Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
19/2000.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HÉLDER ROQUE
Descritores: ARRENDAMENTO RURAL
TÍTULO DE POSSE
ÓNUS DA PROVA
FORMA DO CONTRATO
FALTA DE FORMA LEGAL
ARGUIÇÃO
NULIDADE DO CONTRATO
EFEITOS
INDEMNIZAÇÃO
BENFEITORIAS NECESSÁRIAS
DIREITO DE RETENÇÃO
Data do Acordão: 10/17/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE OLIVEIRA DE FRADES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1º Nº1. 3º Nº S 1 E 3 E 4, 21º B), 35º Nº5, 36º NºS 1 E 3 DO DL 385/88, DE 25 DE OUT. (LAR), 215º, 216º, 220º, 289º Nº1 E 3, 754º, 759º, 1047º, 1270º Nº2 E 1273º DO CC, 493º NºS 1 E 2, 494º Nº1, 495º E 661º Nº2 DO CPC
Sumário: 1. Não se provando que se haja operado a extinção da relação jurídica de arrendamento rural, tal significa que a mesma subsiste como título legítimo de posse do prédio pelo locatário, susceptível, portanto, de constituir uma excepção peremptória que impede a restituição do prédio ao senhorio.

2. Existindo um contrato de arrendamento rural, não reduzido a escrito, os autores (senhorios), ao provocarem a notificação dos réus (arrendatários), no sentido da formalização do mesmo, privaram estes de arguir a respectiva nulidade, impondo-lhes a obrigação de o reduzir a escrito.

3. A proibição da invocação da nulidade não abrange, apenas, o contraente culpado pela não redução a escrito do contrato, em função da notificação feita pela outra parte, mas ainda o contraente que, ficando em pura inércia, ou seja, não exigindo ao outro essa formalização a escrito, concorre, de igual modo, para que não se produza esse resultado, por força da conjugação do disposto nos nºs 3 e 4, do artigo 3º, da LAR.

4. A declaração de nulidade do contrato de arrendamento rural e o carácter retroactivo da mesma, não obsta a que o acordo de vontades que se formou, apesar de não reunir a potencialidade suficiente para que a lei lhe possa conferir a validade jurídica, tenha efeitos legais, essencialmente, dirigidos à reposição de cada uma das partes na situação em que estaria se o contrato não tivesse sido celebrado, nomeadamente, quanto às benfeitorias da coisa que deva ser restituída.

5. O arrendatário rural goza, por força do direito a benfeitorias necessárias que lhe foi reconhecido, da garantia real das obrigações em que se traduz o direito de retenção.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


