Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2421/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: LENOCÍNIO
ACTO JUDICIAL
PROVAS
VÍCIOS DA SENTENÇA
CONSTITUCIONALIDADE
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 03/15/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA COVILHÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 122º, 355º, 356º, 410º, N.º 2, AL. C) E 474º, N.º 2, DO C. P. P. E ARTIGOS 17º, N.º 1, 40º , 71º, 109º, N.º 1 E 111º, N.º 1, DO C. P.
Sumário: I- Os actos nulos só afectam aqueles que deles dependem de forma directa ou aqueles que por virtude da inutilização que o acto irrito reverbera deixam de poder produzir os efeitos para que estavam destinados se o acto gerador se mantivesse incólume.
II- O juiz está vinculado ao séquito probatório que lhe é aportado pelos sujeitos processuais, sem prejuízo do dever de indagar, pela produção de meios de prova não carreados pelos intervenientes processuais, pela verdade histórico-material.

III- O vício do erro na apreciação da prova não se confunde com a nulidade da falta de fundamentação. O primeiro consubstancia-se num desvio interpretativo de uma dada situação de facto que se apresenta á leitura lógico-racional do indivíduo; a Segunda verifica-se quando a decisão não se torna acessível e perceptível.

IV- Não sofre de inconstitucionalidade o art.º 170º, n.º 1, do C. P.

V- Após a revisão do C. P. de 1995 as finalidades da pena (e da medida de segurança) são exclusivamente preventivas desempenhando a culpa somente o papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite da pena.

VI- Se num determinado imóvel se praticaram actos que alei qualifica como ilícitos e antijurídicos, então a ordem jurídica fica afectada pela desviada utilização que foi e era dada ao imóvel, verificando-se os pressupostos da declaração da sua perda.

Decisão Texto Integral: Recorrentes: A...; B...; e C....
Recorrido: Ministério Público.

Acordam os juízes que constituem este colectivo, na secção criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra:
I. – Relatório.
Em dissensão com a decisão assumida no processo supra referido que, no julgamento da acusação impulsionada contra os arguidos:
a) – C..., ;
b) A..., ;
c) - B..., ;
d) – D..., , decidiu:
A) – julgar improcedente a acusação, relativamente ao arguido C..., pela prática dos crimes de auxilio à imigração ilegal e angariação de mão-de-obra, previstos e punidos, respectivamente, nos artigos 134-A, nº1 e 136-A,nº1, ambos do Dec. Lei nº 24/98.de 8 de Agosto, com as alterações introduzidas pelo Dec.Lei nº 34/2003, de 25.2 e de dois crimes de detenção ilegal de armas p. e p. pelo art. 6ºnº 1 da lei 22/97, com as alterações introduzidas pela Lei nº98/01; - B) – julgar, igualmente, improcedente a acusação dirigida contra os arguidos A...; B... e D..., pela prática, em autoria material, a cada um, de um crime de auxilio à imigração ilegal e angariação de mão-de-obra, previsto e punido nas supra mencionadas disposições legais; e
B) – julgar procedente a acusação pública, pela prática, em co-autoria material, de um crime de lenocínio p.p. pelo art. 170º , nº 1 do C. Penal , e consequentemente, condenar:
B1.- o arguido C..., na pena de dois (2) anos e seis (6) meses de prisão;
B2. – a arguida A..., na pena de oito (8) meses de prisão;
B3. – o arguido B..., na pena de oito (8) meses de prisão;
B4. – o arguido D... na pena de oito (8) meses de prisão, tendo as penas de prisão impostas aos três últimos arguidos sido suspensas na sua execução pelo período de dois anos, recorre [Do acórdão sob impugnação haviam, igualmente, interposto recurso B... e A.... Porém, por douto despacho exarado pela Exma. Senhora Juiz, a fls. 1835, foram estes recursos dados sem efeito. É do seguinte teor o despacho exarado:”Uma vez que os arguidos A... e B... não procederam ao pagamento da taxa de justiça devida pela interposição de recurso e legal acréscimo, ao abrigo do disposto no nº 3 do art. 80º do Cód. das Custas Judiciais, fica aquele sem efeito”.] o arguido C..., tendo concluído a prolixa e enxundiosa motivação pela forma seguinte:
1. – A acusação e todos os actos que se lhe seguiram têm que ser considerados inválidos, pois o douto despacho de fls.1247, proferido em audiência de discussão e julgamento, o tribunal disse: - “(…) estando já o tribunal em condições de preencher, concretizar, circunstancialmente, os dados processuais nulos, constantes do 1º,2º,3º e 4º volumes, passará afazê-lo, neste momento, pela forma seguinte: despacho de fls. 16 e 27, ambos a ordenar escutas telefónicas; despacho de fls.57 a ordenar a transcrição, autos de transcrição de escutas de fls.92,93 e 94; despacho de fls.107 e 108, a validar as intercepções e a ordenar a realização das buscas; mandado de busca de fls.110 e 111; apensos com transcrições de fls.137 e 138; despacho de fls. 143, a validar as transcrições; apenso de transcrições de intercepções telefónicas de fls.149 a 159; mandado de busca de fls. 160; auto de busca e apreensão de fls. 161 a 163; fotografias de fls. 166 a 186; auto de interrogatório de arguido detido de fls. 329 a 333; mandados de buscas de fls. 354 a 356; despachos, duplicados, de fls. 357 a 360, a ordenar a realização de escutas e buscas; despacho de fls. 390, a ordenara a realização de buscas; mandado de busca de fls. 392 a 395; mandados de buscas de fls. 403,406 a 409; mandado de busca de fls. 420 e 421; auto de busca de fls. 422 e 422-A; auto de interrogatório de arguido detido de fls. 432 a 439, despacho a ordenar a inquirição para memória futura de fls. 467; auto de inquirição para memória futura de fls. 533 a 537; despacho de fls. 571 a manter a prisão preventiva do arguido C...; despacho de fls. 583, a ordenar a transcrição do anterior depoimento prestado para memória futura (…)”;
2. – O nº1 do art.122º do CPP declara que as nulidades tornam inválidos os actos em que se verificam, bem como os que deles dependerem e os que puderem afectar;
3. – Na acusação, o ministério Público relaciona a mesma com todo um conjunto de prova que foram declarados nulos pelo mencionado despacho;
4. – Deste modo, dúvidas não pode haver que a nulidade de todos os elementos jurisdicionais ocorridos durante a instrução são afectados pela nulidade decretada;
5.- Aliás, a defesa do arguido é afectada pois, face à inexistência dos elementos de prova declarados nulos, o arguido podia entender ser de requerer instrução, o que não pôde fazer;
6. – Deste modo, a não declaração dessa invalidade viola o nº1 do art. 122º do CPP;
7.- Deve, assim, ser apreciado o recurso motivado sobre a não declaração de invalidade da acusação, recurso que sobe com o presente;
Contudo, caso assim não se entenda, deve,
8. – Ser reconhecido que o depoimento da testemunha AP..., ouvida para memória futura e lido em audiência de discussão e julgamento, viola o disposto no art. 356º do CPP;
9.- Efectivamente, aquando desse depoimento o M.mo Juiz invoca declarações que a testemunha terá proferido perante órgãos de policia criminal sem que o arguido autorizasse tal;
10. – A interpretação do art. 356º do CPP feita pelo M.mo Juiz, de molde a considerar válidas tais referências porque não se tratava de uma leitura, e só essa é que a lei proíbe, é claramente inconstitucional, violando o nº1 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa,
11. – A douta sentença quando expõe os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão não faz o itinere cognoscitivo que levou á decisão e à convicção do tribunal, violando o disposto no art. 374º do CPP;
12. – Por outro lado, na fundamentação é referido o depoimento da testemunha Cleonice que foi obtido, como se disse, com violação do art. 356º do CPP, pelo que a mesma tem um vício de violação do art. 355º, nº 1, ex vi dos nºs 5 e al. b) do nº2 do art. 356º, ambos do CPP;
13. – A testemunha E... depõe sobre factos que teve conhecimento aquando dos interrogatórios das testemunhas e dos arguidos;
14. – Deste modo, o depoimento da testemunha E... é obtido em violação do art. 356º do CPP;
15. – O depoimento da testemunha E... é tido em conta na prova de factos dados como provados, apesar de ser limitadamente referido na fundamentação da sentença;
16. – O nº 1 do art.170º do C. Penal, com a redacção que lhe foi dada pelo DL 65/98 é inconstitucional por violação do disposto nos art.1º, 2º, 18º,27ºnº 1 e 41º, nº 1, todos da Constituição da República Portuguesa;
17. – A douta sentença em apreço tem erro notório na apreciação da prova, dando-se aqui como reproduzido o que atrás se diz no Capitulo VII destas alegações;
18. – A douta sentença viola, assim, o disposto na al. c) do nº 2 do art. 109º do CPP,
19. – A douta sentença ao não suspender a pena ao ora recorrente e ao tê-la suspendido aos demais arguidos, quando considera que todos agiram com dolo directo de normal intensidade, tem uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, violando, assim, nesse aspecto a al. b) do nº2 do art. 410º do CPP;
20. – A douta sentença declara que o dolo não é mitigado por qualquer circunstancialismo;
21. – Todavia, logo de seguida declara que os arguidos não têm antecedentes criminais e o arguido, ora recorrente, de todo;
22. – Assim, há uma contradição insanável na fundamentação também ela violadora da al. b) do nº2 do art. 410º do CPP;
23. – A douta sentença reconhece que não foi feita prova de que o arguido não tivesse outros rendimentos;
24. – A douta sentença não prova que a casa adquirida em Setembro de 2002, foi adquirida com rendimentos obtidos na actividade pela qual o arguido foi condenado;
25. – A douta sentença não prova que a casa pertença exclusivamente ao arguido ora recorrente, sendo que a mesma não é exclusivamente deste, pois foi adquirida em Setembro de 2002 e o arguido está casado em regime de comunhão de adquiridos, desde data anterior, como consta da sua identificação e do registo criminal;
26. Deste modo, a douta sentença viola, neste ponto, o disposto nos arts. 109º,nº 1, 110 e 11º, todos do C. Penal, com o que termina impetrando que “a douta decisão em apreço ser substituída por outra que ordene a nulidade de todas as peças processuais a partir da acusação, inclusive, designadamente, o julgamento, ou caso assim se não entenda, por outra que absolva o arguido, ou caso assim ainda se não entenda, por outra que diminua a medida da pena ao período de cadeia cumprido e que suspenda a mesma no caso de ser superior e que ordene a entrega da casa apreendida ao arguido ora recorrente”.
Intercalarmente, havia o arguido C... interposto recurso do despacho proferido, em audiência de discussão e julgamento – cfr. fls. 1289 a 1291 – tendo concluído a motivação adrede, pela forma seguinte, e em síntese apertada:
Por douto despacho prolatado pelo M.mo Juiz Presidente do Tribunal de Circulo da Covilhã foram declarados nulos os despachos de fls. 16, 27,57,92,93,94,107 e 108,110 e 111, 116 a 136, 137 e 138, 143, 149 a 159, 160 a 163, 199 a 186, 329 a 333, 354 a 356, 357ª 360, 390, 392 a 395, 401 a 409, 420 a 422, 422-A, 432 a 439, 467,533 a 537, 571 a 583, e “pour cause” deveria ter sido anulada a acusação. Porque esses despachos e elementos de investigação alicerçaram a acusação ela não poderia subsistir ou sobreviver á sua anulação. Sem esses elementos a acusação, a ter sido proferida, teria outra configuração e o arguido poderia ter tido oportunidade de desquiciar os indícios que cevassem o libelo acusatório. Poderia, inclusive, ter requestado a instrução, por, em face dos indícios, diversos daqueles que constam da acusação, considerar que os mesmos eram insubsistentes e mereciam comprovação judicial.
O despacho prolatado, ao não invalidar todo o processado, a partir da acusação, inclusive, violou o disposto na al. a) do art. 119º e nº1 do art. 122º, ambos do CPP.
Não deixou o Ministério Público, junto da comarca, de responder ao recurso interposto, tendo, quanto ao recurso interlocutório do arguido C..., concluído que: na altura em que foi requerida a nulidade da acusação, o acórdão da Relação de Coimbra que anulou os actos, que viriam a ser declarados nulos pelo tribunal a quo, ainda não tinha transitado em julgado, o que significava não poder produzir efeitos a que o requerimento tendia o mesmo acontecendo com a decisão prolatada em audiência de discussão e julgamento, quando foi decretada a nulidade de todos os actos praticados no tribunal judicial da Guarda, ao não terem sido precedidos de distribuição. Ainda que tal acontecesse, a acusação deduzida não se escorou somente nos elementos probatórios que foram objecto de anulação, mas em outras diligências realizadas pela Policia Judiciária, tais como inquirição de testemunhas, vigilâncias, documentos, movimentos bancários (ter-se-á querido dizer extractos comprovativos de movimentos bancários efectuados pelo arguido), registos fotográficos constando o movimento de mulheres e acompanhantes masculinos, entre o rés-do-chão e o primeiro andar, do estabelecimento do arguido. A comprovar a subsistência ou consistência indiciária da acusação está o facto de o M.mo Juiz que determinou a nulidade dos actos não ter inviabilizado o prosseguimento do julgamento com base nessa acusação, e, inclusive, ter mantido a medida de coacção em que o arguido se encontrava, prisão preventiva.
O arguido teve possibilidade de se defender em audiência e assim sendo não ficaram desguarnecidas as defesas que lhe estavam propiciadas, se a acusação tivesse sido reformulada.
Acresce que em processo penal vigoram os princípios da economia processual e de aproveitamento dos autos.
Para o recurso principal, do arguido C..., o distinto magistrado, remata concluindo que:
- Basta ler, e sobretudo ouvir, todo o depoimento que está gravado, para se constatar que o depoimento da testemunha U..., colhido pela PJ, não foi lido pelo Juiz Presidente do tribunal colectivo (com o próprio juiz refere depois de interpelado pelo advogado do recorrente), nem o mesmo foi utilizado em julgamento,
- Esta testemunha foi ouvida em declarações para memória futura e começou por confirmar a existência de um cartão onde era feita uma cruz no quadrado 7,5, quando ela e as suas amigas subiam ao 1º andar para praticar sexo com os clientes,
- A seguir disse que eles pagavam e depois ela recebia, mas não se lembrava quanto eles pagavam e quanto ela recebia;
- Foi nessa altura que o Ex.mo Senhor juiz presidente lhe disse “não se lembra de ter dito à Policia Judiciária que recebia uma quantia por cada relação de sexo?”, ao que terá respondido “37, uma coisa assim, não chegava a 40, não”.
A pergunta depois da confirmação da efectivação das relações sexuais, destinava-se a tentar precisar a quantia que por ela era percebida por cada relação de sexo e de qual era o preço pago pelo cliente e aquilo que resultava para si. Não se tratou, pois, de uma leitura do depoimento prestado pela depoente na PJ, mas tão só um incentivo à memória da depoente com base em factos constantes da acusação.
Prova que o Ex.mo Senhor juiz presidente procurou balizar o depoimento das testemunhas vinculadas ao dever do recato profissional ou endoprocessual de limitação probatória, foi o despacho proferido na sessão de 24.11.2004, no início da inquirição da testemunha E....
