Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
759/05.9TBMGL-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: NUNES RIBEIRO
Descritores: RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
INTERESSE EM AGIR
REQUISITOS
Data do Acordão: 09/11/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MANGUALDE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 494° Nº 1, 393° E 234°-A N° 1 TODOS DO C.P.CIVIL
Sumário: 1. Falta interesse em agir à pessoa colectiva de direito público que recorre aos meios civis, e concretamente ao tribunal comum, para repelir e fazer cessar actos de turbação ou esbulho da sua posse.

2. A restituição provisória de posse consiste num procedimento cautelar especificado cujos pressupostos são: a posse, o esbulho e a violência. No caso em apreço, a requerente vem pedir a restituição provisória da posse de um caminho alegadamente público, mais precisamente de um caminho vicinal integrado no domínio público da freguesia, ou seja, de um bem que não é susceptível de posse. Impunha-se, assim, por manifesta improcedência do pedido, o indeferimento liminar do requerimento inicial.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

A Freguesia de A... , com sede no ....., em Mangualde, deduziu procedimento cautelar de restituição provisória de posse contra B... e mulher C...; D... e mulher E... ; F... e marido G...; H...; I... e esposa J..., todos residentes na ......., freguesia e concelho de Mangualde, pedindo seja restituída à posse do caminho identificado nos anteriores artigos 5.° a 10.° do requerimento inicial, ordenando-se aos requeridos que não coloquem quaisquer obstáculos no caminho ou, por qualquer forma, impeçam ou dificultem a circulação de pé e de carro pelo mesmo, e dele retirem todos os obstáculos que impedem a circulação de pé e de carro.
  Alegou, para tanto, em síntese, que no lugar da Quinta da Retorta e com início na Estrada Nacional que liga Mangualde a Penalva do Castelo, existe um caminho vicinal, propriedade, numa parte, da freguesia requerente e, noutra parte, da freguesia de Germil, o qual, desde tempos imemoriais, tem estado afecto à circulação e ao uso directo e imediato do público, sendo livremente utilizado de pé e, com veículos automóveis, a partir de 1974; e que, em 25 de Julho de 2005, funcionários da Freguesia deslocaram-se ao caminho, na área situada naquela freguesia, com o propósito de realizarem no mesmo trabalhos de regularização do piso, mas chegados ao local, a requerida C..., impediu que tais funcionários nele realizassem qualquer obra, invocando que o caminho era sua propriedade, pondo-se no caminho e dizendo que nele não entravam e que se o tentassem fazer recorreria à força para os impedir; e que, de seguida, todos os requeridos colocaram no dito caminho, a cerca de dois metros da estrada nacional, um atrelado, com dois metros de largura, duas rodas e feno de ligação a veículo automóvel e ainda, no troço situado junto à ponte do rio Ludares, dois pilares de cimento, um cada extrema do caminho, unidos por uma corrente de ferro na qual prenderam uma placa com os dizeres “QUINTA PRIVADA”; que com a colocação dos objectos referidos o caminho encontra-se ocupado em cerca de dois metros da sua largura e impedida, desse modo, a circulação de veículos.
                   Efectuada a produção de prova sem audiência dos requeridos, em conformidade com o disposto no artigo 394º do C.P.Civil, o M.mo Juiz recorrido proferiu decisão, deferindo a providência requerida pelos fundamentos que ali melhor constam, ordenando a restituição à requerente da posse do caminho identificado nos artigos 5.° a 10.° do requerimento inicial e a retirada de todos os obstáculos que impedem a circulação de pé e de carro através do referido caminho, e ordenando ainda aos requeridos que não coloquem quaisquer obstáculos no caminho ou, por qualquer forma, impeçam ou dificultem a circulação de pé e de carro pelo mesma.
Notificados os requeridos, nos termos do art° 385°, n.° 6 do C.P.Civil, vieram deduzir oposição ao abrigo e de acordo com o estatuído no art° 388° n.° 1 al. b) do mesmo diploma, alegando que o caminho referido é propriedade privada deles e que não houve esbulho, concluindo pela procedência da oposição com o levantamento da providência ordenada.
Finda a produção da prova oferecida, com a gravação dos depoimentos, o Sr. Juiz recorrido proferiu decisão, julgando improcedente a oposição e decidindo manter a providência anteriormente decretada.
Inconformados, os requeridos interpuseram o presente agravo, cuja alegação concluem, questionando a decisão de facto, afirmando ter resultado