A... e mulher, B..., C...e mulher, D..., propuseram a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra E... e mulher, F..., todos bem identificados nos autos, pedindo que, na sua procedência, estes sejam condenados a reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre o prédio infraidentificado, a restituir aos autores todo o terreno que cultivam e dependências agrícolas, no prazo de 10 dias, a contar da sentença de 1ª instância, a abster-se de voltar a entrar ou cultivar o prédio ou dele retirar qualquer proveito, e a pagar, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de 4.000$00, por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação de restituir aos autores o terreno e dependências agrícolas, desde o aludido prazo de entrega do prédio, alegando, para tanto, e, em síntese, que, em 1 de Março de 1983, adquiriram, por escritura pública de compra e venda, o prédio rústico, designado como Quinta do Enxudre, culto e inculto, composto por uma parte de mata e outra parte culta, com videiras e uma dependência agrícola, inscrito na matriz, sob o artigo 417º, e, no registo predial, a favor dos vendedores, e que, por si e antecessores, andam na posse do imóvel, de forma contínua e ininterrupta, à vista, sem oposição e na convicção de que exercem um direito próprio, não prejudicial aos interesses alheios.
Porém, desde há mais de 20 anos, que os réus, com autorização dos autores e antepossuidores, agricultam a respectiva parte culta, sem pagarem qualquer contraprestação, por empréstimo, para que se serviam dela, com a obrigação de a restituírem, sem que tenha sido fixado qualquer prazo, para o efeito, sendo certo que, não obstante, se têm apresentado como seus donos, o que fez com que os autores lhes enviassem uma carta, para que os réus reduzissem a escrito o contrato de empréstimo ou comodato, mas, ao invés, a filha destes respondeu-lhes que «ao que eu saiba e desde que me conheço a Quinta do Enxudre, sempre foi dos meus pais, que sempre a trabalharam».
Na contestação, os réus invocam, em síntese, que, em 1970, a ré mulher celebrou com o, então, dono do prédio um contrato verbal de arrendamento, tendo-lhes sido facultado o uso agrícola do mesmo, mediante a contrapartida anual de 2.000$00, deduzindo, em reconvenção, o pedido de condenação dos autores a pagar-lhes uma indemnização, por benfeitorias realizadas no prédio, na quantia de 380.000$00, e bem assim como o pedido de reconhecimento do direito de retenção sobre o prédio, até que esse pagamento se verifique.
Na resposta à contestação, os autores impugnam a factualidade alegada pelos réus, defendendo que, a existir um contrato de arrendamento rural, porque estes confessam não pagar as respectivas rendas, desde 1984, deve ser declarada a sua resolução, com esse fundamento, concluindo pela improcedência das excepções invocadas e bem assim como do pedido reconvencional.
No despacho saneador, foram admitidos ambos os pedidos reconvencionais, tendo a sentença declarado que os autores são proprietários do prédio rústico, denominado “Quinta do Enxudre”, culto e inculto, com videiras em cordão, pinhal e mato, sito nos limites do lugar do Enxudre, freguesia e concelho de Oliveira de Frades, a confrontar do Norte com José Lopes da Silva, do Nascente com caminho, do Sul com Maria Alice Pinto Ferraz e do Poente com Bernardino Lopes, com a área de 19.710 m2, inscrito na matriz, sob o artigo 417º, descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Frades, sob o nº 01383/20000126, mas, em tudo o mais, julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu os réus do pedido, considerando prejudicado o conhecimento dos pedidos reconvencionais.
Desta sentença, os autores interpuseram recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª – Provando os autores o direito de propriedade sobre o prédio reivindicado e tendo os réus provado tão somente que ''em data anterior a 1979 o Firmino Pereira Azevedo Laranjeira declarou verbalmente permitir que a ré mulher agricultasse o prédio descrito em a), mediante o pagamento da quantia de 2.000$00 por ano, tendo esta declarado aceitar a referida cedência; "e não tendo provado que ''esta cedência mantêm-se até hoje?", não provaram os réus qualquer titulo legitimo de sua posse actual, oponível ao direito de propriedade e reivindicação dos autores pelo que deverá a acção ser julgada procedente.
2ª – Alegando os réus, a título de excepção, um contrato de arrendamento rural, incumbia-lhes juntar ou provar a existência de um contrato escrito ou, em caso de contrato verbal, alegar que a falta de contrato escrito era imputável aos autores (artigo 35° n°5 do DL 385/88).
3ª - Não tendo os réus essa alegação e naturalmente essa prova, deve ser julgado nulo qualquer contrato verbal e improcedente a excepção.
4ª - O recurso ao princípio da verdade material só justifica a derrogação de regras formais em casos excepcionais e para colmatar injustiças de significativo alcance ou reconhecidas dificuldades na obtenção de provas, caso que, manifestamente, não ocorre nos autos.
