Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4242/15.6T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
MISERICÓRDIAS
CONTENCIOSO ELEITORAL
Data do Acordão: 09/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: DL Nº 119/83 DE 25/2, CONCORDATA
Sumário: 1 -Os tribunais civis, ao menos por via de regra, apenas cobram competência para apreciar questões atinentes às Misericórdias se elas disserem respeito às relações externas por estas estabelecidas com a comunidade ou às quais seja aplicado o direito civil estadual.

2 - O pedido de declaração da nulidade da deliberação de órgãos da Misericórdia e do ato eleitoral nela e para ela realizado é questão interna a que se aplicam regras próprias, pelo que para a sua apreciação falece competência material aqueles tribunais, sendo assim competentes para o efeito os tribunais e orgãos eclesiásticos.

Decisão Texto Integral:


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

F (…) e J (…), instauraram contra  Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Santa Casa da Misericórdia de Leiria, Dr. (…); e Santa Casa da Misericórdia de L (…) procedimento cautelar não especificado.

Pediram:

1. Seja declarada a nulidade da deliberação da assembleia eleitoral realizada no dia 12 de Dezembro de 2015;

2. Seja declarada a falsidade da ata referente à deliberação referente em 1);

3. Seja declarada a nulidade do ato eleitoral realizado no dia 12 de Dezembro de 2015;

4. Seja declarado que a Lista B não podia ser objeto de votação, porque não entregue nos termos e condições previstas no Aviso; 5. Seja declarada a suspensão da tomada de posse dos novos órgãos sociais; 6. Seja ordenada a repetição do ato eleitoral.

Os requeridos contestaram

Invocando, para além do mais, a incompetência material do tribunal, pugnando que ao caso se aplica o direito eclesiástico, e assim competindo ao Ordinário Diocesano apreciar e decidir sobre a matéria em causa.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos tendo sido proferida sentença na qual se decidiu:

«A. Julgo totalmente procedente, por provada, a excepção dilatória de incompetência absoluta dos tribunais judiciais, em razão da matéria, para a apreciação do litígio em apreço.

B. Declaro esta Secção Cível da Instância Local do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria incompetente, em razão da matéria, para dirimir o presente litígio.

C. Absolvo os requeridos da instância.»

3.

Inconformados recorreram os requerentes.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. No caso dos autos, verifica-se a ausência do regulamento eleitoral, sendo ilegal o “Aviso” emitido e elaborado unilateralmente pelo Presidente da Mesa. Sendo que se verifica ainda a ilegalidade da respectiva alteração que se verificou posteriormente, referente à capacidade eleitoral;

2. Verificaram-se graves irregularidades anteriormente ao ato eleitoral, que condicionaram o mesmo. Além disso, verificaram-se ainda graves ilegalidades no decurso do ato eleitoral; 3. O tribunal a quo é competente em razão da matéria;

4. A douta sentença viola o Decreto-Lei n.º 172-A/2014 de 14 de Novembro, que alterou o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social (doravante IPSS), procedendo à republicação do Decreto - Lei n.º 119/83, de 25 de fevereiro; o Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de fevereiro; o artigo 9.º do Código Civil; artigo 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013 de 26 de agosto;

5. De acordo com o artigo 2.º a contrario do Decreto-Lei n.º 172-A/2014 de 14 de Novembro, o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social é aplicável a todas as Santas Casas da Misericórdia, com exceção da de Lisboa. Pelo que é aplicável à Santa Casa da Misericórdia de Leiria;

 6. De acordo com o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de fevereiro, com a redação em vigor (na sequencia do Decreto-Lei n.º 172-A/2014 de 14 de Novembro), com epigrafe “definições”, a Santa Casa da Misericórdia de Leiria é uma instituição particular de solidariedade social, porquanto não prossegue uma finalidade lucrativa, é constituída exclusivamente por iniciativa de particulares, com o propósito de dar expressão organizada ao dever moral de justiça e de solidariedade, contribuindo para a efetivação dos direitos sociais dos cidadãos, desde que não sejam administradas pelo Estado ou por outro organismo público;

 7. A Santa Casa da Misericórdia prossegue todos os fins e atividades de proteção social, prestando auxílio aos carenciados, constantes dos artigos 1.º A e 1.º B do Decreto-Lei n.º 172-A/2014 de 14 de novembro, bem como nos artigos 1.º e 3.º do Compromisso da Irmandade;

 8. O Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro tem um capítulo (III) com o título “Das Instituições Particulares em Especial”. Sendo que a Secção II do mencionado capítulo intitula-se “Das irmandades da Misericórdia” - artigos 68.º e ss. - sendo, assim, aplicável à Santa Casa da Misericórdia de Leiria.

