Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
235/08.8TBANS
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: TRANSPORTE DE MERCADORIAS
CONTRATO DE SEGURO
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
COMUNICAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 10/02/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: CMR, DL Nº 46235 DE 18/3/1965, DL Nº 446/85 DE 25/10, ART. 342 CC
Sumário: 1. Nos termos do n.º 3, do artigo 5.º, da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais (Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Setembro) «O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais».
Contudo, se um segurado invocar a omissão da «comunicação das cláusulas relativas à exclusão da responsabilidade da seguradora» em processo onde a seguradora não é parte, então incumbe-lhe provar, segundo as regras gerais do ónus da prova, que essa omissão ocorreu.
2. Constando de um contrato de seguro de transporte de carga, abrangido pela Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (introduzida na ordem jurídica portuguesa pelo Decreto-Lei n.º 46 235, de 18 de Março de 1965), que «O veículo não pode ficar abandonado em momento algum, desde o início até ao terminus da viagem, salvo casos de força maior devidamente comprovados», o conceito de «abandono» é preenchido por qualquer situação de falta de vigilância do motorista, salvo casos de força maior, que torne viável um furto da carga, mostrando-se, ao mesmo tempo, que a vigilância omitida podia ter sido efectuada.
Decisão Texto Integral: I. Relatório.

a) A empresa T (…) & Filha, Lda., Autora no presente processo, agora recorrida, instaurou a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, com o fim de obter a condenação do Réu e respectiva esposa, a pagarem-lhe a quantia de €23.449,20 euros, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa comercial e supletiva, calculada desde a data do pagamento de determinadas prestações em dinheiro que ela teve de pagar à sociedade ND Portugal Transportes, Lda., proprietária de uma carga que a Autora transportou de França para Portugal e que foi furtada em parte durante o percurso.

Baseia este pedido no facto de ter tido relações profissionais com o demandado D (…), o qual lhe prestou serviços na área da mediação de seguros, sendo por intermédio dele que a Autora celebrava contratos de seguro, negociava apólices, procedia a pagamentos dos prémios e fazia participações de sinistros, sendo o Réu quem fazia chegar toda a documentação e pagamentos inerentes a tais contratos à companhia de seguros respectiva e entregava à Autora os recibos de pagamentos dos prémios correspondentes.

No dia 1 de Julho de 2000, durante um serviço de transporte rodoviário efectuado pela Autora, foi furtada durante a noite parte da carga, no valor de €23.449,20 euros, na ocasião em que o seu motorista tinha ido dormir a sua casa, sita na Av. Elísio de Moura em Coimbra, local onde deixou o camião estacionado.

A Autora não pôde beneficiar da cobertura de seguro para este tipo de situações devido ao facto do Réu não ter encaminhado para a companhia de seguros, por esquecimento, a quantia relativa ao prémio do seguro e que a Autora lhe havia entregue atempadamente, por cheque.

Por isso, a Autora teve de pagar o valor da carga furtada ao respectivo proprietário e daí vir agora pedir esse valor ao Réu e à sua esposa, por se tratar de dívida que onera os bens comuns do casal.

Os Réus contestaram.

Alegam, em síntese, que a Autora não entregou ao Réu a quantia relativa ao pagamento do prémio do seguro e foi essa falta de pagamento que gerou a sua anulação.

Por outro lado, a Autora recebeu uma carta da seguradora, com antecedência, a comunicar-lhe a falta de pagamento do prémio e a data em que o seguro seria anulado caso não houvesse pagamento.

O que sucedeu foi o seguinte: após o furto, o representante da Autora pretendeu que o Réu encontrasse uma forma de evitar os efeitos da anulação do seguro. Para conseguir esse objectivo, o Réu, indevidamente, concordou em informar a seguradora que o prémio lhe tinha sido pago, mas que ele, Réu, se tinha esquecido de enviar o cheque emitido pela Autora à seguradora, o qual ficou anexado a outro tipo de papéis e permaneceu despercebido.

Acrescentaram ainda que mesmo na hipótese do seguro não ter sido anulado, como foi, nunca o mesmo aproveitaria à Autora.

Afirmaram isto com base na circunstância do contrato em causa não cobrir a situação de facto da qual resultou o furto, na medida em que a dita apólice não cobria os furtos ocorridos em situações de abandono do veículo na via pública, como foi, na verdade, o caso.

No final foi proferida decisão nestes termos:

O Réu D (…) foi condenado «…a pagar à A. T (…) & Filha, Lda., a quantia que se vier a apurar em ulterior liquidação, e correspondente a 75% do valor da mercadoria furtada e referida em 16. a 19. dos factos dados como provados a determinar nos termos dos nºs 1 e 2 do artigo 23º da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, sem nunca exceder o limite estipulado no nº 3 do referido preceito, na redacção que lhe foi dada pelo DL 28/88 de 6.9, acrescida de juros moratórios à taxa comercial e supletiva a contar da data em que vier a ser liquidação mencionada e até integral pagamento», tendo sido absolvido do restante pedido.

A Ré M (…) foi absolvida da totalidade do pedido contra si deduzido.

Considerou-se, em resumo, que efectivamente a Autora tinha pago o prémio e que o Réu tinha omitido o respectivo pagamento à seguradora, não existindo, por isso, seguro válido na ocasião do furto e que, existindo, teria coberto o prejuízo resultante do furto.

