Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
35/09.8GTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
LIVRE CONVICÇÃO DO JULGADOR
DEPOIMENTO INDIRECTO
PROVA INDICIÁRIA
PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 12/09/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 32º DA CRP; 348º, Nº1 DO CP; 152º, Nº3 DO CE; 127º,355 E 410º º DO CPP
Sumário: 1 A convicção do Tribunal a quo é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.
2.O preceituado no art.127.º do Código de Processo Penal deve, assim, ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.
3. A prova indirecta “ … reside fundamentalmente na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova” – cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, “ Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág. 289.

4.De acordo com o disposto no art.128.º, n.º1, do C.P.P., a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova.
A testemunha tem conhecimento directo dos factos quando se apercebe deles imediatamente , por si, através dos seus sentidos.
5.No depoimento indirecto aquilo de que a testemunha se apercebeu foi de outros meios de prova, mas não imediatamente dos próprios factos.
6..Em regra , o interesse do depoimento indirecto é o de permitir que seja ouvida a pessoa que teve conhecimento directo do facto. Se essa pessoa não for ouvida o depoimento dela não pode, nesssa parte, servir como meio de prova, por a sua utilização e valoração ser incompatível com os princípios da imediação e contraditório , próprios da estrutura acusatória do nosso processo ( artigos 348.º, n.º 4 e 355.º, n.º1 do Código de Processo Penal).
7.Tendo as testemunhas F… e Z, militares da GNR, se limitado a narrar os factos que viram e ouviram no local do acidente de viação no âmbito de averiguação da ocorrência de que tomaram conta, nada obstava a que o Tribunal a quo pudesse valorar, como valorou, os seus depoimentos.
8.Da fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida resulta claro que as testemunhas F… e Z, militares da GNR, não declararam ao Tribunal a quo, em momento algum, que concluíram que o arguido fora o condutor do veículo automóvel, nas circunstâncias de tempo e lugar em causa, porque o ouviram dizer ao próprio arguido.
9.O Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito do principio do in dbio pro reo se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que , face a ele , escolheu a tese desfavorável ao arguido.
10.Da fundamentação da matéria de facto da douta sentença não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha chegado a qualquer estado de dúvida sobre a prática pelo arguido N… dos factos dados como provados. Pelo contrário, o tribunal a quo explicitou na fundamentação da matéria de facto que “ Face a toda esta prova, não tivemos dúvidas, que o arguido conduzia o veículo em causa e se recusou a efectuar o teste de pesquisa do álcool no sangue.”
Decisão Texto Integral: Relatório

Pelo 4.º Juízo Criminal de Coimbra, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, em processo abreviado, o arguido
N…, solteiro, filho de B… e de C…, nascido em …., Oliveira do Hospital, a .../…/79, e residente ….
imputando-se-lhe a prática de factos pelos quais teria cometido um crime de desobediência, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 348, n.º 1, alínea a) do Código Penal e 152.º, n.ºs 1, alínea a) e 3 do Código da Estrada.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a … de … de 2009, decidiu julgar a acusação do Ministério Público procedente e, em consequência:
- condenar o arguido N…, pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal e 152.º, n.º 3 do Código da Estrada, na pena de 100 ( cem) dias de multa, à taxa diária de € 7 ( sete), o que perfaz a quantia de € 700 ( sete centos euros); e
- inibir o arguido na faculdade de conduzir pelo período de 5 ( cinco) meses e 15 ( quinze) dias.

Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o arguido N… concluindo a sua motivação do modo seguinte:
1 - O arguido foi condenado apenas e tão só com base no depoimento das testemunhas F., Z… e S...
2 - Sendo que essas testemunham não presenciaram os factos constantes da acusação, designadamente os referidos no ponto 1 da matéria de facto dada como provada.
3 - Apenas e tão só referiram ao tribunal aquilo que alegadamente ouviram do arguido, tratando-se portanto de um depoimento indirecto que não serve como meio de prova, tomando em conta o disposto no artigo 129 n.º 1 do C.P.P.
4 - Havendo assim contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova.
5 - Pelo que por conseguinte e ainda pela circunstância de as testemunhas F…, Z… e S, não terem presenciado os factos da acusação, deveria o tribunal estar perante uma situação de dúvida razoável face a não haver certeza absoluta.