                                                                                                         

  provado do depoimento das testemunhas por si oferecidas, contrariamente ao decidido, que o alegado caminho não era público, mas antes um mero atravessadouro, e que não houve qualquer violência; e sustentando, por outro lado, que, a considerar-se que se trata de caminho público, então o tribunal comum seria incompetente em razão da matéria para conhecer da providência requerida e nunca a deveria ter deferido, por os caminhos públicos serem insusceptíveis de posse, dado a posse ser uma relação jurídica privada, terminando, assim, por pedir a revogação da decisão recorrida e o levantamento da providência decretada.

                A agravada contra-alegou, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

O  Sr. Juiz recorrido sustentou a decisão sob recurso.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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Os Factos

Os factos provados são os que constam da decisão recorrida, para cujos termos se remete, ao abrigo do disposto no art.º 713º n.° 6 do C. P. Civil.

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O Direito

Como é sabido são as conclusões da alegação que delimitam o objecto do recurso (art°s 684° n.º 3 e 690º nº 1 do C. P. Civil), não podendo o tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.

Nas conclusões da sua alegação os requeridos suscitam duas questões que não submeteram à apreciação do tribunal recorrido, mas que esta Relação não poderá deixar de conhecer por se tratar de matéria de conhecimento oficioso: a incompetência em razão da matéria do tribunal recorrido e a inadmissibilidade legal de tutela possessória das coisas dominiais.

Por elas começaremos, já que da sua eventual procedência resultará inútil o conhecimento das restantes questões suscitadas.  

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1- Defendem, primeiramente, os agravantes que sendo público o caminho, como vem alegado pela requerente e concluiu o tribunal recorrido, então este seria incompetente em razão da matéria para conhecer da providência requerida.

                  A competência determina-se pelo pedido do autor. É - como ensina o Prof. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, pag 91 -“ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão.”

               A requerente vem pedir a restituição provisória da posse de um caminho alegadamente vicinal.

Ora, a restituição provisória de posse trata-se de um meio de tutela possessória previsto no art° 1279° do C. Civil e adjectivado nos art°s 393° e segs do C.P.Civil. Logo, só no caso de haver lei a submeter à jurisdição do foro administrativo tal matéria, o tribunal judicial comum careceria de competência para dela conhecer. Não é esse, porém, o caso em apreço, porquanto nenhuma lei existe a atribuir aos tribunais do contencioso administrativo competência para conhecer e julgar questões sobre a propriedade ou a posse.

               O tribunal a quo é, por isso, e ao invés do agora sustentado pelos agravantes, materialmente competente para conhecer da providência requerida.

                O que se poderia e poderá questionar é se será legítimo que uma pessoa colectiva de direito público recorra aos meios civis e concretamente ao tribunal comum, para repelir e fazer cessar actos de turbação ou esbulho da sua posse?

Na verdade, gozando as autarquias do privilégio da execução prévia, elas podem definir as situações jurídico-administrativas e executá-las sem prévia decisão judicial. Evidentemente que, ao particular que se ache lesado, é legítimo discutir a legalidade ou ilegalidade da decisão tomada, por via do recurso ao contencioso administrativo. Mas enquanto, por meio dessa impugnação, as decisões tomadas no exercício da função administrativa não forem anuladas, os seus efeitos impõem-se coercivamente, como se de urna sentença se tratasse,                                                      

 podendo a Administração executá-las por sua própria força e autoridade (vide art° 149° n° 2 do CPA).

               Ora, nos termos do art° 2° n° 1 al. a) da Lei das Autarquias Locais (Lei n.º 100/84 de 29/3), a estas cabe a “administração de bens próprios e sob sua jurisdição” — como é o caso, relativamente à freguesia, dos caminhos públicos vicinais, por força do estatuído no Dec. Lei n° 34 593, de 11 de Maio de 1954 — e, no âmbito das funções de fiscalização do cumprimento das normas de ocupação, uso e transformação dos solos, elas podem nomeadamente, de acordo com o Dec. Lei nº 92/95 de 09/5, proceder ao embargo e demolição de obras ilegais, socorrendo-se, se necessário, do auxílio da PSP ou da GNIR (vide art° 2°).

