Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2410/06.0TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SILVA FREITAS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DO TRABALHO
CONTRATO DE SEGURO
ACIDENTE DE TRABALHO
REEMBOLSO
Data do Acordão: 06/26/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - 4º J CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 85º C) E D) DA LOFTJ
Sumário: I- A questão objecto da presente acção relaciona-se com a vigência e âmbito de aplicação, à data da verificação do acidente de trabalho, do contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho que foi celebrado entre a ora recorrente e a 1.ª Ré, importando saber se esse contrato abrange ou não os danos resultantes do acidente de trabalho em causa e que foram sofridos pelo 2.º Réu, ou seja, se esse acidente se encontra a coberto desse contrato de seguro.

II- Cremos que se verifica um envolvimento de matérias conexas com o Direito de Trabalho, incluindo a verificação do acidente de trabalho e todos os demais efeitos que dele emergiram, bem como as prestações efectuadas pela Autora. A Autora peticiona o reembolso de prestações que pagou e que entende terem sido pagas indevidamente.

III- Consequentemente, dado o envolvimento de todas as matérias com o Direito do Trabalho, no âmbito dos acidentes de trabalho, propendemos para considerar ser o Tribunal do Trabalho o competente, em razão da matéria, para o conhecimento da presente acção, atento o disposto no artigo 85.º, alíneas c) e d), da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra



A... Companhia de Seguros, S.A., com sede na Avenida..... Lisboa, propôs acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumaríssimo, contra B... , sociedade por quotas, com sede em ....... Castelo de Paiva, e C.... , casado, trolha, residente em ..... Marco de Canavezes, com os seguintes fundamentos:
No exercício da sua actividade seguradora, a Autora celebrou com a 1.ª R. um contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho, titulado pela apólice n.º 291219523, mediante o qual foi transferida para a A. a responsabilidade infortunística dos trabalhadores ao serviço da 1.ª Ré.
E, tal como estava legal e contratualmente obrigada, a ora 1.ª Ré participou oportunamente à Autora um acidente de trabalho ocorrido no dia 16 de Março de 2004, pelas 15h10m, numa sua obra situada na localidade de Galifões, do Concelho e Comarca de Viseu, com o seu trabalhador C....
De acordo com a referida participação, o identificado trabalhador encontrava-se em cima de um andaime a fixar uma régua junto ao beiral da varanda quando se desequilibrou e caiu ao solo.
Como consequência directa e necessária de tal queda o referido trabalhador fracturou várias costelas do lado direito, o que determinou a sua incapacidade para o trabalho.
Recepcionada tal participação, a Autora aceitou de boa-fé o seu conteúdo e, prontamente prodigalizou ao ora 2º Réu todos os tratamentos necessários à sua recuperação, bem como as demais prestações legais devidas em consequência da sua incapacidade parcial temporária para o trabalho.
Assim, ao abrigo e no estrito cumprimento do referido contrato de seguro, a Autora liquidou ao 2º Réu e às entidades hospitalares e médicas que lhe prestaram assistência a quantia total de € 2.184,20.
Sucede que, no decurso das averiguações entretanto encetadas e dos pagamentos efectuados, veio a Autora a constatar que o referido trabalhador, apesar de ser trabalhador da 1ª Ré desde 1 de Julho de 2003, de forma ininterrupta, não constava nas folhas de férias enviadas à Seguradora.
Acresce que, a ora 1ª Ré ao ter declarado expressamente à Autora que o referido funcionário apenas havia sido admitido ao seu serviço em 1 de Março de 2004 – o que não corresponde à verdade, atento o alegado no art. 9º – prestou intencionalmente falsas declarações com o único intuito de prejudicar a ora Autora – o que, efectivamente, veio a suceder.
Resulta, assim, do exposto que a Autora pagou indevidamente assistindo-lhe, consequentemente, ao abrigo do preceituado no artigo 476.º, do Código Civil, o direito de ser reembolsado dos montantes despendidos.
Pelo pagamento de tal quantia é responsável o ora 1º Réu, na qualidade de entidade patronal do sinistrado, pelo facto de ter intencional e reflectidamente prestado falsas declarações com o único intuito de obter para si um enriquecimento ilegítimo à custa da ora Autora.
