Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4166/19.8T8LRA-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO
PEAP
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
SITUAÇÃO EPIDEMIOLÓGICA
COVID 19
CASA DE HABITAÇÃO
APREENSÃO
SUSPENSÃO
DEVEDORES SOLIDÁRIOS
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 07/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 3, 8, 20, 95, 222-A CIRE, DECRETO Nº2-A/2020 DE 20/3, LEI N.º 1-A/2020 DE 19/3, LEI N.º 16/2020 DE 29/5.
Sumário: I – As medidas legais – de cariz excepcional e transitório – que foram implementadas em resposta à situação epidemiológica emergente do novo Coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 não obstam à declaração de insolvência dos devedores nem implicam a suspensão da apreensão da sua casa de habitação no âmbito do processo de insolvência; tal situação poderá apenas determinar – nos termos do n.º 6, b) e n.º 7 do art. 6.º-A da Lei n.º 1-A/2020 de 19/03 (na sua actual redacção introduzida pela Lei n.º 16/2020 de 29/05) – a suspensão das diligências destinadas a efectivar e concretizar a entrega do imóvel apreendido que corresponda à casa de morada de família dos devedores.

II – A pendência de um processo especial para acordo de pagamento referente a determinado(s) devedor(es) não constitui fundamento para suspender a instância no âmbito de processo de insolvência referente a outro(s) devedor(es) solidário(s), ainda que a responsabilidade deste(s) resulte apenas de garantia que tenha(m) prestado àquele(s).

III – Uma vez provada a verificação de um dos factos enunciados no n.º 1 do art. 20.º do CIRE (considerados como factos-índices ou presuntivos da situação de insolvência), cabe ao devedor ilidir a presunção de insolvência que a lei associa à verificação desse facto, provando a sua solvência nos termos previstos no n.º 4 do art.º 30.º do mesmo diploma.

IV – Sabendo-se que a situação de insolvência é definida pela impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas, a questão de saber se o devedor é solvente não se reconduz a saber se teria possibilidades o pagar o seu passivo (já vencido) de forma faseada; para demonstrar a sua solvência, o devedor tem que demonstrar que tem possibilidades de cumprir de imediato o seu passivo vencido, seja porque dispõe de rendimentos suficientes para o efeito (ou está em condições de os obter de imediato ou a curto prazo), seja porque dispõe de património cuja venda permita obter o valor que para tal é necessário.

Decisão Texto Integral:






Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

M (…) e marido A (…), residentes (…) , deram início a um processo especial para acordo de pagamento nos termos do disposto nos arts. 222º-A e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que foi concluído sem aprovação do acordo de pagamento.

O Sr. Administrador Judicial Provisório, após ouvir os devedores e os credores, emitiu o parecer previsto no art. 222º-G, nº 4, do CIRE, aí concluindo no sentido de que os devedores se encontram em situação de insolvência actual, requerendo a declaração de insolvência dos mesmos.

Na sequência da notificação que lhes foi efectuada nos termos e para os efeitos do disposto no art. 222º-G, nº 5, do CIRE, os devedores vieram apresentar requerimento onde sustentam não se encontrarem em situação de insolvência. Alegaram, por outro lado, que são meros garantes em relação ao crédito do N (…) e que os devedores principais (sua filha e genro) instauraram processo especial para acordo de pagamento, requerendo, por isso, a suspensão da instância até ao trânsito em julgado da decisão final a proferir nesse processo. Para o caso de a insolvência ser decretada, pediram a exoneração do passivo restante

Na sequência desses factos, foi proferida decisão – em 11/03/2020 – que indeferiu o pedido de suspensão da instância e decretou a insolvência dos devedores M (…) e marido A (…)

Inconformados com essa decisão, os devedores vieram interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

1 - Por sentença proferida no Juízo de Comércio de Leiria, J3, pelas 13:45h, do dia 11 de Março de 2020, foi proferida Declaração de Insolvência dos Recorrentes (…)

2 - Os Recorrentes têm, respectivamente, 71 e 72 anos de idade, sendo que o devedor marido padece ainda de deficiência da ordem dos 70%/ com total dependência de terceira pessoa para acompanhamento, em virtude de, no ano de 2003, ter sofrido hemorragia intra-cerebral direita com edema.

3 - O único património que estes possuem, além de um veículo com 26 anos e sem qualquer valor de mercado, é a sua casa: «fracção autónoma, designada pela letra C, correspondente ao Rés do Chão Direito com garagem, destinada a habitação, sita (…) , descrita na CRP de (....) sob o nº 105/ (....) - Fracção C, inscrita no Serviço de Finanças de (....) sob o artigo 10383º da matriz predial urbana da referida freguesia.»

4 - Entre os efeitos da Declaração de Insolvência dos Recorrentes encontram-se os procedimentos tendentes à apreensão e liquidação do património dos Devedores.

5 - É do conhecimento público e, portanto oficioso, que nos encontramos a atravessar um período de emergência de saúde pública de âmbito internacional, declarada pela Organização Mundial de Saúde, no dia 30 de Janeiro de 2020, a qual determinou ao Governo Português a tomada de medidas excepcionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 no pretérito dia 13/03/2020, tendo, no dia 18/03/2020, sido decretado pelo Presidente da República o Estado de Emergência Nacional o qual se mostra executado pelo Decreto nº 2-A/2020 de 20 de Março de 2020 e que se encontra renovado pelo menos até dia 02/05/2020, diplomas através dos quais e, considerando o grupo de maior risco a que os aqui Devedores pertencem pela sua idade e saúde frágil, determinam o seu isolamento profilático e a sua protecção especial.

