Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
267/11.9GAILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: ARMA
PERDA A FAVOR DO ESTADO
Data do Acordão: 06/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA - AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2º, Nº 1, AL. P) E 3º, Nº 3, 12º, 27º NºS 1 E 2 E 29º Nº 6 DA LEI 5/2006 DE 23 DE FEVEREIRO (REGIME JURÍDICO DAS ARMAS E MUNIÇÕES )
Sumário: 1.- O uso e porte ou detenção de arma da classe B depende de concessão prévia de licença, para o efeito;

2.- Quer as licenças de uso e porte, quer as licenças de detenção têm uma validade finita, pois não há licenças vitalícias;

3.- Uma vez atingido o termo da validade das duas uma: ou o seu detentor nada faz e a situação que a licença acautela deixa de estar conforme à lei; ou renova essa licença, isto para poder manter o status quo;

4.- Não tendo o arguido procedido á renovação da licença, a detenção da arma passou, a partir de então, a infringir a lei e como tal, não sendo possível a obtenção de licença que permita ao arguido manter a referida arma na sua posse, deverá ser declarada perdida a favor do Estado.

Decisão Texto Integral: Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO


1.

Nos presentes autos foi o arguido A... absolvido da prática de um crime de detenção de arma proibida, do art. 86º, nº 1, al. c) e d) da Lei nº 5/2006, de 23/2.

Na mesma decisão foi declarada perdida a favor do Estado a pistola semi-automática de marca Walther, número 42444, calibre 7,65, bem como o respetivo carregador, silenciador e munições.

2.

Inconformado, o arguido recorreu da decisão que declarou o perdimento da arma, retirando da motivação as seguintes conclusões:

«A/ Mostrando-se provado que as armas entraram em Portugal em 1994, sendo desalfandegadas e licenciadas para que o arguido as pudesse ter na sua posse e, uma vez que se encontra em vigor o Dec. Lei 176/85 de 22 de Maio que, na sequência do art. 2º do regulamento CEE nº 918/83 de 28 de Março, foi revogado no seu art. 44º, desse modo conferindo ao detentor de armas no estrangeiro, aquando de regresso ao país de origem, a faculdade de as poder trazer na sua bagagem e, consequentemente, poder proceder ao seu licenciamento, desde que o seu portador fosse titular da relação anexa ao respetivo certificado emitido pelo consulado, o que era o caso, independentemente do seu calibre, não é de declarar perdida a favor do Estado uma arma de calibre 7,65, já que está criado um regime de exceção.

B/ Mesmo a entender-se de modo diverso, dado que as armas se encontram licenciadas e registadas na África do Sul, podendo o arguido aí usá-las, quer para sua defesa, quer para prática da caça, então é de conceder a faculdade ao arguido para, querendo, fazer retornar a arma àquele país onde a tem licenciada».

3.

O recurso foi admitido.

4.

O Ministério Público respondeu, defendendo a manutenção do decidido.

O Exmº P.G.A. emitiu parecer no mesmo sentido.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

5.

Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.

Realizada a conferência cumpre decidir.

 


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FACTOS PROVADOS

6.

Na sentença recorrida foram dados como provados, além do mais, os seguintes factos:

«1 – No dia 9 de Setembro de 2011, cerca das 10 horas e 40 minutos, o arguido detinha, devidamente acondicionadas num cofre, no interior da sua residência sita na rua D. Manuel Trindade Salgueiro, nº 105, r/ch. esquerdo, na Gafanha da Nazaré, Ílhavo … as seguintes armas e munições:

- uma pistola de calibre 7,65, da marca Walther, com o número 424441, de funcionamento semi-automático, com cano estriado, com o comprimento de 10 centímetros, com o respectivo carregador, contendo sete munições do mesmo calibre e respectivo coldre em cabedal de cor castanho;

2 – As referidas armas encontram-se registadas em nome do arguido, encontrando-se juntos aos autos os respectivos livretes, com excepção do livrete da pistola.

3 – O arguido não tem licença de uso e porte de arma de fogo válida, nem de detenção no domicílio.

Mais se provou que:

4 – O arguido esteve emigrado em Africa do Sul, onde trabalhou no ramo ligado ao fabrico de acessórios para armamento, sendo as armas oferecidas pelas respectivas fábricas de armamento que visitou, na Europa, África e no Japão.

5 – As armas encontram-se registadas e licenciadas na África do Sul, podendo o arguido aí usá-las, quer para sua defesa, quer para a prática da caça.

6 – As armas entraram em Portugal em 1994, sendo desalfandegadas, manifestadas e licenciadas para que o arguido as pudesse ter na sua posse, sendo sempre transportadas dentro de um cofre metálico, para a residência do arguido, onde permaneceram, saindo apenas para serem oleadas e tratadas.