O 2º Réu é solidariamente responsável pelo pagamento de tal quantia porquanto foi ele quem efectivamente recebeu indevidamente tal quantia incumbindo-lhe, consequentemente, o dever de a restituir.
Os Réus são, assim, devedores à Autora da quantia de € 2.184,20 à qual acrescem juros de mora vencidos desde a citação dos RR. até efectivo e integral pagamento.
Concluindo a petição inicial, a Autora pediu que os Réus fossem solidariamente condenados a pagar à Autora a quantia de € 2.184,20 acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a citação dos RR. e até efectivo e integral pagamento.
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Os Réus apresentaram contestação em que disseram, nomeadamente:
O 2º Réu trabalhou durante algum tempo para uma firma em nome individual do Sr. D... , que por coincidência é sócio gerente da sociedade B..., certo é que à data do acidente era e é trabalhador da 1ª Ré.
Assim, era frequente que trabalhadores da firma em nome individual do Sr. D... trabalhassem em obras da sociedade, ora aqui 1ª Ré.
O 2º Réu nunca poderia constar da folha de férias da 1ª Ré, pura e simplesmente porque não era seu trabalhador.
Certo é que por questões de logística e necessidade técnica, a 1ª Ré admitiu em 1 de Março de 2004 o 2º Réu ao seu serviço, não prestando assim qualquer tipo de falsas declarações à Autora.
Sendo, aliás, esta é que intencionalmente criou um facto virtual no sentido de se eximir às suas verdadeiras e reais responsabilidades, não tendo participado ao Tribunal do Trabalho competente o acidente, refugiando-se no facto de os seus serviços clínicos terem dado alta ao sinistrado no prazo dos 3 meses após a data do acidente, pese embora este não ter atingido o estado de cura clínica.
Tudo o que a Autora até agora pagou, fê-lo de acordo com as reais obrigações contratuais, ao abrigo da apólice de seguro de acidentes de trabalho.
A Autora olvida que o contrato de seguro é sempre regido pelo princípio da boa fé, e pretende agora colocar esse princípio em causa, quando bem sabe que as folhas de férias para efeitos do cálculo do prémio de seguro só são recepcionadas pelas seguradoras no dia 15 do mês seguinte ao processamento dos salários.
Os Réus concluíram a contestação pedindo que a presente acção fosse julgada totalmente improcedente, por não provada, com todas as consequências legais.
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A Meritíssima Juiz proferiu um despacho a determinar a notificação das partes para se pronunciarem, querendo, sobre a questão da competência material do Tribunal, questão que suscitou oficiosamente, em face da causa de pedir na acção.
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Apenas a Autora veio pronunciar-se, o que fez nos seguintes termos:
1. Tem sido entendimento doutrinal uniforme que a competência material do Tribunal em razão da matéria se afere pela análise da estrutura da relação jurídica material em causa segundo a versão apresentada em juízo pelo Autor.
2. Ora, o direito que a Autora se arroga na presente acção é um direito de reembolso relativamente a quantias por si indevidamente pagas.
3. Funda-se, assim, a presente acção no instituto civilístico do enriquecimento sem causa.
4. A procedência da presente acção depende apenas da verificação cumulativa dos pressupostos da obrigação de indemnizar previstos nos artigos 473º e 483º do Código Civil.
5. Para que fosse competente o Tribunal de Trabalho necessário se tornaria que se discutisse nos presentes autos qualquer questão emergente de acidente de trabalho – questões estas taxativamente elencadas na lei.
A alusão ao acidente de trabalho é um facto meramente instrumental nos presentes autos.
Inexistindo qualquer questão emergente de acidente de trabalho, prévia ou principal, que importe conhecer.
Pelo que, deveria concluir-se pela competência material do Tribunal.
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Foi proferida decisão a declarar o Tribunal incompetente em razão da matéria para julgar o presente litígio, e, em consequência, absolveram-se os Réus da instância, com custas pela Autora.
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Notificada da decisão, a Autora interpôs recurso.
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Por despacho proferido a fls. 65 dos autos, o recurso foi devidamente admitido como recurso de agravo, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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Em doutas alegações que apresentou, a recorrente formulou as seguintes Conclusões:
1. Na presente acção a Autora arroga-se o direito de ser reembolsada pelos Réus da quantia por si indevidamente despendida – e injustificadamente (por inexistência de qualquer fundamento legal ou contratual para tal) recebida pelo 2º Réu.