9. Pelo que, o elemento sistemático da interpetação, acolhido no artigo 9.º do Código Civil, impunha tal interpretação;

10. Por sua vez, os artigos 68.º e 69.º do mencionado legal consagra a mesma interpretação, ou seja, é aplicável às Santas Casa da Misericórdia o regime das IPSS, o que nos remete para a lei civil;

11. Após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 172-A/2014 de 14 de Novembro, a Santa Casa da Misericórdia de Leiria, dando cumprimento ao disposto naquele diploma legal, elaborou e aprovou em assembleia de geral de 5 de Setembro de 2015 o Compromisso da Irmandade (doravante designado por Compromisso), que foi homologado em 5 de Outubro de 2015 pelo Vigário Geral;

12. Constado n.º 3 do artigo 2.º do Compromisso da Irmandade que “a Santa Casa da Misericórdia tem, também reconhecida a sua personalidade jurídica civil, com estatuto de instituição particular de solidariedade social, pelo que é considerada uma entidade de económica social, nos termos da respetiva lei de bases e natureza de pessoa coletiva de utilidade publica”;

13. O artigo 34.º do Compromisso da Irmandade com epígrafe “Processo e matérias de natureza eleitoral”, preceitua no seu n.º 1 que “as eleições regem-se por este compromisso, pelo Direito Canónico e pelo Direito Civil.”;

14. Resulta do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, do Compromisso da Irmandade e dos artigos 167.º e ss. do Código Civil, que in casu é aplicável a lei civil;

15. As Misericórdias embora nasçam na esfera eclesial são “associações de fiéis” de índole particular e não de natureza pública, seja eclesiástica ou civil, e, por isso, devem ser consideradas instituições de solidariedade social, sendo-lhes aplicável o Estatuto das I.P.S.S.;

16. Os tribunais comuns são materialmente competentes para conhecer de alegadas irregularidades respeitantes às eleições de uma misericórdia;

 17. Mesmo que assim não se entendesse e se considerasse não serem competentes os tribunais civis – o que só por mera hipótese de raciocínio se admite – certo é que no Código Canónico inexistem quaisquer disposições legais referentes a providências cautelares e/ou qualquer outro mecanismo processual que permite evitar o periculum in mora;

 18. Pelo que, também por esta via, é de aceitar – mesmo que a título subsidiário – a competência dos tribunais judiciais;

19. Competência que resulta ainda do artigo 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013 de 26 de agosto (“Lei da Organização do Sistema Judiciário”) sob a epígrafe “competência em razão da matéria”, que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.”

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º e 639º-A  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

(in)competência material do tribunal recorrido.

5.

Foi considerado na decisão recorrida o seguinte acervo, o qual, versus o referido na decisão, não é apenas factual:

1. Nos termos do artigo 1º/1 do Compromisso da Irmandade de 5/09/2015 da Santa Casa da Misericórdia de Leiria, aqui segunda requerida, “a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Leiria é uma associação de fiéis, com personalidade jurídica canónica, cujo fim é a prática das Catorze Obras de Misericórdia, tanto corporais como espirituais, visando o serviço e apoio com solidariedade a todos os que precisam, bem como a realização de actos de culto católico, de harmonia com o seu espírito tradicional, informados pelos princípios do humanismo e da doutrina e moral cristãs”.

2. Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito legal, “em conformidade com a natureza que provém da sua erecção canónica, a Santa Casa da Misericórdia encontra-se sujeita ao regime especial decorrente do Compromisso celebrado entre a União das Misericórdias Portuguesas e a Conferência Episcopal Portuguesa, assinado em 2 de Maio de 2011 (…) ou de documento bilateral que o substitua, o qual consubstancia o Decreto-Geral Interpretativo da Conferência Episcopal Portuguesa, da mesma data”.

