Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2316/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: REFORMA DA SENTENÇA: QUANDO TEM LUGAR E POR QUEM DEVE SER LEVADA A CABO
Data do Acordão: 10/07/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: IDANHA A NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: REC. APELAÇÃO
Área Temática: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Legislação Nacional: ART. S 669º E 670º DO C.P.C.
Sumário:
I- Para que tenha lugar a reforma da sentença nos termos do art. 669°, n° 2, al. b ), do C.P.C., é necessário que o juiz, por lapso manifesto, não tenha tomado em consideração documentos ou outros elementos que constem do processo e que, só por si, impliquem decisão diversa da proferida.
II- Tal lapso tem, no entanto, de ser reconhecido pelo próprio juiz que proferiu a sentença e a reforma desta tem de ser levada a cabo por esse mesmo juiz, conforme se extrai do disposto nos art. s 669° e 670° do aludido Código.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

José ... mulher, Ilda ..., intentaram, em 26/04/2000, pelo Tribunal da comarca de Idanha-a-Nova, acção com processo sumário, contra João ... e mulher, Hermínia ..., alegando, em síntese, o seguinte:
Os autores são donos e legítimos possuidores do prédio misto no sítio da Ribeirinha, freguesia de Penha Garcia, composto de solo subjacente de cultura arvense olivícola, pinhal, oliveiras, habitação e dependência.
Os réus são proprietários de um prédio rústico, situado no mesmo local, que confina a sul com o prédio dos autores.
O prédio dos réus é atravessado por um caminho público que até às proximidades da linha divisória a norte, tem as dimensões necessárias ao trânsito quer de peões, quer de carros de tracção animal, quer ainda de tractores, transformando-se, porém, a partir desse ponto, próximo da linha divisória, numa vereda, só permitindo a passagem de peões.
Por outro lado, presume-se que, devido ao acidentado do terreno, a partir da linha divisória, a norte, entre os dois prédios, o acesso ao prédio dos autores sempre se fez através do prédio dos réus, numa extensão consecutiva, próxima dos 90 metros.
Desde tempos imemoriais, seguramente há mais de 50 anos, que está constituída a servidão por esse troço de caminho que, saindo do caminho principal, entra e atravessa o prédio dos réus, indo desaguar no prédio dos autores.
Os autores, seus ante-possuidores, amigos e familiares, trabalhadores rurais e outros, sempre passaram por esse troço de caminho, a pé e em veículos, de boa-fé, com o conhecimento e à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, consecutiva e ininterruptamente.
Todo o trilho do caminho está ladeado por floresta de pinheiros, que, pela sua idade, bem demonstram a antiguidade da sua constituição.
Preparam-se agora os réus para vedar esse troço de caminho, retirando aos autores o acesso ao seu prédio por onde vem sendo feito há mais de 50 anos.
Sendo certo que o prédio dos autores não fica isolado, certo é também que, pela estrutura e configuração do terreno, a construção de um novo acesso, não só se torna difícil, como bastante onerosa.
Terminam, pedindo que, na procedência da acção, devem os réus ser condenados a reconhecerem o direito de servidão de passagem, a pé e por veículos, sobre o troço de caminho a norte do seu prédio rústico descrito nos artºs 5º e 6º da p.i.
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Os réus contestaram, pugnando pela improcedência da acção, em virtude de não existir a servidão invocada pelos autores.
Deduziram reconvenção, pedindo que, caso o Tribunal reconheça constituída por usucapião servidão de passagem a favor do prédio dos autores, seja a mesma declarada extinta, porque desnecessária, e os reconvindos condenados a reconhecerem o direito de propriedade dos reconvintes sobre o seu prédio e a absterem-se de entrar no prédio destes, deixando o caminho principal, para desse modo entrar no seu prédio.
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Os autores responderam à matéria da reconvenção, pedindo a sua improcedência e concluindo como na petição inicial.
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Entretanto, não tendo os réus procedido ao registo do pedido reconvencional, foram os autores absolvidos da instância.
Foi, depois, proferido o despacho saneador e seleccionada a matéria de facto considerada assente e a que constitui a base instrutória, sem reclamações.
Efectuado o julgamento - com gravação da prova e inspecção ao local, com registo dos factos considerados relevantes para o Mmº Juiz – e decidida a matéria de facto controvertida, sem reclamações, foi proferida a sentença, que julgou a acção totalmente improcedente e não conhecer do pedido reconvencional, porque subsidiário face ao decidido quanto à acção.
