Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
54/06.6YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
SEGURO OBRIGATÓRIO
INDEMNIZAÇÃO
DANO-MORTE
PERDA DE ALIMENTOS
FAMILIARES DO CONDUTOR
ALIENIDADE
CONCEITO DE LESADO E DE TERCEIRO
Data do Acordão: 10/03/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE AVEIRO - 1º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS1º, 5º A), 7º E 8º DO DL 522/85, DE 31-12, 483º Nº 1, 495º Nº3, 494º, 496º, 564º Nº2 E 566º Nº3 DO CC
Sumário: I. No art. 7º da LSO, as expressões “veículo seguro” e “veículo” designam o veículo segurado na Companhia de Seguros da qual se pretende a indemnização e os seus preceitos não prejudicam a regra da alienidade dos danos.

II. Pelo art. 5º al. a) da LSO, o recurso ao Código Civil é prévio à questão da eventual exclusão legal da garantia do seguro, de modo que, se o dano não for indemnizável pela “lei civil”, ele está excluído da cobertura do seguro; se for indemnizável pela “lei civil”, cabe indagar se a LSO o exclui ou não da garantia.

III. Os pressupostos da responsabilidade civil regem-se pelo Código Civil e hão-de verificar-se em relação ao condutor responsável pelo facto, não em relação à seguradora obrigada à indemnização.

IV. Para o Código Civil, só é lesado quem directamente sofre lesão por facto de outrem.

V. A alteridade lesante-lesado, ou alienidade do dano, é condição necessária, embora não suficiente, para actuar a responsabilidade do condutor.

VI. O Código Civil contrapõe o conceito de LESADO ou VÍTIMA (quem directamente sofre o dano causado por outrem) ao de TERCEIROS (quem só reflexa ou indirectamente o sofre), para em regra limitar o círculo de beneficiários de indemnização aos lesados e só excepcionalmente o alargar a terceiros.

VII. O art. 495º do CC contém excepções à regra de que só o lesado tem o direito à indemnização e de que só são indemnizáveis os danos ligados à relação jurídica directamente atingida pela lesão, mas não à regra da alteridade ou alienidade.

VIII. A filha do condutor segurado na ré, único culpado no acidente, não tem o direito de indemnização a cargo da ré seguradora, nem pela perda do direito à vida do pai, porque não se verifica a regra da alienidade, nem pela perda de alimentos por morte do pai, porque este não é lesado no sentido do art. 495º nº3 do CC.

IX. É contra-indicado que no saneador se conheça da questão referida em VIII, por decisão parcial.

X. Sendo “lesada” em termos de dano-morte a mulher do dito condutor por causa do acidente de que este foi único culpado, a filha de ambos, de cerca de um ano de idade, tem o direito de indemnização a cargo da seguradora por esse dano e pela perda dos alimentos que à mãe cabia assegurar, à face dos art. 496º e 495º nº3 do CC e 1º da LSO e porque o provado não conduz à sua exclusão pelo art. 7º da LSO.

XI. A menor não tem o direito a indemnização pela perda de alimentos por morte do pai, mas pondera-se que os alimentos que seriam devidos pela mãe à menor até aos 25 anos de idade não se têm de cingir necessariamente a metade dos € 500 mensais que receberia de ambos os progenitores, podendo ser adequados € 400. Estando a menor a receber pensão mensal de € 138,87, tal indemnização a fixar equitativamente pode ter como uma referência (400-138) x 12 x 24 x 0,8 = € 60 000.

XII. A jurisprudência mais recente do STJ tem valorado o dano-morte em montantes na ordem de € 50 000.

XIII. É equitativa a fixação em € 50 360 do dano patrimonial futuro, pela diminuição da capacidade de ganho, de lesada com 17 anos de idade, afectada de IPP de 25%, considerando a esperança de vida activa por mais 48 anos e ainda o SMN actual em 14 mensalidades ao ano (auferindo aquela € 200/mês mais alimentação) e o factor de redução a rondar 80%.

XIV. Não deve fixar-se em menos de € 30 000 a compensação por dano não patrimonial considerando a idade da jovem adolescente lesada, a ITA de 29 meses, os sofrimentos físicos com politraumatismos, 6 internamentos em hospitais, 7 operações cirúrgicas, 65 consultas, 114 sessões de fisioterapia, tratamentos com osteossíntese e canadianas e outros, bem como as sequelas com IPP de 25%, 14 cicatrizes, dano estético apreciável, diminuição da amplitude de movimentos, cefaleias e outras.

Decisão Texto Integral: Acordam o seguinte neste Tribunal da Relação:

RELATÓRIO:

1- A... intentou aos 29/11/2002 a presente acção ordinária 1084/02, emergente de acidente de viação, contra B... , alegando, em resumo:

No dia 11/3/00, seguia como passageira no veículo automóvel 95-95-NI, que, tripulado pelo seu proprietário C... , foi embatido pelo automóvel ligeiro 44-55-FM que, circulando em sentido contrário, saiu da sua mão de trânsito e invadiu aquela por onde circulava o NI, com a consequente culpa do condutor e proprietário do FM, D... , com seguro na ré;

A Autora, em consequência de ferimentos causados pelo acidente, sofreu vários internamentos hospitalares, intervenções cirúrgicas e tratamentos, esteve com incapacidade absoluta para o trabalho entre a data do acidente e Julho de 2002, ficou com sequelas físicas várias, tem dificuldade em estar muito tempo de pé ou sentada, em caminhar durante muito tempo, correr, subir e descer escadas, dificuldade em pegar objectos; sofre de alterações de humor, cefaleias, irritabilidade, amnésia relativa ao acidente, dores nos membros inferiores, dorso e pescoço; todas essas sequelas poderão agravar-se e outras poderão surgir;

Ficou afectada de incapacidade parcial permanente de 35%;

Na altura do acidente a Autora exercia em casa de um tio as funções de empregada doméstica e aprendia a arte de costureira, profissão que desejava exercer no futuro, cuja aprendizagem viu abruptamente interrompida;

Sente tristeza, angústia e receio quanto ao seu futuro;

A Ré já lhe adiantou a quantia de € 4.988,00, abatida no pedido;

Segundo a participação do acidente pela BT-GNR, do acidente resultaram três mortos (os condutores e F... , ocupante do FM) e cinco feridos (a A., mais três ocupantes do NI, bem como E... , ocupante do FM).

Concluiu pedindo, por danos patrimoniais (perdas salariais, incapacidade de ganho) e não patrimoniais, a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia global de € 122.738,54, mais juros desde a citação, bem como a quantia a liquidar em execução de sentença pelo agravamento da sua situação de saúde.

Contestando, a Ré: reconheceu a culpa exclusiva do condutor do FM; precisou que o dito adiantamento foi de € 4 998; discordou da invocada IPP, que entendia ser de 5%; impugnou parte do alegado.

Concluiu pela improcedência parcial da acção.

Foi proferido despacho saneador tabelar e organizaram-se a matéria assente e a base instrutória com 28 quesitos. Foi ordenada a apensação da acção 978/03 do mesmo 1º juízo. Realizou-se o julgamento, com as respostas à dita base.