3. Prevê o artigo 1º/3 do Compromisso da Irmandade que “a Santa Casa da Misericórdia tem, também, reconhecida a sua personalidade jurídica civil, com estatuto de Instituição Particular de Solidariedade Social, pelo que é considerada uma entidade da economia social, nos termos da respectiva Lei de Bases, e natureza de Pessoa Colectiva de Utilidade Pública” – cfr. artigo 1º/3.

4. Consta do artigo 34º/1 do Compromisso da Irmandade de 5/09/2015 da segunda requerida que as eleições se regem “por este Compromisso, pelo Direito Canónico e pela lei civil”.

5. Consta do n.º 3 do citado artigo 34º que, proclamados os eleitos para Corpos Gerentes (cfr. n.º 2), o Presidente da Mesa da Assembleia Geral “comunicará ao Bispo diocesano para homologação no prazo de oito dias (…)”.

6. Prescreve o n.º 4 subsequente que “as reclamações contra a lista ou listas de candidatura serão decididas pelo Presidente da Mesa da Assembleia Geral e da decisão deste cabe recurso canónico para o Bispo diocesano”.

7. O n.º 6, do citado artigo 34º, do Compromisso, prescreve que “o contencioso eleitoral é da competência do Bispo diocesano, nos termos do Direito Canónico”.

8. Por decisão do Senhor Bispo da Diocese de Leiria-Fátima, datada de 31/12/2015, que recaiu sobre o acto eleitoral de 12 de Dezembro de 2015 na Santa Casa da Misericórdia de Leiria, foram homologados os corpos sociais da Santa Casa da Misericórdia de Leiria constituídos pela lista mais votada no acto eleitoral de 12/12/2015 e que tinha como candidato a Provedor o Senhor Engenheiro C (...) .

9. O presente procedimento deu entrada em juízo no dia 23/12/2015.

6.

Apreciando.

6.1.

A Julgadora decidiu alcandorada no seguinte discurso argumentativo:

«O Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, enquanto instrumento legal que define o regime jurídico dessas Instituições, está contido no Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, com a última alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 172-A/2014, de 14 de Novembro.

O Capítulo III desse Estatuto regula as actividades das instituições particulares de solidariedade social em especial e a sua Secção II intitula-se “Das irmandades da Misericórdia”.

Prescreve o artigo 68º do Estatuto o que a seguir se enuncia:

1. As irmandades da Misericórdia ou santas casas da Misericórdia são associações reconhecidas na ordem jurídica canónica, com o objectivo de satisfazer carências sociais e de praticar actos de culto católico, de harmonia com o seu espírito tradicional, informado pelos princípios de doutrina e moral cristãs.

2. Os estatutos das Misericórdias denominam -se «compromissos».

De acordo com o artigo 1º/1 do Compromisso da Irmandade de 5/09/2015 da Santa Casa da Misericórdia de Leiria, aqui segunda requerida, “a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Leiria é uma associação de fiéis, com personalidade jurídica canónica, cujo fim é a prática das Catorze Obras de Misericórdia, tanto corporais como espirituais, visando o serviço e apoio com solidariedade a todos os que precisam, bem como a realização de actos de culto católico, de harmonia com o seu espírito tradicional, informados pelos princípios do humanismo e da doutrina e moral cristãs”.

Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito legal, “em conformidade com a natureza que provém da sua erecção canónica, a Santa Casa da Misericórdia encontra-se sujeita ao regime especial decorrente do Compromisso celebrado entre a União das Misericórdias Portuguesas e a Conferência Episcopal Portuguesa, assinado em 2 de Maio de 2011 (…) ou de documento bilateral que o substitua, o qual consubstancia o Decreto-Geral Interpretativo da Conferência Episcopal Portuguesa, da mesma data”.

Em conformidade com a Concordata estabelecida entre o Estado Português e a Santa Sé, celebrada no ano de 2004, e no que interessa aos autos, está consagrado o seguinte, no correspondente artigo 10º:

1. A Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas do direito canónico e constituir, modificar e extinguir pessoas jurídicas canónicas a que o Estado reconhece personalidade jurídica civil.

