Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5/10.3GCCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: PROCESSOS POR CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CELERIDADE PROCESSUAL
CONTAGEM DOS PRAZOS
Data do Acordão: 04/18/2012
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: COMARCA DA COVILHÃ - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: DECISÃO SUMÁRIA
Legislação Nacional: ART.ºS 28º, DA LEI N.º 112/2009, DE 16/09 E 103º E 104º, DO C. PROC.
Sumário: O disposto no n.º 2, do art.º 104º, do C. Proc. Penal, sobre a contagem dos prazos de actos processuais (“Correm em férias os prazos …”), aplica-se aos processos por crime de violência doméstica, por força da remissão do art.º 28º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.
Decisão Texto Integral: DECISÃO SUMÁRIA [artigo 417º, n.º 6, alínea b) do CPP]


I - RELATÓRIO
1. No processo comum singular n.º 5/10.3GCCVL.C1 do 3º Juízo do Tribunal Judicial da Covilhã, o arguido A..., devidamente identificado nos autos, RECORREU da sentença, datada de 21 de Dezembro de 2011, que o condenou:
· a)- como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do CP, na pena de 2 (dois) anos e 6 (meses) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses; e
· b)- como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1 do CP, na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de 8,00 € (oito euros);
· c)- em cúmulo jurídico, pela prática dos crimes referidos de a) e b), na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, e na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de 8,00 € (oito euros), o que perfaz o montante de 600,00 € (seiscentos euros).
Foi ainda condenado a pagar à assistente B...:

· o montante global de 2.000,00 € (dois mil euros), a título de danos não patrimoniais e danos patrimoniais, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação até integral e efectivo pagamento;
· indemnização correspondente ao valor das deslocações da assistente julgadas provadas na factualidade assente, a liquidar em execução de sentença.
2. Inconformado, o arguido motivou assim o seu recurso (conclusões em transcrição):
«O arguido entende que as normas e princípios que foram violados pela sentença ora recorrida é o art.° 29 n.°5 da C.R.Portuguesa, que dispõe que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime”, bem como o principio do caso julgado penal/Ne bis in idem.
Efectivamente e como decorre da sentença, o arguido anteriormente foi julgado no processo n.° 551/08.9 TACVL que correu termos no 2.° juízo do Tribunal da Covilhã, sob a acusação da prática de um crime de violência doméstica, tendo daí sido absolvido (com transito em julgado).
Da citada acusação datada de 09/11/2009 relata factos datados do ano de 2008.
Posteriormente, veio o arguido a ser acusado, julgado e condenado no presente processo, também pelo crime de violência doméstica, por factos datados dos anos de
1999, 2001, 2002, 2003, 2004 e 2007.
Assim, pelo presente recurso o arguido pugna e reclama, que existe violação de caso julgado, tudo porque o crime a que foi condenado, se reporta a factos anteriores a 2008 (ano de que já tinha sido absolvido).
Na sua óptica, a queixosa deveria ter-se queixado dos crimes anteriores e não somente a posteriori.
Aliás, é o que resulta das diversas teorias defendidas pelo ora recorrente e vertidas na jurisprudência supra citada:
a) Visão naturalística do caso julgado:
que refere todos os factos praticados pelo arguido até decisão final e que directamente se relacionam com o pedaço da sua vida apreciada e que com ele formam uma unidade de sentido haverão de ser considerados como fazendo parte do processo, ter-se-á de concluir que ainda que aqueles não tenham sido conhecidos ou tomados em consideração pelo tribunal, certo é não poderem ser posteriormente apreciados, sob pena de violação de caso julgado.
b) Consumação do crime:
se algumas actividades fazem parte da continuação criminosa foram objecto de sentença definitiva, ter-se-á de considerar consumido o direito a acusação relativamente a quaisquer outros que pertençam a esse mesmo crime continuado, ainda que eles de facto tivessem permanecido estranhas ao conhecimento do juiz.
c) Único crime de execução reiterada:
a consumação do crime de violência doméstica ocorre com a prática do último acto de execução - ora no caso, o ultimo acto de execução aconteceu nos factos referentes ao ano de 2008 - que foram objecto do julgamento e absolvição no processo supra referido. Logo tendo o arguido sido absolvido, encontra-se consumidos os restantes factos referentes aos anos anteriores ou seja 1999, 2001,2002,2003,2004 e 2007, que serviram para a presente condenação.
Dúvidas não restam, que no caso presente estamos perante a excepção de caso julgado por violação do art.° 29 n.°5 da C.R.P
Nestes termos e nos mais de direito, e com o muito douto suprimento de V. Exas, deve o presente recurso ser recebido e ser concedido o respectivo provimento, e a final ser o arguido absolvido da pena a que foi condenado, já que a sentença enferma do vício de caso julgado, fazendo-se assim a acostumada justiça».
3. A assistente e o Ministério Público responderam, peticionando a improcedência do recurso.

