Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3607/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: FUNDAÇÕES
NECESSIDADE DO SEU RECONHECIMENTO OFICIAL PARA LOGRAREM TER PERSONALIDADE JURÍDICA
Data do Acordão: 02/01/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CELORICO DA BEIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS. 157º, 158º, Nº 2, E 185º, Nº 1, DO C. CIV. .
Sumário: I – As fundações adquirem personalidade jurídica pelo reconhecimento, o qual é individual e da competência da autoridade administrativa ( modalidade de reconhecimento individual ou por concessão ) .
II – Sendo o reconhecimento um dos elementos constitutivos da pessoa colectiva de que depende a atribuição da personalidade jurídica, não estando a autora ( na acção ) ainda reconhecida pela autoridade competente, não dispõe ela de personalidade jurídica nem de personalidade judiciária .
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
I - RELATÓRIO
I.1- A «A...» intentou contra B... a presente acção sob a forma ordinária, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 27.000 € acrescida de juros de mora desde a citação.
Para tanto, e em resumo, alega ter celebrado em Janeiro de 2001 com a ré um contrato de arrendamento tendo por objecto duas salas do edifício sede da A., mediante o pagamento da quantia mensal de 100.000$00; que em Maio de 2002 a ré abandonou as instalações sem nunca ter pago as rendas acordadas.
Citada, contestou a ré sustentando, para além do mais, que o invocado contrato é nulo por A. não ter junto contrato de arrendamento escrito, e que a mesma não detinha licença camarária de utilização válida para dar de arrendamento a sala do prédio. Por impugnação alega que o presidente da A. «Fundação» nunca mandou proceder ao pagamento das rendas, e que mesma a existir contrato válido ele teria cessado a 13.5.02, data em que a ré ficou impedida de usar a sala.
Na resposta, a A. juntou contrato de arrendamento escrito e alegou que a falta de licença camarária apenas é necessária para os contratos destinados a habitação e que a ré ocupava duas salas.
Findos os articulados, considerando-se existirem nos autos elementos suficientes, conheceu-se do mérito da causa no saneador, declarando-se nulo o invocado contrato de arrendamento, condenando-se a ré a pagar à autora a quantia de 12.284,91 € a título de uso do arrendado.
I.2- Inconformada, apelou a ré que concluiu assim as suas alegações de recurso:
1ª- A apelada não tem nem nunca teve personalidade e capacidade judiciárias, facto de que a apelante só teve conhecimento depois da prolação da sentença recorrida;
2ª- Não tendo existência jurídica por falta de registo na Conservatória do Registo Comercial e reconhecimento por parte do Ministério da Administração Interna como isso obriga o art.158º/2, C.C.;
3ª- Não tendo existência jurídica não pode ser parte nestes autos, sendo nulos todos os actos e contratos celebrados pela apelada, nomeadamente o intitulado contrato de arrendamento em causa;
4ª Decretada a nulidade do contrato como se fez na sentença, jamais poderá a apelante ser condenada no pagamento do valor das rendas, porquanto os efeitos de tal nulidade retroagem à data da celebração do mesmo.
I.3- Contra-alegou a autora pugnando pela validade do contrato, sustentando que na verdade não foi ainda reconhecida pela entidade competente, mas que nos termos do art.6º do C.P.C. tem personalidade judiciária.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTOS
II.1 - de facto
A decisão recorrida assentou na seguinte factualidade não posta em causa:
1. Em 1 de Janeiro de 2001, foi celebrado entre a autora e a ré o contrato intitulado de arrendamento e junto a fls. 35/36 constando do mesmo, nomeadamente:
Primeiro Outorgante: A... (...) na qualidade de senhorio, representada pelo seu Presidente, Dr. C... (...) segundo outorgante: B... (...) representada pelo Senhor Presidente do Conselho de Administração, Dr. D... (...) na qualidade de arrendatário, entre si estabelecem o presente contrato de arrendamento para a Sede Provisória da Empresa Municipal que tem por objectivo, uma sala de um prédio urbano, de que o primeiro outorgante é legítimo dono e possuidor (...).