Passando á análise da decisão, ou mais exactamente do teor da decisão, dissente o contra-motivante que possa existir qualquer erro notório na apreciação da prova, pois o mesmo não se dessume do texto da decisão, por si próprio ou conjugado com as regras de experiência comum.
O art. 170º, nº21 do Código Penal é um crime formal ou de mera actividade, que não exige a verificação de um dano efectivo e cujo bem jurídico tutelado é, segundo uns a liberdade individual, no aspecto sexual, e outros “o interesse geral da sociedade na preservação da moralidade sexual e do ganho honesto”. Trata-se de uma opção criminal do legislador, que ao tempo que descriminalizava o rufianismo deixou dentro da tutela jurídica o proxenetismo, ou seja a exploração profissional, ou com intenção lucrativa, de fomento, favorecimento e facilitação do exercício por outra pessoa de prostituição ou de actos sexuais de relevo.
Na determinação da medida da pena, o tribunal ponderou o grau mediano de ilicitude, a continuação criminosa, depois de ter sido detido e apresentado a 1º interrogatório, o número de mulheres que trabalhavam e se prostituíam na “Penélope”, a dimensão do negócio da qual auferiu largos proventos, traduzidos em recheadas contas bancárias, o dolo directo e não mitigado por qualquer circunstancialismo, a ausência de antecedentes criminais e a falta de assumpção de responsabilidade, pelo que a medida concreta da pena se prefigura como ajustada. A não sus+pensão da execução da pena ter-se-á ficado a dever, como se diz no acórdão sob impugnação, ao facto de nada se ter apurado quanto á personalidade do arguido que permita fundada e seriamente, emitir um juízo de prognose favorável quanto ao seu comportamento futuro “em termos de que a simples censura dos factos e a ameaça da pena seja suficiente para satisfazer de forma adequada e cabal os fins das penas”.
Finalmente quanto ao imóvel onde funcionava a “Penélope” que foi declarado perdido a favor do Estado, terá o mesmo sido adquirido com os proventos resultantes da prática do crime de lenocínio, pelo que foi correctamente declarado perdido a favor do Estado.
Nesta instância, o preclaro Procurador-Geral Adjunto, levanta a questão prévia da rejeição parcial do recurso quanto á matéria de facto impugnada, pelo recorrente C..., acompanhando, no mais, o que vem defendido pelo Ex.mo Magistrado junto do tribunal a quo, ou seja a improcedência do recurso.
Para a economia dos recursos interpostos pelo arguido C..., serão temas em apreciação, relativamente ao recurso interlocutório:
- A invalidade da acusação por decorrência da declaração de nulidade de actos investigatórios e despachos efectuados durante o inquérito;
Sendo que relativamente ao recurso principal, merecerão atenção, as seguintes questões:
- Esculcar se foram violados os art.s 355º e 356º do CPP;
- Se foi violado o nº2 alíneas b) e c) do art. 410º do mesmo livro de leis, o que vale por dizer, se foi inerido o vício aí contemplado, por verificação de erro notório na apreciação da prova e contradição insanável entre a fundamentação e a decisão;
- Se é inconstitucional o nº 1 do art. 170º do Código Penal;
- Se a pena aplicada está conforme os cânones e os preceitos rectores para esta matéria;
- Se foi violado o art. 109º do CPP, quando foi determinada a perda da casa onde, alegadamente, eram desenvolvidas as práticas sexuais de onde manariam os rendimentos de subsistência do arguido.
Na satisfação da questão prévia exumada pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, haverá indagar se ocorrem motivos que possam conduzir à rejeição parcial do recurso impulsionado pelo arguido C..., ao não ter dado pleno cumprimento ao preceituado nos nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP – falta de especificação e remessa para os suportes técnicos dos pontos factuais que pretende ver alterados, e que, em seu entender, conduziriam a uma diversa interpretação da matéria de facto que foi dada como adquirida para a decisão.

II. – FUNDAMENTAÇÃO
II. – A. – Facticidade adquirida para a decisão.
Para a decisão que proferiu forrou-se o tribunal na facticidade que a seguir se extracta:
- O arguido C..., conhecido por "José Marrão” explorou e geriu, nos últimos tempos, até ao seu encerramento, o estabelecimento comercial de discoteca ou diversão nocturna, denominado “Penélope", sito na rua das Flores, em Boidobra, Covilhã, sendo o dono de tal estabelecimento.
- O estabelecimento comercial "Penélope" encontrava-se instalado num edifício, constituído por dois pisos. No piso inferior funcionava um espaço tipo discoteca, composto por um hall de entrada, um salão com um bar e pista de dança, com mesas e sofás, um escritório e uma copa interior.
- No piso superior, ao qual se tem acesso pela parte exterior do imóvel, existiam quartos.
- Com o arguido C... trabalharam, os restantes arguidos, assegurando, juntos, o funcionamento do referido estabelecimento.
- Para além dos clientes e dos arguidos, em tal estabelecimento encontravam-se diversas mulheres jovens, em número variável, regra geral de nacionalidade brasileira, as quais faziam companhia àqueles mesmos clientes, incentivando-os ao consumo de bebidas e à prática de relações sexuais, de cópula completa, nomeadamente relações vaginais, anais e orais, nos aludidos quartos, mediante o pagamento de determinada quantia em dinheiro, compreendida entre € 37.50 e € 40.00 euros, previamente fixada pelo arguido C..., por cada sessão de sexo, com a duração de meia hora.
- O arguido D..., conhecido por "Toni", tinha responsabilidade na segurança do estabelecimento, controlando, as mulheres que ali trabalhavam e os clientes que ali se deslocavam, vigiando, também, o movimento daquelas, com os clientes, nomeadamente quando se deslocavam para os aludidos quartos, a fim de ali manterem relacionamento sexual.
- A arguida A..., assumia o controlo do bar e o B..., assumia o controlo do sistema de som, vigiando, ambos, o movimento das mulheres e clientes, sendo a ela que as referidas mulheres e respectivos clientes se dirigiam, a fim de pagarem a relação sexual a levar a cabo, inscrevendo, uma cruz, nos cartões de consumo, distribuídos aquando da entrada no estabelecimento, tal pagamento e, bem assim as bebidas consumidas.
- Depois de efectuado o pagamento, de forma dissimulada, as mulheres dirigiam-se a quem estava a exercer as funções de porteiro, algumas vezes, o arguido António ou à zona da cabina de som, onde estava o B..., recolhendo a chave de acesso ao piso superior, após exibirem, àqueles, o cartão onde previamente fora assinalado o pagamento correspondente ao acto sexual a levar a cabo.
- Saíam, depois, para o exterior do edifício, acompanhadas do respectivo cliente, abrindo a porta que dá acesso ao piso superior, onde se encontravam os aludidos quartos e eram mantidas as referidas relações sexuais.
- Nas camas dos aludidos quartos eram utilizados lençóis descartáveis, os quais eram fornecidos pelo arguido C..., encontrando-se estes armazenados no corredor de acesso a tais quartos.
- A quantia cobrada pela relação sexual era dividida entre o arguido C... e a mulher que praticara o acto, recebendo esta, cerca de € 27.50 e aquele, ficava com o restante, € 12.50. Tais contas eram acertadas no final de cada noite, pelo menos, pelo arguido C....
- Quer os arguidos, quer tais mulheres, contratadas pelo arguido C..., faziam vida, deste tipo de actividade, de onde extraíam os rendimentos com que faziam face às despesas com a sua sobrevivência.
- Muitas destas mulheres, conhecidas por "alternes" ou "alternadeiras", eram recrutadas pelo arguido C....
- O arguido C... celebrou com Eliane Antónia Dias, cidadã de nacionalidade brasileira, um contrato promessa de trabalho e termo certo.
- Foi solicitado Visto Schengen, para esta Eliane.
- Igualmente, em relação a F..., V... e W..., durante o ano de 2003, o arguido fez contratos de trabalho.
- Realizada uma vigilância ao estabelecimento "Penélope", pela Polícia Judiciária, na noite de 13 para 14.05.2003, constatou-se o seguinte:
- Cerca das 22.40 horas, uma das mulheres que ali trabalhava saiu do piso inferior e dirigiu-se, com um cliente, para o piso superior do imóvel, onde mantiveram relações sexuais, a troco de dinheiro.
- Pelas 23 horas, o referido "casal" desceu ao piso inferior do estabelecimento.
- Momentos após, um outro "casal" saiu do estabelecimento, em direcção ao piso superior do imóvel, tendo regressado àquele cerca de trinta minutos depois.
- Pelas 0.20 horas, verificou-se idêntica situação, relativamente a um outro casal.
- Posteriormente, pelas 0.30 horas, um outro "casal" saiu do estabelecimento em direcção ao piso superior do imóvel, tendo regressado àquele cerca de trinta minutos depois.
- Pelas 0.50 horas, verificou-se idêntica situação, relativamente a um outro casal.
- No local, junto à porta do estabelecimento, foram vistos, também, o arguido D... e um outro indivíduo, com função de segurança.
- No dia 23.10.2003, pelo Inspector da PJ, E..., foi constatado que dois casais, constituídos por 2 mulheres da casa e dois clientes, desceram do piso superior do imóvel, após ali terem mantido relações sexuais, a troco de dinheiro.
- Numa revista efectuada ao arguido C..., a 5.11.2003, pelas 17 horas, na posse do mesmo foram apreendidos dois telemóveis, um marca Sony Ericson, com o nº. 962790135 e outro, marca Nokia, com o nº. 000009883017527, um cartão de segurança com o nº. de telemóvel 96962184 e duas munições, calibre 32.
- Elementos da Polícia Judiciária, participaram em conjunto com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, na noite de 18 para 19.12.2003, na acção de fiscalização, levada a cabo no aludido estabelecimento "Penélope", tendo sido, então, ali encontradas doze cidadãs brasileiras: F..., G..., H..., I..., J..., K..., L..., M..., N..., O..., P... e Q....
- No decurso de tal acção de fiscalização, constatou, o referido Inspector da PJ., E..., que três casais, constituídos por mulheres da casa e R..., S... e T..., desceram do piso superior do imóvel, após ali terem mantido relações sexuais, a troco de dinheiro.
- Duas mulheres, O... e J... encontravam-se em Portugal em situação de permanência ilegal, tendo sido notificadas pelo SEF, no sentido de abandonarem o país, de forma voluntária.
- Realizada nova vigilância ao estabelecimento ora em causa, pela Policia Judiciaria, no dia 21.01.2004, entre as 22 horas e as 2.30 horas, do dia seguinte, ali foram identificadas quinze mulheres de nacionalidade brasileira, tendo as mesmas subido, por catorze vezes, ao piso superior do edifício, acompanhadas de clientes, onde mantiveram relações sexuais com estes, a troco de dinheiro.
- Realizada nova acção de fiscalização ao aludido estabelecimento, pelo SEF, conjuntamente com a PJ, na noite de 25 para 26.01.2004, ali foram encontradas oito mulheres, sete de nacionalidade brasileira e uma de nacionalidade portuguesa, bem assim nove clientes.
- Algumas das mulheres que trabalharam no estabelecimento comercial "Penélope” não eram detentoras de qualquer visto, autorização de residência e permanência, encontrando-se, algumas vezes, expirado o respectivo prazo de validade, bem assim não eram detentoras de qualquer contrato de trabalho, que as habilitasse a trabalhar, em Portugal.
- O arguido C... é dono do imóvel onde se encontrava instalado o estabelecimento comercial "Penélope", desde o mês de Janeiro de 2002, encontrando-se aquele inscrito na 1ª Repartição de Finanças da Covilhã, na matriz predial urbana da freguesia de Boidobra, deste concelho e comarca, sob o artigo n.º 851.
- Tal imóvel encontra-se apreendido e foi selado.
- Os arguidos agiram consciente e livremente, em comunhão de esforços e identidade de fins;
- Os arguidos fomentavam, favoreciam e facilitavam o exercício de relações sexuais, vaginais, anais e orais, a troco de dinheiro, ou seja da prostituição, no estabelecimento comercial "Penélope", explorado pelo arguido C... e por ele gerido, com a colaboração dos restantes arguidos, contratando, aquele, mulheres para tal efeito, com intenção de obterem rendimentos para si.
- Sabiam os arguidos que tais comportamentos lhes eram proibidos e punidos pela lei penal.
- Nada consta dos certificados de registo criminal dos arguidos José Almeida e António Morais.
- O arguido B... foi já julgado e condenado em 1999 em pena de multa por falta ao recenseamento militar.
- A arguida A... foi já julgada e condenada, por factos de 14.6.2003, por sentença de 12.1.2004, em pena de multa, pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguês.
- A mulher decidia por sua livre vontade manter relações de sexo remuneradas, se estivesse meia hora como cliente, receberia € 27.50.
- A testemunha Cleonice adquiriu os preservativos que tinha na sua posse.