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, a fls. 492-493, sendo de parecer que, a não ser rejeitado o recurso por extemporaneidade do prazo, por não merecer a sentença qualquer censura, deverá improceder o recurso do arguido, mantendo-se aquela.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (tendo o assistente respondido nos termos de fls 692-697), cumpre proferir decisão sumária, na medida em que se entende que deverá ser rejeitado o recurso interposto [artigos 417º, n.º 6, alínea b) e 420º, n.º 1, alínea b) do CPP], cabendo, assim, especificar sumariamente os fundamentos da nossa decisão (artigo 420º, n.º 2 do CPP).

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o objecto do recurso.
Porém, há que decidir a questão prévia levantada pelo Exmº PGA e cuja procedência obsta ao conhecimento do objecto do recurso - tempestividade ou não do recurso intentado.
De facto, o recurso em causa, enquanto incidente sobre a sentença de 21/12/2011, ou enquanto incidente sobre o despacho judicial exarado na acta de 12/12/2011 e que decidiu a questão do caso julgado, levantado pelo arguido na audiência de 18/11/2011, é sempre intempestivo.
A Lei nº 112/2009 de 16.09 (que veio estabelecer o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistências das suas vítimas), dispõe no seu artº 28º sob a epígrafe "celeridade processual" que: «1 - Os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos. 2 - A natureza urgente dos processos por crime de violência doméstica implica a aplicação do regime previsto no n.º 2 do artigo 103.º do Código de Processo Penal».
Ou seja, a natureza urgente que a nova lei atribuiu aos processos por violência doméstica, implica a aplicação do regime previsto no n.º 2 do art. 103º do CPP, o que equivale a dizer que os actos a eles respeitantes correm em férias.
Resulta do nº 1 do artº 103º do C.P.P., a regra geral quanto à prática dos actos processuais é a de que os mesmos são praticados nos dias úteis às horas de expediente dos serviços de justiça e fora do período de férias judiciais.
Porém, logo no n.º2 do artigo se prevê um conjunto de excepções à enunciada regra que, por razões de celeridade e de eficiência do sistema criminal, o legislador penal entendeu considerar urgentes, impondo, por isso a respectiva prática de forma contínua e sem suspensões temporais susceptíveis de retardar a decisão final.
Ora, sobre a forma de contagem dos prazos processuais, dispõe o artº 104º do C.P.P. que a mesma obedece às disposições da lei de processo civil, isto é, à regra da continuidade dos prazos (artº 144º nº 1 do C.P.C.), correndo porém em férias os prazos relativos a processos nos quais devam praticar-se os actos processuais referidos nas alíneas a) a e) do artigo anterior, neles se incluindo agora (por força da remissão do artº 28º da Lei nº 112/2009) os processos por crime de violência doméstica, independentemente da medida de coacção aplicada ao/à arguido/a.
Note-se que o n.º2 do art.º 104º coloca a tónica não nos actos relativos aos arguidos (detidos ou presos) ou a quaisquer outros sujeitos processuais, mas nos «processos» nos quais devam praticar-se os actos referidos no nº 2 do artº anterior.
Daqui decorre que em tais processos a urgência imposta à tramitação do processo torna-se genérica, contagiando não apenas os actos praticados ou a praticar por arguidos presos ou os actos que a eles respeitem, mas de igual modo os restantes actos a praticar no processo por arguidos não presos, como também os actos a praticar pelos restantes sujeitos processuais [MP, assistentes, defensor, juiz] e os próprios actos da secretaria, mantendo-se a natureza urgente em qualquer momento processual, incluindo a fase de recurso, onde também os prazos correm seguidamente, mesmo durante o período de férias judiciais.
Ou seja, todos os prazos relativos aos processos supra referidos correm durante os fins-de-semana, férias e feriados, para todos os sujeitos e intervenientes processuais e para a secretaria, dada a natureza pública dos referidos prazos, em que está em causa a defesa de valores constitucionalmente relevantes tais como os da celeridade e eficácia da justiça criminal, entre outros, não podendo por isso o arguido - ainda que preso - renunciar ao benefício de ver correr em férias o prazo de interposição do recurso.