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Inconformados, apelaram os autores, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1º- A sentença recorrida enferma de um vício grave – a nulidade;
2º- A sentença não apreciou nem resolveu a única questão colocada ao Tribunal – a existência da servidão de passagem.
3º- A sentença recorrida dá como assente a existência de um caminho, e partindo dessa premissa, o Tribunal “a quo”, conclui, que, tendo o prédio dos autores acesso pelo tal caminho, e não estando por esse facto encravado, não há que constituir servidão legal de passagem;
4º- Sucede que, a acção, reporta-se à existência de uma servidão predial constituída por usucapião, e não, uma servidão legal de passagem, por encravamento do prédio.
5º- O Tribunal “a quo”, ao constatar que o prédio dos autores não se encontrava encravado, entendeu não atender às provas documentais e testemunhais juntas aos autos, e fazer tábua rasa do pedido formulado pelos autores;
6º- A decisão proferida, não incidiu sobre o objecto do pedido, a servidão predial, mas antes sobre a existência de servidão legal, que os autores nunca negaram a sua existência, mas, que não era objecto de análise da acção.
7º- A sentença proferida enferma da nulidade prevista no artº 668º - al. d) do C.P.C., porquanto o juiz não se pronunciou sobre a servidão predial, mas sobre uma servidão legal.
Caso assim não se entenda:
8º- A prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, bem como, a prova documental junta aos autos, e ainda, a própria confissão dos réus, sobre a existência da servidão predial, que no entender destes, será abusiva, levariam a diferente decisão sobre a matéria de facto;
9º- A decisão sobre a matéria de facto , está em total oposição com o registo lavrado na acta de inspecção ao local, diligência de prova, através da qual se constata a existência da servidão predial (sinais de trilho) e, do desnível acentuado existente entre a parte alta e a parte baixa do prédio dos autores;
10º- As provas produzidas obrigam o julgador a considerar provado que a servidão predial existe há mais de 57 anos;
11º- As provas produzidas obrigam o julgador a constituir, por decisão judicial, a servidão predial, formada por um caminho, que saindo do caminho público, dá acesso à parte baixa do prédio dos autores;
12º- A sentença enferma de lapso, ao ignorar o despacho de fls. 106, e ao considerar erradamente a existência do pedido alternativo, formulado pelos autores, devendo ser corrigida;
13º- A sentença proferida, está em contradição com as provas documentais e o conteúdo da acta de inspecção ao local, podendo/devendo, ser reformada nos termos do artº 669º/2/b) do C.P.C.
Nestes termos deve ser declarada nula a sentença, por violação da al. d) do artº 668º do C.P.C., ou , caso assim se não entenda, deve ser alterada a matéria de facto assente nos termos propostos, em consequência, ser considerado provado, que há mais de 50 anos, existe um caminho/servidão predial, que onera o prédio dos réus, a constituir por decisão judicial.
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Os recorridos contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.
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Corridos os legais vistos, cumpre apreciar e decidir.
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Na 1ª instância foi dado como provado o seguinte:
Factos Assentes:
A) e B) - Os autores são donos e legítimos possuidores do prédio misto no sítio da Ribeirnha, freguesia de Penha Garcia, composto de “solo subjacente de cultura arvense olivícola, pinhal, oliveiras, habitação a dependência”, inscrito na matriz rústica sob o artº 209º Secção A e urbana sob o artº 1465, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 00623 e registado a favor do autor.
C) - O autor adquiriu o prédio por compra, em Janeiro de 1992, ao seu antepossuidor António Antunes que, por sua vez, o herdara de seus pais.
D) - Os réus são proprietários de um prédio rústico situado no mesmo local da Ribeirinha, inscrito na matriz rústica sob o artº 180-Sec. A e urbana sob o artº 1464, e descrito na Conservatória do Reg. Predial sob o nº 00613/1200891.
Base Instrutória:
1º - O prédio dos réus é atravessado por um caminho público que tem as dimensões necessárias ao trânsito quer de peões, quer de carros de tracção animal, quer ainda de tractores.
5º - Há cerca de 57 anos existia um caminho que, saindo do caminho referido na resposta ao quesito 1º, passava pelo prédio dos réus e dava acesso ao prédio dos autores.
11º - O prédio dos réus confina a norte com o prédio dos autores.
12º - O prédio dos réus confronta do sul com caminho público.
13º - Do caminho público parte um caminho com largura superior a três metros, que segue mais ou menos a direito até à linha divisória do prédio dos réus com o prédio dos autores.
14º - O caminho continua pelo prédio dos autores.