No entanto, por não existir na área da residência do motorista um parque com guarda, apropriado ao parqueamento do camião, a indemnização a cargo da seguradora sofreria um abatimento de 25% do valor da mercadoria furtada.

O Réu veio ainda a ser condenado como litigante de má fé por ter negado o recebimento atempado do cheque destinado a pagar o prémio do seguro.

b) O Réu recorre quanto à matéria de facto e relativamente à matéria de direito.

Quanto à matéria de facto, pretende ver alteradas as respostas restritivas dadas aos quesitos 14.º, 20.º e 30.º; as positivas dadas aos quesitos 2.º, 16.º, 17.º e 38.º e as negativas atinentes aos quesitos 23.º, 24.º, 25.º, 26.º, 30.º, 31.º, 34.º e 39, pretensão que funda no teor do seu próprio depoimento de parte e nos depoimentos das testemunhas (…), pelas razões que mencionou nas alegações de recurso e que devido à sua extensão aqui se omitem, fazendo-se referência a elas mais abaixo quando for analisada a respectiva impugnação.

Pretende, assim, que sejam dadas respostas positivas aos quesitos 14.º, 20.º, 23.º, 24.º, 25.º, 26.º, 30.º, 31.º, 34.º e 39 e respostas negativas aos quesitos 2.º, 16.º, 17.º e 38.º (O Réu referiu-se no início das alegações à matéria do quesito 15.º, mas depois nas conclusões não o mencionou. Por essa razão, a respectiva matéria não será apreciada).

No que respeita à matéria de direito, sustenta que uma vez alterada a matéria de facto no sentido pretendido, fica arredada a responsabilidade do Réu na anulação da apólice.

Mas, mesmo que se entendesse que o Réu era responsável pela anulação do seguro, mesmo assim nunca poderia ser condenado a pagar à Autora a quantia que esta pede, devido ao facto do contrato de seguro não prever a indemnização do dano resultante do furto ocorrido nas condições em que ocorreu o furto referido nos autos, isto é, em situação de abandono do veículo durante a noite em plena via pública.

E quanto à condenação como litigante de má fé entende que não pode subsistir, pois nunca recebeu da Autora o cheque em causa.

Concluiu assim:

(…)

c) A Autora contra-alegou e concluiu, nos seguintes termos:

(…)

d)  A Autora apresentou também recurso subordinado.

 Concluiu assim:

 (…)

Não houve contra-alegações.

II. Objecto dos recursos.

1. O objecto do recurso principal consiste no seguinte:

1.1. A primeira questão que o Réu recorrente coloca prende-se com as respostas dadas à matéria de facto.

Pretende que este tribunal altere a matéria de facto provada e declare provados os factos constantes dos quesitos 14.º, 20.º 23.º, 24.º. 25.º. 26.º, 30.º, 31.º, 34.º e 39.º da base instrutória e não provados os quesitos 2.º, 16.º, 17.º e 38.º da mesma base.

1.2. Em segundo lugar, já em sede de análise jurídica da causa, sustenta que a anulação do contrato de seguro é imputável ao próprio Autor, por não ter pago o prémio, pelo que o Réu, como mediador no mesmo, não pode ser responsabilizado pelo prejuízo causado pelo furto de parte da carga.

1.3. Ainda neste contexto, o Réu sustenta que caso o contrato de seguro estivesse em vigor, tal contrato não cobriria os danos resultantes do furto em causa, devido ao facto do contrato conter uma cláusula que exclui a responsabilidade da seguradora no caso do furto ocorrer numa situação de estacionamento e abandono do veículo na via pública, o que aconteceu no caso concreto por mais de sete horas.

Não estando a situação factual coberta pelo risco assumido no contrato de seguro, como é o caso, então o Réu não pode ser condenado a indemnizar o Autor pelo prejuízo resultante do furto.

1.4. Em terceiro lugar, o Réu sustenta que não litigou com má fé, por isso, pede a revogação da sentença também nessa parte.

2. O objecto do recurso subordinado consiste no seguinte:

2.1. A primeira questão que a Autora recorrente coloca prende-se também com as respostas dadas à matéria de facto constante dos quesitos 1.º e 10.º, que entende estarem provados pelos documentos que a Autora juntou aos autos (certidão de casamento do Réu e da participação do furto às autoridades policiais), e 39.º, que deve também ser considerado provado, desde logo com base no depoimento prestado pela testemunha (…).

2.2. Em segundo lugar, face à alteração dos factos, deve proceder o seu pedido no sentido da responsabilização da Ré mulher, devido ao facto da dívida do Réu resultar do exercício do seu comércio e, por isso, se presumir contraída em proveito comum do casal.

2.3. Em terceiro lugar, a Autora coloca a questão de saber se as cláusulas limitativas da responsabilidade da seguradora, relativas à problemática do alegado abandono do veículo e carga, se aplicam ao caso dos autos, uma vez que são cláusulas contratuais gerais e, como tais, deviam ter sido comunicadas à Autora, o que não ocorreu, razão pela qual não poderiam estar em vigor, caso o contrato não tivesse sido anulado.

2.4. Em quarto lugar, surge a questão de saber se se aplica ao cálculo da indemnização devida à Autora a franquia de 25%, prevista na al. b), da cláusula 22.ª, do contrato de seguro, resultante do facto de não existir na área da residência do motorista um parque de estacionamento com guarda susceptível de ser utilizado pelo motorista.