5ª - Defendendo os réus a sua posse com a alegada existência de um contrato de arrendamento rural, manifestamente excedem estes os princípios da justiça material e da boa-fé, dos bons costumes e do fim social ou económico do direito se pretendem fazer valer essa defesa em julgamento quando eles próprios reconhecem que há mais de 22 anos que não pagam qualquer renda, não depositaram qualquer renda até ao encerramento da discussão em 1a instância e nem sequer indiciam intenção de algum dia vir a pagar qualquer renda.
6ª - É válido e (a provar-se o arrendamento rural) deveria ser julgado procedente o pedido subsidiário feito na resposta, de resolução, por esse motivo, do alegado e julgado provado pelo Meritíssimo Juiz, contrato de arrendamento rural com base na falta de pagamento de rendas, levando à necessária procedência da acção.
7ª - Foram violados, entre outros, os artigos 1311° nºs 1 e 2 e 334° do Código Civil, 3º, 12°, 21° alínea a) e 35° n° 5 do DL 385/88 de 25/10 e 668° do CPC.
Os réus não apresentaram contra-alegações.
Na sentença recorrida, declararam-se demonstrados, sem impugnação, os seguintes factos, que este Tribunal da Relação aceita, nos termos do estipulado pelo artigo 713º, nº 6, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
Está descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Frades, sob o nº 19280, o prédio rústico, denominado “Quinta do Enxudre”, culto e inculto, com videiras em cordão, pinhal e mato, sito nos limites do lugar do Enxudre, freguesia e concelho de Oliveira de Frades, a confrontar do Norte com José Lopes da Silva, do Nascente com o caminho, do Sul com Maria Alice Pinto Ferraz e do Poente com Bernardino Lopes, com a área de 19.710 m2, inscrito na matriz, sob o artigo 417º, com o valor tributável de 29.198$00 – A).
A aquisição do prédio descrito em A) está inscrita, na Conservatória do Registo Predial de Oliveiras de Frades, a favor de Fernando Pereira de Lima Azevedo Laranjeira, Fausto José Pereira Laranjeira e Maria da Conceição Pereira Laranjeira Cavadas – B).
Por escritura pública, datada de 1 de Março de 1989, outorgada no Cartório Notarial de Oliveira de Frades, os vendedores outorgantes, Fernando Pereira de Lima Azevedo Laranjeira e mulher, Fausto José Laranjeira e mulher, e Maria da Conceição Pereira Laranjeira Cavadas e marido, e os compradores, Manuel Gomes Fernandes e A..., declararam que titulam um contrato de compra e venda, pelo qual o primeiro dos vendedores, por si e em nome dos seus representados, pelo preço de oitocentos mil escudos, já recebido, cede e transfere para os compradores o prédio rústico, denominado “Quinta do Enxudre”, culto e inculto, com videiras em cordão, pinhal e mato, sito nos limites do lugar do Enxudre, freguesia e concelho de Oliveira de Frades, a confrontar do Norte com José Lopes da Silva, do Nascente com caminho, do Sul com Maria Alice Pinto Ferraz e do Poente com Bernardino Lopes, com a área de 19.710 m2, inscrito na matriz, sob o artigo 417º, com o valor tributável de 29.198$00, e descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o nº 3616 – C).
Os autores, através do seu mandatário, enviaram uma carta registada, com aviso de recepção, ao réu E..., recebida por este, em 11 de Novembro de 1999, na qual declaram que os réus trabalham, por mero favor, o prédio rústico, denominado “Quinta do Enxudre” (...) tal contrato de comodato nunca foi reduzido a escrito, sendo certo que, não pretendendo tomar posse do terreno, que poderão continuar a cultivar, pretendem todavia regularizar a situação contratual, reduzindo a um escrito particular o empréstimo da terra (...) para, no prazo de 15 dias, a contar da data da assinatura do aviso de recepção, passarem a escrito o contrato – D).
Por carta dirigida ao autor Manuel Fernandes, a filha dos réus, declarou que «ao que eu saiba e desde que me conheço a Quinta do Enxudre, sempre foi dos meus pais, que sempre a trabalharam» - E).
A aquisição do direito de propriedade, por compra a Fernando Pereira de Lima Azevedo Laranjeira, Fausto José Pereira Laranjeira e Maria da Conceição Pereira Laranjeira Cavadas, do prédio rústico, denominado “Quinta do Enxudre”, culto e inculto, com videiras em cordão, pinhal e mato, sito nos limites do lugar do Enxudre, freguesia e concelho de Oliveira de Frades, a confrontar do Norte com José Lopes da Silva, de Nascente com caminho, do Sul com Maria Alice Pinto Ferraz e do Poente com Bernardino Lopes, com a área de 19.710 m2, inscrito na matriz, sob o artigo 417º, descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Frades, sob o nº 01383/20000126, está inscrita, a favor de Manuel Gomes Fernandes, casado com Brasilina Ferreira da Silva e A...., casado com B... – F).
Desde há mais de 20 anos, os réus vêm cultivando e recolhendo os frutos da parte culta do prédio descrito em A) – 1º.
A utilização, referida na resposta ao ponto nº 1, é feita com autorização dos antepossuidores dos autores – 2º.
Em data anterior a 1979, o Firmino Pereira Azevedo Laranjeira declarou, verbalmente, permitir que a ré mulher agricultasse o prédio descrito em A), mediante o pagamento da quantia de 2.000$00, por ano, tendo esta declarado aceitar a referida cedência – 5º.
Ao longo dos anos em que estiveram a trabalhar o prédio descrito em A), os réus substituíram os caibros do telhado da construção urbana aí existente – 7º.
Esta substituição visou evitar a ruína do telhado – 8º.
Os réus adubaram as terras para cultivo – 10º.
Os réus procederam ao renovo de videiras e plantaram pinheiros – 12º.