6 - Tal facto deveria funcionar em benefício do arguido de acordo com o princípio constitucional do in dubio pro reo e como tal o mesmo vir a ser absolvido.
7 - A douta-sentença recorrida violou ou não fez uma aplicação correcta do disposto nos artigos 348.º do C.P., 152.º do CE, 129.º e 410.º n.º 2 do C.P.P.
Termos em que, tomando em conta o acima alegado e fundamentalmente com o douto suprimento de V.Exas. deve o presente recurso da matéria de facto ser julgado procedente e em consequência deve revogar-se a douta sentença recorrida e como tal o recorrente ser absolvido do crime porque foi condenado com as legais consequências.

O Ministério Público na Comarca de Coimbra respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ex.mo Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n .º 2 do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.
Fundamentação

A matéria de facto apurada e respectiva convicção constante da sentença recorrida é a seguinte:
Factos provados
1. No dia 07 de ….. de 2009 pelas, …H20M, no IP3, ao Km …. CN, …., área desta Comarca, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula… quando foi interveniente em acidente de viação (despiste).
2. Na ocasião pelo Sr. F… Cabo a prestar serviço no Destacamento de Trânsito de Coimbra da G.N.R., que ali se deslocou e que na ocasião ali se encontrava devidamente uniformizado e no exercício das suas funções de fiscalização, foi solicitado ao arguido que o mesmo se sujeitasse a exame de pesquisa de álcool no sangue.
3. Apesar de no local e por repetidas vezes, ter sido advertido pelos elementos policiais presentes que tinha o dever de se sujeitar a tal exame, por se encontrar a conduzir um veículo na via pública, o arguido sempre se manteve firme na sua posição de não realizar o teste referido, o que aconteceu.
4. Ao agir como o descrito, o arguido queria e conseguiu inviabilizar a realização do teste de pesquisa de álcool no sangue, obstando deste modo à verificação legal da sua T.A.S., bem sabendo ser seu dever submeter-se ao mesmo e logrando deste modo eximir-se a tal obrigação que sobre si recaía.
5. Agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta lhe estava vedada por lei.
6. O arguido aufere cerca de € 450 mensais e vive com a sua mãe.
7. O arguido foi condenado, em …../….2004 , pela prática de dois crimes de condução perigosa de veiculo, na pena única de 7 meses de prisão, suspensa pelo período de 2 anos, por factos ocorridos em …/…./.2003. Esta pena foi declarada extinta em …/…./.2006.
8. Foi, ainda, condenado, em …./…2007, pela prática de um crime de desobediência, um crime de furto qualificado e um crime de dano simples, praticados em …/…..2006, na pena única de 370 dias de multa, à taxa diária de € 6.
Factos não provados
Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa, mormente que quem conduzia o veículo acima identificado era M…
Convicção
Os factos dados como provados e não provados assentam numa apreciação crítica e global de toda a prova produzida no seu conjunto.
Vejamos, então, em pormenor.
O arguido veio dizer que não conduzia o seu veículo, e que este era conduzido pela sua miga M… estado numa discoteca, com o seu amigo E, e, quando saíram, veio no carro do E e a M… conduziu o seu veículo, pois, alegadamente, ele, não estava em condições de o fazer, por ter ingerido bebidas alcoólicas.
Depois, segundo ele, a M… despistou-se e o arguido e o seu amigo retiraram-na do carro e esta seguiu viagem, com a testemunha E e o arguido ficou no local.
Admitiu, no entanto, que se recusou a efectuar o teste de pesquisa de álcool no sangue.
Como se constata da análise da matéria de facto dada como provada e não provada não
acreditamos nas declarações do arguido quando referiu que não era o condutor do veículo acidentado.
Vejamos, pois, os motivos.
Os agentes de autoridade F…. e Z referiram que quando chegaram ao local o arguido disse que o carro não era seu e que apenas estava a ver o que se passava. Perante isto, os agentes foram ao veículo e retiraram os documentos, vindo depois a constatar pela análise da base de dados que dispõem nos seus veículos, que o proprietário do carro era o arguido. Ou seja, este desde o início faltou à verdade para se furtar às suas responsabilidades.