2. O Estado reconhece a personalidade das pessoas jurídicas referidas nos artigos 1, 8 e 9 nos respectivos termos, bem como a das restantes pessoas jurídicas canónicas, incluindo os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica canonicamente erectos, que hajam sido constituídas e participadas à autoridade competente pelo bispo da diocese onde tenham a sua sede, ou pelo seu legítimo representante, até à data da entrada em vigor da presente Concordata.

3. A personalidade jurídica civil das pessoas jurídicas canónicas, com excepção das referidas nos artigos 1, 8 e 9, quando se constituírem ou forem comunicadas após a entrada em vigor da presente Concordata, é reconhecida através da inscrição em registo próprio do Estado em virtude de documento autêntico emitido pela autoridade eclesiástica competente de onde conste a sua erecção, fins, identificação, órgãos representativos e respectivas competências.

Acrescentando o subsequente artigo 11º:

1. As pessoas jurídicas canónicas reconhecidas nos termos dos artigos 1, 8, 9 e 10 regem-se pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades, e têm a mesma capacidade civil que o direito português atribui às pessoas colectivas de idêntica natureza.

2. As limitações canónicas ou estatutárias à capacidade das pessoas jurídicas canónicas só são oponíveis a terceiros de boa-fé desde que constem do Código de Direito Canónico ou de outras normas, publicadas nos termos do direito canónico, e, no caso das entidades a que se refere o n.º 3 do artigo 10º e quanto às matérias aí mencionadas, do registo das pessoas jurídicas canónicas.

E bem assim o artigo 12º:

As pessoas jurídicas canónicas, reconhecidas nos termos do artigo 10º, que, além de fins religiosos, prossigam fins de assistência e solidariedade, desenvolvem a respectiva actividade de acordo com o regime jurídico instituído pelo direito português e gozam dos direitos e benefícios atribuídos às pessoas colectivas privadas com fins da mesma natureza”.

De onde decorre que às pessoas jurídicas canónicas, a quem é reconhecida personalidade jurídica civil, se aplica ou o direito português ou o direito canónico, consoante as situações decidendas.

Em conformidade com o exposto, consta do artigo 34º/1 do Compromisso da Irmandade da segunda requerida, datado de 5/09/2015, que as eleições se regem por este Compromisso, pelo Direito Canónico e pela lei civil, conferindo-se inequivocamente primazia ao Compromisso e ao Direito Canónico.

Do mesmo modo, o artigo 69º/1 do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, prescrevendo embora que “às irmandades da Misericórdia aplica-se directamente o regime jurídico previsto no presente Estatuto”, logo ressalta a primazia do Compromisso, ao prescrever “sem prejuízo dos termos do Compromisso estabelecido entre a União das Misericórdias Portuguesas e a Conferência Episcopal, ou documento bilateral que o substitua”.

Pois bem.

Considerando-se a primazia conferida em matéria de eleições ao Compromisso da Irmandade, cumpre salientar que consta do n.º 3 do citado artigo 34º que, proclamados os eleitos para Corpos Gerentes (cfr. n.º 2), o Presidente da Mesa da Assembleia Geral “comunicará ao Bispo diocesano para homologação no prazo de oito dias (…)”; sendo que, nos termos do n.º 4 subsequente, “as reclamações contra a lista ou listas de candidatura serão decididas pelo Presidente da Mesa da Assembleia Geral e da decisão deste cabe recurso canónico para o Bispo diocesano”. Concluindo o n.º 6, do citado artigo 34º, do Compromisso, que “o contencioso eleitoral é da competência do Bispo diocesano, nos termos do Direito Canónico” (todos os sublinhados são da autoria da signatária).

Ou seja: a homologação da eleição, a decisão quanto aos recursos das decisões tomadas quanto às reclamações contra a lista ou listas de candidatura e todo o contencioso eleitoral atinente à eleição dos corpos gerentes são da competência do Bispo diocesano. [E tanto assim é que - sem que haja notícia nos autos de qualquer reacção contra tal decisão – por decisão do Senhor Bispo da Diocese de Leiria-Fátima, datada de 31/12/2015, que recaiu sobre o acto eleitoral de 12 de Dezembro de 2015 na Santa Casa da Misericórdia de Leiria, foram homologados os corpos sociais da Santa Casa da Misericórdia de Leiria constituídos pela lista mais votada no acto eleitoral de 12/12/2015 e que tinha como candidato a Provedor o Senhor Engenheiro C (...) ].