15º - É no interior do prédio dos autores que o referido caminho se transforma em vereda.
16º - Esse caminho entra no prédio dos autores e serve outros prédios vizinhos.
17º - O mesmo caminho não vira à esquerda, noventa metros percorridos dentro do prédio dos réus, para depois virar à direita em direcção ao prédio dos autores.
18º - O acesso ao prédio dos autores é feito pelo caminho que parte do caminho público e segue mais ou menos a direito em direcção ao prédio daqueles, dividindo em duas partes o prédio dos réus e continuando em frente.
19º - Este é o acesso ao prédio dos autores que existe agora.
20º - O prédio dos réus é atravessado por um caminho que parte do público com as dimensões necessárias ao trânsito quer de peões, quer de carros de tracção animal quer de tractores.
21º - O caminho que atravessa o prédio dos réus prolonga-se em continuidade, no sentido norte, pelo prédio dos autores, com as mesmas dimensões que tem no prédio dos primeiros.
22º - Esse caminho tem no prédio dos autores as mesmas dimensões que permitem o trânsito de peões, carros de tracção animal e tractores.
23º - A linha a tracejado que se vê na cópia das cadernetas prediais juntas por autores e réus e o documento nº 2 junto aos autos por estes sinaliza o caminho que atravessa ambos os prédios.
30º - Saindo do caminho que parte do caminho público e tornejando para a esquerda existia um caminho que os réus usavam para acesso ao seu poço, existente no limite poente do seu prédio.
33º - A rede colocada pelos réus não impede o acesso dos autores ao seu prédio pelo caminho que parte do caminho público e segue, mais ou menos a direito, no sentido norte.
34º - O acesso ao prédio dos autores pelo caminho que parte do caminho público e segue no sentido norte, sem desvios, é fácil e não tem obstáculos.
35º - Esse acesso é possível através de um veículo ligeiro de passageiros.
36º - E por esse caminho é possível o acesso ao prédio dos autores por pessoas e por veículos de tracção animal e tractores.
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Como é sabido o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o tribunal da Relação conhecer de matéria nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil – diploma a que pertencerão os restantes normativos citados sem menção de origem).
I - Começam os recorrentes por invocar a nulidade da sentença, com previsão na al. d) do nº 1 do artº 668º, em virtude de não ter apreciado a única questão colocada ao Tribunal – a existência da servidão de passagem, já que a sentença dá como assente a existência de um caminho, e, partindo dessa premissa, conclui que, tendo o prédio dos autores acesso pelo tal caminho, e não estando por esse facto encravado, não há que constituir servidão legal de passagem. Sucede que a acção se reporta à existência de uma servidão predial constituída por usucapião, e não uma servidão legal de passagem, por encravamento do prédio.
Aquele normativo dispõe na 1ª parte que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
Esta nulidade está em correspondência com a 1ª parte do nº 2 do artº 660º, que impõe ao juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, resultando tal nulidade da omissão desse dever.
Estamos neste caso perante a omissão de pronúncia que, como a lei expressamente preceitua, apenas incide sobre questões postas ao tribunal e não sobre os fundamentos (argumentos ou razões jurídicas) produzidos pelas partes (cfr. Acs. do S.T.J. de 22/06/1999, CJ, T2-157, de 25/02/1997, BMJ 464-464, e de 06/01/1977, BMJ 263-187, Cons. Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, 3ª ed., pág. 180, e Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 143).
No presente caso, analisando a petição inicial, verificamos que os autores, ora recorrentes, invocam o direito de servidão de passagem, constituído por usucapião, e formulam o pedido no sentido de os réus serem condenados a reconhecerem tal direito de servidão de passagem.
Ora, a sentença, embora não seja um primor de perfeição, pronuncia-se, no entanto, sobre tal pedido, como se vê dos extractos que se transcrevem:
“(...) provou-se que o prédio dos RR. é atravessado por um caminho público que tem dimensões necessárias ao trânsito quer de peões, quer de carros de tracção animal, quer ainda de tractores.
E há cerca de 57 anos, existia um caminho que saindo do referido caminho público passava pelo prédio dos RR. e dava acesso ao prédio dos AA., com as dimensões necessárias ao trânsito quer de peões, quer de carros de tracção animal quer de tractores (tal foi constatado pela inspecção feita ao local), o mesmo caminho não vira à esquerda, noventa metros percorridos dentro do prédio dos RR., para depois virar à direita em direcção ao prédio dos AA. (tese sustentada por estes, mas que não recebeu qualquer provimento)” – o realce é nosso.
