Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
28/14.3GBSRT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: PERDA A FAVOR DO ESTADO
ARMA
LICENÇA DE USO E PORTE DE ARMA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Data do Acordão: 03/18/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 109.º DO CP
Sumário: I - A titularidade de licença de uso e porte de arma não tem a virtualidade de, pela simples razão de existir, afastar a declaração de perdimento a favor do Estado do objecto atinente.

II - Para o efeito referido, relevante é a perigosidade, reportada ao objecto em causa e às concretas circunstâncias do caso.

III - Revelando-se a prática de um crime de violência doméstica, por referência, inter alia, aos seguintes factos: (i) o arguido consome bebidas alcoólicas e, quando o faz, fica mais agressivo e violento; (ii) pese embora tal situação tenha piorado nos últimos anos, desde o início do casamento que o arguido começou a ter um comportamento agressivo para com a ofendida, molestando-a fisicamente, discutindo frequentemente com a mesma, controlando o que ela fazia, ameaçando-a e injuriando-a; (iii) nesta sequência, e por um número indeterminado de vezes, em circunstâncias de tempo e lugar não concretamente apuradas, o arguido molestou fisicamente a ofendida, desferindo-lhe murros e pontapés, puxando-lhe os cabelos e constrangendo-lhe a zona do pescoço com as mãos, ameaçou-a de morte, dizendo-lhe que tinha duas armas e que lhe dava um tiro (…).”, existe sério risco de o arguido utilizar as armas apreendidas para o cometimento de novos factos ilícitos típicos de idêntica natureza e, consequentemente, é adequada a declaração de perda desses objectos.

Decisão Texto Integral:
No âmbito dos Autos de Inquérito registados sob o n.º 28/14.3GBSRT, da Comarca de Castelo Branco - Ministério Público, Sertã – Procuradoria da Instância Local, na sequência de promoção elaborada em 27/5/2014, o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, em 23/6/2014, proferiu o seguinte Despacho:

“O arguido não foi condenado neste processo pelos ilícitos em causa.

O arguido tem licença de uso e porte de arma (fls. 74).

Assim, não existe fundamento suficiente nem proporcional para ordenar a perda das armas a favor do estado, tanto mais que pode obter licença para outras armas, a tal nada o proibindo – artigos 109.º CP e 186.º CPP.

Pelo exposto, indefere-se o promovido quanto às armas, devendo as mesmas ser restituídas ao seu legítimo proprietário e devendo este ser notificado nos termos do artigo 186.º do CPP.

Notifique em conformidade.

Devolva.”

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            Inconformado com tal despacho, dele recorreu, em 18/7/2014, o Ministério Público, pedindo a sua revogação e substituição por outro que declare perdidas a favor do estado as armas apreendidas ao arguido melhor identificadas a fls. 76 e seguintes., extraindo da motivação as seguintes conclusões:

1) Por se verificarem todos os pressupostos legalmente exigíveis, devem ser declaradas perdidas a favor do estado as armas apreendidas ao arguido.

            2) Consequentemente deve ser revogado o despacho recorrido e ser substituído por outro que vá ao encontro ao promovido de fls. 114.

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            O recurso, em 27/10/2014, foi admitido.

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            O arguido, em 17/11/2014, respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência e argumentando, em resumo, o seguinte:

1) O Ministério Público interpôs recurso do despacho que ordenou a restituição das armas ao seu proprietário nos termos do artigo 186.º CPP.

            2) O Recurso apresentado pelo Ministério Público não deve proceder e aquele Despacho não merece censura porquanto não se verificam os pressupostos necessários à declaração das armas perdidas a favor do Estado nos termos do artigo 109.ºCP.

            3) Pois não se destinavam as mesmas armas à prática de facto ilícito típico, não serviram para a prática de acto ilícito típico, nem se produziu qualquer acto criminoso com recurso a elas, de cujas licenças o recorrido é titular e portador.

            4) Os factos indiciados em sede de inquérito em nada reflectem a efectiva utilização das armas em causa, em eventos passados ou visionando a mesma em eventos futuros.

            5) Ao mesmo arguido/recorrido foi aplicado o regime da suspensão provisória do processo, por verificação dos pressupostos necessários (artigo 218º/6 CPP), determinando-se ao mesmo a aplicação de injunções e regras de conduta, a sugestão do Recorrente/MP com concordância do Tribunal a quo que decidiu nesse sentido.

            6) O arguido não tem antecedentes criminais, encontrando-se socialmente integrado, a sua actuação indiciada nos autos demonstra, se comprovada fosse por condenação, grau de culpa não elevado como entendeu o MP na promoção.

            7) Jamais poderia o tribunal a quo, salvo respeito por opinião diversa, como é pretensão do ora Recorrente, apreciar os indícios em causa pelo sentido de que o recorrido poderia utilizar as armas em novos factos ilícitos, não estando verificados os requisitos acima referidos do artigo 109.º CP.

            8) Até porque das injunções impostas ao recorrido resultam as proibições de contacto com a ofendida e de não a maltratar física ou psicologicamente, estando este consciente das obrigações daí decorrentes.

            9) Sendo, efectivamente, legítima e legal a restituição das mesmas ao proprietário nos termos do artigo 186.º CPP.

            10) Pelo que bem andou o douto Tribunal a quo, fundamentando a decisão proferida/recorrida, não se afigurando procedentes os argumentos que o recorrente apresenta.