6 - A sua casa é o único bem que possuem com aptidão para os proteger durante o presente momento de emergência médica internacional e vigência do Estado de Emergência.

7 - Assim e, sem prejuízo das demais questões subjacentes ao presente Recurso - Questão Prejudicial e Solvência dos Recorrentes - para sua protecção, não devem ser, durante o período de tempo em que vigorar o Plano de prevenção, contenção, mitigação da contaminação por Coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, ser promovido qualquer procedimento tendente à apreensão e liquidação do seu único bem: a sua casa, sob pena de se violar, entre outros, o disposto no artigo 4º, nº 1, do Decreto 2-A/2020 de 20 de Março que por força do artigo 9º, nº 1, da Lei 1-A/2020 de 19 de Março se sobrepõe ao CIRE.

8 - Acresce que, da lista de credores reconhecidos dos Recorrentes, resulta a existência de apenas um credor expressivo - o N (…), S.A. - relativamente a crédito de que os aqui Recorrentes, são meros garantes da filha e genro, (…).

9 - Os devedores principais, A (…) e S (…) instauraram oportunamente o PEAP nº 4106/19.4T8LRA, o qual corre actualmente termos pelo Juízo de Comércio 2, do Tribunal Judicial de Comarca de Leiria, no âmbito do qual se encontram a tentar estabelecer plano de pagamentos aos seus credores, incluindo o N (…), S.A., relativamente ao crédito de que os Recorrentes são garantes.

10 - Nos termos do artº 272º, nº 1 do CPC, o referido PEAP apresenta-se como causa prejudicial relativamente ao prosseguimento dos presentes autos, atento que se for aprovado e homologado plano de pagamentos que contemple o crédito do referido credor N (…), S.A., os presentes autos perderão toda a sua utilidade.

11 - O artigo 8º, nº 1 do CIRE não pode ser interpretado isoladamente, conforme resulta da sentença a quo de que se recorre, mas sim enquadrado no demais ordenamento jurídico-constitucional em que se insere.

12 - O resultado normativo da sentença que constitui a solução do caso concreto dos autos, não pode, por conseguinte, reconduzir-se a situação que se traduza em verdadeira e manifesta inconstitucionalidade, como se constata.

13 - Ao afastar a possibilidade de suspensão, tout court, ainda que como solução excepcional nos autos, fundada na defesa dos direitos fundamentais dos Recorrentes, o Juiz a quo privilegiou um simples direito de crédito ou obrigacional - no caso não de um universo de credores, mas de um credor em particular, o N (…), SA, que é uma pessoa colectiva privada que não carece de protecção especial - em detrimento de direitos fundamentais dos Recorrentes à habitação e à saúde e protecção na terceira idade dos Recorrentes, o que constitui solução iníqua, desproporcional e inconstitucional.

14 - Pelo que, na justiça e proporcionalidade que se impunham, não deveria ter sido, por ora, proferida a declaração de insolvência dos Recorrentes a qual, de forma desproporcional e censurável os expõe a riscos de saúde e de segurança que, em ultima ratio, colocam em causa o seu direito à vida, devendo como tal ser revogada a sentença e suspensos os autos até decisão transitada em julgado no âmbito do PEAP nº 4106/19.4T8LRA que corre termos pelo Juízo de Comércio de Leiria - J2, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, para exclusiva salvaguarda dos seus direitos fundamentais à habitação e à saúde e protecção na terceira idade, no que se pugna.

15 - A sentença a quo viola, neste ponto, os artigos 24º, 64º, nº 1, e 2, al. b), 65º, nº 1/ 72º, nº l, da Constituição, o artigo 130º, nº 1, o Artigo 272º, nº l do CPC, pelo que se impõe a sua revogação e sua substituição por decisão que suspenda os presentes autos até à decisão transitada em julgada em julgado a proferir nos autos do PEAP nº 4106/19.4T8LRA que corre termos pelo Juízo de Comércio de Leiria - J2, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, para exclusiva salvaguarda dos direitos fundamentais à habitação e à saúde e protecção na terceira idade dos Recorrentes.

16 - Finalmente, os Recorrentes não se encontram insolventes nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3º do CIRE.

17 - Os Recorrentes são donos e legítimos proprietários do bem imóvel que constitui garantia bastante à satisfação do crédito do seu único credor expressivo – N (…). - a qual pode ser constituída a favor deste, sem se impor a sua venda e/ou liquidação.

18 - Os Recorrentes não se encontram em incumprimento generalizado das suas obrigações, sendo que os seus rendimentos são suficientes para satisfazer as suas despesas correntes do dia a dia.

19 - A sentença a quo viola, neste ponto, o artigo 3º, do CIRE, pelo que se impõe a sua revogação, o que se requer.

Pelas razões expostas, a sentença de Declaração de Insolvência dos Recorrentes, violando os normativos e diplomas supra expostos, deverá, em qualquer caso, ser revogada, com as legais consequências.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

- Saber se a situação epidemiológica do novo Coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 e as medidas legais implementadas para fazer a tal situação obstam à declaração de insolvência dos devedores ou à apreensão e liquidação da sua casa de habitação no âmbito de processo onde tal insolvência seja decretada;

- Saber se o processo especial para acordo de pagamento instaurado pelos devedores principais constitui causa prejudicial relativamente ao processo de insolvência referente aos devedores solidários cuja responsabilidade pelo passivo advém de garantia que prestaram àqueles e se, nessas circunstâncias, deve ser declarada a suspensão da instância no processo de insolvência até ao trânsito em julgado da decisão a proferir naquele processo;

- Saber se os devedores (Apelantes) estão (ou não) em situação de insolvência.


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III.