A fls. 174/179 foi, porém relativamente apenas a esta acção, proferida sentença que, na parcial procedência da acção, condenou a ré a pagar à A. € 70 112 por danos patrimoniais (trata-se de lapso evidente pois a soma das parcelas com o abatimento dá 70 812), mais juros desde a citação, e € 30 000 por danos não patrimoniais. Para esse efeito, a sentença considerou e computou os seguintes danos: perda de 29 meses de salários = € 5 800; diminuição da capacidade de ganho = € 70 000; danos não patrimoniais = € 30 000; e abateu € 4 988 que a ré adiantara.

Da sentença recorre a ré, concluindo as suas alegações no sentido de que:

1)- Perante o SMN actual de € 374,70, a idade de 17 anos à data da alta e a IPP de 25%, a indemnização pela incapacidade para o trabalho deve fixar-se em não mais de € 33 000;

2)- Considerando os valores fixados pela jurisprudência em casos similares (Ac. do STJ de 13-1-05 e 22-9-05 na net), o dano moral deve fixar-se em não mais de € 15 000.

A A. contra alegou, pugnando a favor da sentença.

2- A já referida E... , representada pela tutora sua tia G... , intentou aos 19/2/2003 a apensada acção ordinária 978/03 contra a mesma ré, emergente do mesmo acidente, alegando em resumo:

Os pais da Autora faleceram por lesões sofridas em consequência do dito acidente causado pelo condutor e proprietário do FM, D... , pai da Autora, sucedendo que nesse veículo seguiam como passageiras a mãe da A. e, no banco de trás, a A.;

Eram os pais que custeavam todas as despesas da Autora com alimentação, vestuário, habitação, etc, e em condições normais a Autora, de 11 meses, ficaria dependente dos pais até à idade de 25 anos, contribuindo os pais com não menos de 7.500 € por ano;

Ambos os pais eram licenciados e procuravam o doutoramento, tendo por isso perspectivas de progressão na carreira e de aumentos de remunerações, havendo de ter cada um pelo menos mais 35 anos de actividade profissional;

A falta dos pais e do seu carinho, assistência e companhia será sentida pela Autora pela vida fora.

A A. computou os danos pela seguinte forma:

- Patrimoniais: despesas de funeral de € 1078,30 pela morte do pai e € 1432,27 pela morte da mãe; perda do direito a alimentos no montante de € 187 500, pois que tem a pensão mensal de €138,87 e não tem bens, a A. dependeria do casal (pais) até aos 25 anos de idade e o casal dispenderia € 7500/ano em alimentos à A.;

- Não patrimoniais: € 75 000 pelas dores e angústias sofridas pela mãe que faleceu 2 dias depois e após cirurgia; € 50 000 x 2 pela perda do direito à vida de ambos os jovens pais; € 100 000 pelos danos morais da A.

Conclui pedindo, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, a quantia global de € 465.010,17, mais juros desde a citação.

Contestou a Ré, alegando, em suma:

Desconhece os danos alegados;

Reconhece a culpa exclusiva do condutor do FM;

A Ré já pagou, por conta do capital seguro, a vários lesados no acidente, a quantia total de € 178 400,28, pelo que o capital seguro deve ser reduzido a € 446.599,28;

Mas, porque a Autora seguia no veículo causador do acidente e o titular do seguro era o condutor seu pai, não tem ela direito a indemnização por morte deste, estando excluídos da garantia do seguro os danos por lesões corporais e materiais por ele sofridas.

Conclui pela improcedência parcial da acção.

Em resposta, a A. pugna pelo direito de ser indemnizada porque a lei apenas exclui da garantia do seguro os danos próprios do condutor do veículo causador do acidente e porque no caso de falecimento desse condutor os seus familiares lesados não perdem aquele direito.

Foi elaborado o despacho saneador, o qual, conhecendo da exclusão referida ao art. 7º nº1 e nº2 al. a) do DL 522/85 de 31-12 como excepção, incidindo na questão da cobertura pelo seguro dos danos consistentes nas perdas do direito à vida e de alimentos por morte do pai, julgou a dita excepção improcedente, por essa via reconhecendo expressamente o direito da A. à indemnização por esses danos. E organizaram-se a matéria assente e a base instrutória.

Dessa decisão do saneador interpôs a ré o recurso de apelação, para subir a final, em cujas alegações de fl. 134 ss conclui que o pai da A. não é lesado no sentido do art. 483º do CC e os danos derivados dessa morte para a A. são apenas reflexos, devendo a decisão ser revogada por ter infringido os art. 1º e 7º do dito DL.

A A. contra-alegou, defendendo a decisão impugnada.

Realizou-se o julgamento conjunto e foram proferidas as respostas à base instrutória.

Foi elaborada sentença a fls. 641/646 (com rectificação a fl.658), restrita a esta acção, que julgando esta parcialmente procedente condenou a ré a pagar à A. a indemnização total de € 296 432,27, mais juros sobre € 150 000 desde a citação e juros sobre o restante desde a notificação da sentença. Para esse efeito, a sentença considerou e computou os seguintes danos: discordando da decisão do saneador mas atendendo ao caso julgado formal, € 50 000 pela perda do direito à vida do pai e € 150 000 pela perda dos alimentos que ambos os pais haveriam de prestar (= € 500 x 12 meses x 25 anos); € 50 000 pela perda do direito à vida da mãe; € 15 000 por outros danos não patrimoniais da mãe (factos 33 e 34); € 30 000 pelos danos morais próprios da A.; € 1432,27 pelas despesas de funeral da mãe.

Da sentença recorre a ré, concluindo a sua alegação de fls. 661:

1)- Até há cerca de 5 anos, a perda do direito à vida era indemnizado em não mais de 4000/5000 contos. Agora não se devem exceder € 35 000, e só pela morte da mãe;

2)- Pela perda dos alimentos, a indemnização tem de traduzir-se num capital que se extinga no fim do lapso de tempo considerado no cálculo. Deve atender-se à taxa de juros dos depósitos a prazo de cerca de 3%, ao período de 24 anos e ao índice de 16,935 das tabelas financeiras, donde € 500 x 12 x 16,935 (= € 101 610). A indemnização deve fixar-se em € 101 000 por arredondamento, ou antes em metade desta quantia considerando que à mãe só incumbia prestar alimentos na proporção de metade.

A A. contra-alegou, defendendo a decisão impugnada.

3- Correram os vistos legais.

Nada obsta ao conhecimento conjunto do objecto dos três recursos de apelação.

FUNDAMENTAÇÃO:

I. DE FACTO.

São factos provados:

COMUNS:

1. No dia 11/03/2000, cerca das 18,25 horas, na Estrada Nacional 235, cerca do km 3, Aradas, Aveiro, ocorreu um acidente de viação no qual foram intervenientes os veículos automóveis, matrícula 44-55-FM, conduzido por D... , seu proprietário, e 95-95-NI, conduzido por C... seu proprietário.