2.5. Por fim, coloca-se a questão de saber se há ou não há nos autos elementos para definir o quantum da indemnização a atribuir à Autora ou se deve relegar-se para momento posterior, como se decidiu na sentença, a determinação da indemnização.

III. Fundamentação.

A – Questões relativas ao recurso da matéria de facto.

(…)

B - Matéria de facto provada (com as alterações resultantes do acabado de decidir).

1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica ao transporte rodoviário de mercadorias de âmbito nacional e internacional.

2. O Réu marido durante os anos de 1999 e 2000 esteve inscrito no Instituto de Seguros de Portugal, na categoria de agente de seguros, com o número 1723104, nos ramos Vida e Não Vida.

3. Autora e Réu marido mantiveram durante vários anos, uma relação comercial, no âmbito da qual o Réu marido prestou à Autora actividade tendente à realização de contratos de seguro junto de Companhias de Seguros.

4. No âmbito da relação indicada, a Autora contactou o Réu marido afim de proceder à celebração de um contrato de seguro para garantia das mercadorias por si transportadas.

5. O Réu apresentou à Autora a proposta de seguro de CMR da Seguradora Europeia Seguros, S. A., a qual foi aceite pela Autora e pela Seguradora e que se concretizou na Apólice n.º 076/00100598, com início de vigência em 12 de Outubro de 1999, anulada, por falta de pagamento do prémio de seguro, em 5 de Abril de 2000.

6. A Companhia de Seguros Europeia emitiu, em 4 de Janeiro de 2000, recibo para liquidação do prémio de seguro relativo à 1.ª anuidade do contrato indicado no valor de 102.820$00.

7. O acordo celebrado entre a Autora e a Companhia de Seguros Europeia, S. A., supra mencionado contém, entre outras, as seguintes cláusulas e indicações: Capital seguro: 20.000.000$00; Franquias aplicáveis: Sem franquia; Qualidade segura: Transportador Público; Proprietário veículos: Tomador.

8. A Cláusula 1 (…) do referido acordo tem o seguinte teor:

Artigo 1 – Campo de aplicação. (…) A seguradora só responde pela responsabilidade do seu segurado se o seu nome, e não de outro, constar no documento de expedição (C.M.R.);

Artigo 5 – Viagem. A seguradora garante a responsabilidade do transportador ao abrigo da Convenção C.M.R., durante o percurso reconhecido tecnicamente como necessário à deslocação do veículo desde o seu carregamento até à sua descarga. Deslocação ou estadias fora do percurso normal da viagem, não se encontram garantidas, salvo ser forem consideradas necessárias por motivos imprevistos ou de força maior devidamente justificados. O veículo não pode ficar abandonado em momento algum, desde o início até ao terminus da viagem, salvo casos de força maior devidamente comprovados.

Artigo 6 – Estadias. Se as mercadorias ficarem retidas durante o percurso por motivo de força maior, a garantia fica limitada a 72 (setenta e duas) horas por cada estadia. Considera-se como estadia o tempo que decorre entre a chegada do veículo que traz a mercadoria e a saída do veículo no qual a mercadoria segue viagem. O segurado deverá observar que, em caso de paragem do veículo carregado ou de depósito momentâneo das mercadorias transportadas, sejam tomadas as medidas de segurança necessárias de forma que o veículo e a carga não fiquem abandonadas. Não se entende como medida de segurança, o abandono do veículo em local público, mesmo que este fique fechado à chave. A seguradora não responde pelos danos resultantes da falta de cumprimento desta obrigação.

Artigo 21 – Condição especial “Estacionamento”. Obrigam-se os veículos abrangidos por este contrato a estacionar em parques próprios com guarda.

Entende-se por parques próprios, locais destinados ao parqueamento de veículos pesados.

Artigo 22 – Condição especial “ risco de roubo”. (…) B) Outros países, os veículos que não pernoitem em parques com guarda, estarão sujeitos a uma franquia de 25% (vinte cinco por cento) em caso de roubo da viatura ou seu conteúdo.

Artigo 27 – Outras disposições. A presente Apólice apenas responde pelas cargas transportadas nos conjuntos formados pelos tractores/camiões e semireboques/reboques identificados no contrato (listagem de veículos), tendo em conta as alterações entretanto comunicadas.

É condição expressa deste contrato que:

- Na guia de expedição (C.M.R.) conste como transportador o titular deste contrato;

- Os veículos sejam propriedade do titular deste contrato;

- Na guia de expedição (C.M.R.), conste a matrícula do tractor/ camião e do semi-reboque/reboque. O não cumprimento destas disposições isenta a Europeia em caso de sinistro».

9. O veículo de matrícula 26-19-LU e o reboque de matrícula C-59341 encontravam-se, entre 12 de Outubro de 1999 e Abril de 2000, agregados à apólice supra mencionada em 5.

10. Em 1 de Julho de 2000, cerca das 03:00 horas da manhã, no percurso entre Orleãns e Abóbada, o funcionário da Autora motorista profissional de TIR, (…)imobilizou o acabado de referir na Av. Elísio de Moura, em Coimbra, indo pernoitar na sua residência.