Não considerou, o tribunal, provados os factos que haviam sido aduzidos nas respectivas defesas pelos arguidos, que a seguir se enunciam:
- Que, a actuação do arguido C... tenha perdurado, pelo menos, durante cerca de dez anos;
- Que, anteriormente, tal arguido havia explorado e gerido um outro estabelecimento idêntico, durante dois ou três anos, denominado “Picadyle”, sito na cidade da Guarda;
- Que, o estabelecimento estivesse instalado num edifício isolado;
- Que, no piso inferior existissem dois acessos, vedados aos clientes;
- Que, os quartos ou reservados, fossem em numero de 6, independentes, todos equipados com cama e casa de banho privativa, não existindo ali qualquer outra divisão destinada a outro fim;
- Que, nas águas furtadas do edifício se encontrassem mais quatro quartos e uma casa de banho;
- Que, os arguidos trabalhassem juntos, durante vários anos;
- Que, poucas vezes, o número de mulheres, no estabelecimento, fosse inferior a quinze e que chegasse a ser superior a trinta;
- Que, as contas pudessem ser acertadas por um dos arguidos. António, B... e A...;
- Que, o arguido António coordenasse, quaisquer outras pessoas, que fizessem a segurança do estabelecimento;
- Que, os arguido B... e A..., controlassem o tempo a que se reportava a relação sexual, fazendo accionar uma campainha sempre que o período de tempo de cada sessão de sexo era ultrapassado;
- Que, a cruz a assinalar a relação de sexo, fosse aposta no local onde se encontrava inscrita a importância de 7.50 euros;
- Que, os arguidos não exercessem qualquer outro tipo de actividade profissional;
- Que, os arguidos ou as mulheres, tivessem pessoas a seu cargo;
- Que, o arguido C..., recrutasse as mulheres, no Brasil, às vezes directamente e outras vezes através de terceiras pessoas, nomeadamente através de uma tal Elisa, de nacionalidade brasileira, com vista à prostituição;
- Que, algumas vezes, o mesmo arguido se haja deslocado ao Brasil, para tal efeito, sendo que teve agendada uma deslocação aquele país, para o dia 12.11.2003, a qual apenas não se terá concretizado, por o mesmo ter sido detido e proibido de se ausentar de Portugal;
- Que, por diversas vezes, o arguido C..., haja enviado dinheiro, às referidas mulheres, para pagamento da viagem, com destino a Portugal, indicando-lhes o modo como deviam viajar e onde seriam recolhidas por este ou pelos restantes arguidos, bem assim por colaboradores dos mesmos;
- Que, geralmente, tais mulheres viajavam directamente do Brasil para Paris, França e Madrid, Espanha, viajando muitas de táxi até à cidade da Guarda, entrando em Portugal via fronteira de Vilar Formoso, cidade aquela onde o arguido C... e, sobretudo, o arguido D..., ou outros colaboradores, as recolhiam, transportando-as para esta região da Covilhã, em veículos pertença destes, nomeadamente um Mercedes, matrícula no 00-75-QQ, pertença do arguido C...;
- Que, por vezes, também, o arguido C... fazia deslocar, a Madrid, Espanha, um taxista da sua confiança, de nome Joaquim, com vista a ali recolher as mulheres que mandara vir, sobretudo do Brasil;
- Que, algumas outras mulheres eram recrutadas pelo arguido C..., na Colômbia;
- Que, também os restantes arguidos, por vezes, atendiam e falavam com tais mulheres que se encontravam no estrangeiro, no sentido de as informarem das condições de "trabalho" na "Penélope", aliciando-as a vir para Portugal;
- Que, a maior parte destas mulheres passavam a trabalhar, com os arguidos, no estabelecimento comercial "Penélope", sendo que outras eram instaladas em estabelecimentos idênticos da região, tais como a “Libertine”, sita em Vale Formoso, Belmonte e a "Nostalgia" e a “Charrete”, sitas na área da comarca do Fundão;
- Que, da forma descrita, durante o ano de 2000, foi recrutada, pelo arguido C..., no Brasil, por intermédio de uma terceira pessoa, X..., a qual trabalhou no aludido estabelecimento, nas mencionadas condições, durante cerca de três anos;
- Que, a finalidade da celebração dos contratos promessa de trabalho, fosse a introdução das mulheres em Portugal;
- Que, nos pedidos de vistos, se alegasse tratarem-se de bailarinas, o que, efectivamente, não correspondia à verdade;
- Que, o pedido de visto de trabalho fosse apresentado, pelo arguido C...;
- Que, no estabelecimento trabalharam, também, mulheres de nacionalidade russa, colombiana e ucraniana entre outras;
- Que, tenha sido realizada uma acção de fiscalização ao estabelecimento "Penélope", por agentes do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e da GNR, no dia 11.07.2002 e que ali hajam sido, detidas quatro- mulheres, que ali trabalhavam, por se encontrarem em situação irregular em território nacional: Y..., Z... e AA..., todas de nacionalidade russa e AB..., de nacionalidade brasileira;
- Que, na -mesma ocasião, ali foram identificados catorze outros cidadãos estrangeiros: AC..., AD..., AE..., todos de nacionalidade ucraniana e AF..., AG..., X..., AH..., AI..., AJ..., AK..., AL..., AM..., Q... e AN..., todos de nacionalidade brasileira;
- Que, o indivíduo, visto à porta, fosse de nacionalidade ucraniana;
- Que, no dia 23.10.2003, cerca das 0.50 horas, agentes do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras procederam à realização de uma busca ao aludido estabelecimento comercial, tendo constatado que no interior do mesmo, estavam dezassete mulheres, todas de nacionalidade brasileira, que, as mulheres possuíssem, todas elas um cartão numerado, cor de rosa, datado de 22.10.2003 e vários preservativos em número a seguir discriminado: O..., dois preservativos; N..., cinco preservativos; AI..., quatro preservativos; AO..., um preservativo; L..., três preservativos; AP..., três preservativos; J..., dois preservativos; AQ..., três preservativos; AR..., cinco preservativos e dois invólucros referentes a dois outros preservativos; AS..., quatro preservativos; Q...; AT..., um preservativo, AU..., cinco preservativos; AV..., dez preservativos; AN... três preservativos; AW..., cinco preservativos e AX..., dois preservativos;
- Que, todas estas mulheres trabalhavam na "Penélope", nas condições supra descritas, ali praticando, também, relações sexuais com os respectivos clientes, a troco de dinheiro;
- Que, no bar do estabelecimento, hajam sido apreendidos dois preservativos e nove talões de pagamentos referentes a clientes, bem assim, no escritório, uma arma tipo carabina, calibre 22 Long Rifle, com o n.º 43274, marca St. Etienne, sem qualquer documentação, duas caixas com oitenta munições do mesmo calibre, uma carteira com doze munições, calibre 32, pertença do arguido C..., um bloco de apontamentos manuscrito e dois cartões cor de rosa, datados de 27 e 28 de Setembro de 2002;
- Que, no dia 23.10.2003, as mulheres da casa e os clientes, fossem, O... e AZ..., bem assim, N... e BA...;
- Que, nessa noite, aquelas já tivessem mantido, cada uma delas, uma outra relação sexual, nas mesmas condições;
- Que, nessa mesma noite, também, AY..., L..., Q... e AN... ali mantiveram relações sexuais com clientes, nas aludidas condições;
- Que, haja sido feita, nova busca ao estabelecimento comercial "Penélope", no dia 05.11.2003, pelas 0.45 horas e, que ali foram encontradas diversas mulheres que já ali se encontravam aquando da busca realizada no dia 23.10.2003, bem assim sete outras;
- Que, haja sido O..., P... e Q..., que hajam descido com os clientes;
- Que, no piso superior do imóvel, hajam sido apreendidos, na noite de 25 para 26.1.2004, setenta lençóis descartáveis e dois rolos de papel higiénico, tamanho industrial;
- Que, hajam sido, ainda, apreendidos os seguintes objectos: uma pistola, sem marca, modelo ou número de série perceptível, sem qualquer documentação; um revólver "Smith & Wesson" 52 Magnum, com o n.º de série BFE7818, municiado com seis munições e respectivo livrete; Revólver St. Etienne, com o n.º de série F86813, com coldre e cartucheira com doze munições, sem qualquer documentação; uma licença de uso e porte de arma de defesa, válida nos anos de 1994 a 1998, referente ao revólver 32-L, SMIIE, n.º BIE7818, pertença do arguido C...;
- Que, em resultado da actividade descrita, no estabelecimento comercial "Penélope", os arguidos facturassem, quantias que variavam entre € 2 500.00 e € 20 000.00 euros, por noite;
- Que, a generalidade das referidas mulheres hajam acedido a vir trabalhar para Portugal, nas aludidas condições, devido a encontrarem-se em situação de grave carência económica, separadas dos maridos e com filhos menores a seu cargo, sem apoio familiar e económico, muitas em situação de desemprego, aproveitando-se o arguido C... da necessidade económica daquelas e da situação de especial vulnerabilidade em que as mesmas se encontravam, para as aliciar à prática da prostituição;
- Que, o arguido C... seja o dono e utilizador dos telemóveis com os nºs. 962790135 e 962700415, desde há vários anos, encontrando-se instalado no estabelecimento comercial "Penélope" o telefone fixo n.º 275324985;
- Que, todos os bens aprendidos nos autos se reportam à actividade desenvolvida pelos arguidos, de fomento e favorecimento da prática de actos sexuais e da prostituição;
- Que, os arguidos favorecessem, fomentassem e facilitassem, com intenção lucrativa, a entrada e permanência irregular e ilegal de cidadãs de nacionalidade brasileira, colombiana e outras, em Portugal;
- Que, os arguidos, com intenção lucrativa, para si, aliciassem e angariassem cidadãs estrangeiras, de forma reiterada, ao longo de vários anos, com o objectivo de as introduzir no mercado de trabalho nacional, bem sabendo que as mesmas não se encontravam habilitadas com autorização de residência, autorização de permanência ou visto de trabalho;
- Que, o estabelecimento esteja inserido num aglomerado urbano, que confronta com a rua e tem casas do lado norte e poente e do outro lado da rua;
- Que, o piso superior se destinasse a habitação;
- Que, a arguida A... era empregada desde 3.11.2003 e o B... foi empregado desde 10.2.2003 até Janeiro de 2004 e o António nunca trabalhou ali tenha trabalhado;
- Que, no estabelecimento, para além dos clientes e funcionários, se encontrassem mulheres, nunca com menos de 20 anos de idade, sendo que algumas, nunca mais de 15, eram contratadas pelo arguido, apenas, para acompanharem os clientes e com eles consumirem bebidas alcoólicas;
- Que, não seja verdade que alguma vez tenha dado instruções às senhoras para manterem com os clientes quaisquer práticas de relações de sexo;
- Que, a estrutura do estabelecimento visasse, tão só, a venda de bebidas com companhia feminina e a tarefa das mulheres era a de beber e fazer beber, recebendo à comissão, em função, apenas, das bebida e do tempo que estavam com os clientes;
- Que, os primeiros 15 minutos de conversa, entre as contratadas e os clientes, destinavam-se a que aquelas levassem estes a encomendar bebidas para eles e para elas;
- Que, se tal não acontecesse nesse lapso de tempo, as acompanhantes tinham a obrigação contratual de deixar a presença dos clientes;
- Que, as bebidas encomendadas pelos clientes de valor superior a € 25.00, dava direito a que a acompanhante recebesse metade desse valor;
- Que, em cada meia hora de acompanhamento, as contratadas cobravam uma bebida ao cliente;
- Que, a actividade do arguido visasse, profissionalmente com intenção de lucro, tão só, fomentar, favorecer e facilitar a venda de bebidas, através dos mecanismos da sedução, dança e conversa;
- Que, havia contratadas que decidiam sair do estabelecimento com clientes para a prática de actos sexuais, não perguntando, apesar da suspeita, a razão de ser destas saídas nem para onde se dirigiam;
- Que, algumas das contratadas pretendiam manter relações de sexo com clientes da discoteca, contra o recebimento de quantias, o que lhe era indiferente, pois não obtinha qualquer lucro desse comportamento;
- Que, recebia, o arguido ou a mulher, depois dos 15 minutos iniciais, por cada meia hora, em que a “alternadeira” estivesse com o cliente, 50% de uma bebida de € 25.00, sendo indiferente o que estivesse a fazer, fosse a manter relações de sexo, fosse a conversar, a ler poesia, a discutir direito e designadamente a inconstitucionalidade do crime de lenocínio;
- Que, se a mulher estivesse duas meias horas, receberia € 75.00, não recebendo o arguido, mais por isso;
- Que, algumas das mulheres contratadas viviam nos quartos existentes no piso superior e que fossem elas, que tratassem da limpeza e conservação desse espaço;
- Que, não era o arguido que adquiria os lençóis descartáveis, que eram propriedade das mulheres;
- Que, a noite de 25 para 26 de Janeiro, em que foi detido, seria a derradeira noite de funcionamento da discoteca;
- Que, estava prevista uma festa após o encerramento da discoteca, pelo que havia 2 alguidares com carne já temperada para ser então, cozinhada;
- Que, as contratadas ficariam mais 2 dias na casa e quando saíssem colocariam os lençóis, a tapar os diversos bens ali existentes;
- Que, o arguido nunca facilitou ou favoreceu o trânsito, a permanência ou entrada, ilegais de cidadão estrangeiro, em território nacional;
- Que, nunca aliciou ou angariou, cidadãos estrangeiros não habilitados com autorização de residência, autorização de permanência ou visto de trabalho, com o objectivo de os introduzir no mercado de trabalho;
- Que, as pessoas contratadas por si, foram-no sempre condicionadas à obtenção do visto exigível.
Encontrou, o tribunal esteio para travejar todo o acervo probatório que se deixou consignado supra, nos seguintes elementos de prova: nos depoimentos das testemunhas arroladas na acusação pública, BA..., cliente da casa, que lá terá ido 2, 3 vezes, onde foi surpreendido aquando das idas dos agentes de autoridade, ao local, a 23.10, referindo que existia um andar por cima, que aos clientes era dado um cartão à entrada e que pagava ao balcão o consumo, perguntado se nessa noite tinha ido ao 1º andar diz que se não recorda de ter ido, mas se foi, como estava com os copos, não se lembra do que lá foi fazer; AZ..., que igualmente ali foi surpreendido na mesma ocasião, que já lá tinha ido antes, que nessa noite foi ao quarto de uma das raparigas, ao andar de cima, buscar um CD de música, emprestado, que o quarto tinha uma cama, um móvel, um espelho, penteador e objectos pessoais, que quando desceu estava lá a polícia, à sua espera, que pagava o consumo na caixa e que à entrada lhe davam um cartão; AN..., trabalhava como alterne na casa há 1 ano e tal, tendo-o feito por cerca de 3, 4 vezes, 3, 4, meses por cada vez, que a frequentava 4 vezes por semana, que estavam lá todos os arguidos, ali bebia uns copos e ganhava à comissão; AP..., que ali estava há cerca de 3 meses a trabalhar, como “alternadeira”, que tinha sexo com os clientes no quarto, que eles pagavam, antes de subir, ao balcão e que ela recebia uma comissão, quer pelas bebidas, quer pelas relações de sexo, que pode rondar os cerca de € 27.50, que tinham um cartão onde era assinalado, por quem estava ao balcão, a bebida e ou a relação de sexo, no local adequado, a fim de permitir, ao fim do dia, fazer-se as contas; AW..., que era alterne na casa, 5, 6 vezes por semana, que o José era o dono, que a A... estava ao balcão e os outros eram empregados de mesa, que recebia à comissão e que os clientes pagavam à casa; F..., que estava ali a trabalhar há cerca de 2,3 semanas, como alterne, recebendo à comissão, que para ter sexo saíam e voltavam a entrar e que comprava os preservativos na farmácia; BB..., inspector do SEF, que ali se deslocou no exercício da sua actividade profissional, a 19.12.2003 e que subscreveu o relatório, então elaborado, a propósito dessa acção, junto a fls. 370, que confirmou em audiência e ainda foi lá outra vez, em Janeiro de 2004, que falou com o arguido José, das 2 ocasiões, que lá estava no local, que se apresentou como o responsável e que deu a informação que consta de fls. 80 e, finalmente, E..., inspector da PJ, que ali efectuou as acções de fiscalização, documentadas nos autos, em 12/13.5.2003, 19.12.2003, 22.1.2004, fazendo a descrição física do espaço, edifício com 2 pisos, descrevendo, com pormenor o espaço físico do piso inferior, o método de trabalho, da alternadeiras, a necessidade de vir ao exterior para se ter acesso ao piso superior, a presença dos arguidos, o controlo e a actividade em concreto por cada um deles desempenhada, tendo visto subir e descer, várias mulheres com clientes ao piso superior, referindo ainda, que o arguido José não fazia nada mais, que o estabelecimento estava em nome dele, que há-de ter arranjado o património à custa do lenocínio, que existia muito dinheiro movimentado nas contas analisadas, que tal volume de dinheiro, não podia vir do dia a dia e, baseou-se o Tribunal ainda, nos relatos de diligência externa de fls. 37/8 e 39/40 e fotografias que os acompanham, de fls. 41 a 46, relativamente à noite de 12 para 13.5.2003, sobre, que versou o depoimento de uma das testemunhas que realizou tais diligências, prestado em audiência, pedido de visto, de fls. 70/1, relativamente a Eliane Antónia Dias, que fornece a identidade do arguido José e o local onde está instalado o estabelecimento em causa, como empresa de acolhimento, datado de 15.4.2003, parecer favorável de fls. 72, contrato promessa de trabalho entre o arguido e a dita Eliane de fls. 73/4, que deu entrada na IGT a 30.1.2003, informação dada pelo Inspector do SEF, de fls. 80, que ouvido em audiência, a confirmou, certidão matricial e declaração de pagamento de sisa, de fls. 86/87 e 88, auto de apreensão de fls. 299, de 5.11.2003, ao arguido José Almeida, relativamente a 2 telemóveis, um cartão de segurança e duas munições.32, termo de consentimento, de fls. 303, do mesmo arguido para a realização de busca no escritório nas instalações do estabelecimento, documentada a fls. 317, onde nada foi apreendido, a 5.11.2003 e fotografias, então tiradas, de fls. 318 a 320, relatório de fiscalização levado a cabo pela mesma testemunha, que confirmou, em audiência, o ali relatado, datado de 19.12.2003, de fls. 370, em simultâneo com uma acção de fiscalização do SEF, relatada, esta, a fls. 378 e segs., confirmado, o seu teor, pela testemunha, que prestou depoimento e que o elaborou, testemunha que não participou, no anteriormente mencionado e que não está, de resto, assinado, ainda, relato de diligência externa, de fls. 398, levada a cabo, a 22.1.2004, ainda, pela mesma testemunha, que confirmou o seu conteúdo, em audiência, auto de apreensão do imóvel, onde estava instalado estabelecimento, de fls. 521, auto de selagem do mesmo imóvel, de fls. 523, fotografias de fls. 555 a 558, que demonstram a selagem, notificação do acto ao arguido, de fls. 559, certificado de registo criminal de fls. 920, 922, 968/9 e 970/1 e documentos bancários e exame que sobre os mesmos incidiu.