2. Funda-se, assim a presente acção no instituto civilístico do enriquecimento sem causa.
3. Ora, sendo a determinação da competência material do Tribunal aferida pela estrutura da relação jurídica material em causa, mormente pela causa de pedir, ter-se-á que concluir pela competência dos tribunais comuns para o conhecimento da presente acção.
4. É que, a causa de pedir nos presentes autos é o comportamento ilícito e culposo do 1º Réu ao participar falsa e intencionalmente um acidente de trabalho com o único intuito de enriquecer injustificadamente à custa da Autora.
5. A questão da natureza dos pagamentos efectuados em nada afecta o objecto da presente acção.
6. O que aqui releva, a este propósito, é a existência de um pagamento indevido – nada mais.
7. Pelo contrário, a procedência da presente acção depende apenas da verificação cumulativa dos pressupostos da obrigação de indemnizar previstos nos arts. 473º e 483º do Cód. Civil.
8. Decidindo-se em contrário violou-se o disposto nos arts. 66º e 67º do CPC.
Termos em que, dando-se provimento ao presente recurso, cumprir-se-á a lei e far-se-á inteira Justiça.
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Os Réus não apresentaram contra-alegações.
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A Meritíssima Juíza manteve a decisão recorrida e ordenou a remessa dos autos a este Tribunal da Relação.
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Colhidos os vistos dos Ex.mos Juízes-Adjuntos, cumpre-nos decidir.
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A situação de facto é a que consta do precedente relatório e cujo teor se considera aqui como reproduzido para os devidos efeitos legais.
No entanto, com base nos documentos juntos aos autos, devem ser considerados ainda os seguintes factos com relevância para o conhecimento do recurso:
a) Foi elaborada uma participação de acidente de trabalho com base na Apólice n.º 29121952, na qual se identificou o sinistrado como sendo C..., morador em ....., Marco de Canavezes;
b) O acidente de trabalho foi participado como tendo ocorrido em 16 de Março de 2004, pelas 15h10m, na localidade de Galifões, Concelho de Viseu, verificando-se quando o sinistrado estava em cima de uma prancha a prender réguas e escorregou e caiu da prancha;
c) A Companhia de Seguros A... elaborou um documento com o Resumo de Despesas, do qual constam os valores seguintes:
Salários – € 1.211,13; Despesas Médicas – € 470,28; Transportes – € 260,10; Despesas Diversas – € 242,69; Total Geral – € 2.184,20;
d) Do Quadro de Pessoal relativo à firma B..., respeitante aos meses de Novembro e Dezembro de 2003 e Janeiro de 2004, e elaborado tendo em vista a Apólice n.º 29121952, do Ramo Acidentes de Trabalho, da Companhia de Seguros A..., não consta a indicação do nome do sinistrado C....
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A questão objecto do presente recurso tem a ver com a competência do Tribunal, em razão da matéria, para o conhecimento da presente acção.
Segundo o disposto no artigo 101.º, do Código de Processo Civil, a incompetência absoluta provém da infracção das regras de competência internacional legal e da competência interna material e hierárquica.
A incompetência absoluta referida no artigo 101.º é, naturalmente, apenas aquela que se verifica no âmbito do processo civil.
A incompetência internacional resulta da impossibilidade de incluir a relação jurídica plurilocalizada na previsão de uma das normas de recepção do artigo 65.º. A incompetência hierárquica verifica-se se a acção é instaurada num tribunal de 1.ª instância quando o devia ter sido na Relação ou no Supremo, ou vice-versa. Finalmente, a incompetência material decorre da propositura no tribunal comum de uma acção da competência dos tribunais especiais ou da instauração de uma acção num tribunal de competência especializada incompetente – (cf. Prof. Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª edição, pág. 129).
A incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa (cf. artigo 102.º, n.º 1).
A incompetência absoluta resultante da infracção da competência material decorrente da circunstância de a acção ter sido instaurada num tribunal judicial quando o deveria ter sido perante um outro tribunal judicial só pode ser arguida pelas partes e conhecida oficiosamente pelo tribunal até ser proferido despacho saneador ou, se este não tiver lugar, até ao início da audiência de discussão e julgamento (cf. artigo 102.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Isto é, como, nas várias hipóteses de incompetência absoluta por violação da competência material, a menos grave é a da propositura num tribunal judicial de uma acção que deveria ter sido instaurada num outro tribunal judicial (por exemplo: a acção é instaurada num tribunal cível, quando deveria ter sido proposta num tribunal de família), a lei restringe o prazo de arguição e de conhecimento dessa incompetência.