Então, quando foi confrontado com o facto de ser o proprietário do veículo, o arguido reagiu mal, dizendo que os agentes não podiam ter ido ao carro e mudou de estratégia, referindo que o carro era seu mas quem o conduzia era amigo que já se tinha ido embora (em julgamento, no entanto, disse que era uma amiga).
Como se vê, o arguido, tentou sempre não assumir a prática dos factos, no entanto, há um dado objectivo de relevante valor que não deixou margem para dúvidas que era o arguido quem conduzia o veículo em causa. Com efeito os referidos agentes e o próprio arguido confirmaram que o carro teve danos do lado esquerdo e que o vidro ao lado do condutor se partiu, o que, aliás, é visível nas fotografias de fls 7 e 8. Os referidos agentes confirmaram, ainda, que o arguido tinha ferimentos na mão esquerda e na face esquerda. Ou seja, tinha lesões compatíveis com o acidente de que acabará de ter sido vítima.
Os agentes também relataram que solicitaram ao arguido a realização do teste de pesquisa de álcool no sangue e que este sempre se recusou a fazê-lo.
Acresce a todos estes factos o depoimento da testemunha S…, que compareceu no local com o seu reboque para levar o veículo do arguido, e que nos disse que este só depois da GNR se ter ausentado do local lhe mostrou e entregou a chave do mesmo, referindo que não a tinha entregue antes para a polícia não saber que era ele o condutor. Também esta testemunha confirmou que , na presença da GNR, o arguido alegava que era um amigo seu que tinha conduzido o veiculo, nunca referindo que era uma senhora.
Todavia, as testemunhas E e M.. referiram que era esta quem conduzia o veículo. No entanto, não acreditamos nas suas declarações, pois foram muitas as contradições dos seus depoimentos. Vejamos, então, as mais relevantes. O arguido referiu que naquela madrugada estava muito nevoeiro e andaram à procura do carro depois de este se ter despistado. A testemunha E disse que quando iam na estrada viram logo o carro despistado (o que implicava que não estivesse nevoeiro).
Nenhum deles se lembrava por que porta tinha saído a alegada condutora, o que é no mínimo estranho.
A testemunha E referiu que foi ele quem levou a M a casa a S….
Esta, por seu turno, disse que a testemunha E a tinha levado a O….
Todas estas divergências desacreditaram o depoimento das testemunhas que, assim, não nos mereceram credibilidade.
Face a toda esta prova, não tivemos dúvidas, que o arguido conduzia o veículo em causa e se recusou a efectuar o teste de pesquisa do álcool no sangue.
Quanto aos factos relatados em 4 e 5, a sua prova resulta da conjugação dos restantes factos dados como provados. Como se refere no, Ac. da RP. de 23.02.93, B.M.J. 324/620, "dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar, a: sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência". No mesmo sentido vide Ac.da RP..0140379, de 03.10.2001, Ac. R.G. 1559/05.1, de 14.12.2005, ambos em www.jurisprudencia.vlex.pt.
Aceitamos as declarações do arguido quanto à sua situação económica e familiar, dada a ausência de outra prova.
Os antecedentes criminais do arguido estão provados pelo certificado junto aos autos a fls. 29 a 3 1.

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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98. e de 24-3-1999 Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247. e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350. , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
No caso dos autos , face às conclusões da motivação do recorrente N… as questões a decidir são as seguintes :
- se a sentença recorrida padece dos vícios da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova, a que alude o art.410.º, n.º 2 do C.P.P., uma vez que o arguido foi condenado apenas com base no depoimento das testemunhas F…, Z e S, as quais não presenciaram os factos constantes da acusação, designadamente os referidos no ponto 1 da matéria de facto dada como provada, e sendo o seu depoimento indirecto não serve como meio de prova, atento o disposto no artigo 129.º, n.º 1 do C.P.P.; e
- se, da circunstância de as testemunhas F…, Z … e S, não terem presenciado os factos da acusação, deveria o tribunal ficar perante uma situação de dúvida razoável e beneficiar do princípio constitucional in dubio pro reo.

Passemos ao conhecimento da primeira questão.
Em matéria de apreciação de prova, o art.127.º do Código de Processo Penal estatui que « Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.».
As regras ou normas da experiência são, como refere o Prof. Cavaleiro de Ferreira , «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.» - Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300.