*

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do CPC, são as seguintes:
I – A questão da existência do título de posse pelos réus.
II – A questão do ónus da prova da não redução do contrato de arrendamento rural a escrito.
III – A questão do abuso de direito.
IV – A questão do pedido subsidiário de resolução do contrato de arrendamento rural.
V – A questão das benfeitorias.
VI – A questão do direito de retenção.

I

DO TÍTULO DE POSSE DOS RÉUS

Sustentam os autores que, não se mantendo já, no presente, a cedência do prédio aos réus, estes não têm título legítimo de posse actual que fundamente a alegada excepção da não restituição do imóvel aqueles.
Revertendo ao caso dos autos, ficou provado que, em data anterior a 1979, Firmino Laranjeira declarou, verbalmente, permitir que a ré mulher agricultasse o prédio, mediante o pagamento da quantia anual de 2.000$00, declarando esta aceitar a referida cedência, mas sem que se tenha, porém, demonstrado que a mesma se mantenha, até hoje, dado que conheceu resposta negativa a factualidade em causa, ou seja, “esta cedência mantém-se até hoje?”.
Assim sendo, provou-se, apenas, que o prédio em causa foi cedido à ré para que esta o agricultasse, anteriormente a 1979, e, até data indeterminada, situação esta que já se não mantinha, ao tempo da propositura da acção.
Porém, se tal pode ser considerado como um abandono do prédio pelos réus, em infracção da obrigação legal que impõe a sua exploração, nas condições de uma regular utilização, com prejuízo directo da produtividade e da função económica do mesmo, e, consequentemente, fundamento da resolução contratual, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1º, nº 1 e 21º, b), do DL nº 385/88, de 25 de Outubro (LAR), esta teria de ser, judicialmente, declarada, em conformidade com o disposto pelo artigo 1047º, do Código Civil (CC), na redacção anterior à introduzida pela Lei nº 6/06, de 27 de Fevereiro, não aplicável, o que não se provou ter acontecido, ou que se haja operado a extinção da relação jurídica de arrendamento, através de qualquer uma das restantes vias legais idóneas para o efeito, isto é, a denúncia, a caducidade ou a cessação contratual antecipada, por mútuo consentimento.
Significa isto que a relação jurídica de arrendamento rural existente entre as partes, porque não foi objecto de extinção, subsiste como título legítimo de posse do prédio, por parte dos réus, susceptível, portanto, de constituir uma excepção peremptória que impede a restituição do prédio aos autores.