Diferentemente, a incompetência material que resulta do facto de a acção ter sido proposta num tribunal judicial quando o deveria ser num tribunal não judicial (por exemplo: a acção foi instaurada num tribunal comum, mas deveria ter sido proposta num tribunal administrativo) pode ser arguida pelas partes e conhecida oficiosamente pelo tribunal até ao trânsito em julgado da decisão de mérito (artigo 102.º, n.º 1). Como esta incompetência absoluta é mais grave do que a prevista no artigo 102.º, n.º 2, alarga-se o prazo da sua arguição pelas partes e do seu conhecimento pelo tribunal – (cf. Prof. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª edição, págs. 129-130).
Como exemplo da violação das regras de competência em razão da matéria que apenas respeitem aos tribunais judiciais, aponta-se a instauração no tribunal judicial de uma acção para a qual é competente o foro laboral (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26 de Fevereiro de 1998, in Bol. Min. da Justiça, n.º 474, págs. 420 e seguintes).
Nesse Acórdão, salientou-se que os tribunais cíveis, bem como os tribunais do trabalho, são tribunais judiciais de competência especializada, não se podendo qualificar os tribunais do trabalho como tribunais especiais.
A integração dos tribunais do trabalho na categoria de tribunais judiciais resultou do artigo 85.º, da anterior Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, Lei n.º 82/77, de 6 de Dezembro.
Essa integração levou, logicamente, à criação de secções sociais nos Tribunais da Relação e no Supremo Tribunal de Justiça para apreciação dos recursos de decisões dos tribunais do trabalho (Leite Ferreira, Código de Processo do Trabalho, 4.ª edição, Coimbra, 1996, pág. 15; Soveral Martins, A Organização dos Tribunais Judiciais Portugueses, vol. I, Coimbra, 1990, págs. 217 e 218).
Nesta conformidade, o Tribunal da Relação do Porto decidiu, em Acórdão de 16 de Dezembro de 1985 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 352, pág. 428), que aos tribunais de trabalho se aplicam, em matéria de definição de competência material, as regras relativas aos tribunais de comarca (cf. Anotação ao referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26 de Fevereiro de 1998, in Bol. Min. da Justiça, n.º 474, pág. 425).
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A competência dos tribunais em geral é a medida de jurisdição dos diversos tribunais; o modo como entre eles se fracciona e reparte o poder jurisdicional que, tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais. A competência abstracta de um tribunal é a medida da sua jurisdição; a fracção do poder jurisdicional que lhe é atribuída; a determinação das causas que lhe tocam. A competência concreta de um tribunal é o seu poder de julgar para certa causa; a inclusão dessa causa na fracção de jurisdição que lhe corresponde – (cf. Prof. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1993, reimpressão, págs. 88-89).
Como ensinava este Ilustre Mestre, são vários os elementos determinativos da competência dos tribunais, também chamados índices de competência (Calamandrei). E constam das várias normas que provêem a tal respeito.
Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção. A competência do tribunal – citando Redenti – «afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)»; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor.
A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a decidir de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão.
Na definição da competência em razão da matéria, a lei atende à matéria da causa, quer dizer, ao seu objecto, encarado sob um ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação substancial pleiteada. Trata-se de uma competência ratione materiae. A instituição de diversas espécies de tribunais e a demarcação da respectiva competência obedece a um princípio de especialização, com as vantagens que lhe são inerentes – (cf. Noções Elementares de Processo Civil, 1993, reimpressão, respectivamente, págs. 90-91 e 94-95).
Tem sido esta a orientação seguida na Jurisprudência, não havendo razões para que a mesma não seja observada e respeitada – (cf., entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Outubro de 1982, in Bol. Min. da Justiça, n.º 320, págs. 389-393, de 3 de Fevereiro de 1987, in Bol. Min. da Justiça, n.º 364, págs. 591-603, de 12 de Janeiro e de 9 de Fevereiro de 1994, in Col. Jur., STJ, Ano II, 1994, tomo I, respectivamente, págs. 38-39 e págs. 288-289, de 9 de Maio de 1995, in Col. Jur., STJ, Ano III, 1995, tomo II, págs. 68-70, e de 20 de Maio de 1998, in Bol. Min. da Justiça, n.º 477, págs. 389-392).