Na 1.ª instância, julgaram-se provados os seguintes factos:

1º - Os requeridos contraíram casamento católico entre si no dia 28 de Agosto de 1971, sob o regime da comunhão geral de bens.

2º- O Requerido marido nasceu no dia 23/08/1946, é reformado por velhice, sendo beneficiário de uma pensão no valor mensal ilíquido de 411,05€ e de um complemento por dependência no montante de 105,16€ (tendo por referência os valores pagos no ano de 2019).

3º- A Requerida mulher nasceu no dia 14/05/1948, é reformada por velhice, sendo beneficiária de uma pensão no valor mensal ilíquido de 281,00€ (tendo por referência os valores pagos no ano de 2019).

4º- O Requerido marido apresenta deficiência da ordem dos 70%, com total dependência de terceira pessoa para acompanhamento, em virtude de, no ano de 2003, ter sofrido hemorragia intra-cerebral direita com edema.

5º- Em virtude de padecer de uma lesão crónica de natureza neurológica, a Requerida mulher já não consegue prover pelos cuidados básicos de higiene e locomoção do Requerido marido, pelo que tiveram de recorrer a um Centro de Dia para realizar tal acompanhamento.

6º Os Requeridos alegam que têm as seguintes despesas fixas mensais:

a) Medicamentos……………………………...……...60,00€

b) Água e saneamento…………………..…. cerca de 14,00€;

c) Electricidade………………..……..……...cerca de 50,00€;

d) Telecomunicações…………….………………….. 44,59€;

e) Centro de Dia (Requerido A (…)…………..….150,00€.

7º- Os Requeridos são proprietários do seguinte bem imóvel, que destinam à habitação própria e permanente: Fracção Autónoma, designada pela letra C, correspondente ao Rés do Chão Direito com garagem, destinada a habitação, sita (…) (....) , descrita na CRP de (....) sob o nº 105/ (....) – Fracção C, inscrita no Serviço de Finanças de (....) sob o artigo 10383º da matriz predial urbana da referida freguesia, com o valor patrimonial tributário, determinado no ano de 2018, de 35 322,00€.

8º- São, ainda, proprietários de um veículo ligeiro de passageiros, de marca RENAULT, modelo TWINGO, do ano 1993, cor vermelha e outras, com a matrícula 19-93-CT.

9º- Os Requeridos foram fiadores de um empréstimo contraído junto do N (…), S.A. pela sua filha e genro, (…)

10º- Empréstimo esse que se mostra incumprido, pelo que aquele credor instaurou execução contra os devedores principais e os aqui Requeridos – execução comum nº 835/05.8T8MGR, a correr termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo de Execução de Ansião.

11º- No âmbito da referida execução, mostra-se penhorada a fracção autónoma acima melhor identificada (mediante a Ap. 7857 de 2010/09/29).

12º- E foi designada a sua venda para o dia 31/05/2019, que não se terá realizado em face da propositura do PEAP apenso.

13º- A referida fracção autónoma constitui casa de morada de família dos requeridos.

14º Na lista provisória de credores junta no âmbito do PEAP apenso foram reconhecidos cinco credores, cujos créditos ascendem ao valor global de €81.570,97, sendo que ao N (…), SA foram aí reconhecidos créditos no valor total de €78.186,33.

15º Dos certificados de registo criminal dos Requeridos nada consta.


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IV.

Os Apelantes insurgem-se contra a decisão recorrida, invocando, no essencial, três questões ou argumentos:

- Sustentam, em primeiro lugar, que, durante o período de tempo em que vigorar o Plano de prevenção, contenção, mitigação da contaminação por Coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 e sob pena de violação do disposto no artigo 4º, nº 1, do Decreto 2-A/2020 de 20 de Março, não deve ser promovido qualquer procedimento tendente à apreensão e liquidação da sua casa de habitação (o seu único bem) que é essencial para assegurar a sua protecção, tendo em conta que se integram do grupo de maior risco relativamente a essa doença, dada a sua idade e a sua saúde frágil.

- Sustentam, em segundo lugar, que deve ser decretada a suspensão da instância face à pendência de um processo especial para acordo de pagamento referente aos devedores principais do crédito do N (…) relativamente ao qual são meros garantes, tendo em conta que esse processo se apresenta como causa prejudicial relativamente aos presentes autos.

- E sustentam, por último, que não se encontram insolventes uma vez que são proprietários de um bem imóvel que constitui garantia bastante para a satisfação do crédito do seu único credor expressivo, o N (…), S.A.

Analisemos, portanto, cada uma dessas questões.

1. A situação epidemiológica do novo Coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 e a suspensão das diligências com vista à apreensão e liquidação da casa de habitação dos Apelantes

No que toca a esta questão, cabe dizer, antes de mais, que é uma questão nova que não foi suscitada em 1.ª instância e não foi apreciada na decisão recorrida, sendo certo que, à data, tal questão nem sequer se colocava.

Na verdade, a sentença recorrida foi proferida em 11/03/2020 e a situação de alerta no território nacional em face da referida situação epidemiológica – na sequência da qual foram publicados diversos diplomas a estabelecer diversas medidas excepcionais em resposta a tal situação – apenas foi declarada em 13/03/2020 (cfr. Despacho nº 3298-B/2020) e o primeiro estado de emergência (posteriormente renovado) – com a consequente suspensão e restrição de alguns direitos – apenas foi declarado em 18/03/2020 (cfr. Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020) e regulamentado em 20/03/2020 pelo Decreto n.º 2-A/2020 que é citado pelos Apelantes (Decreto que, aliás, foi revogado pelo Decreto n.º 2-B/2020 de 02/04 que, por sua vez, foi revogado pelo Decreto n.º 2-C/2020 de 17/04, cuja vigência também já cessou).