II

A QUESTÃO DO ÓNUS DA PROVA

Sustentam ainda os autores que incumbia aos réus juntar aos autos o contrato escrito ou provar a sua existência e, em caso de contrato verbal, alegar que a falta de redução do contrato a escrito era imputável aqueles, querendo, assim, significar que é inexistente um eventual contrato escrito de arrendamento rural, mas que, a existir o contrato, seria sempre um contrato verbal e, como tal, nulo, por falta de forma, por não ter sido formalizado por escrito, insusceptível de consubstanciar a excepção em causa.
Revertendo, de novo, à situação factual dos autos, importa registar, neste particular, que os réus alegaram, no artigo 43º da contestação, que “o contrato entre os RR e o primitivo senhorio nunca foi reduzido a escrito – nem havia imposição legal de tal”, prosseguindo, logo no artigo 44º, que “por outro lado, a recusa dos AA em o reconhecerem tem em si implícita a recusa na redução de tal contrato a escrito”.
Quer isto dizer que os réus não alegaram que os autores se tenham recusado a reduzir o contrato de arrendamento rural a escrito, mas antes, o que é realidade bem diversa, que, por não reconhecerem esse contrato, se recusaram, implicitamente, a formalizá-lo por escrito.
Por seu turno, demonstrou-se que os autores enviaram ao réu uma carta registada, com aviso de recepção, que este recebeu, em 11 de Novembro de 1999, no sentido de, no prazo de 15 dias, ser reduzido a escrito o contrato de empréstimo da terra.
Porém, através de carta dirigida ao autor Manuel Fernandes, a filha dos réus, respondeu que «ao que eu saiba e desde que me conheço a Quinta do Enxudre, sempre foi dos meus pais, que sempre a trabalharam».
Ora, tendo os autores interpelado os réus no sentido de reduzir a escrito o alegado contrato de comodato, embora se tenha provado que o contrato, efectivamente, celebrado entre as partes foi um contrato de arrendamento rural, os réus declinaram o convite, respondendo, através da filha, que o prédio lhes pertencia, em vez de se terem disponibilizado a formalizar, por escrito, o contrato real.
Assim sendo, é inquestionável, face à prova produzida, que foi celebrado um contrato de arrendamento rural, ao agricultor autónomo, não reduzido a escrito, e, portanto, de natureza verbal, entre a ré mulher e o antecessor dos autores, Firmino Laranjeira, proprietário do prédio rústico, objecto da presente acção de reivindicação.
Com efeito, dispõe o artigo 3º, nº 1, da LAR, que “os arrendamentos rurais, incluindo os arrendamentos ao agricultor autónomo, são, obrigatoriamente, reduzidos a escrito”.
Por outro lado, de carácter inovador, constituiu-se o nº 3, do citado artigo 3º, da LAR, que estipula que “qualquer das partes tem a faculdade de exigir, mediante notificação à outra parte, a redução a escrito do contrato”, e bem assim como o respectivo nº 4, segundo o qual “a nulidade do contrato não pode ser invocada pela parte que, após notificação, tenha recusado a sua redução a escrito".
A isto acresce, nos termos do preceituado pelo artigo 35º, nº 5, da LAR, que "nenhuma acção judicial pode ser recebida ou prosseguir, sob pena de extinção da instância, se não for acompanhada de um exemplar do contrato, quando exigível, a menos que logo se alegue que a falta é imputável à parte contrária".
Por sua vez, nos termos do disposto pelo artigo 220º, do CC, ”a declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei", sendo certo que a nulidade pode ser invocada, a todo o tempo, por qualquer interessado, e pode ser declarada, oficiosamente, pelo Tribunal, segundo o estatuído pelo artigo 286º, deste último diploma legal.
Assim sendo, existindo um contrato de arrendamento rural, não reduzido a escrito, os autores, ao provocarem a notificação dos réus, no sentido da formalização do contrato, privaram estes do direito de arguir a respectiva nulidade, o que, aliás, não realizaram, impondo-lhes a obrigação de o reduzir a escrito.
Porém, o já citado nº 5, do artigo 35º, da LAR, diz que “nenhuma acção judicial pode ser recebida ou prosseguir, sob pena de extinção da instância, se não for acompanhada de um exemplar do contrato, quando exigível, a menos que logo se alegue que a falta é imputável à parte contrária".
Na verdade, são nulos, em princípio, os negócios celebrados sem observância da forma legal, mesmo que as partes se considerem vinculadas pelos mesmos e os queiram cumprir, embora, nem sempre, a falta de forma, apesar de constituir um pressuposto de validade do negócio jurídico, provoque a sua nulidade.