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A competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual.
Segundo o critério de atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial. É o que acontece com, por exemplo, uma acção de restituição da quantia mutuada, uma acção de divórcio, uma acção de falência ou uma acção de anulação de uma deliberação social.
Na qualificação do objecto da acção para efeitos de determinação da competência material, o tribunal não se encontra sujeito às qualificações fornecidas pelas partes: artigo 664.º, do Código de Processo Civil.
Segundo o critério da competência residual, incluem-se na competência dos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum ou a nenhum tribunal especial.
Isto é, os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual e, no âmbito dos tribunais judiciais, são os tribunais comuns aqueles que possuem essa competência residual.
Os critérios materiais distribuem os casos concretos pelas diferentes ordens de tribunais e, por isso, recorrem à qualificação jurídica desses mesmos casos segundo os grandes ramos de direito – (cf. Prof. Miguel Teixeira de Sousa, A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns, 1994, págs. 76-77).
O artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, estabelece que “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
O artigo 66.º, do Código de Processo Civil, dispõe que “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
O artigo 18.º, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, estabelece também, a respeito da competência em razão da matéria:
“1. São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
2. O presente diploma determina a competência em razão da matéria entre os tribunais judiciais, estabelecendo as causas que competem aos tribunais de competência específica”.
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Os Tribunais do Trabalho encontram-se incluídos no âmbito dos Tribunais de Competência Especializada, de harmonia com o Mapa VI anexo ao Regulamento da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 186-A/99, de 31 de Maio, alterado pelo Decreto-Lei n.º 290/99, de 30 de Julho.
A competência cível dos Tribunais do Trabalho encontra-se prevista no artigo 85.º, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, e que substituiu a Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro.
Na petição inicial da presente acção, a Autora e aqui recorrente alegou que, no exercício da sua actividade seguradora, celebrou com a 1.ª Ré um contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho, titulado pela apólice n.º 291219523, mediante o qual foi transferida para a Autora a responsabilidade infortunística dos trabalhadores ao serviço da 1.ª Ré.
E, tal como estava legal e contratualmente obrigada, a 1.ª Ré participou oportunamente à Autora um acidente de trabalho ocorrido no dia 16 de Março de 2004, pelas 15h10m, numa sua obra situada na localidade de Galifões, do Concelho e Comarca de Viseu, com o seu trabalhador C....
Recepcionada tal participação, a Autora aceitou de boa-fé o seu conteúdo e, prontamente prodigalizou ao 2.º Réu todos os tratamentos necessários à sua recuperação, bem como as demais prestações legais devidas em consequência da sua incapacidade parcial temporária para o trabalho.
Assim, ao abrigo e no estrito cumprimento do referido contrato de seguro, a Autora liquidou ao 2.º Réu e às entidades hospitalares e médicas que lhe prestaram assistência a quantia total de € 2.184,20.
Sucede que, no decurso das averiguações entretanto encetadas e dos pagamentos efectuados, veio a Autora a constatar que o referido trabalhador, apesar de ser trabalhador da 1.ª Ré desde 1 de Julho de 2003, de forma ininterrupta, não constava nas folhas de férias enviadas à Seguradora.
Acresce que a 1.ª Ré ao ter declarado expressamente à Autora que o referido funcionário apenas havia sido admitido ao seu serviço em 1 de Março de 2004 – o que não corresponde à verdade – prestou intencionalmente falsas declarações com o único intuito de prejudicar a Autora.
Do exposto, resultava que a ora recorrente pagou indevidamente assistindo-lhe, consequentemente, ao abrigo do preceituado no artigo 476.º, do Código Civil, o direito de ser reembolsado dos montantes despendidos.
Pelo pagamento de tal quantia, ainda segundo o alegado pela Autora na petição inicial, é responsável a 1.ª Ré, na qualidade de entidade patronal do sinistrado, pelo facto de ter intencional e reflectidamente prestado falsas declarações com o único intuito de obter para si um enriquecimento ilegítimo à custa da ora recorrente.