Ao atribuir-se competência, nos termos do Compromisso, ao Senhor Bispo Diocesano para homologação dos corpos gerentes da Irmandade, atribui-se necessariamente ao mesmo competência para apreciar a legalidade de todos os actos atinentes ao processo eleitoral, desde a abertura do mesmo, passando pela admissão das candidaturas e culminando na votação eleitoral: actos da vida interna da segunda requerida.

Como se escreve em conformidade no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14/05/2015, “a aprovação dos corpos gerentes da Irmandade pelo Ordinário Diocesano ou pela Conferência Episcopal implica a validação de todo o atinente processo eleitoral, desde a abertura do mesmo, passando pela admissão das candidaturas e culminando na votação eleitoral”.

É precisamente sobre as alegadas irregularidades ou ilegalidades cometidas e associadas ao processo eleitoral que culminou no acto de 12/12/2015 que versam estes autos.

Todavia, estando a sua competência decisória final atribuída ao Senhor Bispo diocesano, nos termos expostos, não competirá aos tribunais judiciais a apreciação de qualquer irregularidade desse processo eleitoral.

Como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17/12/2009, “face ao preceituado nos artigos 10º,11º e 12º da Concordata de 2004 [acima transcritos], não se situa no âmbito da jurisdição dos tribunais portugueses a dirimição de litígios situados na vida interna de pessoas jurídicas canónicas, regidos pelo Direito Canónico, aplicado pelos órgãos e autoridades do foro canónico que exerçam uma função de vigilância e fiscalização sobe as mesmas; os tribunais portugueses apenas são competentes para a aplicação dos regimes jurídicos instituídos pelo direito português quanto às actividades de assistência e solidariedade, exercidas complementarmente pelas pessoas jurídicas canónicas”.

Em suma: os tribunais judiciais são absolutamente incompetentes em razão da matéria para a apreciação do contencioso eleitoral e, assim, para a apreciação da legalidade dos actos associados ao processo eleitoral em causa e para conhecer do litígio em apreço nos termos pretendidos pelos requerentes.

Sendo certo que a competência residual a que se reportam os requerentes, plasmada no artigo 40º/1 da Lei n.º 62/2013, de 26/08, não tem cabimento no caso decidendo, porque, como se referiu, a competência material para a causa está, de facto, atribuída.»

(realce e sublinhado nosso)

6.2.

Como emerge dos normativos da Concordata, do Estatuto das IPSS e do próprio compromisso (estatuto) da Misericórdia de Leiria ora requerida,  citados e referenciados na decisão, as misericórdias são pessoas de direito canónico às quais, assim, se aplica, prima facie e salvo  casos especiais ou excecionais, o direito canónico a, por conseguinte, ser interpretado e aplicado pelos respetivos órgãos eclesiásticos.

E como  outrossim dimana do seu teor e dos arestos nela citados, o quid essencial a atender para se concluir se  o caso se subsume na regra ou na exceção aplicação da lei canónica e da lei civil às Misericórdias, atém-se à natureza/tipo das questões a apreciar e decidir.

As quais se podem perspetivar, fundamentalmente, por referência  a dois nucleares padrões de questões:  aquelas em que está em causa a violação do direito canónico ou internas; e aquelas em que está em causa a violação do direito estadual ou  externas.

Assim, às questões  internas, vg.,  atinentes à sua organização e funcionamento, aplica-se, por via de regra, como elucidativamente dimana dos normativos citados na decisão, a lei canónica, e, consequentemente, sendo competentes para apreciá-las e decidi-las os tribunais ou órgãos eclesiásticos.

Já às questões externas, concernentes com as relações que tais entidades estabeleçam e efetivem com a comunidade em que se inserem, aplica-se, pelo menos por via de regra, a lei Estadual, pelo que, decorrentemente, são competentes para apreciar e decidir os tribunais do Estado em que se inserem – cfr.  Ac. do STJ de 26.04.2007, p. 07B723; Acs. da RC: de 16.06.2009, p. 467/08.9TBSRT.C1; de 17.05.2011, p. 646/09.1TBFND.C1; e 10.09.2013, p. 246/11.6TBOFR.C1, in dgsi.pt.