Primeira - O prazo de duração do arrendamento é anual com início em 1 de Janeiro de 2001 e com termo em 31 de Dezembro de 2001 prorrogado por sucessivos períodos iguais, e nas mesmas condições, caso não seja denunciado por qualquer das partes, nos termos da lei, obrigando-se o inquilino a avisar o senhorio com antecedência de trinta dias quando pretender fazer cessar o arrendamento.
Segunda – A renda mensal é de 150.000$00 a pagar ao senhorio no primeiro dia do mês anterior a que respeitar. (...)
Sete – em tudo o que o presente contrato for omisso, regerá o DL 321-b/90, de 15/10.”
2.Resulta de fls. 21, conforme documento intitulado de declaração, emitida pela Câmara Municipal de Celorico da Beira que “(...) o edifício da A..., sito no largo da Corredoura em Celorico da Beira, com o n.º matricial 610 da Freguesia de S. Pedro, não está, nem esteve licenciado no período de 1997 a 2003, para ser dado de arrendamento no todo ou em parte (...)”;
3.Resulta do documento junto a fls. 22, intitulado de “informação” que “(...) após pesquisas aos Alvarás de Licenças de Construção e Utilização emitidos entre o ano de 1997 e de 2003, não foi emitido nenhum alvará em nome da A....”;
4.A ré não procedeu, desde o início do contrato citado em 1., ao pagamento de qualquer quantia à ré a título de rendas;
5.Em 13 de Maio de 2002 a ré deixou de utilizar o arrendado.
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II.2 - de direito
Questão prévia:
Com alegações e as contra-alegações, apelante e apelada juntaram documentos. A 1ª primeira suscitou a falta de um pressuposto processual por parte da A./apelada, qual seja a da ausência de personalidade judiciária, sustentando que só depois da prolação da sentença, mais concretamente em 14.6.04, teve conhecimento que a apelada nunca teve existência jurídica.
Para tanto, juntou certidão da escritura da constituição da «A...» e documento complementar anexo contendo os respectivos estatutos. Ainda uma certidão emanada da Conservatória do Registo Comercial de Celorico da Beira, certificando que não fora localizada a matrícula de “A...», e cópia de uma informação dada em 8.9.04 pela secretaria-geral do Ministério da Administração Interna, a pedido do presidente da Câmara Municipal de Celorico da Beira, de que não fora concedida à «Fundação» o pedido de reconhecimento.
A apelada não impugnou estes documentos, dizendo corresponder à verdade o que deles consta. No entanto, defendendo possuir personalidade judiciária nos termos do art.6º/C.P.C., juntou para tanto cópia de um ofício que dirigiu ao Ministro da Segurança Social e do Trabalho e aí recebido a 30.4.04, a solicitar o seu registo como Instituição Particular de Solidariedade Social; ainda cópia de «cartão provisório de identificação de pessoa colectiva e entidade equiparada» emitido em seu nome em 22.4.04.
Há excepção da escritura de constituição da «Fundação», os documentos referidos e juntos pela apelante foram produzidos após a prolação da decisão recorrida (27.5.04). Portanto, a apresentação dos mesmos não poderia ter ocorrido na fase de instrução, sendo que a junção daqueles primeiramente referidos se justifica para cabal compreensão da questão suscitada.
Como é sabido, a falta de personalidade judiciária constitui uma excepção dilatória de conhecimento oficioso, nada obstando, porém, a que o tribunal, por sua iniciativa ou “alertado” por qualquer das partes, dela venha a conhecer posteriormente, nomeadamente após o despacho saneador.
Os documentos apresentados pela apelante mostram-se pertinentes para a decisão do recurso, o mesmo sucedendo quanto àqueles que foram juntos pela apelada na sequência da posição assumida pela apelante no recurso.