Significa isso, portanto, que, à data em que foi proferida a sentença recorrida, não se colocava a questão a que se reportam os Apelantes e nem sequer havia sido publicado o diploma a que se referem que, como tal, não poderia ser considerado pela sentença.

Trata-se, portanto, de uma questão totalmente nova que, como tal, não cabe no âmbito do recurso.

Com efeito, os recursos correspondem a um mecanismo de impugnação e reapreciação de decisões proferidas e, como tal, apenas podem incidir sobre questões que foram apreciadas na decisão que é objecto de recurso, não se destinando, portanto, a analisar questões novas que não sejam de conhecimento oficioso[1]. Os recursos visam atacar ou impugnar uma determinada decisão com o objectivo de obter a sua anulação ou revogação e, como tal, eles terão sempre que incidir sobre a validade formal da decisão ou sobre o respectivo mérito e haverão de fundamentar-se na invalidade formal (nulidade) da decisão ou em erro de julgamento (seja ao nível da decisão de facto, seja ao nível da decisão de direito) que nela tenha sido cometido.

Ora, nada disso acontece no caso em análise.

À data em que foi proferida a sentença, a situação epidemiológica no nosso país estava numa fase inicial, sendo certo que ainda não havia sido decretado o estado de emergência nem haviam sido publicados os diplomas – a que aludem os Apelantes – que vieram instituir uma série de regras e normas para fazer face a tal situação. Nessas circunstâncias, não se poderá afirmar que a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento por não ter considerado essa situação e essas regras e normas, não podendo afirmar-se – como afirmam os Apelantes – que tal sentença não tomou em devida consideração esta nova e excepcional realidade que coloca em risco eminente a saúde e a vida dos devedores. Na verdade, essa nova e excepcional realidade a que aludem os Apelantes não existia à data da sentença; é uma realidade que surgiu posteriormente e que, como tal, não podia ser considerada na sentença.

Estando em causa, como se disse, uma situação ou realidade posterior à sentença – que, como tal, não interfere com a sua validade formal ou com o mérito da decisão – esta questão escapa ao âmbito do recurso e não constitui fundamento para anular ou revogar a decisão proferida. Qualquer direito que pudesse assistir aos Apelantes por força dessa situação e dessas normas não poderia, por isso, ser invocado em sede de recurso (porque, como se referiu, não tem qualquer aptidão para interferir com a validade e o mérito da decisão) e teria que ser invocado – naturalmente – em 1.ª instância.

Em todo o caso, sempre diremos que, percorrendo os diversos diplomas que, ao longo dos últimos meses, têm sido publicados a propósito da referida situação, nele não encontramos qualquer norma em função da qual se pudesse entender – como pretendem os Apelantes – que tal situação impedisse a declaração de insolvência ou que o processo – ou pelo menos o procedimento tendente à apreensão da casa de habitação dos Apelantes – deva ficar suspenso.

O Decreto n.º 2-A/2020 de 20/03 – que é citado pelos Apelantes e que regulamentou o primeiro estado de emergência declarado em 18/03/2020 – impunha, de facto – no respectivo artigo 4º –, um dever especial de protecção a pessoas com mais de 70 anos (como é o caso dos Apelantes) do qual resultavam algumas restrições ao direito e liberdade de circulação. Esse Decreto foi revogado pelo Decreto n.º 2-B/2020 de 02/04 que, por sua vez, foi revogado pelo Decreto n.º 2-C/2020 de 17/04, sendo certo, no entanto, que estes diplomas continuaram a estabelecer aquele dever especial de protecção.

No entanto, a vigência desses diplomas já cessou e, além do mais, não continham qualquer norma em função da qual se pudesse concluir pela suspensão dos processos de insolvência ou dos procedimentos tendentes à apreensão da casa de habitação dos insolventes.

É certo, no entanto, que o art. 6.º-A da Lei n.º 1-A/2020 de 19/03 – na sua actual redacção introduzida pela Lei n.º 16/2020 de 29/05 – dispõe nos seguintes termos:

(…)

6 - Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório:

(…)

b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;

(…)

7 - Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvidas as partes.

(…)”.

Mas também não resulta desta norma que a situação epidemiológica ainda em curso impeça a declaração de insolvência de qualquer devedor ou implique a suspensão dos procedimentos tendentes à apreensão da casa de habitação dos insolventes; os actos que podem ficar suspensos, nos termos da norma citada, são apenas os que se prendem com a concretização da entrega de imóveis, designadamente quando correspondem à casa de habitação dos devedores.

De qualquer forma, a suspensão desses actos – que não se confunde, naturalmente, com a suspensão da própria apreensão – é questão que, pelas razões já referidas, não pode ser aqui apreciada; tal questão deve ser suscitada em 1.ª instância, se for o caso, no momento oportuno, não assumindo qualquer relevância para o efeito de obter – em sede de recurso – a revogação da decisão recorrida.

Improcede, portanto, a primeira questão suscitada.

2. Suspensão da instância face à pendência de um processo especial para acordo de pagamento referente aos devedores principais do crédito do N (…), S.A.

Em desacordo com a decisão que indeferiu essa pretensão, sustentam os Apelantes que o processo especial para acordo de pagamento instaurado pelos devedores principais do crédito do N (…), S.A. – do qual os Apelantes são garantes – configura uma causa prejudicial relativamente aos presentes autos de insolvência, razão pela qual deverá ser decretada a suspensão da instância destes autos até ao trânsito em julgado da decisão a proferir naquele processo.

Não lhes assiste razão.

O n.º 1 do art. 8.º do CIRE determina que a instância do processo de insolvência não é passível de suspensão, excepto nos casos expressamente previstos nesse Código, proclamando dessa forma – como se diz no preâmbulo do diploma – a regra da insusceptibilidade de suspensão do processo de insolvência e excluindo expressamente a suspensão da instância fora dos casos previstos no CIRE.