A ressalva feita pelo artigo 220º, do CC, admite outras soluções, ditadas, evidentemente, também, por considerações de interesse público, que justificam, de igual modo, a existência de forma, sendo estas considerações mais ponderosas, por respeitarem a valores relevantes para a justiça.
Assim, ao invés do que acontecia com os diplomas anteriores sobre esta matéria, a sanção para a inobservância da forma escrita deixou de ser apenas a da ininvocabilidade do contrato em juízo, ainda que com ressalva dos casos em que o interessado logo alegasse que a falta de documento escrito era imputável à parte contrária.
Como resulta do expendido, essa inobservância acarreta, agora, a própria nulidade do contrato, independentemente da data da sua celebração[ RP, de 29-1-1991, CJ, XVI, T1, 243.], não obstante se tratar de uma nulidade que se encontra subtraída aos comandos do artigo 286º, do CC, ou seja, não pode ser invocada, a todo o tempo, por qualquer interessado, ou conhecida, oficiosamente, pelo Tribunal, uma vez que a exigência de forma é ditada, essencialmente, pela necessidade de protecção do arrendatário[ STJ, de 14-11-1991, BMJ nº 411, 549.], como garantia da estabilidade do contrato.
Na verdade, se a lei, não obstante taxar de nulo o contrato que não foi reduzido a escrito, até 1 de Julho de 1989, faculta a qualquer das partes a possibilidade de, a todo o momento, exigir à outra essa consagração a escrito, é porque pretende tornar tal nulidade ininvocável, não apenas por qualquer terceiro, como pela própria parte que, abstendo-se daquela iniciativa, não esteja, consequentemente, em condições de demonstrar que a falta de documento escrito é imputável à outra.
De facto, quer o senhorio, quer o arrendatário têm a faculdade de exigir, nos termos do disposto pelo nº 3, do artigo 3º, da LAR, mediante a notificação à outra parte, a redução do contrato a escrito.
A proibição de invocação da nulidade não abrange apenas o contraente culpado pela não redução a escrito do contrato, em função da notificação feita pela outra parte, mas ainda o contraente que, ficando em pura inércia, ou seja, não exigindo ao outro essa formalização a escrito, concorre, de igual modo, para que não se produza esse resultado, por força da conjugação do disposto nos nºs 3 e 4, do artigo 3º, da LAR[ RC, de 4-5-1993, CJ, XVIII, T3, 29.].
Significa isto, em suma, que, só podendo invocar a nulidade a parte que tenha usado a notificação para exigir à outra a redução a escrito do contrato, tal faculdade está arredada da actuação dos réus, mas não, também, da iniciativa dos autores.
Com efeito, mantendo o contrato de arrendamento rural a sua natureza verbal, à data da apresentação da contestação, que foi junta em 9 de Março de 2000, quando, a partir de 1 de Julho de 1989, deveria estar, obrigatoriamente, reduzido a escrito, por força das disposições conjugadas dos artigos 3º, nº 1 e 36º, nº 3, apesar da alegação dos réus de que a falta de redução do contrato a escrito seria imputável aos autores, ter funcionado como condição «sine qua non» do seu recebimento, já não é bastante para garantir o respectivo prosseguimento, atento o estipulado pelo artigo 35º, nº 5, todos da LAR, porquanto aqueles não demonstraram factos relevantes que permitissem imputar aos autores ou aos seus antecessores a falta de documento escrito do contrato, aquando da sua celebração, ou, posteriormente, isto é, que aqueles se recusaram, ilegitimamente, a reduzir o contrato a escrito, quando notificados para o efeito[ J.A. Aragão Seia, M. Costa Calvo e C. Aragão Seia, Arrendamento Rural, 3ª edição, 2000, 34, 224 e 225; RC, de 28-11-2000, CJ, Ano XXV, T5, 29. ], sendo antes a inversa a verdadeira, já que foram os réus quem se negaram a tal, respondendo à interpelação, «ad hoc», no sentido de que já eram donos do prédio.
Como assim, julga-se verificada a excepção dilatória inominada da falta de redução do contrato a escrito, que obsta ao conhecimento do mérito da excepção peremptória em que se consubstancia a relação pessoal do arrendamento, invocada pelos réus, nos termos das disposições combinadas dos artigos 3º, nºs 1, 3 e 4, 35º, nº 5, 36º, nºs 1 e 3, da LAR, 493º, nºs 1 e 2, 494º, nº 1, corpo, e 495º, do CPC.
Assim sendo, não se provando qualquer facto impeditivo, de natureza real, creditória ou pessoal, do direito dos autores a pedir a restituição do prédio, a acção tem de proceder.
Neste enquadramento, considera-se prejudicado o conhecimento das duas restantes questões suscitadas pelos autores, ou seja, a questão do abuso de direito e a questão da resolução do contrato, por falta de pagamento de rendas, sendo certo, quanto a esta última, que os autores só poderiam obter a restituição do arrendado, através da competente acção de despejo.