11. O Réu entregou da Delegação de Leiria da Companhia de Seguros Tranquilidade o escrito datado de 12 de Agosto de 2000, referente à Apólice n.º 89007078383, contendo, entre outros, os seguintes dizeres: «Venho por este meio participar a v/seguradora um sinistro que julgo ser da nossa responsabilidade, pelo qual solicito a v/intervenção através da apólice supra, respeitante ao contrato de responsabilidade civil que possuo com v. Exas. Por lapso ficou no meu escritório envolvido noutros documentos, um cheque para pagamento de um seguro CMR do nosso cliente Transportes Amaro & Filha, Lda. Em 01/07/2000 o referido cliente sofreu um roubo na sua mercadoria (…) tendo este participado à companhia, vindo esta a recusar a indemnização devido ao facto do contrato se encontrar anulado desde 05/04/2000.

Pelo exposto, agradecia que tomassem em consideração os factos, afim de resolver o referido sinistro».

12. A relação comercial indicada em 3 ocorreu nos anos de 1999 a 2002 inclusive.

13. Era perante o Réu marido que a Autora procedia à liquidação das quantias respeitantes aos prémios de seguro e fazia as participações de sinistros.

14. O Réu marido fazia chegar a documentação e liquidação de quantias inerentes aos contratos de seguro à respectiva Companhia de Seguros.

15. E entregava à Autora os recibos de liquidação dos prémios de seguro.

16. No dia 1 de Julho de 2000, a Autora, procedeu ao transporte de 35 paletes de electrodomésticos da marca Moulinex, correspondentes a 952 caixas, que lhe havia sido encomendado pela sociedade ND Portugal Transportes.

17. O valor total de tais mercadorias transportadas era de 11.473.533$72 (€57.229,74).

18. No dia 1 de Julho de 2000, cerca das 10:00 horas, o selo da porta do reboque C-9341 estava quebrado.

19. E das 952 caixas transportadas no reboque, haviam sido furtadas 381 caixas.

20. O valor da carga indicada em 19 ascende a €23.449,20 euros.

21. O gerente da Autora procedeu à participação dos factos acabados de referir junto do Réu, em 19 de Julho de 2000.

22. A Companhia Europeia de Seguros, S. A., comunicou à Autora que não reconhecia o pagamento do referido montante, uma vez que o contrato de seguro celebrado havia sido anulado em 5 de Abril de 2000.

23. Após a comunicação em referência, o gerente da Autora contactou o Réu Diamantino Ferreira, questionando-o sobre o assunto.

24. Para liquidação do prémio de seguro o gerente da Autora entregou ao Réu marido, o cheque n.º 4023385278, datado de 28 de Janeiro de 2000, emitido à ordem da Companhia de Seguros Europeia e sacado sobre o Banco Pinto & Souto Mayor, agência de Ansião.

25. A Autora entregou o valor correspondente à liquidação do prémio de seguro mais de 2 meses antes de 5 de Abril de 2000.

26. O Réu informou a Autora que não havia liquidado junto da companhia de seguros o prémio devido.

27. A Autora entregou à sociedade ND Portugal Transportes, Lda., a quantia de €23.449,20 euros.

28. Alguma da correspondência enviada pela Companhia de Seguros Europeia referente ao contrato de seguro supra mencionado era também enviada à Autora.

29. Após os factos mencionados supra, o Réu sugeriu à Autora para celebrar novo contrato, o que foi feito, tendo a Autora celebrado o contrato de seguro com a Companhia de Seguros Europeia, titulado pela apólice n.º 076/00/00650/001, com a mediação do R. D (…).

30. A apólice mencionada em 29 foi anulada em 13 de Julho de 2002.

31. O cheque mencionado em 24 não foi enviado à Companhia Seguradora, antes da revogação do contrato.

32. A Avenida Elísio de Moura é uma artéria bastante movimentada da cidade de Coimbra onde, durante a noite, circulam carros e pessoas a pé.

33. A cidade de Coimbra não tem parque de veículos pesados com guarda, que possa ser livremente utilizado pelos motoristas que ali tenham que estacionar.

34. Em Taveiro existe, desde 1995, um parque privado de estacionamento de pesados, propriedade do MAC – Mercado Abastecedor de Coimbra, S. A., o qual se reserva o direito de recusar os pedidos de estacionamento.

35. O contrato mencionado em 5 e 7 é um contrato padrão, com cláusulas preestabelecidas pela seguradora, que não foram negociadas com a Autora.

36. Os Réus são casados entre si no regime de bens da comunhão de adquiridos.

37. (…) procedeu à participação os factos indicados em 8 e 9 à Polícia Judiciária.

C - Apreciação das restantes questões objecto do recurso.

1. Do recurso principal.

1.1. Vejamos se a anulação do contrato de seguro é imputável à própria Autora, por não ter pago o prémio, caso em que o Réu, como mediador, não pode ser responsabilizado pelo prejuízo causado pelo furto de parte da carga.

Como a matéria de facto não foi alterada, apesar da impugnação feita pelo Réu, verifica-se que a anulação do seguro por falta de pagamento do prémio é imputável ao Réu, tal como se concluiu na sentença agora em recurso.

Improcede, por conseguinte, este fundamento do recurso invocado pelo Réu.

1.1.2. Vejamos agora a questão da impossibilidade do Réu poder ser condenado a indemnizado a Autora devido ao facto do contrato de seguro não cobrir o furto em causa, por conter uma cláusula que excluía a responsabilidade da seguradora no caso do furto ocorrer numa situação de estacionamento e abandono do veículo na via pública, como ocorreu no caso, segundo o Réu, por mais de sete horas.

Esta questão implica, ainda, que se comece por analisar a questão que a Autora suscitou relativamente à vigência das cláusulas contratuais relativas ao contrato de seguro.