2. O 44-55-FM circulava no sentido Oliveira do Bairro - Aveiro e o 95-95-NI circulava no sentido Aveiro - Oliveira do Bairro.

3. No local a estrada configura uma recta de boa visibilidade, com mais de 400 metros.

4. A faixa de rodagem tem uma largura de cerca de 7 metros, dividida a meio por linha longitudinal descontínua.

5. À faixa de rodagem acrescem bermas contíguas, ao mesmo nível, com cerca de 2,5 metros cada.

6. A berma do lado direito, atento o sentido Aveiro - Oliveira do Bairro, era delimitada por rails.

7. Na altura em que ocorreu o acidente o piso estava seco e o tempo estava bom.

8. O 44-55-FM circulava a velocidade não inferior a 80 km/hora.

9. O condutor deste veículo, que circulava pela hemifaixa direita, atento o sentido Oliveira do Bairro - Aveiro, foi deixando progressivamente a sua hemi-faixa e invadiu a hemi-faixa esquerda, atento o referido sentido Oliveira do Bairro - Aveiro, onde foi embater no 95-95-NI.

10. O embate projectou o 95-95-NI contra os rails onde se imobilizou.

11. O embate ocorreu na hemi-faixa direita, atento o sentido Aveiro - Oliveira do Bairro, junto à berma.

12. À data do acidente, a responsabilidade civil de D... por danos causados a terceiros e emergentes de acidente de viação com o veículo 44-55-FM estava garantida pela Ré, por contrato de seguro titulado pela apólice n° 5814040, até ao limite de € 625.000,00 (doc. fls. 65).

DA ACÇÃO 1084/02:

13. A Autora A... era transportada no veículo 95-95-NI, no banco traseiro, do lado do condutor.

14. A Autora, em consequência de ferimentos sofridos no acidente, foi transportada de urgência ao Hospital de Aveiro, onde permaneceu internada até 22/04/2000.

15. A Autora, em consequência do acidente, sofreu, pelo menos, os seguintes politraumatismos: a) traumatismo crânio-encefálico; b) traumatismo facial; c) traumatismo abdominal; d) fractura do fémur direito e do fémur esquerdo.

16. E foi sujeita a: a) encavilhamento parafusado do fémur direito e do fémur esquerdo; b) tratamentos por cirurgia plástica, oftalmológica, otorrino e neurocirurgia; c) laparatomia-esplenoctomia; d) extracção de material de osteossíntese que lhe fora aplicado.

17. A Autora foi operada de urgência, no Hospital de Aveiro, a traumatismo abdominal, tendo-lhe sido feita esplenectomia (corte e extracção do baço).

18. Em 13/03/2000 sofreu nova intervenção cirúrgica para tratamento de derrame peritoneal (1800cl) e por pancreatite aguda pós traumática.

19. No mesmo Hospital foi tratada a abcesso na loca esplénica.

20. Fez vários exames e ecografias e dois TAC.

21. E suportou tracção a ambas as pernas, de 13/03/2000 a 11/04/2000.

22. A Autora foi transferida para o Hospital de Amarante em 22/04/2000, tendo ali estado internada até 01/05/2000.

23. Em 08/0512000, passou a ser seguida e tratada pelos serviços clínicos da Ré.

24. Esteve internada no Hospital de Santa Maria de 6 a 15 de Setembro de 2000, tendo ali sofrido intervenção cirúrgica com anestesia geral para correcção das cicatrizes do rosto.

25. Esteve internada de 16 a 21 de Janeiro de 2001 na Ordem da S. Trindade, onde sofreu intervenção cirúrgica ao abdómen para colocação de rede interna que ainda se mantém, com limpeza e desinfecção prévia do intestino e loca esplénica.

26. E de 24 de Abril a 2 de Maio de 2001 esteve internada no Hospital de Santa Maria, onde realizou intervenção cirúrgica para lhe serem retiradas placas de osteossíntese dos fémures.

27. De 26 a 28 de Novembro de 2001 esteve internada nos HPP, na Boavista, onde sofreu intervenção cirúrgica para reparação do nariz.

28. E esteve internada de 13 a 16 de Fevereiro de 2002 nos HPP, nos Clérigos, onde sofreu intervenção cirúrgica às cicatrizes do abdómen e coxa esquerda, a fim de serem melhoradas.

29. A Autora: a) sujeitou-se a 114 sessões de fisioterapia entre 15 de Maio e Novembro de 2000; b) sofreu arrancamento e implante, por intervenção cirúrgica, de um dente incisivo; c) fez diversos TAC’s, ecografias e análises; d) sujeitou-se à retirada dos “pontos” das intervenções cirúrgicas e às mudanças de pensos; e) tomou por prescrição médica Oxidan, Lexotan, Régébio, Rhinomer, Epione, Trombocid, Calmurid, Ulcermin.

30. A Autora nasceu a 26/05/84 (doc. fis. 53).

31. A Ré adiantou à Autora, por conta da indemnização a que viesse a ter direito, a quantia de € 4.988,00.

32. A Autora esteve com incapacidade absoluta para o trabalho entre a data do acidente e Julho de 2002.

Da base instrutória:

34. A Autora, em consequência do acidente, sofreu os seguintes politraumatismos: a) fissura nos ossos próprios do nariz; b) traumatismo e ferimentos a nível do rosto, sobretudo a nível da testa, nariz e lábio inferior; c) corte na língua; d) traumatismo abdominal com hemi-peritoneu; e) laceração do baço.

35. Entre Maio de 2000 e 19/07/2002, a mando da Ré, frequentou 14 consultas de ortopedia, 18 de cirurgia geral, 13 de otorrinolaringologia, 1 de oftalmologia, 1 de cardiologia, 2 de neurologia, 7 a psiquiatria, 7 de cirurgia plástica e 2 de estomatologia, em médicos e locais diversos.

36. A Autora pesava 70 kg. na data do acidente e, entre a data do acidente e 11 de Abril de 2000, viu o seu peso reduzir-se até aos 48 kg.

37. Esteve a soro nesse período, não ingerindo qualquer alimento.

38. Após a cirurgia plástica ao nariz e face, a Autora teve de se alimentar de alimentos líquidos por um “tubo” durante 9 dias.

39. Suportando durante o mesmo período um “gesso” na testa, nariz e cara.

40. Após a segunda cirurgia ao abdómen teve de usar uma cinta apertada em todo o abdómen até ao peito durante cinco semanas.

41. Nos três meses após o acidente a Autora necessitou do auxílio de terceira pessoa para se locomover, mudar de roupa, tomar banho e outros actos de higiene.