É certo que a primitiva redacção do artº 104º nº 2 do C.P.P. veio a sofrer a alteração introduzida pelo Dec-Lei nº 317/95 de 28.11, passando a ter a seguinte redacção: "Correm em férias os prazos relativos a processos nos quais devam praticar-se os actos referidos no nº 2 do artigo anterior, excepto quando tal possa redundar em prejuízo da defesa".
Contudo, esta redacção veio de novo a ser alterada através da Lei nº 59/98 de 25.08, operando-se a eliminação da excepção prevista na parte final do nº 2 do artº 104º, pelo que os actos processuais relativos a processos urgentes continuam a correr em férias, independentemente do prejuízo que a celeridade processual possa vir a provocar à defesa.
Considerando que as férias judiciais decorrem de 22 de Dezembro a 3 de Janeiro, do Domingo de Ramos à segunda-feira de Páscoa e de 1 a 31 de Agosto (artº 12º da LOTJ consagrada na Lei nº 3/99 de 13.1, na redacção da Lei nº 42/2005 de 29.08, antes da alteração introduzida pela Lei nº 43/2010 de 03.09), os actos processuais relativos aos processos a que alude o artº 104º nº 2 do C.P.P., praticam-se em qualquer dos dias incluídos nas referidas férias judiciais, não se suspendendo no seu decurso os prazos que estiverem a decorrer ou que, então, se devam iniciar.
No caso em apreço, a sentença recorrida foi proferida em 21 de Dezembro de 2011 e nessa mesma data foi efectuado o respectivo depósito.
Considerando a data da prolação e depósito da sentença, o prazo de interposição do respectivo recurso era o previsto no artº 411º nºs 1 ou 4 do C.P.Penal, na redacção introduzida pela Lei nº 48/2007 de 29.08.
Em conformidade com a al. b) do nº 1 da citada disposição legal, o recurso em processo penal tem de ser interposto no prazo de 20 dias, contados do depósito da sentença na secretaria, sendo este prazo elevado para 30 dias se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada (nº 4 do mesmo preceito), só podendo o acto ser praticado fora dos aludidos prazos se houver despacho da autoridade judiciária competente - no caso o juiz do processo - a deferir requerimento do interessado nesse sentido, após ouvir os demais sujeitos processuais e desde que se prove justo impedimento (art. 107.º, n.º 2, do CPP) tendo aquele requerimento de ser apresentado até três dias após o termo do prazo legalmente fixado (n.º 3 do mesmo normativo).
No presente caso, não houve qualquer requerimento do recorrente a invocar justo impedimento da prática do acto no prazo legal, como não houve qualquer decisão da autoridade judiciária a prorrogar o respectivo prazo. O justo impedimento não pode presumir-se, tem de ser alegado e demonstrado.
Assim sendo, atentas as considerações atrás tecidas sobre a contagem dos prazos processuais nos processos urgentes, a natureza do processo em causa e considerando que a sentença recorrida foi depositada no dia 21 de Dezembro de 2011 (cfr. fls. 456), não pretendendo o recorrente a reapreciação da prova gravada, o termo do prazo de vinte dias para interposição do recurso – apenas de DIREITO - ocorreu no dia 10 de Janeiro de 2012.
Atendendo, porém, que o recorrente sempre beneficiaria da possibilidade de praticar o acto num dos três dias úteis seguintes ao termo do prazo, desde que procedesse ao pagamento da multa a que alude o nº 5 do artº 145º do C.P.Civil, o termo final para a interposição do recurso ocorreu no dia 13 de JANEIRO de 2012.
Ora, de fls. 457 dos autos resulta que o requerimento de interposição de recurso e as respectivas motivações foram enviadas ao tribunal recorrido em 23.01.2012, ou seja, cerca de dez dias após o termo do prazo previsto no artº 145º nº 5 do C.P.P.
Conclui-se assim que, tal como muito bem refere o Sr. Procurador-Geral Adjunto, o recurso foi apresentado fora do prazo.
Nos termos do artigo 420º do CPP, o recurso deve ser rejeitado se se verificar causa que devia determinar a sua não admissão, nos termos do art. 414º, n.º 2 do mesmo Código.
Ora, o art. 414º, n.º 2 estipula que o recurso não é admitido quando interposto fora de prazo, não obstando à sua rejeição, nos termos do disposto nos artigos 414.º, n.º 2 e 420.º, n.º 1, al. b) do CPP, o despacho de admissão que no tribunal a quo foi proferido, uma vez que o tribunal superior – este - a ele não está vinculado (cfr. o art. 414.º, n.º 3 do mesmo diploma).