“O acesso ao prédio dos AA. por tal caminho e segue o sentido norte, não tem desvios (o realce é nosso), é fácil e não tem obstáculos (...)”.
“Assim, os AA. não lograram provar que próximo da linha divisória o referido caminho transforma-se numa vereda só permitindo passagem de peões, que o terreno a partir da linha divisória, a norte e entre os dois prédios é acidentado e por causa de tal facto o acesso ao prédio dos AA. sempre se fez numa extensão consecutiva próxima dos 90 metros (resposta dada aos quesitos 2º, 3º e 4º) – o realce é nosso.
Provou-se sim, que há cerca de 57 anos, existia um caminho que saindo do caminho público passava pelo prédio dos RR e dava acesso ao prédio dos AA. (resposta ao quesito 5º).
Portanto, provado ficou que não existe outro caminho que permite e possibilita o acesso ao prédio dos AA., (tal resulta da resposta dada ao quesito 24º)” – o realce é nosso.
Conclui-se, assim, que, embora de uma forma não muito clara e explicita, a sentença recorrida apreciou a questão posta pelos autores, pelo que poderá haver erro de julgamento, mas não omissão de pronúncia.
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II - Impugnam, depois, os recorrentes a decisão proferida sobre a matéria de facto, afirmando que a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, bem como a prova documental junta aos autos, e a própria confissão dos réus sobre a existência da servidão predial levariam a diferente decisão sobre a matéria de facto, a qual está também em total oposição com o registo lavrado na acta de inspecção ao local.
Dispõe o artº 690º-A que, quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente obrigatoriamente especifique, sob pena de rejeição, quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto diversa da recorrida, incumbindo ainda ao recorrente, na hipótese de ter havido gravação, sob pena de rejeição, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artº 522º-C [nºs 1, als. a) e b), e 2].
Resulta deste normativo que devem ser indicados com clareza os pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, por referência à base instrutória onde estão enquadrados, como é óbvio, já que são eles que constituem a matéria de facto sobre que incide a decisão a que alude aquele normativo e os nºs 1 e 2 do artº 653º, bem como o nº 1 do artº 511º.
E isto é assim porque o duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, como o próprio legislador refere (cfr. preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro), nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente.
Ora, no presente caso, os recorrentes não deram cumprimento à condição indicada em primeiro lugar, pois não indicaram com clareza os pontos de facto, por referência à base instrutória onde estão integrados, que consideram incorrectamente julgados.
Com efeito, referem eles que os factos impugnados são:
1 - Que “há cerca de 57 anos, existia um caminho que saindo do caminho referido em 4” (ora público, ora só caminho – artigo 4º da f. de facto) “passava pelo prédio dos RR. e dava acesso ao prédio dos AA.” – cfr. artigo 5º da f. de facto;
2 - Que não existe, desde tempos imemoriais e há mais de 50 anos, um troço de caminho, que saindo do caminho principal, entra e atravessa o prédio dos RR. indo desaguar no prédio dos AA.;
3 - Que esse caminho, não está ladeado por floresta de pinheiros, com sinais de passagem de peões e rodados dos veículos;
4 - Que não existe outro caminho, para além do caminho público, que permita ou possibilite o acesso ao prédio dos AA.;
5 - Que o terreno dos AA., a partir da linha divisória a norte, não é acidentado.
Não referem, no entanto, quais os pontos de facto da base instrutória onde tais factos estão enquadrados, pretendendo, contudo, a final, a alteração das respostas aos quesitos 2º a 7º, 9º a 11º, 13º, 14º, 18º a 24º e 33º e 34º, ou seja, de quase toda a base instrutória.
Assim, não tendo sido respeitada uma das condições em que é permitido o duplo grau de jurisdição, há que rejeitar o recurso quanto à decisão proferida sobre a matéria de facto.
Note-se que, ainda que se considere que foi dado cumprimento ao disposto naquele normativo (artº 690º-A), não vemos razão para tomar em consideração a versão dos factos resultante dos depoimentos das testemunhas indicadas pelos autores em detrimento da versão resultante dos depoimentos das arroladas pelos réus.
As testemunhas indicadas pelos autores e pelos réus apresentam versões divergentes dos factos controvertidos a que foram inquiridas e não foram aduzidos argumentos que nos levem a alterar a decisão sobre a matéria de facto, para acolher a posição dos recorrentes.