42. Locomoveu-se, posteriormente, durante duas semanas com o auxílio de um andarilho.

43. De Julho a Outubro de 2000 locomoveu-se com o auxílio de canadianas.

44. Em consequência do acidente, lesões sofridas e tratamentos, ficou afectada com as seguintes sequelas: a) cicatriz linear imperceptível de 10 centímetros na face, estendendo-se da região frontal direita até à região malar esquerda; b) cicatriz quelóide de três centímetros na região mentoniana; c) cicatriz de um centímetro na comissura labial direita; d) cicatriz de dois centímetros na língua; e) ligeiro afundamento da pirâmide nasal; f) duas cicatrizes de dois centímetros em ambos os seios, próprias dos drenos; g) cicatriz linear quelóide de 25 centímetros na linha média abdominal e duas cicatrizes de dois centímetros nos flancos próprias de drenos; h) cicatriz linear de 7 centímetros na raiz da coxa direita e cicatriz linear de 20 centímetros no terço médio e inferior da face lateral da coxa direita, próprias de intervenções cirúrgicas para colocação de material de síntese; i) cicatriz linear de 7 centímetros na raiz da coxa esquerda e cicatriz linear de 20 centímetros no terço médio e inferior da face lateral da coxa esquerda, próprias de intervenções cirúrgicas para colocação de material de síntese; j) cicatrizes de um centímetro nas faces laterais de ambos os joelhos próprias de tracção; l) diminuição da amplitude dos movimentos dos joelhos bilateralmente, mas mais pronunciada à esquerda.

45. A Autora tem dificuldade em estar muito tempo de pé ou sentada, em caminhar durante muito tempo, correr, subir e descer escadas.

46. Tem, também, dificuldade em pegar objectos pesados por sentir dores abdominais.

47. Sofre de alterações de humor, cefaleias, irritabilidade, amnésia relativamente ao acidente e vive muito o trauma do acidente.

48. Sente dores nas mudanças de tempo nos membros inferiores, dorso e pescoço.

49. Cansa-se com muita facilidade no dia-a-dia e tem dificuldade em varrer.

50. Tem dificuldade em andar de sapato de tacão, por sentir logo dores nas costas e em dançar.

51. A Autora ficou afectada de uma Incapacidade Permanente Geral de 25%.

52. Na altura em que ocorreu o acidente a Autora exercia em casa de um tio as funções de empregada doméstica, auferindo, mensalmente, € 200,00 e alimentação.

53. Das 14,00 às 18,00 horas aprendia a arte de costureira, profissão que desejava exercer no futuro.

54. E cuja aprendizagem viu abruptamente interrompida.

55. A Autora terá necessidade acrescida de vigiar a sua saúde e de tomar medicamentos.

56. Sofreu a Autora grandes dores, incómodos, medo dos ferimentos, dos vários internamentos hospitalares, das intervenções cirúrgicas, dos exames, dos tratamentos, das consultas e das suas limitações físicas e psíquicas.

57. Ao ver-se afectada por uma IPG de 25%, sente tristeza, angústia e receio quanto ao seu futuro.

58. A Autora era, antes do acidente, uma pessoa saudável.

DA ACÇÃO 978/03:

59. No dia 29-4-99 nasceu a Autora E... , que foi registada como filha de D... e de F....

60. Os pais da Autora faleceram em consequência do provado acidente de viação acima descrito.

61. No 44-55-FM seguiam o condutor D... , a esposa F... e a Autora em cadeira apropriada ao transporte de crianças, instalada no banco traseiro.

62. O pai da Autora faleceu no local da colisão.

Da base instrutória:

63. Com o funeral do pai da Autora foi despendido o montante de (216.180$00=) € 1.078,30 e com o da mãe (287.144$00=) € 1.432,277.

64. Esta quantia foi paga pela sua tutora.

65. O pai da Autora era licenciado em biologia, exercendo a sua actividade como professor contratado da Escola Secundária de Montemor-o-Velho.

66. Mercê da sua enorme capacidade técnico-científica foi contratado, em 18/02/2000, por urgente conveniência de serviço, por um período de seis anos, prorrogável por um biénio, como Assistente além do quadro da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.

67. O seu vencimento mensal, acrescido do subsídio de alimentação, era de (391.550$00=) € 1.953,04.

68. Dada a sua enorme craveira técnico-científica, reconhecida por todos aqueles que com ele privavam diária e profissionalmente, dedicava-se, para além das suas actividades docentes, à investigação, tendo sido compensado com a atribuição de uma bolsa para doutoramento, com o fundamento em interesse público, com vista à promoção avançada de recursos humanos e consequente desenvolvimento do sistema científico e tecnológico nacional.

69. A muito curto prazo o D... alcançaria o doutoramento e a consequente substancial melhoria da sua situação económica, passando a vencer nunca menos de 750.000$00 (= € 3.740,98).

70. A mãe da Autora era professora na Escola Secundária de Montemor-o-Velho, auferindo um vencimento mensal de 181.771$00 (= € 906,67).

71. Tais vencimentos seriam, também, aumentados a curto prazo.

72. A F... já havia concluído, em 1995, o seu mestrado na área da biologia celular, encontrando-se, na ocasião da sua morte, a preparar, desde Fevereiro de 2000, o doutoramento na área da microbiologia, também recompensado com bolsa de estudo por ser do interesse público, com vista à promoção da formação avançada de recursos humanos e consequente desenvolvimento do sistema científico e tecnológico nacional.

73. Pelo que, também ela veria, a breve trecho, ser alterado o seu grau académico e substancialmente elevados os seus rendimentos mensais, equiparando-se aos auferidos pelo seu marido (€ 3.740,98/mês).

74. A Autora, exceptuando a pensão mensal de (27.840$00=) € 138,87, não tem quaisquer rendimentos ou bens próprios, pois os pais, à data do acidente, ainda não tinham cumprido o período mínimo de 5 anos de descontos que permitiriam à menor ter direito a uma pensão.

75. Eram estes que custeavam todas as suas despesas com alimentação, vestuário, habitação, água, luz e outras, necessárias e indispensáveis à normal sobrevivência e regular crescimento da E....

76. O pai da Autora em circunstâncias normais teria uma vida activa que duraria até à idade mínima da reforma, por um período não inferior a 30 anos.

77. E tinha uma carreira universitária à sua frente, com legítimas expectativas de progressão académica.

78. A mãe preparava o seu doutoramento em Microbiologia com legítimas expectativas de progressão profissional e académica, tendo já concluído a versão inicial da sua dissertação.

79. Em circunstâncias normais teria uma vida activa que duraria até à idade mínima da reforma, por mais 35 anos.

80. Ambos os progenitores da E... contribuiriam, assim, por ano para suportar as despesas do lar e da menor com um valor não inferior a € 6.000,00, sendo que tal montante subiria conforme a Autora fosse avançando na idade, designadamente com a creche, seguida do ensino primário, secundário e superior.

81. Em condições normais de educação escolar a Autora ficaria dependente dos pais até à idade de 25 anos.

82. Configurando, com base no aumento do custo de vida, evolução salarial, as crescentes necessidades da menor, que vão aumentando com o avançar dos anos, não só quanto aos custos educativos, como, também, aos de vestuário, alimentação e aos de natureza lúdica, o casal despenderia com a sua filha, durante os 25 anos, quantia mensal não inferior a € 500, considerando o momento actual.

83. Os danos descritos resultam directamente das lesões corporais sofridas pelos pais da A. em consequência do acidente de viação e de que adveio a sua morte.