Estes elementos de prova relacionados e conjugados entre si, permitem compor o puzzle, por forma a que no resultado final, surja o quadro acima retratado e enunciado, sem qualquer margem para dúvida séria ou fundada, antes pelo contrário, com o grau de certeza e segurança, exigido nesta matéria e que a mencionada prova, permite e exige, se conclua.
Quanto aos factos não provados nenhum elemento de prova, validamente produzida, atento o já decidido nessa matéria, se produziu, em absoluto, muito menos, ainda de forma credível, consistente e convincente, o que abrange, de forma, irremediável, os actos susceptíveis de integrar os tipos de crime relacionados com a mão de obra estrangeira e com a posse de armas ilegais.
II. – B. De Direito.
II. – B.1 Recurso interlocutório do despacho prolatado a fls. 1289 a 1291. Consequências Jurídicas da declaração de nulidade proferida. Nulidade da acusação e de todos os actos subsequentes.
Por despacho proferido pelo Senhor Presidente do tribunal colectivo que efectuou a audiência de discussão e julgamento, no processo em apreço – cfr. fls. 1247 e 1248 – foram declarados nulos determinados actos processuais – despachos a ordenar escutas telefónicas, buscas, interrogatórios de arguido e de depoimento para memória futura, autos de transcrição de escutas telefónicas, de buscas, de interrogatórios de arguido e de depoimento para memória futura e de mandados de buscas – que, por decisão deste tribunal haviam sido declarados praticados por entidade judicial não natural (o processo não havia sido sujeito a distribuição, mas sim afecto ao Magistrado judicial que trabalhava com o magistrado do Ministério Público a que m havia sido distribuído o inquérito), deixaram de poder valer como actos endoprocessuais válida e lidimamente exercitados.
Em vista do mencionado despacho, o arguido C... – cfr. fls. 1256 a 1260 - veio, em síntese apertada, e ao amparo do preceituado no art. 122º do CPP e, por entender que a nulidade declarada afectava os actos que dela dependiam, inextrincavelmente, em seu juízo, nomeadamente a acusação em que se firmava o julgamento que estava a ser realizado, pedir que esta peça processual fosse declarada nula. Se tal não acontecesse estar-se-ia a violar um sacrossanto princípio constitucional, qual fosse o de o arguido poder requerer a instrução, para o caso de outro ser o teor da acusação expurgada dos elementos de prova que acabavam de ser declarados nulos e outro ser o amplexo de indícios onde se fundeava esta peça processual.
A este pedido respondeu o distinto magistrado do Ministério Público junto da comarca, defendendo que a declaração de nulidade não podia invalidar tudo o mais que para o inquérito fora carreado e que este continha outros elementos de prova que mantinham e sustinham a acusação. Se o tribunal havia prosseguido com o julgamento é porque considerava que a acusação possuía virtualidade para se constituir como libelo eficaz e fundado contra o arguido. Este tinha possibilidade de se defender no julgamento da acusação, agora dessorada e emasculada de elementos que a tinham suportado, tanto mais que ao tribunal só está permitido valorar e suster a sua convicção com os elementos probatórios que tenham sido produzidos em audiência de discussão e julgamento. Em processo penal vigoram os princípios do aproveitamento dos actos e da economia processual, que impõe aos agentes judiciários que não sejam desbaratados os actos que possam ser validamente aproveitados. Lembrava, em desinência, que até ao trânsito em julgado das decisões os actos processuais que em virtude delas pudessem vir a sofrer aleijão processual se deveriam manter intactos.
Em decisão do peticionado, o Ex.mo Senhor juiz presidente ponderou que, nos termos do art. 122º do CPP, as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aqueles que por elas puderem vir a ser afectados. “É necessário que entre o acto viciado e os demais exista um nexo funcional e não uma simples dependência acidental ou temporal: o acto afectado de nulidade deve encontrara no acto originariamente viciado a premissa lógica e jurídica da sua validade. Tal relação entre os actos há-de ser, pois, uma dependência substancial e não uma sucessão meramente cronológica, de modo que, faltando o primeiro, o outro não possa sobreviver autonomamente”(sic).
Porque é seu entendimento que a repetição de actos afectados pelo efeito que a nulidade produz “só é necessária quando os efeitos derivados dos actos não tenham sido produzidos doutro modo” e como a acusação foi alicerçada em outras provas que a mantêm, designadamente, inquirição de testemunhas, vigilâncias policiais e inúmeros documentos considerou que esta peça processual mantém plena validade e encerra indícios suficientes e capazes de alentarem o julgamento que estava a ser efectuado.
Segundo os tratadistas [Andrea Antonio Dália e marizia Ferraioli, Manuale di Diritto Processuale Penale, CEDAM,5ª Editiozone, 2003, pag.429 e segs.] são três os perfis formais sob os quais um acto pode ser examinado: a) – relevância jurídica; b) – perfeição do acto; e c) – eficácia do acto. Pelo primeiro, afere-se a existência jurídica de um acto para produzir efeitos relevantes para o direito, o que equivale a dizer que um acto não pode ser somente materialmente existente, deve sê-lo também do ponto de vista jurídico. Pelo segundo, afere-se o requisitório formal necessário para que corresponda ao modelo de conformidade predisposto, em geral e abstracto, com a lei. Pelo terceiro, o acto existente e perfeito, deve ser eficaz, deve cumprido tempestivamente, no sentido em que devem ser respeitados os termos da lei, por razões de continuidade procedimentar, prevê para a sua apresentação ou deve ser executado após o decurso de um prazo prefixado.
Desbordando do primeiro dos perfis enunciados, importa, no caso em apreço, conferir o conceito de nulidade. Segundo os tratadistas supra referidos, “nulidade é a sanção que atinge, tornando-o anulável, o acto não correspondente ao esquema legal – nos casos e nos limites taxativamente previstos – ou seja o acto formalmente perfeito, mas executado sem a observância, prescrita, no caso (appunto), com a pena de nulidade, de determinados requisitos”. [Cfr.op. loc. cit., oag. 430.]
As nulidades assumem ou revestem a natureza de absolutas ou relativas, ou ainda, para o regime processual italiano “nulidades de regime intermédio”, “le nullità a regime intermedio”, no que diferem das meras irregularidades, ou seja aquelas imperfeições de actos processuais que, “pela sua menor consistência com respeito á ortodoxia formal ou substancial, não pode ser reconduzida á noção de nulidade e ainda menos à de inexistência”. [E. Fortuna; S. Dragone; E.Fassone; R. Giustozzi; A. Pignatelli, in Manuale Pratico del Nuovo Processo Penal, CEDAM, Quarta Edizione, 1995, pag. 315.] Por consequência é irregularidade “aquela imperfeição que do ponto de vista positivo se traduz numa inobservância da lei (frequentemente susceptível de correcção) e que, do ponto de vista negativo, não alcança aquela consistência que poderia integrar uma verdadeira e própria nulidade”.
Os actos declarados irrítos, com bem se referiu no douto despacho que desatendeu a arguição de nulidade, com as correlativas consequências que daí se pretendiam extrair, só poderiam ter a virtualidade de afectar o libelo acusatório, se da ponderação do conjunto das provas recolhidas, em sede de inquérito, se tornasse de todo em todo impossível constituir um feixe de factos consubstanciadores de um juízo de indiciação criminosa para os arguidos.
O tribunal considerou que, mal grado a declaração de nulidade a que procedeu, os elementos probatórios recolhidos no inquérito eram suficientes para lastrar e cevar um juízo de indiciação imputado aos arguidos, pelo que manteve na íntegra o libelo acusatório e ordenou a prossecução do julgamento tendo por base todo o conjunto factual que constava daquela peça processual.
Os actos nulos só afectam aqueles que deles dependam de forma directa, ou aqueles que por virtude da inutilização que o acto irríto reverbera deixam de poder produzir os efeitos para que estavam destinados se o acto gerador se mantivesse incólume. A inutilização dos actos indicados no despacho sob impugnação não era susceptível de afectar a validade formal e substancial do libelo acusatório, mas tão só os actos que dependessem directamente da sua eficácia interna. A supressão, por invalidade formal, dos actos declarados não inquinou ou inutilizou os demais elementos probatórios que, recolhidos com independência destes, formavam o substrato lógico-material que permitiu concatenar e elencar os factos constitutivos da acusação.
A acusação é um repositório factual que entretece e incorpora distintos elementos probatórios não sendo possível que a declaração de invalidade de alguns possa afectar todo o conjunto.
Deverá, pois, ser desatendido o pedido de declaração de nulidade da acusação, na sequência da decretada nulidade dos actos processuais dependentes dos despachos que foram considerados irregulares por haverem sido proferidos por juiz não natural.
II. – B.2. Rejeição parcial do recurso interposto pelo arguido C... por inobservância do estatuído no nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP.
Suscita o preclaro Procurador-Geral Adjunto a questão da rejeição parcial do recurso interposto, por inobservância, por parte do recorrente, do estipulado nos nºs 3 e 4 do CPP. Isto porque, pese, embora, “pretendendo ver sindicada a matéria de facto assente na douta sentença impugnada, “não cumpre na sua motivação e nomeadamente nas conclusões respectivas, em termos cabais, o ónus de especificação consignados no art. 412º, nº3 e 4 do CPP, limitando-se, nas conclusões E e F, praticamente a efectuar afirmações genéricas de discordância probatória sobre a matéria factual fixada na sentença sem a transcrição concreta de qualquer elemento que, nessa sede, permita sequer abalar minimamente a convicção que obteve acolhimento em sede de decisão sindicada. Tanto mais que, mostrando-se integralmente transcrita, em anexo, toda a prova oralmente produzida em audiência, é possível o cotejo crítico da mesma com o que na douta sentença recorrida vem plasmado, em termos de motivação, de fls.128v. a 129. Cotejo que permite concluir pelo reflexo lógico do processo dedutivo aí retratado com a realidade que transmite aquela transcrição. Logicismo que o recorrente com a argumentação que desenvolve não consegue colocar em causa. Valendo, aliás, nesta sede, o princípio estatuído no art. 127º do CPP.
A jurisprudência tem vindo a tomar posição sobre a questão que vem suscitada pelo Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto no sentido de que o recurso não será de rejeitar, antes o tribunal da Relação tem o dever de conhecer, e se tal for o caso, modificar, do recurso, quanto à matéria de facto, se o recorrente, embora não tendo especificado nas conclusões os concretos pontos de que dissente, não deixa de, na motivação, (ao longo dela), assinalar e pontuar os pontos de discrepância, indicando os troços da matéria de facto transcrita, que razoa haverem sido enviesadamente julgados. [Neste sentido, e por lidimar se transcreve, na íntegra, o Acórdão do STJ, de 7.10.2004, prolatado no processo 3286/04,5ª Secção:”I – O STJ tem vindo a considerar inconstitucional, por violação dos direitos a um processo equitativo e do próprio direito ao recurso, as normas dos nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP, na interpretação segundo a qual o incumprimento dos ónus aí fixados, conduz á rejeição do recurso, sem a possibilidade de aperfeiçoamento (cfr. Acs. De 26.9.01, proc. nº2263/01, de 18.10.01,proc.nº 2374/01, de 10.04.02, proc. nº 152/00 e de 5.6.02, proc. nº1255/02); II – Se o recorrente não deu cabal cumprimento às exigências do nº3 e especialmente do nº4 do art. 412º do CPP, nas conclusões da motivação, mas o fez no texto dessa motivação, a Relação não pode, sem mais rejeitar o recurso em matéria de facto, nem deixar de conhecer, por ter por imodificável a matéria de facto, nos termos do art. 431º do CPP; III – Este último artigo, como resulta do seu teor, não toma partido sobre o endereçar ou não do convite ao recorrente, em caso de incumprimento pelo recorrente do ónus estabelecido nos nºs 3 e 4 do art. 412º, antes vem prescrever, além do mais, que a Relação pode modificar a decisão da 1ª instância em matéria de facto, se, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada, nos termos do art. 412º, nº3, não fazendo apelo, repare-se, ao nº4dquele artigo, o que no caso teria sido infringido; VI – Saber se a matéria de facto foi devidamente impugnada à luz do nº3 do art. 412º, é questão que deve ser resolvida à luz deste artigo e dos princípios constitucionais e de processo aplicáveis, e não à luz do art. 431º, al. b) cuja disciplina antes pressupõe que essa questão foi resolvida a montante; V – Entendendo a Relação que o recorrente não forneceu os elementos legais necessários para reapreciar a decisão de facto nos pontos questionados, a solução não é a improcedência, por imodificabilidade da decisão de facto, mas o convite para a correcção das conclusões; VI – A ausência de tal convite e a subsequente ausência de pronúncia sobre matéria que devia conhecer torna nulo o acórdão da relação; VII – Assim vem decidindo também o TC, Acs nº259/03, DR, IIS, de 13.2.02 e 140/04, DR, IIª Série, de 17.4.04, que distingue a deficiência resultante da omissão na motivação dessas especificações caso em que o vício seria insanável, da omissão de levar as especificações constantes do texto da motivação às conclusões, situação que impõe o convite à correcção”.
No mesmo sentido se pronunciaram os Acórdãos do STJ, de 16.10.2003, proc. nº 3295/04; de 15.5.2003, proc. nº 985/03 -5ª Secção; de 13.5.04, proc.nº1633/04, 5ª Secção; de 16.2.2005, proc nº3131/04 – 3ª secção, bem assim o Ac.de 17.11.2004, proc.nº 3195/04 – 3ª Secção, onde, lapidarmente, se escreveu que: “I - O TC e o STJ têm considerado constitucionalmente inaceitável, por violação do direito a um processo equitativo e do próprio direito ao recurso (arts.20º, nº4 e 32º, nº1 da CRP), a interpretação do art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP segundo o qual o incumprimento das exigências processuais relativas às conclusões da motivação do recurso conduz imediatamente à sua rejeição, sem conceder ao recorrente a possibilidade de aperfeiçoamento; II – Só assim não será quando a deficiência não for apenas relativa à formulação das conclusões da motivação, mas se referir à própria motivação; neste caso, a deficiência da estrutura da motivação equivale a uma falta de motivação na plenitude dos seus fundamentos, pondo em crise a delimitação do âmbito do recurso”.]