Sobre a livre convicção do juiz diz o Prof. Figueiredo Dias que esta é “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - , mas em todo o caso , também ela uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros .”- Cfr., in “Direito Processual Penal”, 1º Vol. , Coimbra Ed. , 1974, páginas 203 a 205.
O principio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art. 355.º do Código de Processo Penal . È ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova , na recepção directa de prova.
O principio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo , pessoal , entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar , e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.
Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias , ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação diz o mesmo: « Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito , na realidade , que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita , desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha , e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) .Só estes princípios , com efeito , permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido , a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem , por outro lado , avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.” - In “Direito Processual Penal”, 1º Vol. , Coimbra Ed. , 1974, páginas 233 a 234 .
Na verdade, a convicção do Tribunal a quo é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.
O preceituado no art.127.º do Código de Processo Penal deve, assim, ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.
De acordo com o disposto no art.128.º, n.º1, do C.P.P., a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova.
Não se deve confundir o depoimento da testemunha com conhecimento directo dos factos e o depoimento indirecto, por um lado, e prova directa e indirecta, por outro.
A testemunha tem conhecimento directo dos factos quando se apercebe deles imediatamente , por si, através dos seus sentidos.
Quando a testemunha não tem conhecimento imediato dos factos, mas apenas através de “ouvir dizer” a outra pessoa , estamos no âmbito do depoimento indirecto. No depoimento indirecto aquilo de que a testemunha se apercebeu foi de outros meios de prova, mas não imediatamente dos próprios factos . cf. Prof. Germano Marques da Silva , Curso de Processo Penal, II, edição Verbo, 1993, pág. 132.
O art.129.º do Código de Processo Penal, que regula o depoimento indirecto de uma testemunha, sobre o que ouviu dizer a outra pessoa, estatui no seu n.º1 o seguinte:
« 1. Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.»
Em regra , o interesse do depoimento indirecto é o de permitir que seja ouvida a pessoa que teve conhecimento directo do facto.
Se essa pessoa não for ouvida o depoimento dela não pode, nesssa parte, servir como meio de prova, por a sua utilização e valoração ser incompatível com os princípios da imediação e contraditório , próprios da estrutura acusatória do nosso processo ( artigos 348.º, n.º 4 e 355.º, n.º1 do Código de Processo Penal).
A regra tem excepções, podendo o depoimento da testemunha de ouvir dizer servir como meio de prova quando a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.
Este preceito, conjugado com o art.128.º do C.P.P., mereceu já a apreciação do Tribunal Constitucional.
Embora num âmbito não directamente aplicável à presente questão, o acórdão n.º 440/99, , do Tribunal Constitucional, decidiu que «... o artigo 129.º, n.º1 ( conjugado com o artigo 128.º, n.º 1) do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas, que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido.».
Quanto ao objecto da prova, este pode incidir sobre os factos probandos ( prova directa ), como pode incidir sobre factos diversos do tema da prova, mas que permitem , com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto a este ( prova indirecta ou indiciária).
A prova indirecta “ … reside fundamentalmente na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova” – cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, “ Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág. 289.
Como salienta o acórdão do STJ de 29 de Fevereiro de 1996 , “ a inferência na decisão não é mais do que ilação , conclusão ou dedução , assimilando-se todo o raciocínio que subjaz à prova indirecta e que não pode ser interdito à inteligência do juiz.” – cfr. Revista Portuguesa de Ciência Criminal , ano 6.º , tomo 4.º, pág. 555. No mesmo sentido, o acórdão da Relação de Coimbra, de 9 de Fevereiro de 2000, ano XXV, 1.º, pág. 51.
Quanto aos vícios do art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal, diremos que o preceito estatui que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ; ou
c) O erro notório na apreciação da prova .
Os vícios do art.410.º, n.º 2 do C.P.P. têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem que seja possível a consulta de outros elementos constantes do processo.
O vício da contradição a que alude a al.b), existirá quando se afirmar e negar ao mesmo tempo uma coisa.
Duas proposições contraditórias não podem ser, ao mesmo tempo, verdadeiras e falsas.
“Só existe, pois, contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados”- Cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, in “Código de Processo Penal anotado” , 2ª ed., pág. 739.