            11) Devendo assim manter-se o Despacho recorrido e negando-se provimento ao Recurso interposto pelo Ministério Público.

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            O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 21/1/2015, emitiu douto parecer no qual defendeu a procedência do recurso.

            Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não foi exercido o direito de resposta.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, realizou-se a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.

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II) Apreciação do Recurso:

O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P.                                                                                       Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. –  Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).         

São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

A questão a conhecer é a seguinte:

- Saber se há motivo para declarar perdidas a favor do Estado as armas apreendidas nos autos.

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O artigo 109.º, do Código Penal, consagra o seguinte:

“1 – São declarados perdidos a favor do estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizadas para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.

2 – O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto.

Se a lei não fixar destino especial aos objectos perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio.”

Tendo esta norma presente, vejamos, pois, se assiste razão ao recorrente, tendo em consideração que o despacho recorrido tem por base dois pressupostos: a) o arguido não foi condenado neste processo pelos ilícitos em causa; b) o arguido tem licença de uso e porte de arma.

No que tange ao primeiro fundamento, importa reter que, findo o inquérito, e com ele o processo, por decisão de arquivamento, impõe-se dar destino aos objectos apreendidos, nos termos previstos no artigo 268.º, n.º 1, al. e), do CPP, sendo que uma das situações aí previstas diz respeito à suspensão provisória do processo, o que significa que a perda de bens deve ser determinada, mesmo que o agente não seja condenado nem possa sê-lo, podendo ter lugar, portanto, na sequência de despacho de arquivamento, ainda que acompanhado de injunções e regras de conduta (como no caso presente).

Tal serve para deixar claro, sem necessidade de grandes considerações, que é possível ser decidida a perda de bens a favor do Estado, ainda que não haja uma sentença condenatória.

O instituto da perda de objectos, actualmente, não constitui uma pena acessória e não tem, por isso, qualquer relação com o princípio da culpa, sendo, em exclusivo, determinado por necessidades de prevenção relacionadas com o risco sério de uma nova utilização de certos bens na prática de novos crimes.

Assentemos, portanto, que o primeiro pressuposto em que assenta o despacho não pode servir para indeferir a promoção do recorrente – ver, neste sentido, o nosso anterior Acórdão, do TRC, de 5/6/13, Processo n.º 275/12.2GCPBL.C1, e, ainda, o Acórdão, também do TRC, de 22/572013, Processo n.º 2032/10.1PBAVR.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Vasques Osório.

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No que diz respeito ao segundo fundamento, salvo o devido respeito por orientação contrária (ver Acórdão do TRG, de 6/2/2012, Processo n.º 20/08.7JABRG. G1, relatado pelo Exmo. Desembagador Filipe Melo), entendemos que a titularidade de licença de uso e porte de arma não tem a virtualidade de, pela simples razão de existir, afastar a declaração de perdimento.

Tal significaria que, no limite, alguém que tivesse tal licença pudesse, a coberto disso, manter, ao longo dos tempos, um comportamento censurável do ponto de vista penal, ainda que apenas sob a forma de ameaças, e sem punição, pelas mais diferentes razões (por exemplo, desistência de queixa, arquivamento dos autos).

A licença de uso e porte de arma seria, na prática, um verdadeiro salvo-conduto de um comportamento anti-social.

Dir-se-á que, não obstante a declaração de perdimento, outra arma poderá ser adquirida pelo interessado, enquanto titular de uma licença de uso e porte de arma.

Sem dúvida que sim.

No entanto, sempre tal declaração terá um certo efeito dissuasor e funcionará em termos de prevenção especial.

Aquilo que é relevante é a perigosidade, reportada ao objecto apreendido e às concretas circunstâncias do caso.

Ora, acontece que, nos autos que merecem agora a nossa atenção, está em causa a prática de um crime de violência doméstica, estando indiciado, além do mais, o seguinte:

“3) O arguido consome bebidas alcoólicas e, quando o faz, fica mais agressivo e violento.

4) Pese embora tal situação tenha piorado nos últimos anos, desde o início do casamento que o arguido começou a ter um comportamento agressivo para com a ofendida, molestando-a fisicamente, discutindo frequentemente com a mesma, controlando o que ela fazia, ameaçando-a e injuriando-a.

5) Nesta sequência, e por um número indeterminado de vezes, em circunstâncias de tempo e lugar não concretamente apuradas, o arguido molestou fisicamente a ofendida, desferindo-lhe murros e pontapés, puxando-lhe os cabelos e constrangendo-lhe a zona do pescoço com as mãos, ameaçou-a de morte, dizendo-lhe que tinha duas armas e que lhe dava um tiro, dizia-lhe que a colocava fora de casa e que ela não tinha nada, (…).”

Pois bem, face ao que se encontra por nós sublinhado de entre os indícios, existe sério risco de o arguido utilizar as armas apreendidas para cometer novos factos ilícitos típicos.

Para concluir, não se descortina qualquer desproporcionalidade no despacho recorrido, tendo em consideração aos bens jurídicos que estão em jogo, a partir do momento em que estamos na presença de um crime de violência doméstica.

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III) DECISÃO:

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, devendo, em consequência, o despacho recorrido ser substituído por outro que determine a perda das armas apreendidas a favor do Estado.

Sem custas.

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(Texto processado e integralmente revisto pelo relator)

Coimbra, 18 de Março de 2015,

(José Eduardo Martins - relator)

(Maria José Nogueira - adjunta)