84. A mãe da Autora, desde o momento do acidente e até ao momento do seu decesso, sofreu dores, angústias, intenso sofrimento quer físico quer psíquico.

85. A mãe da Autora teve consciência do seu estado e do perigo de vida.

86. Ambos os pais da Autora eram pessoas jovens, saudáveis, com uma expectativa de vida longa e feliz.

87. A falta dos pais, o seu carinho, assistência e companhia será sentida pela Autora pela vida fora e este traumático acontecimento repercutir-se-á fortemente no seu futuro, e as suas poucas recordações serão sempre sofridas e tristes, uma vez que serão sempre indissociáveis do trágico acontecimento que vitimou os pais.

88. A Ré B... pagou, por conta do capital seguro, as seguintes indemnizações: pela perda do veículo de matrícula 95-95-NI, € 17.457,93; aos herdeiros do condutor do NI, que faleceu, € 49.879,79; a Liliana Palácio, passageira do NI, € 31.582,67; a Vítor Pinto, passageiro do NI, € 21.222,75; a José Fernando Pinto, passageiro do NI, € 20.374, 91; a A... , passageira do NI, € 33.603,89; as despesas hospitalares referentes à mãe da Autora E... , € 1.583,83; as despesas médicas e de tratamento prestadas à passageira do veículo NI, A... , € 2.694,51; tudo no total de € 178,400,28.

II. DE DIREITO:

O âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações da única recorrente, a ré, dentro da medida em que esta foi vencida.

1ª apelação (recurso da decisão do saneador que no Pº 978/03 julgou a excepção improcedente):

A ré defendeu nos art. 11º a 13º da contestação (fl.56/57) que por via da morte do pai da A. E... , a esta não assiste o direito a qualquer indemnização, face a certos factos (já alegados na petição) e à exclusão da garantia do seguro a que se refere o art. 7º nº 1 e nº 2 al. a) do dito DL nº 522/85, de 31-12. Não discriminou qualquer excepção na dita peça.

A A., na resposta, e o tribunal, no saneador, entenderam tratar-se de matéria de excepção.

Assim, o tribunal conheceu da questão da cobertura pelo seguro dos danos que entendeu restringir aos consistentes nas perdas do direito à vida e de alimentos por morte do pai, como excepção, e julgou-a improcedente, por essa via reconhecendo expressamente o direito da A. à indemnização por aqueles danos, que não quantificou.

Vejamos.

a)- A tratar-se de excepção nesta acção (o que é duvidoso), ela só pode ser (peremptória e) de direito material, pelo que importaria que a decisão tomada tivesse previamente discriminado os factos provados em que tal decisão se baseasse, o que não foi feito. Por aí, a nulidade por falta de fundamentação de facto é patente (art. 668º nº 1 al. b) do CPC).

Por outro lado, nada aconselhava a que o Senhor Juiz fosse proferir uma “sentença” (v. art. 510º nº 5 do CPC) naquele momento, restrita àquela questão, para mais sem poder esgotá-la, pois que nem fixou a indemnização parcelar quanto aos dois tópicos do dano. Pelo contrário, a prudência, e o desiderato de se manter o processo tão escorreito e célere quanto possível, aconselham que em casos como o presente se deixe o conhecimento da questão para quem profira a sentença, para mais podendo tratar-se de juiz de círculo e estando a decisão da questão imbricada com outras relativas ao mérito da causa. Questão aliás polémica e complexa e daí o recurso (mais um recurso, além dos das duas sentenças finais, quando o normal seria que toda a decisão de mérito estivesse concentrada na sentença, e numa só sentença dada a apensação de acções, e que portanto em vez de 3 recursos tivéssemos um só—vd. princípios da economia dos actos e da celeridade do processo). Qual o interesse processual e jurídico para se conhecer daquela questão (aliás só parte de questão mais vasta), no saneador, sem que a tal a lei obrigasse?—Nenhum!

b)- Agora, subido o 1º recurso a final, o que importa sobremaneira é conhecer-se da questão de fundo. Releva o provado segundo o qual a A. E... é filha do único culpado condutor do veículo seguro no qual ela seguia como passageira, tendo tal condutor falecido por causa do acidente. E trata-se de seguro obrigatório. Entre o demais provado que releva sobressaem os factos 59, 60, 81 e 82.

Aos dois tipos de danos referidos à perda do direito à vida do pai e à perda de alimentos da A. por morte do pai não interessa o disposto no invocado nº 2 do art. 7º do dito DL, dado que aí apenas se excluem da garantia do seguro danos decorrentes de lesões materiais, isto é, em coisas (das pessoas ou entes ali enumerados), o que não é o caso.

Mas interessa o disposto no nº 1 desse artigo, pois que segundo esse nº 1 excluem-se da garantia do seguro os danos sofridos pelo condutor do veículo seguro desde que se trate de danos decorrentes de lesões corporais.

O dano-morte foi sofrido pelo próprio condutor segurado na ré, é um dano próprio dele, mas é imputável ao próprio segurado e a lei exclui-o da garantia do seguro. Aliás, ainda que não existisse aquele preceito do nº 1, a A. não seria beneficiária legal de alguma indemnização por esse dano porque não se verifica a alteridade ou alienidade exigida no art. 483º nº 1 do CC: só cabe reparação pelos danos causados a “outrem”, enquanto que no caso o dano-morte foi sofrido pelo próprio que o causou. A alienidade é condição necessária, embora não suficiente, para a responsabilidade civil por facto ilícito do condutor e só havendo esta poderá a sua seguradora ter de indemnizar.

Quanto ao dano consistente na perda dos alimentos por morte do condutor do FM, pai da A., esse é um dano patrimonial sofrido pela própria A., mas resultante da lesão corporal morte sofrida e causada pelo pai da A. Esta é terceiro em relação ao contrato de seguro obrigatório celebrado por esse condutor e pela ré. Resta saber se é terceiro beneficiário de indemnização no sentido do Código Civil, pois que se verifica a alteridade mencionada (condição não suficiente) quanto ao dano da A. mas não quanto à lesão da qual ele deriva.

Quanto aos alimentos a solução não é tão fácil como parece e devia ser, pois a alteridade é condição necessária, mas não suficiente, para a responsabilidade civil e consequentemente para a indemnização de que ela é fonte.

A LSO (lei do seguro obrigatório).rege o seguro obrigatório, mas a sede própria do regime da responsabilidade civil é o Código Civil, para o qual aliás remete o art. 5º al. a) da LSO. Esta enferma de técnica legística deficiente, com redundâncias, imprecisões, obscuridades, remissão para artigos posteriores, assintonia com o CC, do que a doutrina já se fez eco. Tal prejudica o trabalho do aplicador do Direito, em economia de tempo (e tempo é dinheiro) e em certeza e segurança jurídicas.