Com efeito, a Autora alegou que tais cláusulas são cláusulas contratuais gerais e não lhe foram comunicadas nem pelo Réu, nem pela Seguradora, o que implica que não possam ser consideradas.

Vejamos esta questão, dada a sua prioridade lógica.

Nos termos do n.º 1, do artigo 1.º, do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, (Lei das cláusulas contratuais gerais, doravante designado apenas por LCCG), «As cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar, regem-se pelo presente diploma».

As cláusulas que fazem parte do contrato de seguro invocado nos autos inserem-se nesta previsão.

Com efeito, são cláusulas que a seguradora elaborou previamente e que a Autora se limitou a aceitar.

Vejamos agora a questão da comunicação das cláusulas.

É facto consensual que não houve comunicação das cláusulas por parte da seguradora, pois os contactos contratuais estabeleceram-se entre o gerente da Autora e o Réu, cabendo a este e aos seus empregados essa tarefa.

Nos termos da al. a), do artigo 8.º da LCCG, consideram-se excluídas dos contratos singulares «As cláusulas que não tenham sido comunicadas nos termos do artigo 5.º».

Bem como, nos termos da al. b), do mesmo artigo, «As cláusulas comunicadas com violação do dever de informação, de molde que não seja de esperar o seu conhecimento efectivo».

Cabe «…ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais» o «ónus da prova da comunicação adequada e efectiva», consoante dispõe o n.º 3 do artigo 5.º do mesmo diploma.

No caso dos autos, invocando o aderente, no caso a Autora, que o Réu não lhe comunicou as cláusulas relativas à exclusão da responsabilidade da seguradora, incumbiria a esta, se fosse demandada, a prova de que lhas comunicou.

E, naturalmente teria de fazer tal prova, provando que as comunicou através do Réu, na qualidade de mediador do contrato de seguro.

Sucede, porém, que não estamos no âmbito de uma acção em que uma das partes seja o proponente do contrato, neste caso a seguradora, e a outra o aderente.

Com efeito, no presente caso, nem o proponente, isto é, a seguradora é parte na presente acção; nem o Réu, embora tivesse sido mediador nesse contrato, é parte no contrato de seguro em relação ao qual a Autora pretende que se considere inexistente a cláusula limitativa da responsabilidade da seguradora atinente ao «abandono do veículo» a que se refere o artigo 5.º do clausulado contratual.

A questão que se coloca é esta: não sendo parte na acção a proponente, mas apenas o aderente que demanda um terceiro, a quem cabe o ónus de provar que uma ou mais cláusulas contratuais gerais não foram comunicada ao aderente, neste caso à Autora?

Se uma das partes fosse a seguradora não se colocava verdadeiramente esta questão, pois ela encontra-se expressamente prevista no n.º 3, do artigo 5.º, do LCCG, nestes termos: «O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais».

Porém, a entidade a quem a lei atribui tal ónus, como já se disse, não é parte no processo e, por isso, tal ónus não tem objecto.
Afigura-se, por isso, que não há outro caminho que não seja o de seguir as regras gerais da distribuição do ónus da prova indicadas no artigo 342.º do Código Civil, ou seja, nos termos do seu n.º 1, «Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado» e, face ao seu n.º 2, «A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita»
No caso, tendo o Réu invocado a mencionada cláusula de exclusão da responsabilidade da seguradora, a Autora respondeu e invocou um facto impeditivo da sua relevância contratual, isto é, alegou que tal cláusula não lhe foi comunicada e, por isso, nos termos da al. a), do artigo 8.º, da LCCG, tal cláusula é excluída do contrato.
Como se disse, se a outra parte fosse a seguradora proponente do contrato de seguro, a Autora apenas tinha de esperar que aquela fizesse prova dessa comunicação, mas como no caso dos autos a outra parte contratual não é parte no processo, incumbe-lhe a ela fazer tal prova, para poder beneficiar da exclusão de tal cláusula no confronto com o Réu.
O facto do Réu ter sido o mediador do seguro e de lhe incumbir a ele em concreto desempenhar a posição da proponente seguradora, no que respeita às tarefas necessárias ao cumprimento do dever de comunicação, não produz qualquer inversão do ónus da prova pelas seguintes razões:
Em primeiro lugar, os casos de inversão do ónus da prova vêm previstos no artigo 344.º do Código Civil e o presente caso não cabe na respectiva previsão.
Daí que se conclua que recai sobre a Autora, no confronto com o Réu, terceiro relativamente ao contrato de seguro, o ónus de provar que a dita cláusula contratual constante do artigo 5.º do respectivo clausulado não lhe foi comunicada.

Em segundo lugar, o ónus da prova visa onerar a entidade que elaborou as cláusulas e beneficia economicamente com elas, o que permite excluir de tal ónus todos os que não ocupem tal posição como é o caso do Réu.

 Por conseguinte, sendo invocada a omissão da «comunicação das cláusulas relativas à exclusão da responsabilidade da seguradora», fora das relações entre seguradora e segurado, então incumbe à parte que invoca essa omissão, segundo as regras gerais do ónus da prova, provar que essa omissão ocorreu.
Ora, tal prova não se encontra feita.
Por conseguinte, tem de se considerar que a cláusula em questão faz parte do contrato de seguro que a Autora celebrou com a seguradora.