Daí que o recurso ao presente procedimento se apresente como um acto desnecessário e inútil

Ora, as pessoas — singulares ou colectivas — só devem ser admitidas a tornar o tempo e actividade aos Tribunais quando os seus direitos estejam realmente carecidos de tutela judiciária.

Tempo e actividade que, na actual conjuntura, em que os tribunais só dificilmente conseguem dar resposta, em tempo útil, às reais solicitações dos cidadãos, muito mais se justificará que não seja desperdiçado com pretensões desnecessárias.

A esse interesse em utilizar a máquina judiciária, a essa necessidade de recorrer ao processo, costuma a doutrina designar por interesse em agir ou interesse processual.

Não é líquido o enquadramento teórico ou a qualificação do interesse em agir: enquanto uns defendem tratar-se de uma condição da acção (vide, por exemplo, o Prof. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, pag 79 e segs), outros entendem que se trata antes dum pressuposto processual autónomo e inominado (neste sentido, o Prof. Anselmo de Castro, in Lições, vol. II, pag 809), cuja falta de verificação, à semelhança das demais excepções dilatórias, obsta ao conhecimento do mérito da causa (art.º 493º n.° 2 do C. P. Civil).                                                                                                                    

Inclinamo-nos a considerar o interesse em agir um pressuposto processual, uma excepção dilatória inominada, consentida na previsão do n.° 1 do art° 494° do C. P. Civil e, como tal, de conhecimento oficioso do tribunal, por força do disposto no art.º  495° do mesmo diploma.

Daí que, verificando-se, no caso em apreço, falta de interesse em agir da requerente, o procedimento não devesse, a nosso ver, sequer ter passado o crivo do despacho liminar.

2- Mas não só por isso o requerimento inicial merecia ser liminarmente indeferido. Uma tal decisão justificava-se ainda pelo facto de não serem susceptíveis de posse, como bem sustentam os agravantes, as coisas dominiais.

Na verdade, a restituição provisória de posse trata-se de um procedimento cautelar especificado cujos pressupostos, como resulta do disposto no art° 393° do C.P.Civil são: a posse, o esbulho e a violência. Sendo que a posse pode ser ofendida ou por um facto que deva qualificar-se de turbação ou por um facto a que caiba a qualificação de esbulho.

Todavia a posse, como resulta dos art.ºs 1267° n° 1 al. b) e 202º do C.Civil, só é admissível relativamente às coisas que podem ser objecto do direito

de propriedade, não sendo, por isso, susceptíveis de posse as coisas integradas no domínio público.2

No caso em apreço, a requerente vem pedir, como se viu, a restituição provisória da posse de um caminho alegadamente público, mais precisamente de um caminho vicinal integrado no domínio público da freguesia, ou seja, de um bem que não é susceptível de posse.

Daí que a requerida providência nunca pudesse proceder.

Impunha-se, assim, nos termos do disposto no art° 234°-A n° 1 do C.P.Civil, por manifesta improcedência do pedido, o indeferimento liminar do requerimento inicial.

2 Neste sentido, Mota Pinto, in Direitos Reais, pag 195 e segs; Henrique Mesquita, in Direitos Reais, pag 73 e segs; Manuel Rodrigues, in A Posse, pag 134 e segs e Marcelo Caetano, in Manual de Direito Administrativo, vol. II, pag 951 e segs.

Não pode, por isso, manter-se a decretada providência de restituição de posse.

O agravo merece, portanto, ser provido, ficando, consequentemente, prejudicada a apreciação das restantes questões suscitadas pelos agravantes.

Decisão

Nos termos expostos, acordam em conceder provimento ao agravo, revogando o despacho recorrido e com ele a decisão que deferiu a providência, cujo levantamento se ordena.

Custas pela agravada.


1Relator: Nunes Ribeiro
Desembargadores Adjuntos: Dr. Hélder Almeida e Dr. Alexandre dos Reis                               
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