Partindo da base factual assente (o condutor do FM era o seu proprietário e tomador do seguro celebrado com a ré, ou titular da apólice como também diz a LSO, sendo ele o causador e único culpado do acidente e das lesões sofridas por ele e por outras pessoas), temos, face ao art. 1º da LSO, que ele, para tal veículo poder circular, devia estar “coberto” por um seguro que garantisse a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros, ou seja, causados a outrem que não seja o tomador do seguro. E ele celebrou o seguro a que estava obrigado. Por esse art. 1º, os pressupostos da responsabilidade civil hão-de verificar-se em relação ao condutor, não à seguradora que apenas fica adstricta à obrigação de indemnização, de que aquela é fonte. Só que, para o CC, nem todos os terceiros (não tomadores do seguro “hoc sensu”) que sofram danos, v.g. danos reflexos ou indirectos, têm o direito de indemnização, e pode suceder que o condutor responsável por acidente não seja o tomador do seguro vigente e também sofra danos, daí a necessidade sentida pela LSO de esclarecer o âmbito da garantia do seguro, em termos de beneficiários e danos reparáveis, nos art. 7º e 8º.

Para o CC, pelos danos infligidos pelo agente a si próprio não há qualquer responsabilidade civil por facto ilícito seja a que título for. Para haver responsabilidade civil, o agente há-de ter violado o “direito de outrem” ou lesado “interesses alheios” (art. 483º nº 1 do CC): é a regra da alienidade [ Cf. Prof. Pessoa Jorge, Dir. das Obrig., ed. AAFDL,I, 1975/76, p. 580.]. A LSO não excepciona esta regra.

O art. 7º exclui da garantia do seguro, pelo nº1, os danos corporais “sofridos” pelo condutor do “veículo seguro” e, pelo nº 2-a), os danos materiais “causados” ao “condutor do veículo e titular da apólice”. Tanto são danos sofridos os causados por outrem como os causados pelo que os sofre. Pela letra do nº1 e da al. a) do nº 2 do art.7º, quaisquer desses danos (corporais no nº 1 e materiais no nº 2) sofridos por um condutor de veículo seguro estariam excluídos da garantia do seguro, mas tal seria absurdo pois não há razões para a seguradora indemnizar o passageiro ou o peão ou o condutor de veículo não segurado e não indemnizar o condutor de veículo segurado, tanto mais que pelo art. 8º nº 1 o seguro garante a responsabilidade do “tomador do seguro”, dos legítimos detentor ou condutor e de outros, sem distinguir as espécies de dano.

Perante a desconfortável legística do art. 7º nº 1 e 2-a), afigura-se-nos que aí a expressão “veículo seguro” ou apenas “veículo” designa o veículo segurado na Companhia de Seguros da qual se pretende a indemnização e que os respectivos preceitos devem ser interpretados no sentido da confirmação da referida regra da alteridade: os danos sofridos pelo próprio que os causou não são abrangidos pela responsabilidade civil e portanto não são indemnizáveis. Mesmo por uma seguradora: em termos de seguro obrigatório. Percebe-se que este, porque obrigatório e apenas garante de uma responsabilidade constatada, está concebido de modo que não garante a indemnização de mais danos do que aqueles que pela lei geral o legítimo detentor ou condutor responsável teria de indemnizar se não fosse tal seguro (se assim não fosse invadia-se o campo de outras modalidades de seguro, como o seguro de acidentes pessoais, etc). Poderá é garantir os mesmos, ou menos, como possa resultar de vários preceitos do art.7º em conexão com a parte final da al. a) do art. 5º.

Poderia pensar-se que o sentido útil do nº 1 desse art. 7º (sobretudo após a querela interpretativa que antecedeu a sua alteração) está em excluir da garantia os danos sofridos pelo condutor, do “veículo seguro” na seguradora demandada, quando esse condutor não seja parte no contrato. Só que, se esses danos foram causados por outrem, é este ou a seguradora do veículo tripulado por este quem deve indemnizar, independentemente de o condutor lesado tripular veículo seguro ou não seguro, e o preceito desse nº 1 é inútil. E se o condutor do “veículo seguro” causou os danos por si sofridos, quanto a estes a seguradora não tem de os indemnizar, porque não há alteridade e de acordo com o art. 483º nº 1 citado ele não é responsável civil, donde o preceito do dito 7º nº 1 também é inútil, além de incompreensivelmente se restringir aos danos corporais. A ser útil, sempre se perguntaria qual a solução para o caso de se tratar de danos materiais sofridos por condutor de “veículo seguro” mas não “titular da apólice”, perpetuando-se a aludida querela que a alteração legislativa visou resolver.

Percebe-se que o legislador, deixando entender no artº 1º que terceiros lesados a beneficiar da garantia do seguro obrigatório (melhor dizendo, garantia da indemnização por força de tal seguro) serão os não segurados e estendendo no art. 8º a garantia da responsabilidade do tomador do seguro a outras pessoas além deste, se sentisse na necessidade de vir restringir o círculo dos terceiros a que aquele artº 1º terá aludido. Mas para isso bastava que definisse como terceiro todo aquele que não é contemplado no art. 8º, sem prejuízo das inclusões que entendesse fazer (em vez da técnica da exclusão do art. 7º).

Ora, o recurso ao Código Civil é prévio à questão da eventual exclusão legal da garantia do seguro, na medida em que logo o art. 5º al. a) da LSO, sobre o âmbito de cobertura, dispõe que o seguro abrange “a obrigação de indemnizar estabelecida na lei civil”..., restringindo porém a parte final da al. a) essa cobertura aos “danos...não excepcionados [=não excluídos] no presente diploma”. Portanto, se o dano não for indemnizável pela “lei civil”, ele está excluído da cobertura do seguro; se à face da lei civil for indemnizável, cabe indagar se a LSO o exclui ou não da garantia.

c)- Já vimos que, por se tratar de matéria de responsabilidade por facto ilícito, pelo CC o dano-morte do pai da A. não é indemnizável porque não se verifica alteridade lesante-lesado. Do dano relativo à perda de alimentos cura o art. 495º do CC.

Este art. tem como epígrafe «Indemnização a terceiros em caso de morte ou lesão corporal» e o nº 3 preceitua que àquela têm direito «os que podiam exigir alimentos ao lesado (...)».

Em matéria de responsabilidade, o CC contrapõe o conceito de terceiros ao de lesado ou vítima (vd. também o art. 505º, que emprega os dois conceitos). Empregam também expressamente o termo lesado (ou vítima) os art. 483º, 494º, 496 nº2, 495º nºs 1e 2.

A lei, em matéria de responsabilidade civil por factos ilícitos, entendeu limitar em regra os beneficiários de indemnização àqueles que directamente sofreram danos e a esses designa-os de “lesados” ou “vítimas”; só excepcionalmente prevê casos de reparação a favor de quem só reflexa ou indirectamente foi prejudicado, que designa de “terceiros”. Se assim não fosse, o nº de beneficiários poderia ser enorme e até um facto ilícito pouco importante poderia gerar danos em cadeia, implicando indemnizações incomportáveis.