Vejamos agora a questão colocada pelo Réu, no sentido de não poder ser responsabilizado pelas consequências do furto, uma vez que as circunstâncias em que tal furto ocorreu sempre desonerariam a seguradora, quer existisse contrato de seguro com tal cláusula, quer este tivesse sido anulado, como foi.

Esta questão implica que se indague se os factos provados se integram na hipótese constante dessa cláusula.

Vejamos então.

A cláusula tem este teor:

 «Artigo 5 – Viagem. (…) O veículo não pode ficar abandonado em momento algum, desde o início até ao terminus da viagem, salvo casos de força maior devidamente comprovados».

Com relevo para o caso, provou-se o seguinte:

«10. Em 1 de Julho de 2000, cerca das 3 horas da manhã, no percurso entre Orleãns e Abóbada, o funcionário da Autora motorista profissional de TIR, (…)imobilizou o acabado de referir na Av. Elísio de Moura, em Coimbra, indo pernoitar na sua residência».

«18. No dia 1 de Julho de 2000, cerca das 10:00 horas, o selo da porta do reboque C-9341 estava quebrado».

«19. E das 952 caixas transportadas no reboque, haviam sido furtadas 381 caixas».

«32. A Avenida Elísio de Moura é uma artéria bastante movimentada da cidade de Coimbra onde, durante a noite, circulam carros e pessoas a pé».

Cumpre verificar, então, se estes factos preenchem o conceito de abandono mencionado na cláusula pelas palavras «O veículo não pode ficar abandonado em momento algum…».

O que significa esta cláusula, ou seja, a que situações da realidade se refere?

Para responder a esta questão torna-se necessário saber em que contexto factual se insere o conceito.

Tal contexto é-nos dado pelo âmbito de cobertura do contrato de seguro que vem definido na alínea a) do seu artigo 2.º, cuja epígrafe alude a «riscos, danos e despesas cobertos».

Dispõe esta alínea que o seguro cobre «A responsabilidade do segurado, segundo a convenção CMR, para a perda e avarias das mercadorias, assim como para o atraso na entrega».

Por conseguinte, o conceito de «abandono» do veículo a que se alude no artigo 5.º do texto contratual está ligado com o conceito de «perda das mercadorias».

Coloca-se, pois, a questão de saber se haverá alguma relação de causalidade entre o conceito de «abandono do veículo» e o de «perda de mercadorias».

Ora, as regras da experiência dizem-nos que o furto de um objecto fica facilitado se o dono omitir a vigilância do bem.

E furto consumado equivale a perda patrimonial para o proprietário.

Por conseguinte, no caso do transporte de mercadorias por estrada, o abandono existe quando se verifica uma falta ou deficiência de vigilância da mercadoria transportada no camião por parte do motorista, na medida em que tal falta ou deficiência conduzam à criação de condições adequadas à verificação de um furto, que, a ocorrer, não teria existido, caso tal omissão ou deficiência de vigilância não se tivessem verificado.

Afigura-se, por conseguinte, que o conceito de «abandono» é preenchido por qualquer situação de falta de vigilância do motorista, salvo casos de força maior, que torne viável um furto de carga, mostrando-se, porém, que a vigilância omitida podia ter sido levada a cabo pelo motorista.

Não cairão neste âmbito, por isso, as ausências do motorista durante alguns cinco, dez ou quinze minutos, seja, por exemplo, para fazer um pagamento de combustível ou para comer, por se tratar de lapsos de tempo que, em regra, não permitirão executar um furto e que podem implicar uma interrupção na vigilância, mas que, por outro lado, são inevitáveis.

Definido o conceito de abandono, vejamos se ele é preenchido pelo facto do motorista ao serviço da Autora ter estacionado o camião na Av. Elísio de Moura, em Coimbra, no dia acima mencionado, entre as 03:00 e as 10:00 horas, e se ter ausentado para a sua residência, situada na mesma rua, para pernoitar.

A resposta não pode deixar de ser afirmativa.

Com efeito, este facto implica que durante sete horas consecutivas, parte das quais passadas durante a noite, o camião tivesse estado sem vigilância.

Sete horas é tempo suficiente para um ou vários indivíduos se aperceberem da existência do camião; verificarem que se trata de camião que faz transportes internacionais; que o mesmo traz um selo colocado nas portas da reboque, sinal, portanto, de que contém mercadoria no seu interior e para se decidirem e angariarem meios humanos e técnicos para executarem um furto de mercadoria.

Há, pois, um nexo de causalidade entre a situação concreta de ausência de vigilância e o furto, sendo previsível a sua ocorrência por parte do motorista quando se retirou para sua casa, ou, dito de outra forma, verificado o furto, tal evento não é entendido como algo de extraordinário e por isso impensável ou imprevisível.

Por conseguinte, deve concluir-se que os factos provados integram o conceito de abandono do veículo e preenchem a cláusula de exclusão da responsabilidade da seguradora.

Cumpre, ainda fazer referência à questão do parque de estacionamento com guarda e ao facto do artigo 22.º do contrato inculcar a ideia de que a situação factual apurada nos autos não implica abandono.

No contrato de seguro refere-se, efectivamente, no seu artigo 21.º o seguinte:

«Condição especial “Estacionamento”. Obrigam-se os veículos abrangidos por este contrato a estacionar em parques próprios com guarda.

Entende-se por parques próprios, locais destinados ao parqueamento de veículos pesados».