III

A QUESTÃO DA INDEMNIZAÇÃO POR BENFEITORIAS

Procedendo a acção, como se disse, importa, pois, conhecer dos pedidos reconvencionais, que a sentença recorrida, por terem sido formulados, a título subsidiário, obviamente, não apreciou.
Assim, diga-se, desde já, que, não obstante a nulidade do contrato de arrendamento rural evidenciada e do carácter retroactivo da sua declaração, por força do disposto no artigo 289º, nº 1, do CC, o acordo de vontades que se formou, apesar de não reunir a potencialidade suficiente para que a lei lhe possa conferir validade jurídica, tem efeitos legais, essencialmente, dirigidos à reposição de cada uma das partes na situação em que estaria se o contrato não tivesse sido celebrado.
Esses efeitos consistem, nos termos do estipulado pelo artigo 289º, do CC, na obrigação de restituição de tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
A este propósito, os réus pedem a condenação dos autores a pagar-lhes uma indemnização, por benfeitorias realizadas no prédio, na quantia de 380.000$00.
Neste particular, ficou provado que, ao longo dos anos em que estiveram a trabalhar o prédio, os réus substituíram os caibros do telhado da construção urbana aí existente, com o fim de evitar a ruína do telhado, tendo ainda adubado as terras para cultivo, renovado videiras e plantado pinheiros.
No que respeita às benfeitorias da coisa que deva ser restituída, aplica-se o disposto nos artigos 1269º e seguintes, por força do preceituado pelo artigo 289º, nº 3, todos do CC.
Consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa, sendo benfeitorias necessárias aquelas que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da mesma, integrando-se, definitivamente, nesta, onde se incorporam, dado o seu carácter de indispensabilidade, razão pela qual, tanto o possuidor de boa-fé como o de má-fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, em conformidade com o estipulado pelos artigos 216º, nºs 1, 2 e 3 e 1273º, ambos do CC.
A substituição dos caibros da construção urbana existente no prédio, com o fim de evitar a ruína do telhado, traduz-se numa benfeitoria necessária, porquanto consiste numa despesa feita para conservar ou melhorar a coisa, que tem por fim evitar a sua perda, destruição ou deterioração, integrando-se, definitivamente, nesta, onde se incorpora, dado o seu carácter de indispensabilidade, em conformidade com as disposições legais acabadas de citar.
Por sua vez, a renovação de videiras e a plantação de pinheiros, admitindo tratar-se de actos que possam ser qualificados como benfeitorias úteis, o que, em relação à renovação de videiras é, altamente, problemático, por ser, tecnicamente, aconselhável a replantação da vinha, só através de consentimento escrito do senhorio ou, na falta deste, mediante um plano de exploração a aprovar pelos serviços regionais do Ministério da Agricultura e Pescas, nos termos do preceituado pelo artigo 14º, nº 1, da LAR, o que os réus não provaram, se mostraria viável esta sua pretensão.
Finalmente, quanto à adubação das terras para cultivo do arrendatário, não se trata de acto que consubstancie benfeitorias, mas antes de despesas de fruição ou de frutificação, porque visam, directamente, cada colheita que se destinam a preparar e, portanto, um resultado transeunte[ Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, I, 1960, 274.], de despesas de cultura, porquanto não visam, directamente, beneficiar o prédio, mas preparar a cultura de determinado fruto, com o amanho do solo e a integração no mesmo dos ingredientes para tanto necessários, atento o estipulado pelos artigos 215º e 1270º, nº 2, do CC.
Gozam, pois, os réus do direito à indemnização pelo valor das benfeitorias que se traduziram na substituição dos caibros da construção urbana existente no prédio, a liquidar em execução de sentença, conforme o estipulado pelo artigo 661º, nº 2, do CPC.

IV

A QUESTÃO DO DIREITO DE RETENÇÃO

Porém, estarão reunidos os pressupostos para o reconhecimento do direito de retenção do prédio arrendado, a favor dos réus, como estes invocam, até que se verifique o pagamento pelos autores da indemnização devida pelas benfeitorias necessárias nele realizadas?
O direito de retenção, que se encontra consagrado pelo artigo 754º, do CC, consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir uma obrigação a que está adstrito para com aquele, dependendo de três requisitos, ou seja, a licitude da detenção da coisa que deve ser entregue a outrem, a reciprocidade de créditos, em que o detentor seja, por sua vez, credor da pessoa com direito à restituição, e a conexão substancial entre a coisa retida e o crédito do autor da retenção, isto é, tratar-se de despesas feitas por causa dessa coisa (conexão intelectual) ou de danos por ela causados (conexão material)[ Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 1987, 772 e 773; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 2ª edição, 91 e 92; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 2ª edição, revista e actualizada, 430; Manuel de Andrade, Direito das Obrigações, 230.].
Efectivamente, constituindo o direito de retenção num direito real de garantia ou numa das designadas garantias reais das obrigações, que confere o poder de, pelo valor de uma coisa ou dos seus rendimentos, o respectivo titular obter, com preferência sobre todos os outros credores, o pagamento de uma dívida de que é titular activo[ Mota Pinto, Direitos Reais, 1971, 135.