Assim, a instância do processo de insolvência suspende-se: quando se encontre pendente um outro processo de insolvência contra o mesmo devedor nos termos previstos no citado art. 8.º ou no art. 264º, n.º 3, b); em caso de falecimento do devedor, nos termos previstos no art. 10.º, n.º 1, b); quando seja apresentado um plano de pagamentos aos credores e até à decisão do incidente, nos termos previstos no art. 255.º; durante a pendência de processo especial de revitalização da devedora, nos termos do art. 17.º-E, n.º 6 e durante a pendência de processo especial para acordo de pagamento referente ao mesmo devedor nos termos do art. 222.º-E, n.º 6.

Em face do disposto na norma citada e não existindo no CIRE qualquer norma onde tal seja previsto, pouco resta acrescentar para justificar a afirmação de que não há lugar à suspensão da instância do processo de insolvência na situação que está em causa nos autos; o processo de insolvência apenas se suspende, nos termos supramencionados, quando se encontra pendente um processo especial para acordo de pagamento referente ao mesmo devedor; tal suspensão não ocorre, porém – sendo certo que não existe qualquer norma que assim o estabeleça – quando esse processo para acordo de pagamento não se reporta ao mesmo devedor mas sim a terceiras pessoas, ainda que estas sejam os devedores principais do passivo que está em causa no processo de insolvência.

Mas, além do mais e ao contrário do que sustentam os Apelantes, esse processo (referente a outros devedores) nunca poderia ser configurado como causa prejudicial relativamente ao processo de insolvência.

Nas palavras de José Alberto dos Reis, “uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão da primeira pode destruir ou modificar o fundamento ou a razão da segunda…”[2], referindo ainda que “sempre que numa acção se ataca um acto ou facto jurídico que é pressuposto necessário de outra acção, aquela é prejudicial em relação a esta[3].

Em termos gerais, poderemos, portanto, afirmar a existência de prejudicialidade quando a decisão de uma causa possa afectar e prejudicar o julgamento de outra, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser, o que acontece, designadamente, quando “…na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem que ser considerada para a decisão do outro pleito, quando a decisão de uma acção - a dependente - é atacada ou afectada pela decisão ou julgamento emitido noutra[4] ou quando “…numa acção já instaurada se esteja a apreciar uma questão cuja resolução tenha que ser considerada para a decisão da causa em apreço[5].

Entende-se, assim, por causa prejudicial aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia.

Ora, pensamos ser evidente que não é essa a situação dos autos, porquanto a decisão do referido processo especial para acordo de pagamento em nada interfere com a decisão que importa proferir nos presentes autos.

Com efeito e ao contrário do que dizem os Apelantes, a decisão proferida naquele processo que viesse a homologar um acordo de pagamentos entre os ali devedores e o N (…), S.A. não retirava fundamento à declaração de insolvência dos Apelantes. O facto que poderia retirar fundamento a essa declaração – porque implicava, eventualmente, a inexistência ou a cessação da situação de insolvência dos Apelantes dada a extinção do crédito cujo pagamento haviam garantido – era o efectivo pagamento desse crédito por parte daqueles devedores (devedores principais) e esse pagamento não se torna efectivo com a mera homologação de qualquer acordo de pagamento, tanto mais que, conforme se depreende dos autos, tal acordo nem sequer envolveria o pagamento imediato e apenas previa o pagamento de forma faseada. Enquanto não ocorrer o pagamento do crédito, os Apelantes são por ele responsáveis e, nessa medida, continua a subsistir a sua insolvência – e a consequente necessidade de a declarar – caso estejam impossibilitados de satisfazer esse passivo.

O facto de ser homologado um acordo de pagamento entre o credor e os devedores principais do crédito não retira, portanto, o fundamento à declaração de insolvência dos garantes desse crédito na medida em que não implica, sem mais, a extinção do crédito; o fundamento da declaração de insolvência é a impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas (cfr. art. 3.º do CIRE) e, enquanto o crédito existir, os garantes do crédito continuam a ser responsáveis pelo seu pagamento, independentemente de qualquer acordo de pagamento que seja celebrado entre o credor e os devedores principais, subsistindo, portanto, fundamento para declarar a insolvência daqueles caso se conclua que estão impossibilitados de satisfazer esse crédito e o demais passivo.

Refira-se que, estando em causa uma responsabilidade solidária, o crédito, enquanto não estiver extinto, pode ser exigido a todos os devedores, dispondo expressamente o art. 95.º, n.º 1, do CIRE que “O credor pode concorrer pela totalidade do seu crédito a cada uma das diferentes massas insolventes de devedores solidários e garantes, sem embargo de o somatório das quantias que receber de todas elas não poder exceder o montante do crédito”. E se é certo que a pendência de processo de insolvência relativamente a um devedor não constitui fundamento para a suspensão da instância dos processos de insolvência referentes aos demais devedores solidários (apenas se impondo ao credor que, para o efeito de lhe ser feito o pagamento em determinado processo, apresente certidão comprovativa dos montantes recebidos nos processos de insolvência dos restantes devedores – art. 179.º, n.º 1), também nenhuma razão existe para decretar tal suspensão por força da pendência de um processo especial de pagamento referente a outro devedor solidário, quando é certo que, conforme se referiu, a homologação de qualquer acordo de pagamento não corresponde à extinção do crédito que, enquanto não se extinguir, continua a ser da responsabilidade de todos os devedores solidários e a justificar a declaração de insolvência de cada um desses devedores que esteja impossibilitado de o satisfazer.