Assim, e nos termos dos arts.706º/1 e 524º/1, C.P.C., a apresentação dos documentos é legalmente admissível e isenta da multa cominada no art.523º/2 do mesmo diploma.
Admite-se, por conseguinte, a sua junção.

Vejamos, então, se a A./apelada tem ou não personalidade judiciária.
Com interesse para a decisão, resulta dos documentos juntos pelas partes: por escritura celebrada em 6.10.99, foi constituída a fundação denominada «A...». Dispõe o art.1º dos estatutos que a regem, que a «Fundação» é uma pessoa colectiva de direito privado e tipo fundacional, sem fins lucrativos e de utilidade pública geral. Em 14.6.04 não se encontrava matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Celorico da Beira; em 8.9.04 ainda não lhe tinha sido concedido o reconhecimento pelo «M.A.I.» formulado em 28.6.00; a «Fundação» requereu a 30.4.04 o seu registo como «I.P.S.S.». É titular de «cartão provisório de identificação de pessoa colectiva e entidade equiparada» emitido a 22.4.04 para ser usado até 23.10.04.
A personalidade judiciária é um pressuposto processual positivo concernente ás partes de cuja verificação, tal como os demais pressupostos, depende o dever de o juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a providência requerida. A sua falta não impedirá o juiz apenas de proferir sentença sobre o mérito da acção, mas também de entrar na apreciação e discussão da matéria que interesse à decisão de fundo. Cfr. A. Varela e outros, «Manual de Processo Civil», 2ª ed., pág.104
Diz-se no art.5º/C.P.C. que a personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte. Consiste assim, na possibilidade de requerer ou contra si ser requerida, em próprio nome, qualquer das providências de tutela jurisdicional reconhecidas na lei.
No nº2 do citado art.5º estabelece-se que «quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária». É o chamado princípio da equiparação ou da correspondência. Assim, em princípio, a personalidade judiciária corresponde à personalidade jurídica.
Como excepção àquele princípio da equiparação os arts.6º e 7º do C.P.C. concedem também personalidade judiciária a quem não goza de personalidade jurídica.
Situando-nos agora no plano do direito substantivo, importa saber se efectivamente a A. é ou não pessoa jurídica e como tal reconhecida pelo ordenamento jurídico.
A pessoa colectiva é, na definição dada pelo Prof. João de Castro Mendes, a organização constituída por uma colectividade de pessoas ou por bens patrimoniais, destinada à prossecução de fins ou interesses, normalmente colectivos ou sociais, a que a ordem jurídica atribui a susceptibilidade de ser titular de direitos e obrigações. «Direito Civil (teoria geral)», I Vol., pág.254
À categoria das pessoas colectivas pertencem as fundações (art.157º/C.C.), as quais têm um substrato (conjunto de elementos da realidade extrajurídica, elevado à qualidade de sujeito jurídico pelo reconhecimento) integrado por um conjunto de bens adstrito pelo fundador (pessoa singular ou colectiva) a um escopo ou interesse de natureza social. Cfr. Prof. Mota Pinto, «Teoria Geral do Direito Civil», 2ª ed., pág.266
Mas só haverá pessoa colectiva quando a um substrato dotado de organização a ordem jurídica atribui personalidade jurídica, susceptibilidade de direitos e obrigações.
Dispõe o nº2 do art.158º/C.C. que “As fundações adquirem personalidade jurídica pelo reconhecimento, o qual é individual e da competência da autoridade administrativa”.
É a chamada modalidade de “reconhecimento individual ou por concessão”, isto é, traduzido num acto individual e discricionário de uma autoridade pública que, perante cada caso concreto, personificará ou não o substrato.
O reconhecimento individual resulta, pois, de um acto da autoridade dirigido a certa entidade em concreto, e que atribui a esta entidade personalidade jurídica.