2. Dir-se-á ainda que sempre este recurso, a ser tempestivo, estaria votado ao completo insucesso.
Razão pela qual deveria ser rejeitado por manifesta improcedência (artigos 417º/6 b) e 420º/1 a) do CPP.
Vejamos.
A causa de pedir deste recurso assenta na pretensa violação do caso julgado levada a cabo pela sentença, ao condenar o arguido como autor de um crime, relativamente ao qual já havia sido antes absolvido, por sentença transitada em julgado e datada de 14/4/2010.
Todavia, esta mesma questão jurídica (de direito) já havia sido colocada pelo arguido na sessão de 18/11/2011 e foi resolvida por despacho judicial datado de 12/12/2011, devidamente notificado ao arguido e que dela expressamente não recorreu.
Como tal, tal decisão transitou em julgado, não podendo a mesma questão ser agora rediscutida em sede de recurso.

3. Recordemos os termos em que foi arguida a excepção do caso julgado pelo arguido:
«O arguido em sede de contestação referiu no seu art 4° de que este já tinha sido julgado pelo mesmo tipo de crime no processo n° 551/08.9TACVL que correu termos no 2° Juízo do Tribunal da Covilhã.
A figura do caso julgado não se encontra revelada no CPP, contudo, esta figura encontra-se consignada no art° 467° do CPC bem como se encontra na CRP sob o art° 29°, n° 5, onde se refere que ninguém pode ser julgado mais de que uma vez pelo mesmo tipo de crime.
Ora, no caso presente, o arguido encontra-se acusado pelo crime de violência doméstica referente a factos pretensamente praticados no ano de 1999, 2001, 2002, 2003, 2004, 2007, 2008 e 2010.
Aquando do anterior julgamento efectuado no 2° Juízo deste tribunal também o ora arguido estava acusado deste tipo de crimes referentes aos anos de 2007 e 2008.
É nosso entendimento de que o tipo de crime que agora estamos a julgar é um crime na forma continuada.
Aliás, veja-se que na presente acusação, apenas vem acusado de um crime, quando se faz referência na acusação a diversos factos e em diversos anos.
Entende assim o arguido que o objecto do processo anteriormente julgado e o presente é constituído por todos os factos praticados pelo arguido até decisão final que directamente se relacionem com o pedaço de vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido.
Razão pela qual os factos que não tenham sido considerados devendo tê-lo sido, não podem ser posteriormente apreciados sob pena de violação da regra bis in idem.
Aliás, é o que resulta da própria jurisprudência, nomeadamente o acórdão da Relação de Lisboa de 24-06-2008, em que é Relator Vaz Gomes, acórdão da Relação de Lisboa de 28-04-2010 em que é Relator Carlos Almeida, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-03-2006 em que é Relator Oliveira Mendes, que são acessíveis no site www.dgsi.pt.
Assim, entende o arguido que tendo este sido absolvido no processo supra referido, não podem nem devem ser considerados todos os factos relatados na acusação entre o ano de 1999 e 2008, sob pena de estarmos perante a figura de caso julgado».
E foi assim resolvida a questão pelo Exmº tribunal recorrido, no decurso do julgamento:
«DESPACHO
1. No início da audiência de julgamento, o arguido veio defender que não deve ser julgado pelos factos, que integram o crime de violência doméstica, constantes na acusação referentes ao período de 1999 a 2008, por força do caso julgado da sentença proferida no âmbito do processo que correu termos no 2° Juízo deste Tribunal (Proc. 551/08.9TACVL).
Em cumprimento do contraditório, foi ouvido o Ministério Público e a assistente, que se
pronunciaram no sentido de indeferir o requerido, por falta de fundamento.
Assim, cumpre apreciar e decidir.
*
2. Apreciando.
2.1. Para apreciação da questão suscitada pelo arguido, importa ter presente o seguinte:
O arguido foi julgado no âmbito do Proc. n.° 551/08.9TACVL, do 2° Juízo deste Tribunal, sob a acusação da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152°, n.° 1, al. a) e n.° 2 do CP — vide a certidão junta aos autos.
A citada acusação, datada de 9.11.2009, enuncia factos de que foi vítima B..., ocorridos no interior da residência, nos meses de Maio e Junho de 2008.
Aí referem-se agressões verbais, que se concretiza, e físicas.
Mais se refere que, nesse período, mais do que uma vez e em diversos locais, o arguido agrediu fisicamente e proferiu ameaças, inclusive na presença dos filhos menores de ambos.
Realizado o julgamento, foi o arguido absolvido da prática desse crime, tendo-se comunicado ao Ministério público a factualidade apurada para efeitos de inquérito, já que havia indícios de um crime de injúria.
Tal decisão transitou em julgado.
Nos presentes autos o Ministério Público, acompanhado pela assistente, para além do mais, por referência ao período de 1999 a 2008, volta a acusar o mesmo arguido, pela prática de factos de que é vítima B..., que integram um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152°, n.° 1, al. a) e n.° 2 do CP.
Para além do mais, a acusação descreve factos de 11 e 12 de Maio de 2008 e Junho de 2008.
Defende o arguido que existe caso julgado quanto a tal factualidade e o julgamento do arguido por esses factos viola o princípio ne bis in idem.
2.2. O art. 152°, n.° 1 do CP dispõe que «Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex -cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1. °grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal».
Acrescenta o n.° 2 que “No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicilio comum ou no domicilio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos de prisão”.
O bem jurídico protegido neste tipo legal de crime é a saúde: a saúde física, psíquica e mental (cfr. Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo 1, Coimbra Editora, 1999, p. 332), protegendo-se, deste modo, a pessoa individual e a sua dignidade humana.
Trata-se de um crime específico (impróprio), pois pressupõe que o agente se encontre numa determinada relação com o sujeito passivo dos comportamentos. E o sujeito passivo ou vítima só pode ser a pessoa que se encontre, para com o agente, numa relação de subordinação existencial.