E, salvo o devido respeito, é totalmente infundada a alegação de que tal decisão viola os arts. 24º, 64º, nº 1, e 2, al. b), 65º, nº 1/ 72º, nº l, da CRP (direito à vida, direito à protecção da saúde, direito a habitação). A ser assim e porque aquilo que está subjacente a tal alegação é a circunstância de os efeitos da declaração de insolvência implicarem a perda da casa de habitação dos Apelantes com os riscos para a sua vida e saúde que, alegadamente, resultariam desse facto, ter-se-ia que concluir que a declaração de insolvência de qualquer devedor e a consequente apreensão e liquidação do seu património onde se inclua a sua casa de habitação seria sempre inconstitucional o que, evidentemente, não faz sentido. Refira-se, aliás, que a protecção desse direito à habitação não passa pela protecção do direito de habitar em casa própria, podendo ser assegurado de outras formas e, como decorre do citado art. 65º da CRP, a protecção desse direito é incumbência do Estado (por via dos mecanismos que ali se encontram previstos), não podendo ser alcançada à custa dos direitos legítimos de particulares, como seja o direito dos credores de obter a satisfação dos seus créditos à custa do património dos devedores, nos termos previstos na lei. Existirão mecanismos adequados a proteger e assegurar aqueles direitos – caso eles estejam ameaçados – mas que não passam, seguramente, pela negação da declaração de insolvência nas situações em que se mostram verificados os pressupostos legais para essa declaração; tais direitos não poderão, portanto, obstar à declaração de insolvência nos termos e circunstâncias previstas na lei e à produção dos efeitos que o legislador entendeu associar a tal declaração.

  Não existe, portanto, qualquer fundamento legal para a suspensão da instância peticionada pelos Apelantes, pelo que, quanto a esta questão, improcede o recurso.

3. A solvência/insolvência dos Apelantes

A sentença recorrida declarou a insolvência dos Apelantes com base nos seguintes pressupostos:

- Considerou verificada a situação prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 20.º do CIRE por ter entendido que o incumprimento da obrigação relativamente ao N (....) S.A. – tendo em conta o valor da obrigação e as circunstâncias do respectivo incumprimento – revelava ou indiciava a impossibilidade de os devedores satisfazerem pontualmente a generalidade das suas obrigações;

- Considerou que a verificação dessa situação – assim como a verificação de qualquer outra das situações previstas na norma citada – corresponde a um facto índice ou presuntivo da situação de insolvência, fazendo recair sobre o devedor o ónus de ilidir essa presunção mediante a prova de que possui bens ou créditos para solver as suas obrigações (cfr. n.º 4 do artigo 30.º do CIRE);

- E considerou que os devedores não fizeram prova da sua solvência e de que estão em condições de satisfazer o seu passivo.

Os Apelantes insurgem-se contra a decisão, dizendo, em resumo, que não se encontram em situação de insolvência nos termos prescritos no art. 3.º do CIRE, sendo certo que não se encontram em situação de generalizado incumprimento das suas obrigações e são proprietários de um imóvel cujo valor de mercado é suficiente para garantir e assegurar – mediante a respectiva hipoteca – a reestruturação da dívida para com o seu credor mais relevante (o N (…)S.A.).

Analisemos, então, essa questão à luz da matéria de facto que se julgou provada (sendo certo que os Apelantes não impugnaram a decisão que julgou provados esses factos).

A “situação de insolvência” – que corresponde, naturalmente, ao pressuposto básico do processo de insolvência – é definida e delimitada pelo art. 3.º do CIRE, dispondo o n.º 1 que se considera em situação de insolvência “… o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.

No que toca às pessoas colectivas e patrimónios autónomos, essa noção geral de insolvência é concretizada – nos n.ºs 2 e 3 – através de enunciação de determinadas regras que permitem identificar, de forma mais objectiva, a situação de insolvência.

O art. 20º do citado diploma legal veio, contudo, enunciar um conjunto de situações que são consideradas como factos-índices ou presuntivos da situação de insolvência e cuja verificação pode fundamentar o pedido de declaração de insolvência por parte das pessoas indicadas na norma em questão, designadamente, os credores. Conforme amplamente reconhecido[6], são factos que indiciam a situação de insolvência porque, por regra, é através deles que a situação de insolvência se manifesta ou exterioriza e que, como tal, correspondem a presunções ilidíveis da situação de insolvência, conforme se anota, aliás, no preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE.

Dispõe, por outro lado, o art. 30.º, nos números 3 e 4, que “A oposição do devedor à declaração de insolvência pretendida pode basear-se na inexistência do facto em que se fundamenta o pedido formulado ou na inexistência da situação de insolvência” e que “Cabe ao devedor provar a sua solvência, baseando-se na escrituração legalmente obrigatória, se for o caso, devidamente organizada e arrumada, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 3.º”.

Significa isso, portanto, que, uma vez provada a verificação de um dos factos enunciados no n.º 1 do art. 20.º (porque não foi impugnada pelo devedor ou porque, apesar de impugnada, veio a julgar-se provada), cabe ao devedor ilidir a presunção de insolvência que a lei associa à verificação desse facto, provando a sua solvência nos termos previstos no n.º 4 do citado art.º 30º.

No caso em análise, a decisão recorrida considerou verificada a situação prevista na alínea b) do nº 1 do citado art. 20º que se reporta à “falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações”, dizendo, fundamentalmente, que a falta de cumprimento do crédito N (…), S.A. revelava a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, tendo em conta o valor elevado do crédito e a circunstância de o seu incumprimento se manter há pelo menos 14 anos.