Como referem P. Lima e A. Varela, no CC Anot.,I, 4ª ed., em nota ao dito art. 495º, vigoram a regra de que só o lesado (directo) tem o direito de exigir indemnização e a regra de que só são indemnizáveis os danos ligados à relação jurídica directamente atingida pela lesão, contendo aquele artigo excepções a essas regras [ No mesmo sentido, vd. Ribeiro de Faria, Dir. das Obrig., I, p.526 s.].

Mas a regra da alteridade constante do art. 483º cit. não tem, no CC, alguma excepção, pelo menos na matéria de que tratamos (responsabilidade por factos ilícitos) [ Excepção existe no âmbito da LAT: o trabalhador que se lesiona a si próprio pode ter o direito à reparação, salvo dolo ou culpa grave e exclusiva.].

Assente que: para a lei lesado é o que directamente sofreu a lesão ou o dano; por regra só o dano do lesado é indemnizável mas o art. 495º nº3 cit. contém uma excepção; para efeitos da responsabilidade por factos ilícitos, só é lesado quem sofre lesão por facto de outrem (regra da alteridade sem excepção)—cabe resolver se a A. pode exigir indemnização, pela perda de alimentos derivada da morte do pai, nos termos do dito art. 495º nº3.

Ora, a A. só teria esse direito se pudesse “exigir alimentos ao lesado”—diz o preceito, o que implicaria, além do mais, que seu pai tivesse a qualidade de lesado. Mas o pai não é lesado no sentido da lei, pois é o causador do acidente donde resultou a sua morte.

d)- Logo, pelo CC, a A. não tem o direito de indemnização a cargo da ré pela perda de alimentos por morte do condutor segurado na ré, nem pelo dano-morte relativo ao mesmo. Nessa parte é pois inútil recorrer-se ao disposto no art. 7º da LSO.

Em tal medida procede a apelação.

Tal não significa porém que a A. não tenha o direito de indemnização pelo dano-morte da sua mãe e pela perda de alimentos derivada dessa morte, do que trataremos abaixo.

2ª apelação (recurso da sentença no Pº 1084/02):

a)- Não vem questionada a indemnização de €5800 pela perda de salários e o abatimento da adiantada quantia de € 4 988 nos danos patrimoniais.

b)- Pela diminuição da capacidade de trabalho da A. A..., a sentença fixou a parcela indemnizatória de € 70 000. A recorrente entende que, perante o SMN actual de € 374,70, a idade de 17 anos à data da alta e a IPP de 25%, a indemnização pela incapacidade para o trabalho deve fixar-se em não mais de € 33 000.

Nesse âmbito, para cálculo do dano patrimonial futuro e equitativamente (art. 564º nº2 e 566º nº3 do CC), temos em conta:

- à data do acidente exercia a actividade de empregada doméstica, auferindo por mês €200 mais alimentação, mas aprendia a arte de costureira para vir a exercer (factos 52 e 53);

- a partir da alta clínica, com 17 anos de idade, ficou afectada de uma IPP de 25% (factos 30 e 51);

- considera-se a esperança de vida activa por mais 48 anos, o SMN referido (por não ser líquido que na data mais recente ganhasse mais e porque legalmente aquele é o mínimo atendível para o efeito), salário de 14 meses ao ano (hoje assim para todos os trabalhadores por conta de outrem), diminuição da capacidade de trabalho em 25%, bem como o factor de redução a rondar 80%, dado que a A. vai receber de uma só vez o capital que se repartiria ao longo desses 48 anos e ao fim de cujo período se há-de esgotar [ Sobre a subtracção de 20% pelo benefício da recepção antecipada do capital, vd. Ac.STJ de 17-11-05, Revista 3050/05-2ª.]. Assim, 48 x 374,70 x 14 x 0,25 x 0,80 = €50 360. Não encontramos fundamento legal ou razões de equidade, iluminadas pelos valores legais, para irmos além ou ficarmos aquém deste resultado obtido com os elementos relevados pela jurisprudência maioritária.

c)- Quanto aos danos não patrimoniais, a sentença fixou a indemnização compensatória em € 30 000 e a recorrente pugna pelo abaixamento para € 15 000. Nos termos dos art. 496º, nºs 1 e 3, e 494º do CC, pondera-se:

- a idade da jovem adolescente, os sofrimentos físicos imediatos com politraumatismos, os múltiplos internamentos, a ITA (incap. tempor. absoluta) de cerca de 29 meses, múltiplas cirurgias e sessões de fisioterapia e as sequelas após a alta definitiva com 25% de IPP, o “pretium juventutis” [ Sobre a relevância deste elemento, vd. Ac. STJ de 19-1-06 Revista 35007/05-2ª (Sumários de Jan/06, p. 38 s).]. Este resumo do provado 14 a 29, 32, 34 e 44 a 50 deixa na sombra elementos muito importantes. Sem exaustão, destaca-se que a jovem sofreu 4 espécies de traumatismos, pelo menos 6 internamentos em diversos hospitais do Norte e Centro, pelo menos 7 operações cirúrgicas, 65 consultas médicas em locais diversos, 114 sessões de fisioterapia, tomou 8 tipos de medicamentos, suportou carradas de exames e TACs e ecografias e anestesias, teve derrames no peritoneu e no pâncreas, suportou intervenções nas coxas e nos fémures e no abdómen e nos seios e na cabeça (face, boca, nariz, mento), suportou tratamentos de cirurgia plástica e de oftalmologia e de otorrino e de neurocirurgia e de ortopedia com osteossíntese e canadianas... E quanto às sequelas, ficou com pelo menos 14 cicatrizes espalhadas pelo corpo (das quais se destacam uma de 10 cm na face, uma de 3 cm no mento, uma na comissura dos lábios, duas nos seios, uma de 25 cm no abdómen, uma de 7 cm em cada coxa e mais outra de 20 cm, várias nos joelhos), pelo que se pode dizer que o dano estético e na imagem se aproximará do grau 4 numa escala de 0 a 5 tendo sobretudo em atenção que se trata de mulher e jovem e solteira; ficou com IPP de 25%; tem diminuída a amplitude de movimentos dos joelhos e dificuldade em estar muito tempo de pé ou sentada e em varrer; ficou com cefaleias, irritabilidade e, como é demais evidente, tem de ter grande desgosto pelo estado em que ficou. E é ainda de ponderar que em nada a A. contribuiu para o acidente que a vitimou, o qual se deve a culpa, exclusiva e grave, do condutor do outro veículo, devendo também o aspecto reprovador desta conduta repercutir-se na indemnização;

- o montante compensatório deve pois ser subido, embora dentro dos valores considerados pela jurisprudência mais recente para a espécie de dano aqui considerado. Ora, conforme os casos e circunstâncias concretas, os tribunais superiores têm ultimamente fixado para essa espécie montantes que, perante IPP de 5% a 20% e com outros elementos valorativos menos graves, se situam num patamar de € 7500 / € 12 500 até, perante caso de uma lesada com 40 anos de idade e IPP de 18% mas que ficou deformada ou caso de lesado com 28 anos e IPP de 45%, ao limite de € 50 000 (sobre estes dois casos vd. acórdãos do STJ de 10-1- 2006, Rev.3123/05-1ª, e de 12-1-2006, Rev.3837/05-7ª, ambos nos Sumários de Acórdãos de Jan/06, p. 8 e 12). Num caso em que a lesada tinha 11 anos e uma IPP de 60% o Supremo fixou € 40 000 (Ac. de 17-11-2005, Rev.3050/05-2ª). Num caso algo semelhante ao destes autos, em que a lesada tinha 19 anos e ficou com IPP de 35% e uma epilepsia controlável por medicamentos, mas cujo sofrimento até à alta, se não também as sequelas, parecem ter menor dimensão ou gravidade do que o da ora A., o Supremo fixou também € 30 000 (Ac. de 22-9-05, Revista 2470/05-7ª, in Sumários de Julho/2005, p.63), como à A. a sentença fixou.