A tutela do bem jurídico é projectada numa relação de afectividade ou coabitação, que pode materializar-se em casamento ou relação análoga, com ou sem habitação, ou em mera coabitação quando a vítima seja pessoa particularmente indefesa. Sempre pressupondo um nexo de relacional, presente ou pretérito, de vida em comum (Plácido Conde Fernandes, “Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal”, Jornadas sobre a revisão do Código Penal, Revista do CEJ, n.° 8 (especial), 2008, p. 305-6).
A ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2008, p. 405).
As condutas previstas e punidas por este artigo podem ser de várias espécies e revestir a forma de acção ou consistir em omissões: maus-tratos físicos (ou seja, ofensas corporais físicas) e maus-tratos psíquicos (humilhações, provocações, molestações, ameaças mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaças, coação, sequestro, injúria, difamação, coacção sexual, etc.).
Estamos, pois, perante um crime de execução não vinculada.
As condutas que integram os respectivos tipos-norma não são autonomamente consideradas enquanto, eventualmente, integradoras de um ou diversos tipos de crime; são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido revelador de um crime de violência doméstica.
Neste contexto, entre o crime do art. 152.° e os crimes que atomisticamente correspondem à realização repetida de actos parciais estabelece-se uma relação de concurso aparente, deixando de ter relevância jurídico-penal autónoma os comportamentos que integram a prática do crime de violência doméstica.
O crime de violência doméstica inclui na sua descrição típica uma pluralidade de actos parciais
Estamos perante um crime único, embora de execução reiterada (por todos, vide o Ac. da Relação de Coimbra, de 15.12.2010, in www.dgsi.pt).
A execução é reiterada quando cada acto de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime; a cada parcela de execução segue-se um evento parcial. Porém, os eventos parcelares não devem ser considerados como evento unitário. A soma dos eventos parcelares é que constitui o evento do crime único (Ac. da Relação do Porto, de 5.11.2003, in www.dgsi.pt).
Tratando-se de um crime único, embora de execução reiterada, a consumação do crime de violência doméstica ocorre com a prática do último acto de execução.
Ora, o que é que isso significa no âmbito destes autos?
Significa que o crime apenas se consumou em Janeiro de 2010 e todos os restantes factos são a execução reiterada desse crime.
Sucede que, parte desses factos, foram já objecto de julgamento.
Quid iuris?
O Ministério Público já acusou o arguido pelos factos de Maio e Junho de 2008.
O arguido já foi julgado por esses factos e, portanto, não pode voltar a ser julgado pelos mesmos.
Repare-se que a acusação deduzida no âmbito do processo do 2° Juízo deste Tribunal, embora um pouco genérica, abarca os factos constantes da acusação deduzida neste processo em relação ao referido período temporal.
Na verdade, aí diz-se que o arguido, por mais do que uma vez e em diversos locais, agrediu fisicamente a participante, proferiu-lhe ameaças de vários tipos, etc.
É isso que consta da acusação deduzida nestes autos, agora com uma maior concretização.
Portanto, em relação aos factos deste período temporal (de Maio e Junho de 2008), terei de concluir que o arguido já foi julgado pelos mesmos, por decisão transitada em julgado.
A decisão proferida não foi de absolvição da instância. O arguido foi absolvido da prática do crime de violência doméstica de que foi acusado (houve, portanto, o conhecimento do mérito da acusação).
O art. 29°, n.° 5 da CRP dispõe que “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime”.
O termo crime tem de ser entendido com uma certa conduta ou comportamento.
O que se pretende evitar é uma dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado (e não de um crime).
Portanto, ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelos mesmos factos.
O que decorre dos autos é que o Ministério Público, num primeiro momento, acusou o arguido descrevendo os factos de uma determinada maneira, que levou à decisão de absolvição.
Após, em relação ao mesmo período, volta a acusar o arguido, agora concretizando melhor esses mesmos factos.
Ora, isso é inadmissível e, com o devido respeito, não pode deixar de estar abarcado pelo princípio ne bis in idem.
Assim sendo, em relação a tais factos, verificaremos a excepção de caso julgado e, em conformidade, o absolveremos da instância o arguido nesta parte, com fundamento na violação da regra ne bis in idem.
E em relação aos restantes factos?
Os restantes factos não foram julgados e, portanto, não nos parece que estejam abarcados pelo trânsito em julgado de uma decisão que não os conheceu.
É verdade que estamos perante um crime único, contudo, o mesmo é composto de diversos actos.
Ora, só os actos que foram objecto de julgamento estão abarcados pelo caso julgado da decisão proferida no âmbito de um outro processo.
O que é objecto de caso julgado não é uma qualificação jurídica mas antes factos.
O crime foi julgado em relação a alguns dos factos, mas não em relação aos restantes.
Apenas alguns dos eventos parcelares do crime foram julgados, contudo, o crime unitário, compostos por todos os restantes eventuais, ainda não foi.
Em conformidade, quanto a esses, nada impede a realização da audiência de julgamento em curso.
*
3. Pelo exposto, decido:
a) Absolver o arguido, com fundamento na excepção de caso julgado e na violação do princípio ne bis in idem, da presente instância criminal em relação aos factos descritos na acusação referentes aos meses de Maio e Junho de 2008;
b) Indeferir o demais peticionado, ordenando-se, em conformidade, o prosseguimento da presente audiência de julgamento em relação aos factos (para além dos de Janeiro de 2010) de 1999, 2001, 2002, 2003, 2004 e 2007.
Notifique»