A motivação de recurso, não constituindo um exemplo de estilo e muito menos de arrimo aos preceitos processuais, não deixa de, no apartado VII, ponto 16, escrutinar os pontos de facto que o recorrente considera terem sido deficientemente julgados ou, pelo menos, julgados de forma diversa aquela que ele entende dever ser a mais ajustada ao que foi declarado em audiência pelos distintos sujeitos processuais. Não será configurável, a nosso ver, uma situação de impossibilidade de conhecimento do recurso, quanto à matéria de facto, dado que o recorrente, ainda que não de forma absolutamente adequada, impugnou a matéria de facto, dando a conhecer ao tribunal de recurso quais os pontos que, em seu juízo, merecem divertido julgamento, do mesmo passo que faz indicação, remetendo para os suportes magnéticos, quais as partes das declarações que impõe uma interpretação distinta.
Como se disse supra, e sem embargo do reparo efectuado, não será motivo de convite para aperfeiçoamento, dado que o recorrente fez saber, na motivação, quais os pontos que pretende ver reapreciados por este tribunal, fornecendo os elementos materiais que permitem sindicar as divergências patenteadas.
No aviamento do que consideramos ser a melhor jurisprudência, procederemos à sindicância da matéria de facto que o recorrente acoima de deficiente ou enviesadamente julgada.
II. B.3. – Violação dos art.s 355º e 356º do Cód. Proc. Penal.
O recorrente C... acoima o tribunal de ter violado os arts. 355º e 356º do CPP por ter confrontado a testemunha com declarações prestadas perante a Polícia Judiciária. Em determinado momento da instância, o Senhor Juiz Presidente, depois de a testemunha AP... não ter descrito com pormenor o quarto onde terá mantido relações sexuais – existência ou não de uma peça de mobiliário, um sofá – terá procurado avivar a memória à depoente com a expressão “A senhora, à Policia Judiciária disse que tinha um sofá”.
Não foi lido o depoimento da testemunha, mas, o que será ainda mais insidioso e verrinoso, foi indirectamente lembrado à testemunha o que havia dito, o que empesta e engrassa ainda mais a desmesura processual da infracção cometida. É que ao proceder pela forma descrita o Senhor Juiz evidenciou já ter convicção orientada, e ervada, acrescentamos nós, relativamente ao objecto do processo, pois que o tribunal compendia estas declarações como fonte motivadora da sua fundamentação de culpabilidade – cfr fls.1246. Ao confrontar a testemunha com as declarações prestadas no órgão de policia criminal, o Senhor Juiz está, “no fundo, (a) usar de coacção”(sic). Foi utilizado um meio proibido de prova em violação do art. 32º da CRP, por força do art. 18º da Lei Fundamental.
O Exmo. Senhor Magistrado do Ministério Público pondera que o que o tribunal fez foi avivar a memória da testemunha. Ao longo do depoimento esta testemunha revelou o preço que cobrava por cada relação sexual mantida com clientes que demandavam o bar “Penélope” para esse efeito, como era anotado e inscrito num cartão a efectivação do acto, como era efectuado o controle por parte dos empregados do bar, os falados B... e A..., como se procedia ao pagamento e como era retirada a percentagem que ficava para o dono do bar - cfr. fls.1489 e 1490 da resposta.
O art. 356º, correlato do art. 355º, ambos do CPP, firmam o princípio de que, num processo de natureza e matriz acusatória, toda a prova que vier a servir para assoalhar a convicção do tribunal tem que ser produzida em audiência, em homenagem aos princípios da imediação, da oralidade e do contraditório. [Vide Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo penal Anotado, 2º volume, Rei dos Livros, pag. 397.] Proíbe-se que o tribunal possa fazer valer elementos probatórios que não foram submetidos á turiferação dos princípios supra enunciados quando congraçados com o princípio da publicidade. [Para uma melhor e mais detalhada explanação do princípio do acusatório e das decorrências que dele advêm para a produção da prova em audiência e das garantias do arguido (imputado), veja-se Luigi Ferraioli, in Derecho y Razón, Teoria del Garantismo penal, Editorial Trotta, 7ª edición, capitulo IX (El Juicio, quando e como juzgar).]
Enquanto que o método inquisitório se basta, para Luigi Ferraioli, Derecho Y Razón, p. 605, com decisões potestativas, o princípio acusatório tem de assentar num “juicio que se desarrolle com garantias processales en matéria de prueba y de defensa que hacen posible la verificación e le refutación”. Mais adiante é ainda na lição deste autor, ao conformar “el rito y el método e formación de las pruebas [Vide op. loc. cit., p.621.] que se escora a ideia de que a validade das provas está sujeita ao método legal da sua formação.”Estas impiden, entre otras cosas, que pueda tener relevancia la “ciência privada” del juez a los fines de la convicción de culpabilidad, que debe producirse secundum acta e probata, a difenrencia de la convicción de inocencia que, por la estrutura lógica de la prueba analizada en el apartado 10.7, es posible com independência de cualquier prueba”.
Se a lei proíbe a valoração de provas que não hajam sido declaradas em tribunal, para aí poderem ser submetidas ao escrutínio dos sujeitos processuais involucrados no juízo oral, não proíbe que o julgador, que não é um ser asséptico e indemne a toda a compleição probatória que enforma o processo, procure esclarecer o conteúdo de um depoimento, completando-o ou conformando-lhe os contornos de precisão e rigor, com recurso a depoimentos já prestados no processo. Não se trata de “ciência privada” nem de leitura não admitida em julgamento de depoimentos já prestados, mas tão só de conhecimentos adquiridos pelo proceder normal de julgar e percepcionar a realidade processual e a verdade histórica que se constituiu no excurso do procedimento que conduziu à formação de um juízo de probabilidade de culpabilidade que se condensa e acama no libelo acusatório.
Como o próprio recorrente admite, o Senhor Juiz Presidente não procedeu à leitura do depoimento da testemunha, tendo procurado precisar, afinar o depoimento com declarações que a mesma, relativamente aquele preciso e concreto pormenor, já havia prestado. Nem o pormenor é bastante para abalar a escorreita e válida formação conviccional do julgador. Não foi suscitada qualquer questão que fosse essencial para a tipificação dos ilícitos pelos quais o arguido se encontrava a ser julgado, nem acerca da culpabilidade ou de eventuais causas de exclusão da responsabilidade penal.
Nem pode servir de vector invalidante a alegação produzida pelo recorrente de que o tribunal atapetou a sua convicção na valoração que fez desse depoimento. Ao indicar o depoimento da testemunha Cleonice como fundamento fê-lo com referência a todo o depoimento prestado, no pleno exercício do princípio da livre apreciação da prova e sem constrangimentos ao incidente suscitado pelo recorrente.
Porque o recorrente assume uma divergência de entendimento com a valoração que o tribunal a quo conferiu a determinados depoimentos, convirá, por uma questão metodológica, anotar alguns pontos, que segundo os tratadistas, devem nortear e orientar na interpretação e valoração os depoimentos testemunhais.
O ordenamento adjectivo penal adoptou, embora com restrições –“salvo quando a lei dispuser diferentemente” -, o princípio da livre apreciação da prova, segundo o qual “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Para Massimo Nobili, o “principio del convencimento del giudice”, assenta em dois pilares axiais, na lógica do juiz e na crítica reflectida (“critica ragionata”). [Massimo Nobili, in “Il principio del Convencimetno del Giudice”, Giuffrè Editore, Milano, 1974, p. 284.] “A propósito de tal lógica e razoabilidade se realça que o convencimento do juiz é livre somente no sentido em que ele será fruto e meta derradeira de individual razoamento. Em particular se o critério do livre convencimento equivale a uma ausência de prova legal, isso “não dispensa o juiz da observância daqueles critérios que obedecem ás exigências de ordem lógica”, os quais se colocam como um verdadeiro e próprio limite á liberdade do juiz. Assim, com maior precisão, é exactamente numa qualidade razoável extranormativa (ou seja não prefixada legalmente), obtida mediante um processo indutivo-dedutivo que se encontra a verdadeira substância do novo método; “de tal modo se alcançará a prova aquelas circunstâncias que de outro modo não são verificáveis (pelo juiz) e é nesta actividade que se substancia a essência lógica da sua função” (tradução nossa).
Por regras de experiência, ou “massima de esperienza”, entende-se uma regra de comportamento que exprime aquilo que acontece na maior parte dos caos (id quod plerumque accidit); mais precisamente, trata-se de uma regra que é extraída de casos similares. [Cfr. Paolo Tonini, in La Prova penale, CEDAM, Padova,2000, p. 35. Reportando uma decisão do Tribunal de Cassação italiano, nota este autor que a diferença entre máximas de experiência e mera conjectura “reside no facto que no primeiro caso o dado já aconteceu (è già stato), ou vem de qualquer maneira submetido a verificação empírica e portanto a máxima pode ser formulada sob a escolta do id plerumque accidit, enquanto no segundo caso tal verificação não está estabelecida, nem pode estar, e fica afiançada a um mero cálculo de possibilidades, de modo que a máxima permanece insusceptível de verificação empírica e portanto de demonstração” (tradução nossa). A jurisprudência afirma a necessidade de que a máxima de experiência seja uma regra de comportamento humano e não uma “consideração de ordem sócio-cultural”, na medida em que os indícios inseridos numa série causal, constituem anéis de cadeia de relações naturais constantemente uniformes do comportamento humano que segundo o id plerumque accidit conduzem a um resultado segundo a lei da psicologia pelo qual, em linha com a máxima, dada (acontecida) uma acção pode-se formular um juízo provável sobre outros que o precederam e que se lhe seguirão.] Do mesmo modo para Stein F., in “El Convencimento Privado del Juez, citado por Carlos Climent Durán, em “La prueba penal”, (a quem este autor atribui o desenvolvimento do conceito “máximas de experiência”), as máximas de experiência ”são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo geral, desligados dos factos concretos que se julgam no processo, procedentes da experiência, mas independentes dos caos particulares de cuja observação se induziram e que, por cima (para além) desses casos, pretendem ter uma validade para outros novos”.
As provas que se produzem em audiência de julgamento assumem, para além da inspecção ao local, o formato de provas testemunhais e documentais. A valoração da prova engolfa duas etapas básicas: “a primeira trata de depurar a eficácia probatória de cada meio de prova, até chegar ao convencimento de que um determinado facto é certo, ou não, em vista do que resulta de cada meio probatório; e a segunda centra-se na valoração probatória propriamente dita, comparando cada um dos factos reputados certos com os factos afirmados pelas partes. [Carlos Climent Durán, in “La Prueba Penal”, Tomo I, 2ª edición, Tirant lo Blanch,p.85] Na depuração dos instrumentos probatórios (controle de legalidade e silogismos probatórios) trata-se, afinal de comprovar a credibilidade das provas aportadas pelas partes, e este juízo de credibilidade aparece integrado em vários silogismos probatórios, o primeiro dos quais está referido à fiabilidade ou confiança que gera cada um dos meios probatórios, estando referido o segundo á determinação da significação que deve outorgar-se aos factos expostos ao julgador por cada um de esses meios de prova e referindo-se o terceiro á verosimilhança ou crença de que são verdadeiros ou falsos os factos aportados ao processo. [Vide op. loc. cit. P. 86.]
Da inabarcável jurisprudência dos nossos tribunais superiores penso que se pode extrair uma síntese extractando a síntese seguinte: o juiz está vinculado ao séquito probatório que lhe é aportado pelos sujeitos processuais, sem prejuízo do dever de indagar, pela produção de meios de prova não carreados pelos intervenientes processuais, pela verdade histórico-material [Vide, para mais desenvolvimentos Winfried Hassemer, Fundamentos del Derecho Penal, Bosch, p. 147 e segs. (Producción y Presentación del caso) e Paolo Tonini, op.loc. cit., p.29.] - cfr. art. 340º do CPP –; essa vinculação impele uma necessidade de razoamento lógico-dedutivo e indutivo que, baseado nas regras ou máximas da experiência comum, permita a compreensão das razões empírico-racionais que conduziram ao resultado probatório adquirido; e o juiz está adstrito a explicitar, na decisão, as razões e os meios de prova em que se fundou para se alcandorar à posição de liquidez probatória que firmou a sua convicção. [Acerca da motivação das decisões judiciais, por todos, vide Chaïm Prelman, in Lógica Jurídica, Edições Martins Fontes, S. Paulo, p. 210. Por lidimar, transcreve-se a doutrina expressa no Ac. do STJ de 7.1.2004, Proc. nº 3213/03-3ª secção : “A livre apreciação da prova não significa apreciação segundo as impressões, nem inexistência de pressupostos valorativos, ou a desconsideração do valor de critérios, ainda objectivos ou objectiváveis, determinados pela experiência comum das coisas e da vida, e pelas inferências lógicas do homem comum suposto na ordem jurídica. Antes pressupõe a concorrência de critérios objectivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação da convicção, que emerge da intervenção de tais critérios objectivos e racionais; apenas a fundamentação racional e lógica, que possa fazer compreender a intervenção e o sentido das regras de experiência, permite formar uma convicção motivada e apreensível, afastando as conclusões que sejam susceptíveis de se revelar como arbitrárias, ou em formulação semântica marcada, meramente impressionistas”.]
Por seu turno o princípio in dubio pro reo “acha-se intimamente ligado ao da princípio da livre apreciação da prova do qual constitui faceta e este último apenas comporta as excepções integradas no princípio da prova legal ou tarifada ou as que derivem de uma apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova produzida e ofensiva das regras da experiência comum”. [Cfr Ac. do STJ, de 15.6.2000, proferido no processo nº 92/2000, 5ª secção. No mesmo sentido o Ac. do STJ, de 28.4.2004, proferido no processo nº 1116/04-3ª secção, onde se escreveu que”o princípio do in dubio pro reo constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova inscrito no art. 127ºdo CPP, impondo orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos, e que nessa medida, de imposição de sentido (pro reo), limita a liberdade de apreciação do juiz”. ]
A convicção com que o recorrente ficou dos depoimentos prestados em audiência, foi que as testemunhas apresentadas pela acusação não são credíveis, fiáveis e susceptíveis de gerar um substrato conviccional sólido.
A maior parte das testemunhas comportam-se, em princípio, com sinceridade, honestidade e arrimo à verdade, em conformidade com os seus princípios e valores. “La valoración de un aserto testimonial en juício se efectúa en três etapas posibles:1º) la aserción misma, aceptada provisionalmente como verdadera; 2º) las circunstancias que, aparte la realidad del hecho, explican la aserción, como parcialidad o la dificuldad de percepción y, por tanto, disminuyen transitoriamente su valor; 3º) las circunstancias que corroboran la aserción y le devuelven así todo o parte de su valor”. [Frainçois Gorphe, in “Apreciación judicial de las Pruebas”, Editorial Temis, S.A., Bogotá,2004, p. 289.] Um diverso comportamento torna-se notório pela saliência das contradições, pela astenia dos depoimentos e pela falta de verosimilhança com a realidade e com o cenário em que a prova tem que incidir.