Conforme decorre do disposto no art.188º/C.C., deve ser negado o reconhecimento das fundações no caso de o fim da fundação não ser considerado de interesse social, bem como no caso de insuficiência do património afectado à fundação.
Verificado o reconhecimento, surge uma nova pessoa jurídica: a pessoa colectiva.
São várias as razões justificativas da atribuição da personalidade jurídica ás pessoas colectivas pelo reconhecimento – normativo/condicionado ou por concessão: o Estado pretende disciplinar a constituição e as características das pessoas colectivas; há vantagem para todos os interessados que não surjam pessoas colectivas desprovidas de possibilidades de sobrevivência; o reconhecimento importará publicidade da existência da pessoa colectiva, dadas as formalidades que comporta, e esse facto é favorável aos interesses dos terceiros e à segurança e facilidade do comércio jurídico. Cfr. Prof. Mota Pinto, ob. cit., pág.278
De harmonia com o disposto no art.185º/1,C.C. “As fundações podem ser instituídas por acto entre vivos ou por testamento, valendo como aceitação dos bens a elas destinados, num caso ou noutro, o reconhecimento respectivo”. Reconhecimento que pode ser requerido pelo instituidor (nº2), devendo a instituição de fundações por acto entre vivos e estatutos constar de escritura pública (nº3 e art.168º/1), e remetidos ao jornal oficial um extracto para publicação (nº2 e 3 do art.168º).
Na situação concreta, tudo leva a crer que a A. se encontre legalmente constituída (arts.168º e 185º): instituiu-se por acto entre vivos através de escritura pública donde constam os estatutos, publicados no «D.R.» III série de 5.11.99 (doc.fls.141).
Falta-lhe, porém, o reconhecimento (por concessão – art.158º/2), para passar de mera entidade de facto a centro autónomo de relações jurídicas.
Na verdade, embora tenha pedido o reconhecimento da «Fundação» à autoridade administrativa competente (M.A.I.), certo é que ainda não o obteve.
O que significa que, sendo o reconhecimento um dos elementos constitutivos da pessoa colectiva de que depende a atribuição da personalidade jurídica, não estando a A. ainda reconhecida pela autoridade competente, não dispõe de personalidade jurídica.
Da mesma forma que o pedido de alteração para o fim específico de solidariedade social e a concessão de cartão provisório de identificação de pessoa colectiva e entidade equiparada, entretanto caducado, não lhe atribuem a qualidade de pessoa jurídica.
Ora, conforme atrás se referiu, a personalidade jurídica determina imediatamente a personalidade judiciária, sendo que em certos casos é a própria lei quem confere esta última qualidade a quem não é pessoa jurídica (arts.6º e 7º/C.P.C.).
No caso concreto as hipóteses de extensão da personalidade judiciária não são aplicáveis à A. como a mesma defende, nomeadamente pelo art.6º/b).
Podemos então concluir que a A. carece de personalidade judiciária, pressuposto processual que consiste, como se disse, na susceptibilidade de ser parte (art.5º/C.P.C.).
O que determina, como é próprio da falta de qualquer pressuposto processual, que o juiz deva abster-se de conhecer do pedido e absolva o R. da instância [art.288º/1-c), 493º, 494º e 495º, C.P.C.].
É sabido que o saneador só constitui caso julgado formal quanto ás questões aí concretamente apreciadas (art.510º/3,C.P.C.). No despacho saneador proferido nos autos os pressupostos processuais foram apreciados “tabelarmente” por não se ter suscitado qualquer dúvida.
De modo que, como antes se salientou, nada impede o seu conhecimento neste momento.
Com este fundamento procede o recurso, indo a ré absolvida da instância por falta de personalidade judiciária da A..
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III - DECISÃO
Acorda-se, pelo exposto, em julgar procedente a apelação, e, revogando-se o saneador/sentença apelado, absolve-se a ré da instância.
Custas pela apelada.
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COIMBRA,