Quer isto significar que, a mostrar-se inconformado com a forma como o tribunal decidiu a questão do caso julgado, deveria o arguido ter recorrido do despacho judicial acima transcrito.
Note-se que o recurso em causa apenas tem como objecto essa mesma questão que foi resolvida pelo tribunal em momento anterior à da prolação da sentença.
Ora, como bem decidiu o acórdão da Relação de Lisboa de 17/772002 (Pº 0052045):
«Não tendo sido oportunamente interposto recurso de despacho que anteriormente ao despacho recorrido, que a ele se reporta, decidiu da matéria impugnada, tendo transitado em julgado a decisão, com força obrigatória no processo, o recurso é de rejeitar”.
Como tal, a questão do «caso julgado» está resolvida pela força – INTANGÍVEL - do caso julgado (não se deixará de notar, contudo, que, a dar razão ao arguido, sempre ficariam por julgar os factos de 2010 relativamente à assistente – para já não falar dos factos atinentes à ofensa que praticou na pessoa de Germano Pombo, pai da assistente, pelos quais bem foi condenado em pena de multa na sentença recorrida -, bem caracterizadores do clima de confrontação física e psicológica existente neste casamento, tendo o arguido como algoz e a assistente como vítima).

3. Por todas estas razões, só há que rejeitar este recurso.

III – DISPOSITIVO

Em face do exposto, decide-se, sumariamente, REJEITAR o recurso intentado pelo arguido A..., por manifesta intempestividade [artigos 417º, n.º 6, alínea b) e 420º, n.º 1, alínea b) – que remete para o 414º, n.º 2 – do CPP].

Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs, a que acresce condenação no pagamento de 3 Ucs (artigo 420º, n.º 3 do CPP).
Notifique.


Paulo Guerra (Relator)