E o 2.º Réu é solidariamente responsável pelo pagamento de tal quantia porquanto foi ele quem efectivamente recebeu indevidamente tal quantia incumbindo-lhe, consequentemente, o dever de a restituir.
Da posição exposta pela Autora na petição inicial resulta que ela entende que o contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho, titulado pela referida apólice, não abrange os danos causados pelo acidente de trabalho que descreveu.
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Na decisão recorrida, considerou a Meritíssima Juiz que não estava afastada a competência da jurisdição laboral, sendo a acção subsumível à previsão normativa da alínea d) do artigo 85.º, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
E isto porque, através da presente acção, a Autora pretende ser reembolsada das quantias pagas em benefício de vítima de acidente de trabalho.
Assim, a matéria relativa ao acidente de trabalho não é meramente instrumental, como a Autora defende, sendo, ainda, essencial à determinação da competência material para dirimir o litígio “sub judice”.
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Não há dúvida de que a matéria de facto alegada pela Autora na petição inicial tem a ver com o âmbito do Direito do Trabalho.
Alega-se que ocorreu um acidente de trabalho, de que resultaram lesões corporais para o trabalhador C..., o que determinou a sua incapacidade para o trabalho.
E, em face da respectiva participação de acidente de trabalho, e por virtude do contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho que a Autora celebrou com a entidade patronal, a 1.ª Ré, a Autora teve de prestar ao sinistrado os tratamentos necessários à sua recuperação, bem como as demais prestações legais devidas em consequência da sua incapacidade parcial temporária para o trabalho.
Mas a Autora vem peticionar a condenação dos Réus no pagamento da quantia de € 2.184,20, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a citação dos Réus e até efectivo e integral pagamento, com o fundamento em que pagou as quantias referidas indevidamente porque, em seu entender, o contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho não abrange os danos causados pelo acidente de trabalho que lhe foi participado, devida ou indevidamente.
O facto de poderem também estar em causa normas de Direito Civil, maxime normas relativas ao instituto do enriquecimento sem causa, não exclui que a matéria alegada na petição inicial tenha conexão com o Direito do Trabalho, nomeadamente, sobre a verificação de um acidente de trabalho e os seus efeitos, ao nível das lesões corporais sofridas pelo trabalhador, o que determinou a sua incapacidade para o trabalho, e sobre a validade, âmbito e eficácia de um contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho, precisamente por força do qual, a Autora prestou tratamentos necessários à recuperação do sinistrado e pagou as quantias cujo reembolso reclama na douta petição inicial, por, na sua versão, se tratar de um pagamento indevido.
Como nos diz o Prof. António Monteiro Fernandes, o Direito do Trabalho regula as relações jurídico-privadas de trabalho livre, remunerado e subordinado.
O Direito do Trabalho é o ramo de Direito que regula o trabalho subordinado, heterodeterminado ou não-autónomo. À prestação de trabalho com esta característica corresponde um título jurídico próprio: o contrato de trabalho. É através dele que “uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra pessoa ou outras pessoas, sob a autoridade e direcção destas” (art. 10.º CT). “O ordenamento legal do trabalho surgiu e desenvolveu-se como uma reacção ou “resposta” às consequências da debilidade contratual de uma das partes (o trabalhador), perante um esquema negocial originariamente paritário como qualquer contrato jurídico-privado” – (cf. Direito do Trabalho, 13.ª edição, págs. 11 e seguintes).
Em termos gerais, pode dizer-se que o acidente de trabalho é o evento súbito e imprevisto, ocorrido no local e no tempo de trabalho, que causa uma lesão corporal ou psíquica ao trabalhador que afecta a sua capacidade de trabalho e de ganho (por exemplo, uma queda do trabalhador durante o desenvolvimento da actividade laboral, da qual resultem ferimentos que o impeçam de continuar a trabalhar) – art. 284.º, n.º 1, do Código do Trabalho.
Por seu turno, a doença profissional caracteriza-se pela sua verificação lenta e imperceptível, tendo origem no trabalho desenvolvido ao longo do tempo. As doenças profissionais seguem uma regra de tipicidade, na medida em que apenas são como tal qualificadas as que constam de uma tabela oficial, que é periodicamente revista (artigo 310.º, do Código do Trabalho).