E no artigo 22.º, isto: «Condição especial “ risco de roubo”. (…) B) Outros países, os veículos que não pernoitem em parques com guarda, estarão sujeitos a uma franquia de 25% (vinte cinco por cento) em caso de roubo da viatura ou seu conteúdo».

A Autora sustenta que o clausulado contratual distingue entre situações de estacionamento do veículo (artigo 21.º), por exemplo, para pernoitar, e situações de abandono (artigo 5.º), tratando-se de situações distintas e que ao caso do autos, que é de estacionamento, não pode aplicar-se o estatuído na cláusula do artigo 5.º.

 Não lhe assiste razão.

Já acima se aludiu à relação de causalidade que existe entre a falta de vigilância da carga e o perigo desta ser subtraída.

Por isso, o motorista tem o dever de manter a carga sob vigilância, o que só se consegue se o motorista (ou alguém que cumpra o mesmo dever do motorista), estiver colocado numa posição física, digamos, geográfica, que lhe permita ver a todo o tempo se alguém se aproxima ou se alguém está a tentar apoderar-se da mercadoria.

Ora, o cumprimento deste dever tem de ocorrer sempre, isto é, desde o início ao termos da viagem, pois o transportador, considerando a hipótese de furto, é o único responsável pela integridade da carga.

O cumprimento do dever de vigilância implica que o motorista permaneça no veículo, dormindo aí, se for hora de dormir.

Se não for o caso e necessitar de sair do veículo, por exemplo, para tomar uma refeição deve fazê-lo mantendo o veículo à vista enquanto come ou se não conseguir tal posição, deve interromper a refeição, por exemplo, de 15 em 15 minutos para verificar se a carga não corre perigo de furto.

Repare-se que esta obrigação do motorista não resulta da existência do contrato de seguro, mas sim do facto do transportador ser responsável pela entrega ao destinatário das mercadorias que assumiu transportar.

Com efeito, nos termos do n.º 1 do artigo 17.º da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR), concluída em Genebra em 18 de Maio de 1956 e introduzida na ordem jurídica portuguesas através do Decreto-Lei n.º 46235, de 18 de Março de 1965, «O transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega».

Ora, o transportador só se exonera deste dever vigiando a carga de forma adequada a evitar o furto das mercadorias.

Apesar da vigilância as mercadorias podem, mesmo assim, ser furtadas, o que ocorrerá quando o engenho do agente do furto supera a vigilância do motorista, nomeadamente quando este dorme no interior da cabine do camião, pois é inevitável e necessário que o motorista durma.

Ora, o risco que a seguradora assume relativamente aos casos de furto respeitam a estes casos em que, apesar da vigilância o agente do furto consegue iludi-la.

A seguradora não assume a falta de vigilância da carga, como ocorre nos casos em que o motorista estaciona o camião na rua e vai para a sua residência pernoitar, ficando o camião sem vigilância.

É neste contexto que têm de ser interpretadas as cláusulas acima mencionadas.

Assim, nos termos do artigo 21.º do clausulado contratual, a Autora obrigou-se a estacionar o veículo em parques próprios com guarda.

Estes parques oferecem maiores garantias quanto à não ocorrência de furtos ou roubos (roubos no sentido penal, isto é, existindo violência sobre o motorista), pois estão sob vigilância destinada a evitar estas ocorrências.

Mas esta condição só pode ser cumprida quando o veículo se encontre numa área onde eles existam.

Se o veículo tiver de ficar imobilizado e não existir um destes parques, o risco de furto ou roubo aumenta, mesmo no caso do motorista permanecer junto do camião, dormindo na cabine, se for caso disso.

Por conseguinte, quando no artigo 22.º do texto contratual se diz que «…os veículos que não pernoitem em parques com guarda, estarão sujeitos a uma franquia de 25% (vinte cinco por cento) em caso de roubo da viatura ou seu conteúdo», tal cláusula cobra a sua razão de ser no aumento de risco de furto ou roubo da carga.

Porém, nenhuma destas cláusulas autoriza o abandono do veículo a que se refere o artigo 5.º do contrato, caso em que a seguradora não responde pela perda de mercadoria furtada.

Por isso, face ao que fica referido, não se vê qualquer razão material para colocar em compartimentos estanques as situações previstas no artigo 5.º, por um lado, e as previstas nos artigos 21.º e 22.º, por outro.

O abandono significa falta de vigilância em situações em que esta, sendo possível foi omitida.

Por conseguinte, há abandono quer nos casos em o motorista estaciona o veículo em parque não sujeito a vigilância e se ausenta, quer nos casos em que estaciona noutro lugar não sujeito a vigilância contra furtos de carga e também se ausenta.

Mas já se aplicará a cláusula do artigo 22.º se o motorista estacionou em parque desprovido de serviço de guarda, permaneceu no interior do veículo, mas, mesmo assim, não evitou o furto de mercadoria ou foi vítima de roubo.

Face ao exposto, tem de se concluir que os factos provados caem no âmbito da cláusula que previa a irresponsabilidade da seguradora e, por isso, mesmo que o contrato de seguro não tivesse sido anulado e permanecesse eficaz, a Autora sempre teria que suportar o prejuízo do furto.

Esta conclusão implica a improcedência da acção.

[Cumpre ainda abrir um parêntesis.