No recurso que vieram interpor, os Apelantes não põem em causa a verificação dessa situação, pois é certo que não lhe fazem referência e não contestam as considerações e conclusões da sentença a propósito dessa matéria. E, na verdade, também entendemos que ela está verificada, uma vez que, tendo em conta o valor do crédito do N (…) S.A. (78.186,33€), tendo em conta que esse crédito está em incumprimento pelo menos desde 2005 (data em que foi instaurada execução com vista à sua cobrança e no âmbito da qual veio a ser penhorado o imóvel dos Apelantes em 2010) e tendo em conta que os Apelantes reconhecem a existência desse crédito sem que alguma vez tivessem aludido a qualquer outra razão para justificar o seu incumprimento, tudo indica que a falta de cumprimento dessa obrigação radicou efectivamente na impossibilidade de a satisfazer pontualmente, sendo, por isso, reveladora da impossibilidade de satisfazerem pontualmente a generalidade das suas obrigações.

Dando-se como verificada essa situação – facto que, aliás e conforme se referiu, nem sequer é questionado no presente recurso – e tendo em conta a presunção de insolvência que resulta da verificação desse facto, a declaração de insolvência apenas poderia ser evitada se fosse demonstrada a solvência dos devedores (Apelantes) e para provar a sua solvência – no sentido de ilidir aquela presunção – os Apelantes tinham que demonstrar, à luz do disposto no art. 30.º, n.º 4, e no art. 3.º, que tinham possibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas.

E, na nossa perspectiva, tal não foi demonstrado.

Dizem os Apelantes – conclusão 16.ª – que não se encontram insolventes nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3º do CIRE, o que equivale, a afirmar a sua solvência. E não se encontram em situação de insolvência – segundo dizem – porque “…não se encontram em incumprimento generalizado das suas obrigações, sendo que os seus rendimentos são suficientes para satisfazer as suas despesas correntes do dia a dia” e porque “…são donos e legítimos proprietários do bem imóvel que constitui garantia bastante à satisfação do crédito do seu único credor expressivo – N (…), S.A. - a qual pode ser constituída a favor deste, sem se impor a sua venda e/ou liquidação”.

Relativamente à primeira afirmação dos Apelantes cabe dizer que a situação de insolvência não pressupõe nem exige o incumprimento generalizado de todas as obrigações. De acordo com o disposto no já citado art. 3.º, a situação de insolvência equivale à impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas e, portanto, o devedor estará em situação de insolvência se estiver impossibilitado de cumprir todas as suas obrigações já vencidas. Basta, portanto, que não consiga cumprir uma dessas obrigações (apesar de poder cumprir as demais) para que se considere em situação de insolvência. É irrelevante, portanto, que os Apelantes disponham de rendimentos suficientes para satisfazer as suas despesas correntes do dia-a-dia e é irrelevante que tenham capacidade para satisfazer algum do seu passivo; se não tiverem possibilidades de satisfazer todo o passivo vencido, os Apelantes estarão em situação de insolvência.

Com a segunda afirmação, os Apelantes argumentam no sentido de que não estão em situação de insolvência por serem donos de um imóvel que pode ser constituído em garantia de pagamento do crédito do N (…), sem se impor a sua venda ou liquidação.

Mas, salvo o devido respeito, essa argumentação é inócua e irrelevante.

Os Apelantes argumentam como se a sua situação de solvência se bastasse com a possibilidade de pagar o crédito do N (…) (que corresponde ao seu passivo mais relevante) de forma faseada e sem necessidade, portanto, de vender o imóvel que constitui a sua casa de habitação e que apenas serviria como garantia daquele pagamento.

Refira-se, aliás, que os Apelantes constroem todo o seu recurso no sentido de manter a propriedade do aludido prédio, entendendo, aparentemente, que conseguirão alcançar esse objectivo caso não seja declarada a sua insolvência.

Todavia, ainda que se compreenda o desejo dos Apelantes – que não será diferente do desejo de qualquer outra pessoa – de conservar a propriedade do imóvel que constitui a sua casa de habitação (tanto mais que o passivo aqui em causa não foi contraído em seu benefício directo, mas sim em garantia de um empréstimo concedido à sua filha e genro), a verdade é que não têm razão.

Com efeito, estando o crédito vencido e não tendo sido aprovado e homologado qualquer acordo de pagamento (acordo que os Apelantes tentaram obter mediante a instauração de processo especial para acordo de pagamento sem que o tivessem conseguido), o credor não pode ser obrigado a aceitar o pagamento de forma faseada, tendo o direito de exigir o imediato pagamento da totalidade do crédito. Nessas circunstâncias e não dispondo os Apelantes de rendimentos relevantes, é evidente que a satisfação imediata do crédito apenas será possível mediante a venda do seu património já que é esse património que responde pelo cumprimento das suas obrigações (cfr. art. 601º do CC). Assim, e uma vez que os Apelantes não dispõem de outro património relevante, é certo que a satisfação do crédito do N (…) apenas será possível mediante a venda do referido imóvel. E isso será assim independentemente de ser ou não declarada a insolvência dos Apelantes. Se a insolvência for declarada, o imóvel será vendido no processo de insolvência; se a insolvência não for declarada, ele será vendido no âmbito de um processo de execução instaurado com vista à cobrança do crédito (execução que, aliás, já foi instaurada e no âmbito da qual já foi efectuada a penhora do imóvel, ainda que, ao que se presume, essa execução se encontre suspensa por força da instauração do processo especial para acordo de pagamento que veio a dar origem aos presentes autos).