O acidente de trabalho só constitui o trabalhador ou os seus familiares no direito à reparação se lhe causar danos, relevando para estes efeitos dois tipos de danos que se podem considerar típicos da responsabilidade civil acidentária (artigo 286.º do Código do Trabalho):
- O dano físico ou psíquico, isto é, a lesão corporal, a perturbação funcional, a doença ou a morte do trabalhador, que resultem directa ou indirectamente do acidente;
- O dano laboral, isto é, a incapacidade ou a redução da capacidade de trabalho ou de ganho do trabalhador, que resultem daquela lesão, perturbação funcional ou doença do trabalhador.
A complexidade dos danos relevantes para o efeito de ser accionada a responsabilidade civil por acidente de trabalho torna também especialmente complexo o estabelecimento do nexo de causalidade entre o sinistro e as suas consequências – (cf., sobre acidentes de trabalho e doenças profissionais, Prof.ª Maria do Rosário Palma Ramalho, in Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, Julho, 2006, respectivamente, págs. 730 e 739).
Ora, nos termos do artigo 85.º, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, “Compete aos tribunais do trabalho conhecer, em matéria cível:
c) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais;
d) Das questões de enfermagem ou hospitalares, de fornecimento de medicamentos emergentes da prestação de serviços clínicos, de aparelhos de prótese e ortopedia ou de quaisquer outros serviços ou prestações efectuados ou pagos em benefício de vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais”.
A questão objecto da presente acção relaciona-se com a vigência e âmbito de aplicação, à data da verificação do acidente de trabalho, do contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho que foi celebrado entre a ora recorrente e a 1.ª Ré, importando saber se esse contrato abrange ou não os danos resultantes do acidente de trabalho em causa e que foram sofridos pelo 2.º Réu, ou seja, se esse acidente se encontra a coberto desse contrato de seguro.
Cremos que se verifica um envolvimento de matérias conexas com o Direito de Trabalho, incluindo a verificação do acidente de trabalho e todos os demais efeitos que dele emergiram, bem como as prestações efectuadas pela Autora.
A Autora peticiona o reembolso de prestações que pagou e que entende terem sido pagas indevidamente.
Tenha ou não sido devido esse pagamento, o certo é que as prestações foram pagas em virtude da verificação de um acidente de trabalho.
Ainda que para o conhecimento do objecto da presente acção possam ser chamadas à colação, eventualmente, normas de Direito Civil, nomeadamente, segundo o entendimento da Autora, normas que se prendem com o instituto do enriquecimento sem causa, também é certo que o objecto essencial do litígio se conexiona com matérias específicas e atinentes ao Direito do Trabalho.
Tratam-se de serviços ou prestações que foram efectuados ou pagos em benefício da vítima do acidente de trabalho.
Como se decidiu no Acórdão da Relação do Porto, de 3 de Julho de 2003, aliás, também citado na decisão recorrida, “Nos termos do artigo 85.º, alínea d), da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, o tribunal do trabalho é materialmente competente para conhecer da acção intentada pela entidade patronal contra a companhia de seguros, demandando que esta seja condenada a pagar-lhe as importâncias que pagou a um seu trabalhador vítima de acidente de trabalho, cuja reparação a seguradora não assumira, alegando que o contrato de seguro já estava resolvido à data do acidente” – (cf. Processo: 0313016, Nº Convencional: JTRP00036264, Nº do Documento: RP200307030313016).
No caso “sub judice”, a Autora pretende, efectivamente, ser reembolsada das prestações efectuadas à vítima do acidente de trabalho em causa.
Consequentemente, dado o envolvimento de todas as matérias com o Direito do Trabalho, no âmbito dos acidentes de trabalho, propendemos para considerar ser o Tribunal do Trabalho o competente, em razão da matéria, para o conhecimento da presente acção, atento o disposto no artigo 85.º, alíneas c) e d), da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
Pelas razões indicadas, julgamos ter legitimidade para concluir no sentido da improcedência das conclusões das doutas alegações apresentadas pela recorrente, por se entender, salvo sempre o devido respeito por melhor opinião, que a decisão em recurso não ofendeu as normas legais que foram invocadas pela recorrente.
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Nos termos expostos, acordam nesta Relação em negar provimento ao recurso de agravo interposto pela recorrente A... – Companhia de Seguros, S.A., e, consequentemente, confirmam a douta decisão.
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Custas do recurso de agravo pela recorrente.