Quem se colocar na posição negocial da seguradora verificará que não aceitaria uma posição contratual que implicasse ao mesmo tempo:

(1) A possibilidade do motorista estacionar o camião numa via pública, ainda que no interior de uma localidade, ausentando-se, de seguida, durante uma, duas, cinco ou sete horas contínuas, ficando o camião sem vigilância durante esse tempo.

(2) A assunção do dever de pagar o valor das cargas furtadas nestas condições.

Com efeito, uma tal situação factual implicaria um aumento relevante e progressivo das probabilidades de perda da mercadoria por furto, pois o êxito dos furtos passaria a ser elevado, incrementando a actividade, situação que, por sua vez, conduziria a este resultado: ou a seguradora não aceitava segurar nestas condições de risco ou o prémio do seguro teria de ser de tal forma elevado, para cobrir as indemnizações previsíveis, que, nesta hipótese, já não interessava ao segurado pagar o prémio.

Ou seja, numa hipotética situação factual desta natureza não haveria condições para celebrar contratos de seguro.

Esta observação tem relevância para o caso de se sustentar, ao invés do aqui decidido, que a cláusula em questão deveria ser retirada do contrato, mantendo-se porém o contrato em vigor quanto ao resto, nos termos do artigo 9.º da LCCG.

É que, em tal hipótese a supressão da cláusula implicaria a nulidade do contrato devido ao evidente desequilíbrio das prestações, como também se prevê no mesmo artigo 9.º]

Passando agora à questão seguinte, relativa à litigância de má fé por parte do Réu.

1.1.3. O Réu sustenta que não litigou com má fé e que, por isso, deve ser revogada a sentença também na parte em que o condenou como tal.

Tal pretensão partia da hipótese da matéria provada ser outra, isto é, que resultasse provado que o Réu não tinha recebido o cheque emitido pela Autora, mais de dois meses antes da data da anulação da apólice.

Como resulta do supra exposto, a versão do Réu não resultou provada, subsistindo a matéria de facto apurada em 1.ª instância.

Ora, nos termos da al. b), do n.º 2, do artigo 456.º do Código de Processo Civil, litiga de má fé quem, com dolo, tiver alterado a verdade dos factos.

Face ao que fica referido, o Réu não pode deixar de ser condenado como litigante de má fé, como foi, pois provou-se que alegou uma versão dos factos que sabia não ter ocorrido.

Improcede, por conseguinte, o recurso nesta parte.

De salientar, como já foi decidido, inclusive pelo Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão de 22 de Novembro de 2006 – http://www.gdsi.pt, processo n.º 06S1542), que «O pedido de condenação da parte contrária, como litigante de má fé, em multa e em indemnização, não releva para a determinação do valor da causa, nem pode ser tido em conta para achar o valor do decaimento do pedido com vista a apurar se a decisão é recorrível ou não».

Por conseguinte, a improcedência desta questão colocada no recurso não tem reflexo ao nível da responsabilidade pelas custas do recurso, na medida em que, não se tratando do único fundamento do recurso, a questão relativa à litigância de má fé não assume autonomia tributária.

Por conseguinte, não haverá condenação em custas nesta parte.

2. Recurso subordinado.

Neste recurso colocam-se quatro questões.

Uma delas respeita à apreciação da responsabilização da Ré mulher, devido ao facto da dívida do Réu resultar do exercício do seu comércio e por isso se presumir contraída em proveito comum do casal.

Outra respeita à questão de saber se as cláusulas limitativas da responsabilidade da seguradora se aplicam ao caso dos autos, uma vez que são cláusulas contratuais gerais e, como tais, deviam ter sido comunicadas à Autora, o que não ocorreu, segundo ela, razão por que não poderão ser consideradas em vigor, considerando, neste caso, a hipótese do contrato se encontrar em vigor à data do furto.

Esta questão já ficou respondida acima no ponto «3.1.2.».

A terceira consiste em verificar se se aplica ao cálculo da indemnização devida à Autora a franquia de 25%, prevista na al. b), da cláusula 22.ª do contrato de seguro, devido ao facto de existir à época, na área onde ocorreu o furto, um parque de estacionamento com guarda, que o motorista podia ter utilizado.

E, por fim, coloca-se a questão de saber se há ou não há nos autos elementos para definir o quantum da indemnização a atribuir à Autora ou se será caso para se relegar a determinação da indemnização para momento posterior, como se decidiu na sentença.

Face à conclusão a que se chegou supra, no sentido de ser irrelevante a situação jurídica relativa ao contrato de seguro na ocasião do furto, isto é, anulado ou vigente, devido à factualidade apurada implicar a irresponsabilidade da seguradora mesmo na hipótese da não anulação do contrato, então as questões que ficam enunciadas encontram-se prejudicadas, isto é, não carecem de resolução, pois estas questões pressupunham a responsabilização do Réu, a qual foi já afastada.

Cumpre, por isso, julgar o recurso subordinado improcedente.

IV. Decisão.

Considerando o exposto:

1 – Julga-se o recurso interposto pelo Réu procedente, salvo no que respeita à condenação do Réu como litigante de má fé, pelo que se revoga a sentença recorrida, salvo na parte relativa à má fé, absolvendo-se, consequentemente, os Réus do pedido.

2 – Julga-se o recurso subordinado improcedente.

3 – Custas nesta instância e em 1.ª instância pela Autora


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Coimbra, 02 de Outubro de 2012

 Alberto Augusto Vicente Ruço ( Relator )

 Fernando de Jesus Fonseca Monteiro

 Maria Inês Carvalho Brasil de Moura