser restituída à Agravante a letra exequenda no valor de € 45.453,70.

A este respeito estabelece o n.º4 do art. 542º do CPC o seguinte:
“Transitada em julgado a decisão, os documentos pertencentes aos organismos oficiais ou a terceiros serão entregues imediatamente, enquanto os pertencentes às partes só serão restituídos mediante requerimento, deixando no processo fotocópia do documento entregue.”

No despacho impugnado foi indeferida a pretensão da Agravante, à luz do prescrito no art. 39º da Lei Uniforme de Letras e Livranças, nos termos do qual “o sacado que paga uma letra pode exigir que ela lhe seja entregue com a respectiva quitação”.

Ora, da factualidade assente decorre que a Agravante alegou, na acção executiva, ter sido paga extrajudicialmente a letra exequenda no valor de € 45.453,70, e após remessa à conta, foi julgada extinta a execução por sentença transitada em julgado. Todavia, na altura (14.10.2003) em que a Agravante requereu a remessa à conta, já estava pendente a execução cambiária baseada na letra no valor de € 30.000, uma vez que fora intentada em 10.09.2003, e só posteriormente, em 29.11.2004, foram julgados procedentes os embargos deduzidos por D....
Como já foi referido, na sentença proferida nos embargos de executado foi julgado nulo o aceite, não vinculando a pessoa que o assinou, por falta de identidade entre a pessoa do aceitante e sacado. A embargada apenas apresentou o requerimento a pedir a sustação da execução e remessa à conta, no citado processo com base na letra no valor de € 45.453,70, alegando ter sido paga extrajudicialmente a quantia exequenda, devido ao facto de a letra que aí constava como título executivo ter sido reformada com a subscrição da letra no valor de € 30.000.

A letra de reforma consiste em substituir uma velha letra por outra nova, tendo realmente por fim diferir o pagamento da obrigação constante da letra renovada, traduzindo-se afinal numa espécie de pagamento. Cfr. “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças”, p. 212, de Abel Delgado e Gonçalves Dias, em “Da letra e da Livrança, vol. 1º, p. 401 O caso mais frequente é o de amortização parcial do débito, passando a constar da nova letra o montante ainda em dívida, o que poderia ser obtido através de um meio mais simples, ou seja, a menção na letra inicial do pagamento parcial (art. 39º da LULL). A simples reforma não implica a extinção, por novação, da primitiva obrigação cambiária, sendo indispensável para esse efeito, a alegação e prova de expressa e inequívoca manifestação de vontade no sentido de contrair uma nova obrigação cambiária em substituição da antiga Cfr. acórdãos do STJ publicados no BMJ n.º 401º, p. 599 e n.º 455º, p. 524, da Relação do Porto, na CJ 2003, 3º, p. 205.
Mas se a letra dita reformada persistir em circulação é de presumir que inexistiu intenção de novação, continuando as partes vinculadas pela primitiva obrigação cambiária.

No caso concreto, para além de se manter em circulação a letra primitiva no valor de € 45.453,70, tanto assim que foi dada em execução pela Agravante, ainda o aceite foi prestado nas duas letras de câmbio por pessoa diversa, embora haja identidade de sacado e sacador. Tendo o aceite aposto na letra de reforma sido reconhecido como nulo na sentença proferida no processo de embargos, por falta de identidade entre sacado e aceitante,
Ficou, também, provado na sentença do processo de embargos que a ora Agravante, no processo executivo baseado na letra primitiva no valor de € 45.453,70 apenas apresentou o requerimento a solicitar a sustação da execução e remessa dos autos à conta, alegando o pagamento extrajudicial da quantia exequenda, devido à reforma da letra no montante de € 45.453,70 ter sido reformada com a subscrição da letra no valor de € 30.000. E nessa altura, ainda não tinha sido proferida sentença no processo de embargos deduzido por apenso à execução baseada na letra no valor de € 30.000. Como vimos, aquele requerimento foi apresentado no dia 14.10.2003 e a sentença dos embargos foi proferida no dia 29.11.2004.
Mas tendo sido julgado nulo o aceite aposto na letra de reforma, então não se pode concluir que correspondesse a qualquer pagamento da letra primitiva, não revestindo as características de letra de reforma que se traduz numa espécie de pagamento Cfr. acórdão do STJ publicado no BMJ n.º401º, p. 599. O Agravado que figura como sacado e aceitante da letra no valor de € 45.453,70, não aceitou a letra no valor de € 30.000, onde figura como sacado, sendo o aceite de outra pessoa. A ora Agravante apenas requereu, pois, a sustação e remessa à conta da execução baseada na letra no valor de € 45.453,70, pressupondo que a letra no valor de € 30.000 correspondia a efectivo pagamento da primitiva letra, mas, tal eficácia não lhe pode ser atribuída à luz da sentença posteriormente proferida no processo de embargos a declarar nulo o aceite aposto na letra no valor de € 30.000. Atenta a nulidade do aceite não vale tal letra como letra de reforma.
Por essa razão, não revestindo a letra no valor de € 30.000 as características de letra de reforma, estando pressuposto, no requerimento formulado na execução baseada na letra com o valor de € 45.453,70, o pagamento parcial desta letra através daqueloutra letra no valor de € 30,000, pode concluir-se, e contrariamente ao declarado no requerimento mencionado, que, afinal, ainda não está paga extrajudicialmente a quantia exequenda titulada pela letra no valor de € 45.453,70, apenas se podendo concluir que foi paga a quantia de € 15.453,70.
Sendo assim, a Agravante tem direito a que lhe seja restituída a letra no valor de € 45.453,70, tal como requereu, porque lhe pertence pelas razões expostas. A letra só passa a pertencer ao sacado, uma vez paga, podendo exigir a sua entrega com a respectiva quitação, como flui do disposto no art. 39º da LULL. Mas o pagamento parcial da primitiva letra não ocorreu através da emissão de letra no valor de € 30.000.

Assistindo, pois, direito à Agravante a ver restituída a dita letra, ao abrigo do n.º 4 do art. 542º do CPC, não faz qualquer sentido falar em litigância de má fé, cuja condenação foi pedida pelo Agravado na sua contra-alegação. Ao invés, é o Agravado que pretende subtrair-se ao pagamento parcial da letra descontada pela Agravante no valor de € 45.453, 70, bem sabendo que a letra, no valor de € 30.000, atenta a nulidade do aceite, não correspondeu a qualquer pagamento daqueloutra letra.
Em suma, procedem as conclusões de recurso, não podendo ser mantido o despacho que recusou à Agravante a restituição da letra no valor de € 45.453,70.

IV)- DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em:
1-Conceder provimento ao Agravo.
2-Revogar o despacho impugnado que deve ser substituído por outro a deferir a pretendida restituição da letra de câmbio, observando o disposto na parte final do n.º4 do art. 542º do CPC.
3- Condenar o Agravado nas custas do recurso.
COIMBRA,
(Relator- Ferreira de Barros)

(1º Adj.- Des. Helder Roque)

(2º Adj.- Des. Távora Vítor)