…».


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DECISÃO

Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.

Por via dessa delimitação a questão a decidir respeita à legalidade da declaração de perdimento da pistola semi-automática marca Walther, número 42444, calibre 7,65, carregador, silenciador e munições, decretada pelo tribunal recorrido.


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            Provou-se que o arguido tinha na sua habitação um pistola de calibre 7,65, da marca Walther, com o número 424441, de funcionamento semi-automático, com cano estriado, com o comprimento de 10 centímetros, com o respectivo carregador, contendo sete munições do mesmo calibre e respectivo coldre em cabedal de cor castanho.

            O arguido trouxe esta arma da África do Sul, onde esteve emigrado, em 1994, altura em que foi desalfandegada, manifestada e licenciada, para que o arguido a pudesse ter na sua posse.

A arma está registada em nome do arguido, que não tem licença de uso e porte de arma de fogo válida, nem de detenção no domicílio.

            Nos termos do art. 86º, nº 1, al. c), da Lei 5/2006, de 23/2, comete o crime de detenção de arma proibida, punível com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias, quem, sem estar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo arma das classes B.

            Tendo presente a classificação constante dos art. 2º, nº 1, al. p) e 3º, nº 3, da lei, a pistola do arguido integra a classe B.

            Do art. 12º da referida lei resulta que o uso e porte ou detenção de arma da classe B depende de concessão prévia de licença, para o efeito.

            Desta norma resulta que a detenção de armas, para ser válida, exige licenciamento prévio, que pode ser para uso e porte ou para simples detenção no domicílio (art. 13º e segs.).

            No entanto, qualquer que seja o caso, a licença tem uma duração temporária.

            Efetivamente, do nº 1 e 2 do art. 27º da lei resulta que quer as licenças de uso e porte, quer as licenças de detenção têm uma validade finita, pois não há licenças vitalícias.

Uma vez atingido o termo da validade das duas uma: ou o seu detentor nada faz e a situação que a licença acautela deixa de estar conforme à lei; ou renova essa licença, isto para poder manter o status quo.

            Ora, no caso dos autos o arguido não renovou a licença que, em tempos, possuiu, pelo que a detenção da arma em questão passou, a partir de então, a infringir a lei.

O arguido alega que trouxe a referida arma para Portugal legalmente, ao abrigo do D.L. nº 176/85, de 22/5.

Este diploma visou regulamentar o chamado “regime de bagagem”, estabelecendo as facilidades aduaneiras concedidas aos viajantes.

Sobre o controle aduaneiro, o art. 5º, nº 1, do diploma estabelece a regra, dizendo que as bagagens ou quaisquer objectos transportados pelos viajantes estão sujeitos a controle aduaneiro.

Porém o art. 44º introduziu uma exceção relativamente aos casos de transferência de domicílio, estabelecendo que para esses efeitos não se consideram bagagem, para além do mais, as armas de fogo.

O arguido beneficiou deste regime – e bem -, mas isso não suprime a exigência legal, estabelecida na chamada Lei das Armas, de que todos os detentores de armas têm que ser titulares de licença de uso e porte ou de mera detenção.

A sentença recorrida declarou perdida a favor do Estado a pistola em causa, nos termos do art. 109º do Código Penal.

Diz o nº que desta norma – cuja epígrafe é “perda de instrumentos e produtos” -, que «são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos».

No caso o crime em questão era o de detenção de arma proibida, de cuja prática o arguido foi absolvido.

Portanto, a declaração de perdimento nos termos em que foi decretada não se integra na previsão da norma do art. 109º do Código Penal.

No entanto, a verdade é que o arguido não pode deter a arma, já que os prazos legais de obtenção e/ou renovação da licença, necessária à manutenção da situação, foram inexoravelmente ultrapassados, isto é, tal como decorre do art. 29º da lei já não é possível a obtenção de licença que permita ao arguido manter a referida arma na sua posse.

E em tal caso, conforme estabelece o nº 6 do art. 29º da Lei das Armas, a arma deverá ser declarada perdida a favor do Estado [1].

            Assim, embora com fundamentos diferentes, mantém-se o decidido.


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DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, e na improcedência do recurso, confirma-se a decisão recorrida.

Fixa-se no mínimo a taxa de justiça, devida pelo arguido.


Olga Maurício (Relatora)

Luís Teixeira


[1] Neste sentido vide o acórdão da Relação de Lisboa de 28-9-2010, proferido no processo 24/09.2P5LSB-A.L1-5 e relatado pelo sr. desembargador Jorge Gonçalves.