Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
436/08.9YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO ANTÓNIO MIRA
Descritores: SIGILO PROFISSIONAL
ADVOGADO
CONFLITO DE INTERESSES
Data do Acordão: 02/18/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE MANGUALDE
Texto Integral: S
Meio Processual: INCIDENTE DE RECUSA
Decisão: CONFIRMADA/REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 87.º, N.º 1 DO ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS, APROVADO PELA LEI N.º 15/2005, DE 26 DE JANEIRO E 135.º, N.º 3 DO C.P.P..
Sumário: I. - O dever de sigilo dos advogados tem subjacentes razões de natureza pública, porquanto a rigorosa tutela a que se acha submetido tem por base um interesse social e não o interesse dos profissionais que recebem confidências, nem o interesse daqueles que revelam as suas confidências, correspondendo a sua preservação ainda a uma exigência de protecção da privacidade do defensor, dos seus demais clientes, e por via disso, da própria liberdade do exercício da profissão
II. - O dever de colaboração com a administração da justiça visa satisfazer o interesse público do jus puniendi, mais concretamente, a realização de diligências de prova que permitam determinar se os arguidos praticaram ou não os crimes que lhe estão imputados, sob a égide do princípio da descoberta da verdade material e, assim, do interesse da boa administração da justiça penal
III. - Apesar de o segredo profissional dos advogados não estar consagrado como um dever absoluto, não deve ser adoptada uma posição maximalista, segundo a qual o dever de cooperação com a justiça prevalece sempre em todo e qualquer caso. A resolução do problema deverá se encontrada com base na aplicação dos critérios que, no caso concreto, sejam idóneos para determinar o peso relativo das representações valorativas dos deveres em conflito.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

I. Relatório:
Nos autos de processo comum singular n.º 528/06.9TAMGL, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Mangualde, em que os arguidos …, … e “…, Lda.” estão acusados da prática de um crime de frustração de créditos, p. e p. nos termos do artigo 88.º, n.º 1 do RGIT, no decurso da audiência de discussão e julgamento, a solicitação dos arguidos, o Tribunal decidiu ouvir como testemunha o Advogado Sr. Dr. …, ao abrigo do disposto no artigo 340.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
Em 03-12-2008, o Sr. Dr. …, através do requerimento de fls. 560/561 do processo principal, escusou-se a depor como testemunha, nos termos do artigo 87.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, invocando, para tanto, que o conhecimento que detém dos factos em causa nos autos decorre exclusivamente do exercício das suas funções de advogado.
Por despacho proferido em 10-12-2008, o Mm.º Juiz do Tribunal da 1.ª instância teve a escusa como legítima e, nos termos do disposto no artigo 135.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, solicitou a este Tribunal da Relação decisão sobre a prestação ou não de testemunho com quebra de segredo profissional.
Neste Tribunal, solicitado parecer ao Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, este manifestou a impossibilidade de o elaborar (cfr. fls. 36/37 dos autos).
Tendo vista dos autos, o Exm.º Senhor Procurador-Geral Adjunto, embora com reservas (por não ser claro que o depoimento em audiência de julgamento do Sr. Dr. … seja imprescindível para a descoberta da verdade), pronunciou-se no sentido de dever ser deferido o pedido e, assim, dispensado o Sr. Advogado do dever de sigilo.
3. Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
II. Fundamentação:

A questão solvenda consiste em apreciar se no caso concreto que os autos evidenciam deve (ou não) ser determinada a quebra do sigilo profissional da testemunha Sr. Dr. ….

Não subsistem dúvidas em como o testemunho em causa se inclui no “dever de segredo” contemplado no art. 87.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro.

Na verdade, estatui a referida norma:

«O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços», designadamente nos casos elencados nas alíneas a) a f).

Daqui decorre, pois, que o advogado está legalmente obrigado a segredo profissional no que respeita a factos conhecidos no exercício das suas funções, seja qual for a origem da fonte.

Os advogados podem escusar-se a depor sobre factos objecto de segredo profissional. Contudo, se a autoridade judiciária concluir no sentido da legitimidade da escusa, é solicitada ao tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente se tiver suscitado, ou no caso de o incidente se ter suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o plenário das secções criminais, a prestação de depoimento, devendo o tribunal ordená-la, com quebra do segredo profissional, sempre que entender que esta se mostra justificada em face das normas e princípios aplicáveis na lei penal e, nomeadamente, em face do princípio da prevalência do interesse preponderante (cfr. art. 135.º, n.ºs 1 a 3, do CPP).

O dever de sigilo dos advogados tem subjacentes manifestas razões de natureza pública, porquanto a rigorosa tutela a que se acha submetido tem apenas por base um interesse social e não o interesse dos profissionais que recebem confidências, nem o interesse daqueles que revelam as suas confidências, correspondendo a sua preservação ainda a uma exigência de protecção da privacidade do defensor, dos seus demais clientes, e por via disso, da própria liberdade do exercício da profissão [[i]].

No fundo, o bem jurídico que ilumina a tutela do segredo profissional é a necessidade social da confiança em certas profissões.