Posto isto, julgamos equitativamente que o actualizado montante de € 30 000 fixado para compensação do dano não patrimonial não deve ser baixado e deve manter-se.

3ªapelação (recurso da sentença no Pº 978/03):

a)- Está fora do âmbito do recurso a fixação de indemnização de € 1432,27 pelo funeral da mãe, de € 15 000 por outros danos não patrimoniais desta além do dano-morte e de € 30 000 pelo dano moral da A., como consta da sentença.

b)- Sobre a indemnização pela perda de alimentos:

Trata-se essencialmente de dano patrimonial futuro.

Ao conhecer-se da 1ª apelação ficou assente que pela morte do pai a A. não tem esse direito. Mas tem-no em virtude da morte da mãe, que foi “lesada” pelo acidente no sentido então explicitado, e tem-no em virtude do disposto no art. 495º nº3 do CC. E tal está abrangido pela garantia do seguro (note-se que do provado nada consta que possa conduzir à exclusão pelo art. 7º da LSO), o que aliás não vem posto em causa.

A recorrente pugnou pelo abaixamento dos fixados € 150 000 para cerca de € 101.000 utilizando a fórmula € 500 x 12 x 16,935, ou antes para metade daquele montante (i. é, € 50 500) dado que a mãe só contribuiria com metade dos alimentos. Baseou-se em que, conforme factos supra 81 e 82, o casal despenderia de alimentos coma filha esse valor mensal de € 500 até aos 25 anos de idade, mas considera que se devem ter em conta no cálculo apenas 24 anos (pois a menor tinha cerca de um ano), e daí o factor 16,935, e que a morte do pai não deve influir no cálculo em favor da menor—e este entendimento não nos merece censura, salvo alguma reserva em relação à fórmula e à rigorosa descida para metade.

Em vez dessa, poderíamos utilizar outra, idêntica à que acima utilizámos. Assim € 250 x 12 meses x 24 anos x 0,8 = € 57 600.

As fórmulas matemáticas são meramente orientadoras do juízo de equidade. Ora,no caso está provado que a A. recebe uma pensão mensal de € 138,87, facto que deve aqui ser relevado (no mesmo sentido, vd. acórdão do STJ de 24-1-206, Revista 4038/05-6ª, in Sumários de Jan/06, p.46).

Mas há outro ponto a considerar na respeito da sequência da dita reserva sobre a descida para metade. Em geral, quando um menor recebe alimentos de ambos os progenitores em determinada medida e um destes deixa de poder contribuir (vg. falecendo), o menor tem direito a alimentos do sobrevivo que não se têm de cingir necessariamente a metade: depende das necessidades do menor e das possibilidades do progenitor sobrevivo. Afigura-se-nos que, com as prometedoras perspectivas futuras que a mãe tinha (factos 70 a 73, 78 e 79), com bom nível de vida e de extracto acima da média, a mãe asseguraria à filha em média, ao longo do período considerado mas a valores actuais (data mais recente ou seja a do encerramento da discussão), cerca de € 400 (logo algo menos do que com o contributo do pai).

Considerando esses € 400 e deduzindo (só para efeito de cálculo aproximativo) o que já está a ser recebido como pensão, teríamos conforme a segunda fórmula (400-138) x 12 x 24 x 0,8 = cerca de € 60 000.

Temos por equitativo este montante.

c)- Sobre a indemnização compensatória pelo dano-morte:

Pela perda do direito à vida de cada um dos progenitores da A. a sentença final fixou € 50 000, embora discordando da decisão do saneador quanto ao pai da A. Já acima vimos que pela morte do pai (único causador do acidente lesivo) a sua seguradora não deve qualquer indemnização. Mas deve quanto à perda do direito à vida da mãe, vítima do acidente (art. 496º do CC).

O montante de 4000/5000 contos, pelo qual a recorrente pugna, é deveras baixo em relação ao que, para casos semelhantes, os tribunais superiores têm ultimamente fixado.

O acórdão do STJ de 31-1-2006 (Revista 3977/05-1ª), in Sumários de Jan/06, p.61, referiu “concordar com a jurisprudência mais recente do STJ que tem valorado o dano-morte em montantes na ordem de € 50 000”. Fixaram este montante, por exemplo, os acórdãos do STJ de 24-1-06 (Revista 3941/05-6ª), de 31-1-06 (rev.3769/05-1ª) e da Relação do Porto de 11-5-04 (CJ-t.3-p.174).

Atendendo às provadas circunstâncias objectivas e subjectivas relativas a este dano (ocorrido em 2000 e sendo de 2005 a data do encerramento da discussão da causa), perante a culpa grave e exclusiva do causador do acidente, consideramos equitativamente adequado esse montante actualizado de € 50 000, o qual não se deve baixar.

DECISÃO:

Pelos fundamentos expostos:

A)- Julga-se a 1ª apelação (Pº 978/03) procedente, revogando-se a decisão impugnada e condenando-se a A. E... nas custas do recurso sem prejuízo do apoio judiciário concedido;

B)- Julga-se a 2ª apelação (Pº 1084/02) em parte procedente com revogação parcial da decisão impugnada, que se substitui pela condenação da ré seguradora B... a pagar à autora A... (com inclusão das parcelas não impugnadas) os montantes indemnizatórios de:

-1- € 51 172,00 (cinquenta e um mil cento setenta e dois euros) mais os juros à taxa legal desde a citação, por danos patrimoniais;

-2- € 30 000 (trinta mil euros) por danos não patrimoniais, valor actualizado;

C)- Julga-se a 3ª apelação (Pº 978/03) em parte procedente com revogação parcial da decisão impugnada, que se substitui pela condenação da ré seguradora B... a pagar à autora E... (com inclusão das parcelas não impugnadas) os montantes indemnizatórios de:

-1- € 61 432,27 (sessenta e um mil quatrocentos trinta e dois euros e vinte sete cêntimos) mais os juros à taxa legal desde a citação, por danos patrimoniais;

-2- € 95 000,00 (noventa e cinco mil euros) por danos não patrimoniais, valor actualizado.

D)- Perante os recursos nºs 54/06 (Pº 1084/02) e 140/06 (Pº978/03), as custas das respectivas acções e recursos são devidas pela ré e pelas respectivas autoras na proporção do vencido, sem prejuízo dos apoios judiciários a estas concedidos.