Por fim, o erro notório na apreciação da prova, a que alude o art.410.º, n.º 2 do C.P.P., tem lugar “... quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável , quando se dá como provado algo que notoriamente está errado , que não podia ter acontecido , ou quando , usando um processo racional e lógico , se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica , arbitrária e contraditória , ou notoriamente violadora das regras da experiência comum , ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto ( positivo ou negativo ) contido no texto da decisão recorrida”. - Cfr. Cons. Simas Santos e Leal-Henriques , in “Código de Processo Penal anotado”, Rei dos Livros , 2ª ed. ,Vol. II , pág. 740. No mesmo sentido decidiram , entre outros , o acórdão do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º , pág.182 ).
O erro notório na apreciação da prova, nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correcta face à prova produzida em audiência de julgamento.
O arguido N… impugna a matéria de facto dada como provada nos pontos n.ºs 1, 3, 4 e 5 da sentença recorrida alegando, em síntese, que as testemunhas F… e Z.. , militares da GNR , e S.., proprietário do reboque, não viram o arguido a conduzir o veículo automóvel nas circunstâncias de tempo e lugar que constam dos factos provados, pelo que os seus depoimentos são indirectos e de nada valem nos termos do art.129.º do C.P.P.. A tese do arguido, de que era a M… que conduzia o veículo, foi sufragada por esta testemunha e pela testemunha E, pese embora alguma contradição e falhas nos seus depoimentos, pelo que se impunha que o Tribunal a quo desse como não provada a matéria de facto da sentença recorrida que consta do ponto n.º1 como provada. Daqui conclui o recorrente que « O sufragado pelas 2 teses em confronto surge assim como incompreensível, correspondendo a erro notório na apreciação da prova e contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, encontrando-se assim preenchidas as previsões das alíneas b) e c) do n.º2 do art.410.º do C.P.P.».
Vejamos.
Da fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida resulta claro que as testemunhas F… e Z, militares da GNR, não declararam ao Tribunal a quo, em momento algum, que concluíram que o arguido fora o condutor do veículo automóvel, nas circunstâncias de tempo e lugar em causa, porque o ouviram dizer ao próprio arguido.
As testemunhas F… e Z.. transmitiram ao Tribunal factos de que se aperceberam através dos seus sentidos, e não de ouvir dizer, quando declararam que ao tomar conta de um acidente de viação, com despiste, encontraram no local o arguido que lhes disse que o carro acidentado não era seu e que apenas estava a ver o que se passava. O mesmo testemunho directo ocorre ainda quando declararam que perante isto, foram ao veículo e retiraram os documentos, vindo depois a observar pela análise da base de dados que dispõem nos seus veículos, que o proprietário do carro era o arguido e que este quando foi confrontado com o facto de ser o proprietário do veículo, reagiu mal, dizendo que os agentes não podiam ter ido ao carro, referindo que o carro era seu mas quem o conduzia era um amigo que já se tinha ido embora.
Os referidos agentes declararam ainda que viram que o carro acidentado tinha danos do lado esquerdo, que o vidro ao lado do condutor se partiu e que o arguido tinha ferimentos na mão esquerda e na face esquerda, lesões estas compatíveis com o acidente, pelo que solicitaram ao arguido a realização do teste de pesquisa de álcool no sangue e este sempre se recusou a fazê-lo.
Tendo as testemunhas F… e Z se limitado a narrar os factos que viram e ouviram no local do acidente de viação no âmbito de averiguação da ocorrência de que tomaram conta, nada obstava a que o Tribunal a quo pudesse valorar, como valorou, os seus depoimentos.
Relativamente ao depoimento da testemunha S ..., que compareceu no local com o seu reboque para levar o veículo do arguido, resulta da fundamentação da matéria de facto que a mesma declarou que só depois da GNR se ter ausentado do local é que o arguido lhe mostrou e entregou a chave do veículo acidentado, referindo-lhe que não a tinha entregue antes para a polícia não saber que era ele o condutor, e que na presença da GNR, o arguido alegava que era um amigo seu que tinha conduzido o veiculo, nunca referindo que era uma senhora.
A testemunha S não disse que viu o arguido a conduzir o veículo acidentado, mas apenas que ouviu do arguido que foi ele o condutor do mesmo.
Nesta parte, o depoimento de ouvir dizer da testemunha S… deixou bem determinada a pessoa a quem o ouviu: ao arguido.