Assim e sabendo-se que a situação de insolvência é definida pela impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas, a questão de saber se os Apelantes estão (ou não) em situação de insolvência não se reconduz a saber se teriam (ou não) possibilidades o pagar o seu passivo – designadamente o crédito do N (…) (que corresponde ao seu passivo mais relevante) – de forma faseada;  para que se tivesse por demonstrada a solvência dos Apelantes era necessário que existissem elementos para concluir que tinham possibilidades de cumprir de imediato o seu passivo vencido e, não se vislumbrando outra forma de alcançar esse resultado (os Apelantes não têm rendimentos relevantes e nada nos permite afirmar que tivessem alguma possibilidade real e efectiva de obter crédito com vista à satisfação desse passivo), tal só poderia ser conseguido à custa da venda do seu património.

Nessas circunstâncias, os Apelantes seriam solventes se o valor de mercado dos bens integrados no seu património (valor que poderia ser obtido com a sua venda) fosse suficiente para satisfazer o seu passivo que, conforme resulta da matéria de facto provada, ascenderá ao valor global de 81.570,97€ (foi esse, pelo menos, o valor do passivo reconhecido na lista provisória de credores junta no âmbito do PEAP).

Não sabemos, no entanto, se assim é. O património dos Apelantes apenas integra um veículo automóvel e o imóvel que constitui a sua casa de morada de família. O veículo é do ano de 1993 e, como tal, o seu valor será muito reduzido (os próprios Apelantes referem que não tem qualquer valor comercial) e os Apelantes nunca alegaram (não o fizeram nos requerimentos que apresentaram nos autos e também não o fizeram nas alegações) o valor de mercado do imóvel, sabendo-se apenas que o respectivo valor patrimonial tributário, determinado no ano de 2018, é de 35 322,00€ e que a sua venda chegou a ser anunciada no âmbito de processo de execução onde foi penhorado pelo valor de 30.430,00€ (muito inferior, portanto, ao valor do passivo). Embora se admita que o imóvel tenha um valor de mercado superior, a verdade é que não sabemos se é ou não suficiente para satisfazer o passivo vencido – os Apelantes nada alegaram a propósito – e, portanto, não temos bases para concluir que esse imóvel seja suficiente para satisfazer o passivo vencido e que, como tal, os Apelantes não estejam em situação de insolvência.

Importa notar que os Apelantes não alegaram sequer que estão em condições de satisfazer, de imediato, o seu passivo vencido como seria necessário para que se concluísse pela sua solvência; os Apelantes apenas aludem a uma eventual possibilidade de pagarem a dívida ao N (…) de forma faseada oferecendo o imóvel em garantia (hipoteca) e, conforme referimos, a eventual possibilidade de pagar o passivo nesses termos não equivale a uma situação de solvência, porquanto, estando o passivo vencido o credor tem o direito de exigir o seu imediato e integral pagamento.

Nestas circunstâncias, não resultando demonstrada a solvência dos Apelantes, não foi ilidida a presunção de insolvência resultante da situação prevista na alínea b) do nº 1 do art. 20.º que se considerou estar verificada e, como tal, não resta outra solução que não seja a de declarar a insolvência, como fez a sentença recorrida.

Assim e em face das considerações efectuadas, improcede o recurso e confirma-se a decisão recorrida.


*****

SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – As medidas legais – de cariz excepcional e transitório – que foram implementadas em resposta à situação epidemiológica emergente do novo Coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 não obstam à declaração de insolvência dos devedores nem implicam a suspensão da apreensão da sua casa de habitação no âmbito do processo de insolvência; tal situação poderá apenas determinar – nos termos do n.º 6, b) e n.º 7 do art. 6.º-A da Lei n.º 1-A/2020 de 19/03 (na sua actual redacção introduzida pela Lei n.º 16/2020 de 29/05) – a suspensão das diligências destinadas a efectivar e concretizar a entrega do imóvel apreendido que corresponda à casa de morada de família dos devedores.

II – A pendência de um processo especial para acordo de pagamento referente a determinado(s) devedor(es) não constitui fundamento para suspender a instância no âmbito de processo de insolvência referente a outro(s) devedor(es) solidário(s), ainda que a responsabilidade deste(s) resulte apenas de garantia que tenha(m) prestado àquele(s).

III – Uma vez provada a verificação de um dos factos enunciados no n.º 1 do art. 20.º do CIRE (considerados como factos-índices ou presuntivos da situação de insolvência), cabe ao devedor ilidir a presunção de insolvência que a lei associa à verificação desse facto, provando a sua solvência nos termos previstos no n.º 4 do art.º 30.º do mesmo diploma.

IV – Sabendo-se que a situação de insolvência é definida pela impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas, a questão de saber se o devedor é solvente não se reconduz a saber se teria possibilidades o pagar o seu passivo (já vencido) de forma faseada;  para demonstrar a sua solvência, o devedor tem que demonstrar que tem possibilidades de cumprir de imediato o seu passivo vencido, seja porque dispõe de rendimentos suficientes para o efeito (ou está em condições de os obter de imediato ou a curto prazo), seja porque dispõe de património cuja venda permita obter o valor que para tal é necessário.


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo dos Apelantes, sem prejuízo do apoio judiciário que lhes foi concedido.
Notifique.

Coimbra, 2020/07/13

Maria catarina Gonçalves ( Relatora )

Maria João Areias

Freitas Neto


[1] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2ªedição revista e actualizada, pág. 94.
[2] Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3º, págs. 268 e 269.
[3] Ob. cit., pág. 206.
[4] Cfr. Ac. do STJ de 29/09/93, processo nº 084216, em http://www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Ac. do STJ de 06/07/2005, processo nº 05B1522, em http://www.dgsi.pt.
[6] Cfr. Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, págs. 120 e 121; Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 2013, 5.ª edição, págs. 27 a 31 e Luís de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2013, 5.ª edição, pág. 126.