], o seu detentor pode executar os imóveis, como é o caso do prédio onde foram efectuadas as benfeitorias pelo arrendatário, que é a situação que aqui interessa considerar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, sendo pago, em qualquer das situações, com preferência sobre os demais credores do devedor, com base no disposto pelo artigo 759º, do CC.
Assim sendo, o direito a benfeitorias necessárias, que o artigo 1273º, nº 1, do CC, reconhece ao arrendatário rural, goza, na hipótese em apreço, da garantia real das obrigações em que se traduz o direito de retenção.
Procedem, assim, em parte, as conclusões constantes das alegações dos autores.

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CONCLUSÕES:

I – Não se provando que se haja operado a extinção da relação jurídica de arrendamento rural, tal significa que a mesma subsiste como título legítimo de posse do prédio pelo locatário, susceptível, portanto, de constituir uma excepção peremptória que impede a restituição do prédio ao senhorio.
II - Existindo um contrato de arrendamento rural, não reduzido a escrito, os autores (senhorios), ao provocarem a notificação dos réus (arrendatários), no sentido da formalização do mesmo, privaram estes do direito de arguir a respectiva nulidade, impondo-lhes a obrigação de o reduzir a escrito.
III - A proibição de invocação da nulidade não abrange apenas o contraente culpado pela não redução a escrito do contrato, em função da notificação feita pela outra parte, mas ainda o contraente que, ficando em pura inércia, ou seja, não exigindo ao outro essa formalização a escrito, concorre, de igual modo, para que não se produza esse resultado, por força da conjugação do disposto nos nºs 3 e 4, do artigo 3º, da LAR.
IV – A declaração de nulidade do contrato de arrendamento rural e o carácter retroactivo da mesma, não obsta a que o acordo de vontades que se formou, apesar de não reunir a potencialidade suficiente para que a lei lhe possa conferir validade jurídica, tenha efeitos legais, essencialmente, dirigidos à reposição de cada uma das partes na situação em que estaria se o contrato não tivesse sido celebrado, nomeadamente, quanto às benfeitorias da coisa que deva ser restituída.
V - O arrendatário rural goza, por força do direito a benfeitorias necessárias que lhe foi reconhecido, da garantia real das obrigações em que se traduz o direito de retenção.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar, parcialmente, procedente a apelação e, em consequência, condenam os réus F..., Maria da Conceição Monteiro da Cruz, Sandra Maria Monteiro da Cruz, Adelaide Monteiro da Cruz, Isabel Monteiro da Cruz, Vítor Manuel Monteiro da Cruz, E... e esposa, Rita Maria Alves Gonçalves da Cruz, a restituir aos autores A... e mulher, B..., C... e mulher, D..., todo o terreno que cultivam, a que respeita o prédio rústico, denominado “Quinta do Enxudre”, culto e inculto, com videiras em cordão, pinhal e mato, sito nos limites do lugar do Enxudre, freguesia e concelho de Oliveira de Frades, a confrontar do Norte com José Lopes da Silva, do Nascente com caminho, do Sul com Maria Alice Pinto Ferraz e do Poente com Bernardino Lopes, com a área de 19.710 m2, inscrito na matriz, sob o artigo 417º, descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Frades, sob o nº 01383/20000126, e suas dependências agrícolas, a abster-se de voltar a entrar ou cultivar o mesmo ou dele retirar qualquer proveito, e a pagar aos autores, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de 4.000$00, correspondente a 19,95€, por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação de restituir aos autores o terreno e dependências agrícolas, e ainda, na procedência parcial do pedido reconvencional, condenam os autores a pagar aos réus-reconvintes o quantitativo que se vier a liquidar em execução de sentença, relativo ao direito à indemnização pelas benfeitorias necessárias decorrentes da substituição dos caibros da construção urbana existente no prédio, reconhecendo-lhes, igualmente, o direito de retenção sobre o prédio arrendado, até que se verifique o pagamento da indemnização devida pelas benfeitorias necessárias nele efectuadas, no mais se confirmando a sentença recorrida.

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Custas da apelação, a cargo dos autores e dos réus, na proporção de 2/5 e de 3/5, respectivamente.

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