Ainda a este propósito, convirá ter presente o ensinamento de Massimo Nobili, in “Il principio del Libero Convincimento del Giudice”, Giuffrè Editore,P.306 e segs., quando se refere à valoração judicial que se pode obter do testemunho de uma só testemunha.
Temos para nós que o depoimento das testemunhas e de outros sujeitos processuais há-de ser valorado com arrimo a este feixe de regras e padronizações e não por apelo a “coinvolgimenti esterni” que não intervêm, em nosso juízo, neste campo do agir e proceder judiciário. É por apelo às máximas da experiência, da logicidade e coerência intrínseca dos depoimentos dos sujeitos processuais, quando conexionados com a realidade que se pretende provar, que se há-de aferir a credibilidade e idoneidade dos depoimentos, e não, como proposto, por referência a critérios jurídico –normativos contidos em incriminações.
O tribunal a quo valorou de uma forma global, sem deixar de indicar os pontos que, do seu ponto de vista, eram pertinentes para a formação do juízo de culpabilidade e materialidade antijurídica em que se espraiava a actuação delitiva do arguido.
Em nosso juízo, não forma violados os preceitos indicados pelo recorrente.
II.B.4. – Vício referenciado na alínea c) do nº2 do art.410º Cód. Proc. Penal – Erro na apreciação da prova e falta (Inexistência) de fundamentação.
No enquadramento jurídico-processual que é feito dos vícios do artigo 410º, nº2 do CPP, estes assumem-se como erros de julgamento a relevar da contextualização interna da decisão, ou da própria estrutura da decisão, congraçada com as regras ou máximas da experiência comum, entendidas estas como o regular, normal e adquirido vivenciar do homem, histórico – socialmente situado. [É avonde a jurisprudência do nosso mais alto tribunal (Supremo Tribunal de Justiça) quanto a esta matéria – vícios da decisão, por erro notório na apreciação da prova, insuficiência da matéria de facto para a decisão e contradição insanável entre a fundamentação e a decisão. Por todos: Acórdãos do STJ de 1.10.1997; 22.10.1997;27.11.1997; 4.12.1997; 14.6.1998;20.1.1998;28.10.1998; 2.12.1999;14.3.2002; e 3.7.2002; proferidos nos processos nºs28/97; 612/97; 1127/96; 1018/97; 725/98; 690/97; 1098/98; 1046/98; 3261/01; 1748/02. Respigando (e somente quanto ao invocado vício que foi alegado pela recorrente) daqueles que nos parecem mais significativos (sem desprimor para os demais, como é óbvio), escreveu-se no Ac.de 27.11.1997 que:”A contradição insanável da fundamentação dá-se quando, analisando a matéria de facto dada como provada e não provada, se chega a conclusões contraditórias, irredutíveis, que não podem ser ultrapassadas recorrendo-se ao contexto da decisão no seu todo e com recurso às regras de experiência comum”; ou no Ac. de 4.12.1997: “só pode falar-se no vício da contradição insanável da fundamentação quando determinado facto provado seja logicamente contraditório com outro dado factual que serviu de base à decisão final, ou quando, segundo um raciocínio lógico, é de concluir que a fundamentação justifica precisamente a decisão contrária ou que a decisão não fica suficientemente esclarecida por haver colisão entre os fundamentos”; ou, finalmente o Ac. de 2.12.1999: “A contradição insanável da fundamentação, vicio previsto no art. 410º, nº 2, al. b) do CPP, verifica-se quando se dá como provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, ou quando simultaneamente se dão como provados factos contraditórios ou quando a contradição se estabelece entre a fundamentação probatória da matéria de facto, sendo ainda de considerar a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão. II – O apontado vício tem de resultar do próprio texto da decisão recorrido, por si ou conjugada com as regras de experiência comum”; ou ainda, por fim, o Ac.de 3.7.2002,”I.- (…) . II – O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, previsto na al. b) do nº2 do art. 410º do CPP, verifica-se quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal”.]
Consubstanciando-se o erro num desvio interpretativo de uma dada situação de facto que se apresenta à leitura lógico – racional do individuo, aqui consideradas as envolventes sociais, históricas, pessoais, económicas e/ou outras, a decisão que labore em erro notório há-de expressar esse desvio interpretativo, como evidente e detectável a uma análise perfunctória, de feição intuitivo – racional, do caso em que ele se manifesta ou patenteia. O erro notório torna-se, assim, numa calamidade interpretativa à luz dos princípios da razão histórica e do padrão cognoscente prevalente e socialmente instituído, i. é, das máximas da experiência comum.
Já a insuficiência da matéria de facto para a decisão se reconduz a uma ausência de materialidade substancial, isto é, uma omissão factual contextualizada que inviabiliza e impede que o tribunal possa validamente operar uma adequada e correcta subsunção à previsão ilícito – material contida no preceito incriminatório da facticidade adquirida para o teor decisório. O tribunal podia e devia ter apurado factos que lhe permitissem obter uma factualidade consistente donde fosse possível extrair um veredicto de direito ajustado ao caso.
Por seu turno, a contradição entre a fundamentação ou entre esta e a decisão, tanto pode ocorrer entre a fundamentação de facto, em si, como entre esta e a fundamentação de direito ou entre esta mesma fundamentação, ou, ainda, entre todas, e cada uma, destas posições antinómicas e a decisão a que se chegou.
Do que se trata, no caso do último dos apontados vícios, é de detectar uma antinomia endógena á estrutura da decisão que torne conflituantes a argumentação de facto ou de direito explanada na parte fundamentadora da decisão com o veredicto que o tribunal assumiu no dispositivo decisório. No silogismo que é mister constituir-se entre as partes fundamentadora da sentença e o dispositivo, a contradição do operar lógico evidencia uma refracção no plano lógico-dedutivo que desconecta o sentido racional do julgado. As premissas enunciativas deixam de exercer o seu papel denotador da decisão para figurarem como desvirtuadoras do processo de formação lógico-racional conclusivo.
Para o recorrente o tribunal terá errado na fundamentação, pois os depoimentos prestados pelos elementos dos órgãos de polícia criminal não são suficientemente alentadoras de uma motivação judicial destinada a firmar um juízo de culpabilidade.
Sem desprimor para o recorrente, surpreende-se alguma imprecisão expositiva quando parece querer que na motivação se incluam factos concretos justificadores de uma actividade não permitida, maxime a prostituição – cfr. fls. 1421, 6º parágrafo. E parece prosseguir, pois pretende que o tribunal faça indicação pormenorizada de todo e cada um dos factos que já deixou indicados na parte do acórdão a tal efeito destinado, fundamentação de facto da decisão.
No dizer de Chaïm Perelman, Lógica Jurídica, Martins Fontes, S.Paulo, p. 238, “as decisões de justiça devem satisfazer três auditórios diferentes, de um lado as partes em litigio, a seguir, os profissionais do foro e, por fim, a opinião pública, que se manifestará pela imprensa e pelas reacções legislativas ás decisões dos tribunais”. Ainda para este autor “motivar uma decisão é expressar-lhe as razões. É, deste modo, obrigar quem a toma a tê-las. É afastar toda a arbitrariedade”. [Vide op. loc. cit. p. 210.]
“O dever de fundamentação cumpre, no essencial, a ideia de que o tribunal “administra a Justiça”, tal qual ela se deve precipitar, concretamente, num certo juízo jurisdicional. O que significa que, no concreto juízo jurisdicional, deve estar suficientemente demonstrado que a decisão final tomou em devida consideração todos os argumentos (de facto e de direito) aduzidos pelas “partes” na audiência de julgamento (o que, no nosso processo penal, significa uma decisão fundamentada quanto ao que “resta” de um conflito penal. Assim, este dever de demonstração implica (agora para o processo penal), a possibilidade de reconhecimento de que o concreto juízo jurisdicional corresponde a uma decisão sobre todas as questões cuja apreciação foi solicitada ao tribunal, por parte os sujeitos processuais”, [Neste sentido José Manuel Damião da Cunha, in O Caso Julgado Parcial – Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num processo de Estrutura Acusatória, Publicações Universidade Católica, Porto, 2002, p. 564.] “o dever de fundamentação cumpre, no caso de decisão condenatória, não só uma função de garantia perante o arguido (a de que este é condenado, por um juízo que demonstre, através de uma fundamentação, que foram tomados em consideração todos os contributos – as suas declarações e os meios de prova que apresentou), mas representa também a garantia “institucional” de uma condenação que não deixa margem para quaisquer dúvidas, por tal forma que a concreta decisão se afirme como “aceitável” nas suas premissas de facto e de direito”.
Na sequência do que entende por dever de fundamentação e dever de motivação, este autor escreve, mais adiante que “o dever de motivação cessa necessariamente onde esteja em causa o princípio da livre apreciação da prova – ou, talvez melhor de livre apreciação das provas. Este aspecto merece alguma atenção, pois que, o dever de motivação levado a extremos, pode implicar a reconsideração do princípio de livre apreciação das provas. Se, de facto, ao tribunal compete necessariamente dar conta das provas decisivas para a decisão (o que, por si, é já um limite à tradicional consideração do princípio da livre apreciação), exigir-se uma motivação profunda que conduza a uma espécie de discurso justificativo sobre toda as operações mentais que levaram o tribunal a dar um “facto” como provado, para além de deparar com dificuldades inerentes à composição dos tribunais colegiais e à sua forma de deliberação, poderia transformar o tribunal de recurso – quando o recurso fosse pensado a partir de uma efectiva “motivação” – num “substitutivo” do sistema de provas legais (por tal forma que o tribunal de recurso fizesse, ele próprio, uma valoração da prova, acabando, ao invés de censurar a decisão, por proceder a um juízo, mas com inversão das regras de audiência de julgamento) ou, então, numa espécie de juízo por parâmetros. Aquilo que o tribunal de recurso pode essencialmente censurar, é a violação de todo o conjunto de princípios que estão subtraídos à livre apreciação das provas (que limitam o arbítrio na sua apreciação), exactamente: as re [Vide op.loc. cit., p.566]. gras de experiência comum, o princípio in dubio pro reo, o princípio da presunção de inocência e, em especial, aquele que está directamente ligado à afirmação de uma culpabilidade pelo facto, isenta de qualquer referência a características pessoais do arguido”.
Será, pois, nestes precisos limites que o dever de fundamentação se deverá expressar e não já, como parece querer exigir o recorrente, entrar na intima ou interior convicção do julgador, seja ela medida ou aferida por esquemas mentais explorados por Habermas ou Florescu, [Para mais desenvolvimentos sobre esta temática, vide Robert Alexy, in Teoria da Argumentação Jurídica – A Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica, Landy Editora, 2001, p. 100; e Hermenegildo Borges, in Vida, Razão e Justiça, Racionalidade argumentativa na Motivação Judiciária, Minerva Editora, Coimbra, 2005, p.177. “(…) a convicção que suporta uma decisão dificilmente assume um grau de certeza, isto é, o grau superior de convicção e que, existindo, exclui qualquer possibilidade de erro, uma vez que perante ela se atinge o grau mais rigoroso da motivação lógico-material”.]
seja mesmo pela exigência de escandir e pontualizar todos os momentos psicológicos que intervieram na formação da convicção. O processo de formação da convicção não é um processo passível de ser esboicelado e atomizado, antes se constitui como um proceder entretecido e entramado de pontos axiais, que congraçados com alguns outros de menor densidade real/material, se concitam numa núcleo mental inconcusso e arrimado a uma realidade histórica que nos é dado avaliar, apreciar e valorar.
Se analisarmos a fundamentação da decisão e a motivação somos levados a concluir que o tribunal conjugou diversos elementos de prova, depoimentos das testemunhas que serviram no bar, diligências de reconhecimento levadas a cabo por elementos dos órgãos de polícia criminal, acções de fiscalização, acções de vigilância, inserção directa dos elementos dos órgãos de polícia criminal no “ambiente de trabalho” desenvolvido no bar, observação directa do proceder das mulheres que praticavam relações sexuais, com abordagens directas destas aos agentes, e todo um conjunto de envolvências funcionais que sedimentaram a ideia e concavaram a convicção de que no bar se exercia uma actividade de prostituição. Não se descortinam, nem o recorrente os aponta, limitando-se a enunciá-los, saltos inverosímeis ou desconchavados, mas antes um evidenciar de uma viatória que desemboca num crisol de ideias devidamente maturadas e conectadas.
O tribunal fundamentou com suficiência a decisão, tornando-a, pelo menos ao nosso entender, acessível e perceptível, convencendo-nos também a nós que no bar “Penélope” ocorria uma actividade que se prendia e exercitava na prática de relações sexuais a troco de dinheiro, ou mediante remuneração pelo serviço prestado.
II.B.5. – Inconstitucionalidade do art.170º,nº1 do Código Penal.
Para o recorrente o art. 170º, nº1 do Código Penal padece de inconstitucionalidade, por violação dos arts. 1º, 2º, 18º,nº2, 27º,nº1 e 41º,nº1 todos da Constituição da República Portuguesa. “Como toda a criminalização pressupõe a restrição do direito á liberdade (consagrado no art. 27º,nº1 da CRP), temos que a norma correspondente ao nº1 do artigo em apreço, ao incriminar aquela especifica conduta, sem que se verifique a lesão de qualquer bem jurídico digno de tutela (seja porque, no caso em apreço, seja porque a violação de sentimentos morais, não configura lesão de um autêntico bem jurídico) está ferida de inconstitucionalidade por violação do direito á liberdade (art.27º,nº1 da CRP) e direito à liberdade de consciência (art.41º,nº1 da CRP9, violando de forma idêntica o estabelecido no nº2 do art. 18º da CRP” – cfr. fls. 1430.
Repontando as asserções em que fundeia para desaguar no juízo de inconstitucionalidade, o Exmo. Senhor Procurador junto do tribunal a quo, incoa por caracterizar o tipo de crime sobre que versa o juízo de inconstitucionalidade, o lenocínio, para, em seguida, anotar que a Constituição não contém normas preceptivas incriminadoras mas sim normas de alcance conformador, jurídico-material, que deixam de lado a regulamentação especifica do ordenamento ordinário e normativo-sancionador. “A incriminação desta conduta é matéria de politica criminal, que ao abrigo do princípio da dignidade humana, levou o legislador penal a descriminalizar o rufianismo, mas já não o proxenetismo, ou seja a exploração profissional, ou com intenção lucrativa, de fomento, favorecimento ou facilitação do exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo”.