In casu.

As questões colocadas em causa pelos requerentes – apreciação da regularidade de deliberações de órgãos da SC da Misericórdia e do processo eleitoral  que nela e para ela teve lugar -, meridianamente se  assumem e alcançam como assuntos internos, próprios e  de jaez canónico.

Logo, e sem margem para grandes dúvidas, as questões devem ser dilucidadas e escalpelizadas no foro interno, em atenção às normas e regulamentos que regem para as mesmas, e pelos órgãos – neste caso o Sr. Bispo – competentes para o efeito.

Neste sentido, e para além do aresto citado na decisão e o Ac. da RP de 27.04.2009, in dgsi.pt citado pelos requeridos,   se decidiu no Ac. do STJ de  11.07.1985, p. 072890 in dgsi.pt.  e no Ac. do STJ de  17.02.2005, p. 05B116.

Com o seguinte teor sinóptico:

«I - Por força da Concordata celebrada entre Portugal e a Santa Se, em 7 de Maio de 1940, a Igreja Catolica pode organizar-se livremente, de harmonia com as normas do direito canonico, e constituir por essa forma associações, corporações ou institutos religiosos, canonicamente erectos, a que o Estado portugues reconhece personalidade juridica.

II - As irmandades das Misericordias constituem associações da Igreja Catolica, no expresso reconhecimento do artigo 49 do Estatuto das instituições particulares de solidariedade social, aprovado pelo Decreto-Lei n. 119/83, de 25 de Fevereiro.

III - As instituições da Igreja Catolica estão submetidas a tutela da autoridade eclesiastica que, no tocante as de ambito diocesano, e o competente Ordinario, o qual as orienta, aprova os seus corpos gerentes e os relatorios e contas anuais respectivos (artigo 48 do referido Estatuto).

IV - Competindo ao Ordinario diocesano, por força do normativo legal, a aprovação dos corpos gerentes das Misericordias, caber-lhe-a tambem, por necessaria inerencia, verificar a regularidade da eleição.

V - São, assim, incompetentes os tribunais comuns para apreciar as irregularidades alegadamente verificadas na eleição dos corpos gerentes de uma Misericordia.» Ac. do STJ de  17.02.2005.

«I. O acto da Mesa Administrativa de uma Misericórdia relativo à admissão, filiação ou adesão de novos irmãos como membros efectivos da Irmandade respeita exclusivamente à vida interna ou inter-orgânica da instituição em causa, cuja fiscalização e tutela competem, por isso, ao "Ordinário Diocesano".

II. Não cabe, assim aos tribunais indagar da idoneidade ou da inidoneidade dos candidatos à filiação nesse instituto eclesial, e muito menos sindicar a "legalidade", ou sequer a oportunidade ou a conveniência, do acto de apreciação (positiva ou negativa) dessas candidaturas ou pedidos de filiação/admissão.

III. E daí a incompetência dos tribunais comuns "ratione materiae" para a sindicância da questionada legalidade e, consequentemente, para a apreciação de providência cautelar de suspensão da decisão da mesa administrativa - órgão executivo da Misericórdia - sobre a admissão de novos irmãos.» - Ac. do STJ de  17.02.2005.

Improcede, brevitatis causa, o recurso.

7.

Sumariando.

I -Os tribunais civis, ao menos por via de regra, apenas cobram competência para apreciar questões atinentes às Misericórdias se elas disserem respeito às relações externas por estas estabelecidas com a comunidade ou às quais seja aplicado o direito civil estadual.

II - O pedido de declaração da nulidade da deliberação  de órgãos da Misericórdia e do ato eleitoral nela e para ela realizado é questão interna a que se aplicam regras próprias, pelo que para a sua apreciação falece competência material aqueles tribunais, sendo assim competentes para o efeito os tribunais e orgãos eclesiásticos.

8.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pelos recorrentes.

Coimbra, 2016.09.20

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Fonte Ramos