O arguido esteve presente em audiência de julgamento, tendo mesmo prestado declarações, pelo que pôde exercer o contraditório, no âmbito da imediação.
Assim, nada impedia o Tribunal a quo de valorar também o depoimento da testemunha S.
Em suma, a valoração dos depoimentos das testemunhas F…, Z e S, não violou o disposto no art.129.º, n.º1 do C.P.P..
Quanto aos vícios do art.410.º, n.º2 do Código de Processo Penal, apontados pelo recorrente à sentença recorrida, diremos que não se detecta entre a fundamentação, da matéria de facto e de direito, e a decisão, qualquer contradição e menos ainda insanável.
Resulta da fundamentação da matéria de facto que havia em julgamento uma “tese”, defendida pelo arguido e pelas testemunhas M… e E, no sentido de que aquele não era o condutor do veículo e havia uma outra, no sentido de que aquando do acidente era o arguido o condutor do veículo.
A opção pela segunda destas “teses” , expressa na fundamentação da matéria de facto pelo Tribunal a, no âmbito da imediação e da oralidade , dando credibilidade à versão dos factos apresentada pelas testemunhas F…, Z… e S, é racional , encontrando suporte nos danos no veículo e lesões apresentadas pelo arguido no local onde o veículo se encontrava acidentado, nas fotografias de folhas 7 e 8, bem como nas inúmeras contradições apresentadas entre o arguido e as testemunhas M… e E, tudo conjugado com as regras da experiência comum, nada tem de contraditório. A decisão, que foi condenatória, está em consonância com os factos provados e a fundamentação de facto e de direito.
Do texto da decisão recorrida, nomeadamente da fundamentação da matéria de facto, também não resulta que o Tribunal a quo ao dar como provada a matéria de facto que o recorrente impugna, tenha seguido um raciocínio ilógico, arbitrário ou contraditório, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, de onde se possa concluir pela existência de um erro notório na apreciação da prova.
O arguido N… foi a única pessoa encontrada junto ao veículo acidentado. Faltou à verdade quando mencionou que o veículo lhe pertencia. Apresentava lesões em local compatível com os danos que se viam no veículo, no lugar onde se coloca o condutor.
Não se apurou que qualquer outra pessoa tivesse exercido a condução do seu veículo ou tivesse estado no local do acidente quando este ocorreu, sendo que o arguido declarou mesmo para a testemunha S… que tinha sido ele o condutor do veículo.
Deste modo, concluímos que a sentença recorrida não padece dos vícios enunciados no art.410.º, n.º 2 , alíneas b) e c) do C.P.P..

Passemos agora a conhecer da última questão objecto do recurso.
O principio “in dubio pro reo” estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido.
O mesmo identifica-se com a presunção de inocência do arguido a que alude o art.32.º, n.º 2 , da Constituição da República Portuguesa, e impõe que o julgador valore sempre em favor daquele um non liquet.
O Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse principio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que , face a ele , escolheu a tese desfavorável ao arguido .- Cfr. entre outros , o acórdão do S.T.J. de 2 e Maio de 1996 ( C.J. , ASTJ , ano IV , 1º, pág. 177 ) .
Da fundamentação da matéria de facto da douta sentença não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha chegado a qualquer estado de dúvida sobre a prática pelo arguido N… dos factos dados como provados. Pelo contrário, o tribunal a quo explicitou na fundamentação da matéria de facto que “ Face a toda esta prova, não tivemos dúvidas, que o arguido conduzia o veículo em causa e se recusou a efectuar o teste de pesquisa do álcool no sangue.
O que resulta daquela , da fundamentação de direito e do dispositivo, é um estado de certeza do Tribunal recorrido relativamente à prática pelo arguido/recorrente dos factos dados como provados.
Face á fundamentação da matéria de facto também o Tribunal da Relação não pode deixar de concluir que a versão do arguido, apoiada em contraditórias declarações prestadas pelas testemunhas M… e E, não podia proceder de modo algum.
Está deste modo afastada a violação pelo Tribunal recorrido dos principios “in dubio pro reo” e da presunção de inocência do arguido.
Em suma, não se mostrando violada qualquer das normas invocadas pelo arguido nas conclusões da motivação, improcede totalmente o recurso.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido N…. e manter a douta sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando em 4 Ucs a taxa de justiça, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.

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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).

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Coimbra,