As generalidades esgrimidas como verdades axiomáticas não são passíveis de ser transportadas para o plano da axiologia pragmática que vem informando as novas tendências do direito penal. Assim, não constituirão, de tão massacradas, novidades potenciadoras de exaltação intelectual as asserções quanto ao papel do direito penal na sociedade, sendo que o recorrente talvez peque por não encontrar outros ancoradouros teoréticos onde possa fundear a sua estreme visão de defesa dos bens jurídicos. Para nós “en realidad solo hay bienes jurídicos si (y en la medida en que) están desempeñando una “función”, es decir, en la medida en que están en la vida social surtiendo efectos e recibiéndolos. La vida, la salud, la libertad, la propriedad, etc., no están “ahi”, sino que su esencia reside en desempeñar una finción, es decir, en la conexión social de ejercer efectos e recibirlos”. [Para mais desenvolvimentos cfr. Günther Jackobs, Derecho Penal, Parte general, Fundamentos y Teoria de la Imputación, Marcial Pons, Madrid, 1997, p.56]
Ainda assim, entendemos que o crime de lenocínio tal como a lei penal o configura se justifica axiológico-normativamente, dado que a função ético-social que desempenha não atina com a liberdade sexual ou o poder de dispor do corpo, no sentido em que essa disponibilidade não ofende os valores que moralmente estão estabelecidos na mundividência das sociedades ocidentais. Mas já assim não será, queremos crer, quando se tem do crime uma perspectiva, ou uma caracterização, ético-jurídico-normativa em que a função social que se pretende salvaguardar é não a liberdade sexual mas o proveito e a exploração, quiçá, forçada, ou pelo menos economicamente dependente, do corpo e da liberdade de poder opcionar de um ser humano.
Sem querermos entrar em áreas tangentes com a moralidade (somos sequazes de teorias filosóficas mais humanas, na esteira de Paolo Flores d’ Arcais, El Individuo Libertário, Seix Barral, los Três Mundos, Ensayo, 2001) não podemos deixar de considerar que a exploração de um qualquer ser humano por outro (assuma essa exploração uma feição material, psicológica, económica, física ou “qualsìasi”), é condenável e comporta uma danosidade social ominosa e ignóbil que o direito penal deve sancionar. A exploração, locupletamento, aproveitamento ou renda económico – pessoal, seja qual seja a forma que assuma e possa revestir é, ontologicamente contrária à dignidade humana e derruidora do sentido ético-humano do indivíduo.
Na análise que fazemos do fenómeno da exploração da prostituição, a que não deixamos de associar o tráfico de seres humanos, as falsificações de documentos, a imigração ilegal, o branqueamento de capitais, a corrupção, a evasão fiscal e outro tipo de criminalidade, como a coacção física e intelectual, sobre os sujeitos passivos e sobre os seus familiares, a extorsão, etc., não se pode deixar, pensamos, de reverberar uma danosidade social e, sobretudo, um aviltamento da dignidade do indivíduo, enquanto ser historicamente valido para uma vida despojada de outras inflicções, para além daquelas que decorrem dos constrangimentos económicos vigentes. [Veja-se a propósito a preocupação do Comissário Europeu de Justiça e Assuntos Internos Franco Frattini quanto á possibilidade de exploração da prostituição que as redes de tráfico de mulheres procurarão fazer durante o campeonato mundial da Alemanha – “Fútbol e Tráfico de Mujeres , “El País”, 12 de Março 2006.]

O direito penal, seja ele de que cariz e matriz for, não pode deixar de considerar como um valor ou bem jurídico a proteger e a tutelar, a dignidade da pessoa humana, e o correlato dever de não ver apropriado o resultado de um trabalho que, a maior parte das vezes, é desenvolvido em condições não livres ou pelo menos com total liberdade de exercício. O direito penal, a ordem jurídica no seu conjunto, consideram, sócio-historicamente, que a exploração do trabalho de alguém que se prostitui é passível de ser ético-penalmente censurável e reprovável e, como tal, penalmente sancionável.
A Constituição enfatiza o valor da dignidade da pessoa humana, deixando para o direito penal geral, o sancionamento das condutas que o legislador ordinário reputa como ofensivas desse valor ou bem jurídico.
Não deixando de conceder que o tema é controverso, quando se fala em constituição de sindicatos para as trabalhadoras do sexo e se têm presentes as situações vivenciais para este tipo de realidade nas sociedades nórdicas, em que o criminalmente responsável é aquele que procura a relação sexual remunerada (caso da Suécia), pensamos que a apropriação do produto do trabalho por alguém cujo único vinculo que possui para com a explorada é a ascendência económica, pessoal ou física, não pode deixar de ser objecto de criminalização.
Em nosso juízo, o crime de lenocínio, não viola os preceitos constitucionais, e enquanto se mantiver o ambiente histórico - social vigente, nomeadamente a carga criminógena que lhe está associada deverá, em nosso juízo, continuar a ser um ilícito tipificado na lei penal.
II.B.6.- Individualização Judicial da Pena.
A questão da individualização judicial da pena, ainda que não se confunda com o conceito de “determinação legal da pena”, atina com problemas da dogmática jurídico-penal como sejam o fundamento, legitimação, limitação, função e fins das penas. Ainda que com divertidas matizes e, sem curarmos de sermos exaustivos quanto às teorias, que desde o século passado se vêm debruçando sobre esta problemática, desde as teorias retributivas, radicadas na filosofia kantiana, de Hegel ou a retribuição divina que vão desde S. Tomas a Sthal, passando pelas teorias da prevenção especial, de Fuerbach, até às mais actuais, e actuantes, teorias da prevenção geral, nas suas vertentes negativa e positiva, e nesta, ainda nos diversos modelos em que se vem enformando esta corrente da dogmática jurídico-penal, que têm como epígonos Hellmuth Mayer com a denominada “força configuradora dos costumes”, Claus Roxin com a denominada “prevenção da integração” até chegar ao entendimento sociológico – jurídico – normativo de Gunther Jakobs, para só falar dos mais significativos, poder-se-ia definir a pena “como uma privação ou restrição de bens jurídicos, prevista na lei, e imposta pelos órgãos jurisdicionais competentes ao autor do facto delitivo” [Cfr. Eduardo Demétrio Crespo, “Prevención General e Individualização judicial da Pena”, Ediciones Universidade Salamanca, p.54]. Também Gunther Jakobs refere que, apesar das diferenças que é possível surpreender nos distintos entendimentos quanto a esta problemática, notas comuns são passíveis de ser colimadas num conceito unitário de pena, conferindo a esta “uma função de reacção ante uma infracção de uma norma; que mediante a reacção sempre “se pone de manifesto” que há-de observar-se a norma; e que a reacção demonstrativa sempre tem lugar á custa do responsável por haver infringido a norma (por “a costa de” se entiende en este contexto la pérdida de cualqier bien)” [Cfr. Gunther Jakobs, Derecho Penal, Parte General, Fundamentos y Teoria de la Imputación, 2ª edición, Marcial Pons, Barcelona, pag. 8] (tradução nossa).
Consignada a pena nos preditos moldes, e arredada, por não interessar ao caso em apreço, a figura da “determinação legal da pena, ainda que para a operação de individualização judicial da pena não nos possamos alhear deste conceito, por constituir o limite que o legislador consignou como sendo aquele que protege de forma prevalente e eficaz, e num dado momento histórico, um determinado bem jurídico”, procuraremos indagar quais os critérios e justificações que deverão guiar e lastrar a determinação da medida concreta de uma pena, o que vale por dizer quais serão ou deverão ser os princípios rectores em que poderá ancorar-se uma adequada valoração da conduta de um agente infractora norma protectora de bens jurídicos. [Antes de atinarmos com sistema de determinação concreta da pena estatuído no ordenamento jurídico-penal português, e porque o nosso legislador não prima pela originalidade, antes se limita a ser um prosélito de afectividades cediças, procuraremos conferir as teorias mais marcantes que se têm debruçado sobre a problemática da determinação concreta da pena, de forma geral. Para o efeito, lançaremos mão da monografia que nos tem vindo a servir de guião, qual seja a “Prevención General e Individualización Judicial de la Pena”, bem como dos ensinamentos recolhidos na obra já citada supra de Gunther Jakobs, de Winfried Hassemer, in “Fundamentos del Derecho Penal”, de Claus Roxin, in “Culpabilidad y Prevención en Derecho Penal” e Anabela Miranda Rodrigues, in “A Determinação da Pena Privativa de Liberdade”]
Para Claus Roxin, op. loc.cit., pag. 185, concluindo as suas reflexões politico-criminais sobre o princípio da culpabilidade afirma que: 1º - a problemática da relação entre culpabilidade não se pode abordar depurando a culpabilidade de todos os elementos dos fins das penas, para poder contrapor os conceitos em antítese limpa. Antes bem, a culpabilidade, em tanto possa ser constatada na praxis forense, torna-se determinada no seu conteúdo por critérios preventivos; 2º - Nem tão pouco se pode incluir na culpabilidade, como se tentou recentemente invertendo as posições anteriores, todos os pontos de vista preventivos o só os preventivos gerais, fazendo desaparecer com isso o carácter antinómico de culpabilidade e prevenção; 3º - Para melhor se há-de reconhecer que conceito jurídico-penal de culpabilidade contém certamente em si alguns aspectos preventivos, mas precisamente não outros, pelo que se produzem, por isso, recíprocas limitações do poder punitivo que ocupam lugares distintos segundo se trata da fundamentação ou da determinação da pena; 4º - pelo que se refere à culpabilidade como fundamento da pena, em numerosos casos devem acrescentar-se requisitos preventivos, para desencadear uma responsabilidade jurídico-penal. Com isso, o castigo do comportamento culpável – contra o que constituía a opinião tradicional – será limitado precisamente pela necessidade preventiva, o que do ponto de vistas dogmático jurídico-penal produzirá consequências transcendentais, ainda somente vislumbradas (…); 5º - No que se refere á culpabilidade a determinação da pena, por outro lado aparece em primeiro plano o efeito limitador da culpabilidade sem prejuízo da sua congruência com as necessidades de uma prevenção integradora motivada criminalmente; já que na sua graduação limita em virtude da liberdade individual, qualquer tipo de prevenção geral intimidatória e qualquer tipo de prevenção especial dirigida a tratamento. Não obstante, também os prementes mandatos da prevenção especial limitam, ao inverso, o grau da pena, no entanto, contra o que sucede na praxis, pode-se impor no caso concreto uma pena inferior à correspondente ao limite que vem previamente dado pela magnitude da culpabilidade, quando só deste modo se possa evitar o perigo de uma maior dessocialização.
Já para Winfried Hassemer, in op. loc. cit.,pag.127, “a decisão de determinar a pena são relevantes, entre outros, os seguintes elementos da realidade: a culpabilidade do sujeito; os efeitos da pena que são esperáveis que se produzam na sua vida futura em sociedade; seus motivos e fins, a consciência que o facto revela da vida anterior; as suas relações sociais e económicas e o se comportamento posterior ao delito”, do mesmo passo que para Jakobs o conteúdo tradicional da culpabilidade, constitui-se numa culpabilidade fundada em si mesma, sendo preenchido pela prevenção geral, Para este autor, “a transgressão da norma constitui em maior ou menor medida uma perturbação da confiança da generalidade na validade da norma. Por isso a segurança existencial necessária no tráfico social deve restabelecer-se mediante a estabilização da norma à custa do autor. A culpabilidade esvazia-se aqui de conteúdo, o qual dependerá de factores externos”. [cfr. Eduardo Crespo, op. loc.cit., pag. 121.] “A um autor que actua de determinado modo e que conhece, ou pelo menos devia conhecer, os elementos do seu comportamento, exige-se-lhe (se le imputa) que considere ao seu comportamento como a conformação normativa. Esta imputação tem lugar através da responsabilidade pela própria motivação: si o autor se tivesse motivado predominantemente pelos elementos relevantes para evitar um comportamento, ter-se-ia comportado de outro modo; assim, pois, o comportamento executado patenteia (pone de manifesto) que o autor nesse momento não lhe importava de forma prevalente evitar o comportamento mantido. [Cfr. Gunther Jakobs, in loc.cit. supra, pag. 13.]
No ordenamento jurídico-penal português, e com as alterações introduzidas pela revisão do Código Penal em 1995, ficou consagrada uma concepção preventivo – ética da pena, quando se estatuí que “as finalidades da pena (e da medida de segurança) são exclusivamente preventivas, desempenhando a culpa somente o papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite da pena”. [Cfr. Américo Taipa de Carvalho, “Prevenção, Culpa e Pena – Um concepção preventivo-ética do direito penal”, in Liber Discipulorum, Coimbra Editora, pag.317 e segs.]
Para este Professor, que parece defender uma posição próxima daquela que é defendida por Eduardo Demétrio Crespo, na obra já citada, isto é, que as penas devem visar, em primeira linha a prevenção especial (positiva e negativa), devendo a prevenção geral constituir-se como limite mínimo da justificação e fundamento para a imposição de uma pena ou medida de segurança e a culpa como limite máximo atendendo ao critério da prevenção especial, “o objectivo da pena, enquanto meio de protecção dos bens jurídicos, é a prevenção especial, positiva e negativa (isto é, de recuperação social e/ou de dissuasão). Este é o critério orientador, quer do legislador quer do tribunal”. [Américo Taipa de Carvalho, op. loc. cit.,pag. 327] Para este Professor “a determinação da medida da pena e a escolha da espécie de pena, quando legalmente permitida, reger-se-á pelo objectivo e critério da prevenção especial: recuperação social do infractor (prevenção especial positiva), desde que tal objectivo não seja incompatível com a necessidade mínima de dissuasão individual. Ou seja: o “fim” é a reintegração social do infractor, fim este que tem, como limite mínimo, a eventual necessidade de dissuasão do infractor da prática de futuros crimes”. No entanto, adverte o autor, que temos vindo a citar,” que este critério da prevenção especial não é absoluto, mas antes duplamente condicionado e limitado: pela culpa e pela prevenção geral”. “Condicionado pela culpa, no sentido de que nunca o limite máximo da pena pode ser superior à “medida” da culpa, por maiores que sejam as exigências preventivo – especiais” e “condicionado pela prevenção geral, no sentido de que nunca o limite mínimo da pena (ou a escolha de uma pena detentiva) pode ser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores jurídico-penais violados e a correspondente paz jurídico-social, bem como para produzir nos potenciais infractores uma dissuasão mínima”.
O tribunal a quo justificou a escolha da pena de multa, com os seguintes argumentos (sic):”
“Nos termos do artº. 71º C Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na Lei, é feita em função da culpa do agente, tendo em conta as exigências de prevenção.
O Código Penal atribui à pena um conteúdo de reprovação ética, dando tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime, ligada ao princípio da eminente dignidade da pessoa humana, limita deforma inultrapassável a medida da pena, sem deixar de atender aos fins da prevenção geral e especial.
Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, art. 40º C Penal.
A culpa jurídico-penal traduz-se num juízo de censura, que funciona ao mesmo tempo, como um fundamento e limite inultrapassável da medida da pena, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – das consequências jurídicas do crime, 215.
Com a determinação de que sejam tomadas em consideração as exigências de prevenção geral, procura dar-se satisfação à necessidade da comunidade, de punição do caso concreto, tendo-se em conta, de igual modo, a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos e com o recurso à vertente da prevenção especial, procura satisfazer-se as exigências de socialização do agente com vista à sua integração na comunidade.
As expectativas da comunidade saem goradas, a confiança na validade das normas jurídicas esvai-se, o elemento dissuasor não passa de uma miragem, quando a medida concreta da pena não possui o vigor adequado à protecção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, respeitando o limite da culpa.
Se uma pena de medida superior à culpa é injusta, uma pena insuficiente para satisfazer os fins da prevenção constitui um desperdício, no expressivo dizer do Ac. STJ de 1.4.98, in CJ, S, II, 175.