Como se disse no Parecer n.º 110/566 do Conselho Consultivo da Procuradoria-geral da República [[ii]], citado no Acórdão do STJ de 15 de Fevereiro de 2000 [[iii]], «o exercício de certas profissões, como o funcionamento de determinados serviços, exige ou pressupõe, pela própria natureza das necessidades que tais profissões ou serviços visam satisfazer, que os indivíduos que a eles tenham de recorrer revelem factos que interessam à esfera íntima da sua personalidade, quer física, quer jurídica. Quando esses serviços ou profissões são de fundamental importância colectiva, porque virtualmente todos os cidadãos carecem de os utilizar, é intuitivo que a inviolabilidade dos segredos conhecidos através do seu funcionamento ou exercício constitui, como condição indispensável de confiança nessas imprescindíveis actividades, um alto interesse público».

Por sua vez, o dever de colaboração com a administração da justiça visa satisfazer o interesse público do jus puniendi, mais concretamente, a realização de diligências de prova que permitam determinar se os arguidos praticaram ou não os crimes que lhe estão imputados, sob a égide do princípio da descoberta da verdade material e, assim, do interesse da boa administração da justiça penal.

Confrontando-se, assim, dois interesses conflituantes - a tutela do segredo profissional vs. o dever de colaboração com a administração da justiça penal, deverá o Tribunal da Relação decidir no sentido da quebra de sigilo profissional, caso esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal - art. 31.º, n.º 1 e 2, alínea c) e 36. º, n.º 1, ambos do Código Penal - nomeadamente, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante e segundo um critério de proporcionalidade na restrição de direitos e interesses constitucionalmente protegidos, como o impõe o n.º 2 do art. 18.º da CRP.

Apesar de o segredo profissional dos advogados não estar consagrado como um dever absoluto, não deve ser adoptada uma posição maximalista, segundo a qual o dever de cooperação com a justiça prevalece sempre em todo e qualquer caso. A resolução do problema deverá se encontrada com base na aplicação dos critérios que, no caso concreto, sejam idóneos para determinar o peso relativo das representações valorativas dos deveres em conflito. Ou seja, a prevalência do segredo ou do dever de cooperação com a justiça dependerá da conclusão a que, em concreto, se chegar quanto ao interesse dominante.
5. No caso sub judicio, nos termos da acusação pública de fls. 324/331 do processo principal, os arguidos … e …, sócios-gerentes de “…, Lda.”, não obstante saberem que a referida sociedade tinha em dívida à Administração Tributária e à Administração da Segurança Social determinadas quantias relativas a IRS, IVA e descontos efectuados a funcionários, na concretização de acordo prévio, constituíram três novas sociedades às quais venderam todos os bens que integravam o património da sociedade arguida, de molde a frustrarem os créditos do Estado. Daí que lhes esteja imputada a prática de um crime de frustração de créditos, p. e p. nos termos do artigo 88.º, n.º 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho).
Com a alegação de haver sido referenciada, em audiência de julgamento, «a colaboração de um advogado que terá aconselhado o arguido Hermínio Venâncio a criar duas novas empresas a fim de que pudesse prosseguir a sua actividade», requereram os arguidos a prestação de depoimento por parte do advogado em causa, para melhor elucidar o circunstancialismo fáctico das transmissões dos bens.
Tal requerimento mereceu do Tribunal o seguinte despacho:
«Tendo o arguido … de facto referido que o Sr. Dr. …, na qualidade de advogado, o aconselhou a constituir, não duas, como se refere no requerimento, mas três sociedades e antevendo que o seu testemunho pode ser importante para a descoberta da verdade material, determino que o Sr. advogado seja convocado e ouvido na qualidade de testemunha (…)».
Ouvidas as declarações prestadas em audiência de julgamento pelo arguido …, delas sobressai, na parte que ora importa ter em conta:
«Estive a trabalhar com a firma» durante alguns meses «praticamente sem contabilidade organizada (…). Apareceu-me lá a inspecção das Finanças e (…) sugeriram para (…) fechar a contabilidade ou então fazer outra firma. Eu pensei nisso com o meu advogado e então ele achou conveniente dividir aquela firma em três, porque cada uma tinha uma actividade independente; e foi por isso que se fizeram três firmas».
À pergunta do Sr. Juiz: «Quem é esse advogado?», respondeu o arguido: «É o Sr. Dr. …. Foi ele que sugeriu que se fizessem três firmas».
Como se vê, em tais declarações nenhuma referência foi feita quanto a qualquer sugestão que o Sr. … tivesse feito ao arguido correlacionada com o núcleo factológico fundamental à imputação do crime de frustração de créditos, ou seja, quanto ao acordo dos arguidos visando a transferência para terceiros do património da sociedade arguida (cfr. pontos 10.º a 14.º da acusação) e às posteriores vendas do referido património à três sociedades entretanto constituídas (cfr. pontos 15.º17.º do libelo acusatório).
Deste modo, não se vislumbra que o depoimento do Sr. Dr. … possa ser minimamente relevante na determinação da (in)existência do crime de frustração de créditos e da responsabilidade penal dos arguidos.
E assim sendo, não ocorre uma situação onde os interesses da administração da justiça se devam salvaguardar através de um meio excepcional: a violação do segredo profissional. A situação concreta não justifica a excepção.
Em suma, não se justifica o levantamento do sigilo profissional.
III. Decisão:
Posto o que precede, decide-se não dispensar o Ex.mo Advogado … do sigilo profissional a que está obrigado.


[i] Cfr. Acórdão desta Relação de Coimbra de 28-03-2007, processo n.º 190/03, in www.dgsi.pt.
[ii] BMJ n.º 67, pág. 294.
[iii] CJ/STJ, tomo I, pág. 85.