E tal alteração também não é possível com base nos documentos juntos pelos autores, e referidos nas conclusões, visto que, sendo documentos particulares e tendo sido impugnados (v. artº 20º da contestação, artº 3º da tréplica e requerimento de fls. 103 e vº), têm uma força probatória que é apreciada livremente pelo tribunal.
Também a acta da inspecção ao local, constante de fls. 178 e 179, e tomada em consideração na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, não é de molde a alterar tal decisão no sentido pretendido pelos recorrentes, de que existe um troço de caminho que sai do caminho principal e dá acesso à parte baixa do prédio dos autores.
É que na referida acta diz-se que na divisória entre a parte baixa do prédio dos autores e o prédio dos réus encontra-se um muro feito em pedras soltas e que, situados junto ao referido muro do lado dos réus existem sinais de trilho de um caminho, o que não se verifica no terreno dos autores.
Não se pode assim concluir da acta, como pretendem os recorrentes, que tal trilho dá acesso à parte baixa do prédio dos autores, uma vez que aí se diz que os sinais desse trilho não existem no terreno deles, autores.
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III – Perante a manutenção da decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos expostos, é de confirmar a sentença recorrida, na parte em que julgou a acção improcedente.
Com efeito, tendo os autores invocado na p.i., como vimos, o direito de servidão de passagem, constituído por usucapião, não lograram eles, contudo, provar a existência dos elementos característicos de tal direito, ou seja, a passagem revelada no prédio dos réus, a favor do prédio dos autores, por sinais visíveis e permanentes, ao longo de mais de 50 anos, fazendo-o os autores, seus antepossuidores, amigos e familiares, trabalhadores rurais e outros com o conhecimento e à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, consecutiva e ininterruptamente.
É que os pontos da Base Instrutória que continham tais factos tiveram resposta restritiva (ponto 5º) ou a de “não provado” (pontos 6º, 7º, 9º e 10º).
E não se provando a existência dos elementos (material e psicológico) da posse, nem a existência de sinais visíveis e permanentes, não é possível a constituição da servidão por usucapião (cfr. artºs 1258º e ss., 1287º, 1547º, nº 1, e 1548º do Código Civil).
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IV – Alegam os recorrentes que a sentença enferma de lapso, ao ignorar o despacho de fls. 106, e ao considerar erradamente a existência do pedido alternativo, formulado pelos autores, devendo ser corrigida.
Como vimos, os autores foram absolvidos da instância, quanto ao pedido reconvencional, ainda antes de ser proferido o despacho saneador, em virtude de os réus não terem procedido ao registo de tal pedido.
Por outro lado, e como também vimos, os autores não formularam pedido alternativo.
Na sentença, foram os réus absolvidos da totalidade dos pedidos formulados pelos autores e foi decidido não se conhecer do pedido reconvencional porque subsidiário face ao decidido quanto aos pedidos dos autores.
Embora tal não contenda com a decisão do presente recurso, e reconhecendo que possa, efectivamente, tratar-se de um lapso, tem de se concluir que, sob o ponto de vista processual, estamos perante uma nulidade da sentença, com previsão na 2ª parte da al. d) do nº 1 do artº 668º, em virtude de o Sr. Juiz ter conhecido de duas questões de que não podia tomar conhecimento, não podendo, assim, enquadrar-se no disposto no artº 667º, que diz respeito à rectificação de erros materiais, e que, de qualquer modo, teria de ter lugar antes de o recurso subir a este Tribunal.
Tratando-se de uma nulidade da sentença, como nos parece, não podemos tomar dela conhecimento, visto não ser de conhecimento oficioso e não ter sido invocada pelos recorrentes.
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V – Finalmente, alegam os recorrentes que a sentença está em contradição com as provas documentais e o conteúdo da acta de inspecção ao local, podendo/devendo ser reformada nos termos do artº 669º, nº 2, al. b), do Código de Processo Civil.
A pretensão dos recorrentes não pode deixar de improceder pelo que já se disse em II.
De qualquer forma, sempre teria de improceder visto o disposto naquela norma não ter aqui aplicação.
Com efeito, para que tenha lugar a reforma da sentença, é necessário que o juiz, por lapso manifesto, não tenha tomado em consideração documentos ou outros elementos que constem do processo e que, só por si, impliquem decisão diversa da proferida
Tal lapso tem, no entanto, de ser reconhecido pelo próprio juiz que proferiu a sentença e a reforma desta tem de ser levada a cabo por esse mesmo juiz, conforme se extrai do disposto nos artºs 669º e 670º, o que no presente caso se não verifica.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas a cargo dos recorrentes.