Dando concretização aos vectores enunciados, o nº. 2 do artº. 71º C Penal, enumera, exemplificativamente, uma série de circunstâncias atendíveis para a graduação e determinação concreta da pena, que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente.
No caso sub judice, o grau de ilicitude é mediano, para situações do género e o modo de execução dos factos é o semelhante em situações similares, tendo presente que os factos do lenocínio, em apreciação se desenrolaram, pelo menos, desde Maio de 2003 a Janeiro de 2004, com uma detenção e apresentação de todos os arguidos, para 1º interrogatório judicial, em Novembro de 2003, de que resultou terem continuado em liberdade, o número de mulheres, que ali trabalhavam e se prostituíam, o que indicia, a apurada e inerente dimensão do negócio.
O dolo é directo, de normal intensidade e não mitigado por qualquer circunstancialismo.
Os arguidos não têm antecedentes criminais, o José e o António de todo e os outros com relevo para a matéria aqui em apreciação.
Tendo, ainda presente, a intervenção pessoal de cada um dos arguidos, a sua posição funcional e concreta no desenvolvimento da actividade, um, o dono da unidade empresarial, a gerir, outros a colaborarem, cada um na sua especificidade funcional, ela, atrás do balcão a receber o dinheiro, o preço das relações de sexo, eles, como segurança e como responsável pelo som, mas sempre, todos, a controlarem as mulheres e os clientes,
julgamos, assim, adequadas as penas parcelares de:
2 anos e 6 meses de prisão, em relação ao arguido José;
10 meses de prisão, em relação à arguida A.. e,
8 meses de prisão, em relação aos arguidos António e B....
Não obstante o quantum de todas estas penas, o permitir, cremos que nada, seguramente nada, se provou, que permita concluir que se justifique a suspensão da execução da pena aplicada ao arguido José Almeida, já que nada se apurou, nada foi trazido aos autos e ao conhecimento do Tribunal, em termos de personalidade e modo de vida, que permita, fundada e seriamente, emitir um juízo de prognose favorável, quanto ao seu comportamento futuro, em termos de que a simples censura destes factos e a ameaça da execução da pena, seja suficiente, para satisfazer de forma adequada e cabal os fins das penas, quer de reprovação, quer de prevenção de novos delitos, como exige o artº. 50º C Penal revisto, pelo que se não suspenderá, por falta manifesta, patente e ostensiva de fundamento fáctico que o justifique.
Já quanto às penas aplicadas aos restantes arguidos, trabalhadores do arguido, empresário e gerente, em torno de quem girava o negócio, fechado, que está, o estabelecimento, cremos que em relação a eles, se poderá, aqui, já, concluir por que a simples censura dos factos e a ameaça das penas seja suficiente para os afastar do meio e do crime e assim, atingir a finalidade de prevenção especial das penas, sendo que a prevenção geral, no que a eles se reporta, assume diminuta repercussão, dada a posição que tinham na cadeia organizativa do negócio e será, ainda de molde a atingir, mesmo assim, a finalidade de reprovação”.
A justificação encontrada pelo tribunal a quo para a pena injungida ao arguida parece-nos não merecer censura. O arguido fazia da actividade por que veio a ser condenado o seu principal veio de rendimentos, e disso retirava pingues réditos, tantos e tais que, não lhe sendo conhecida outro modo de angariar proventos, já lhe tinham possibilitado adquirir casa veículos e dotar as contas bancárias de avolumadas somas. A censura social que em meios de cariz rural se exerce sobre este tipo de actividades é intensa, e o dever de repor a confiança nas normas violadas prefigura-se como devendo encimar as preocupações na escolha e individualização judicial da mesma. Impõem-se que o arguido reconsidere o desvalor da conduta que tem servido a sua vivência e que reconstitua a sua mundividência, de forma a conformá-la com os valores prevalentes na sociedade em que se incorpora.
Ainda assim, cremos que a curta duração da pena aconselhará a sua substituição por uma pena suspensa, por um largo período e com sujeição a obrigações estritas. A entrega do passaporte, o pagamento de uma quantia para uma instituição de auxilio e protecção social, a impossibilidade de durante o período da suspensão não se aproximar, adquirir, gerir, administrar ou por qualquer forma explorar estabelecimentos conexos com aqueles em que desenvolvia a sua conduta ilícita, poderão constituir freios aos impulsos anti-sociais do arguido e poderão, porventura, trazer maiores benefícios pessoais e de ressocialização do que o cumprimento de uma pena curta de prisão.
Porque entendemos que as penas curtas de prisão, no sistema penitenciário português, se configuram de maior danosidade pessoal e cívica, do que uma pena suspensa, opcionaremos por uma pena desta natureza em detrimento daqueloutra, sem que tal opção envolva critica à pena encontrada pelo tribunal a quo.
II.B.7. – Perda dos Produtos do Crime a favor do Estado.
A decisão sob impugnação decidiu que deveria ser declarada perdida a favor do Estado o imóvel aprendido nos presentes autos; “ao abrigo do disposto nos artigos 109º/1 e 111º/1 e 2 do C Penal,( declarar perdido a favor do Estado) o imóvel onde funcionava o estabelecimento, onde era cometido o crime de lenocínio, apreendido e selado, por resultar como vantagem patrimonial, para o arguido José Almeida, derivada dos proventos resultantes da prática do crime de lenocínio”.
Deste decretado perdimento diverge o arguido, por considerar que a perda de objectos reveste a natureza de medida preventiva e de reacção penal, substanciando uma penalização decorrente de uma qualquer actividade criminosa.
A perda do imóvel que havia sido apreendido foi decretada, pelo tribunal, ao amparo do disposto no art.109º do Cód. Penal, que impõe a declaração de perda, a favor do Estado, dos objectos que tenham servido ou estejam destinados a servir para a prática de um facto ilícito, quando “pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”.
Para o regime geral, estabelecido no Código Penal, ensina o Professor Figueiredo Dias “quando o processo penal corra contra pessoa determinada, a melhor doutrina parece ser a de considerar que o pressuposto da perda não é necessariamente a prática de um crime, mas a simples verificação de um facto ilícito-típico. (…) Torna-se necessária a verificação de todos os elementos de que depende a existência de um crime, com a ressalva dos requisitos relativos à culpa do agente”. [Neste sentido Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal Português II, As Consequências Jurídicas do Crime, Noticias Editorial, pag.619] No mesmo sentido parece ir o ensinamento de Hans-Heinrich Jescheck quando enumera os pressupostos da confiscação dos objectos e produtos resultantes de uma actividade ilícita e refere que “o autor ou o partícipe deve, para além disso (además), ter conseguido com o delito ou como consequência do delito um proveito patrimonial”. [Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, vol.II, pag.1099 e segs.]
Sendo a “confiscação”, na terminologia espanhola, uma medida de carácter reparador relativamente aos benefícios obtidos indevidamente, por virtude de uma actividade ilícita, parece-nos de meridiano entendimento que, o decretamento de perda, só possa ser declarado quando ocorra uma concreta conduta antijurídica e ilícita a ser imputada a um facto ilícito por que alguém tenha sido juridico-penalmente responsabilizado e condenado. [Quanto à natureza jurídica da perda de bens e produtos a favor do Estado, ou a chamada confiscação, como é classificada na terminologia espanhola, cfr. Hans-Heinrich Jescheck, op. loc.cit., p.1009.]
Isto mesmo parece ser o que se depreende do ensinamento de Figueiredo Dias quando na obra citada escreve:”tratando-se de facto imputável, não basta a prática de um ilícito-típico – mesmo no sentido amplo em que supra 735, vimos dever ser entendida a expressão como pressuposto de aplicação de uma medida de segurança de internamento -, antes se torna necessária a sua condenação pela prática de um crime…” [Op.loc.cit. pag.506.], pois para esses requisitos nos remete no capítulo em que trata dos requisitos a que têm que obedecer a perda de objectos e produtos de uma actividade ilícita.
O arguido foi condenados pela prática de um facto ilícito típico, tendo sido acusado de desenvolver uma actividade reputada de ilícita, mediante um comportamento desviado relativamente ao proceder e a um agir ético – socialmente alinhado e arrimado aos valores e regras vertidas nos comandos jurídico-penais.
O tribunal deixou provado que: “o arguido C... é dono do imóvel onde se encontrava instalado o estabelecimento comercial "Penélope", desde o mês de Janeiro de 2002, encontrando-se aquele inscrito na 1ª Repartição de Finanças da Covilhã, na matriz predial urbana da freguesia de Boidobra, deste concelho e comarca, sob o artigo n.º 851.
Tal imóvel encontra-se apreendido e foi selado”.
Preceitua o art. 109º do Código Penal que “são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito, ou que por este tiverem sido produzidos, quando pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”.
O que determinou a decisão de perdimento do imóvel foi o facto, apontado na douta decisão, de ter estado a servir para a prática do facto ilícito por que o arguido foi condenado.
Estes foram os pressupostos ou os vectores que o tribunal impulsionou para proferir declaração de perda de um objecto a favor do Estado – destinação ou afectação de um bem ou objecto a um fim ou prática ilícitos e, no caso concreto, condenação do arguido pela prática de um facto ilícito - sendo que o outro deverá ser que, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, os bens ou objectos possam pôr em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas.
As categorias, sócio-institucionais e/ou sócio-pessoais, de que a lei faz depender a declaração de perdimento de bens ou objectos a favor do Estado, segurança das pessoas, moral e ordem pública, são susceptíveis de suscitar alguma perplexidade. È que se segurança interna e ordem pública são conceitos referenciados na lei e que adquiriram um sentido e um valor normativo denotativo –cfr. Lei 20/87, de 12 de Junho – Lei de Segurança Interna – já a moral é jargão que interpela todos e que cada um soe interpretar de acordo com o paradigma sócio-ideológico que julga melhor convir ao prosseguimento da sua conduta societária. Embora se pretenda que é uma categoria valorativa que possui uma referenciação social imanente a um sentir comum prevalentemente aceite, o facto é que não nos parece poder servir de referência prescritiva e ordenadora de comportamentos vinculativos donde se possam extrair consequências sancionatórias.
Ainda assim a lei aponta-a como uma referência à natureza dos bens ou objectos para que possam ser declarados pedidos a favor do Estado.
Estando, como se provou estar, o imóvel afecto a uma actividade ilícita e como tal antijurídica é defluente desse quadro desvalorativo e anti-social que o imóvel afecta a ordem pública. A operação lógica a que se procede é quase tautológica mas não deixa de se constituir como infranqueável. Se num determinado imóvel se praticam actos que a lei qualifica como ilícitos e antijurídicos, então a ordem pública fica afectada pela desviada utilização que foi e era dada ao imóvel apreendido.
Os pressupostos ínsitos no preceito que escorou a perda do imóvel, encontram-se, a nosso ver, preenchidos, pelo que a decisão procedeu adequadamente.
II.B.8. – Reapreciação da Matéria de Facto.
O recorrente impugna a matéria de facto, indicando cada um dos factos que, em seu juízo, deveria ter sido como provado, não provado e provado somente.
Para cada um dos factos que reputa ter ficado provado, não provado ou provado tão só, o recorrente indica o conjunto de elementos probatórios que, em seu juízo, se deveriam levar em linha de conta para nos alcandorarmos á verdade material e histórica que o julgamento procurou reconstituir, através da produção da prova testemunhal, das diligências investigatórias dos órgãos de polícia criminal, vigilâncias, observações directas do modo de proceder e da configuração dos espaços onde a actividade considerada ilícita era desenvolvida.
Não vamos repetir o que já dissemos quanto ao princípio da livre apreciação das provas e à formação da convicção do julgador, sendo que não será demais realçar que não pode alicerçar uma impugnação da matéria de facto a divergência quanto á apreciação que cada um dos sujeitos processuais faz da prova. A prova produzida em audiência de julgamento não pode ser refractada e segmentada, antes tem de ser combinada e colimada de acordo com o acervo probatório global.
Os factos que o recorrente refere não terem ficado provados, por não terem sido referidos por quem quer, encontram-se descritos em diligências dos elementos das forças de segurança e como tal deveriam, como foram, ser tomadas em consideração pelo tribunal na parte fundamentadora da decisão. Os demais factos resultam da conjugação dos depoimentos das testemunhas que actuavam no espaço explorado pelo arguido e dos depoimentos dos elementos dos órgãos de polícia criminal, que aí realizaram operações de fiscalização, fizeram buscas, frequentaram o estabelecimento e foram abordados pelas testemunhas. Todos os factos relatados põe estas testemunhas resultam da observação directa e pessoal e são a sequenciação de actos de investigação que podem e devem ser relatados em tribunal, pois constituem apreensões perceptivas directas com vista à obtenção de elementos de prova que substanciem a materialidade típica de um ilícito que se conjectura estar a ser praticado por um determinado agente. A reunião ou recolha de prova feita por agentes dos órgãos de polícia criminal, quando directamente percepcionada e apreendida deve ser apreciada e valorada com as demais provas produzidas e segundo os princípios rectores que regem para a apreciação das provas.
Revisitada a prova que foi colectada, e sem preocupação de individualização, damos, de acordo com a possibilidade que a um tribunal que está privado de imediação e de oralidade é capaz de reanalisar os elementos plasmados nos documentos que lhe são presentes, o nosso aval ao material probatório que foi seleccionado pelo tribunal a quo, sendo que, como também já acima ficou dito não descortinamos erros ou vícios que possam invalidar o julgamento efectuado pelo tribunal.
Não sofre, destarte, acolhimento a impugnação impulsionada pelo recorrente, no concernente à fundamentação da decisão quanto á matéria de facto.


III. Decisão.
Na defluência do que se deixou expresso, decidem os juízes que constituem este colectivo, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em:
A – Julgar improcedente o recurso interlocutório interposto do despacho que declarou a nulidade de diversos actos processuais, e ipso facto, declarar válida a acusação;
B – Julgar indemne de inconstitucionalidade o artigo 170º, nº1 do Código Penal;
C – Julgar parcialmente procedente o recurso principal, e como autor material de um crime de lenocínio p. p. pelo art. 170,nº1 do Cód. Penal, condenar o arguido C... na pena de dois (2) anos e seis (6) meses de prisão, que se suspende pelo período de cinco anos, com as seguintes obrigações:
1- Entregar, no prazo de dois (2) anos, a quantia de €5.000,00 a uma instituição de protecção social que o tribunal a quo indicará, por referência ao contexto social e institucional regional;
2- Proceder, no prazo de 15 (quinze) dias á entrega na Delegação do SEF de Castelo Branco do passaporte;
3- Inibir-se, durante o período que durar a suspensão da pena de adquirir, explorar, gerir ou administrar estabelecimento de divertimento onde seja possível empregar mulheres que se dediquem ao entretenimento e acompanhamento dos frequentadores/clientes;
4- Inibir-se, durante o período de suspensão da pena de frequentar estabelecimentos com as características dos referidos no item antecedentes (de divertimento onde se encontrem mulheres que se dediquem ao entretenimento e acompanhamento de clientes.
D- No mais manter a decisão recorrida, nomeadamente quanto á declaração da perda do imóvel apreendido à ordem destes autos.
E – Condenar o arguido nas custas do processo, fixando a taxa em vinte (20) UCs.


Coimbra, 15 de Março de 2006