Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
776/19.1GCLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: SANÇÃO PELA PRÁTICA EXTEMPORÂNEA DE ACTOS PROCESSUAIS
PROCESSO JUSTO E EQUITATIVO
REDUÇÃO OU DISPENSA DA MULTA
Data do Acordão: 11/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 139.º, N.ºS 5 A 8, DO CPC, E 107.º-A, DO CPP
Sumário: I – Não afronta o princípio do processo justo e equitativo as disposições normativas dos artigos 139.º, n.º 5, do CPC, e 107.º-A do CPP, porquanto a igualdade de oportunidade de pronúncia de todos os sujeitos processuais, no mesmo prazo, está integralmente assegurada.
II – O n.º 8 do artigo 139.º do CPC destina-se a assegurar de forma plena os princípios da proporcionalidade e igualdade substancial das partes, facultando ao juiz a correcta adequação da sanção patrimonial correspondente ao grau de negligência da “parte” ou à eventual situação de carência económica do beneficiário do exercício do direito.

III – A “manifesta desproporção” a considerar deve decorrer da comparação do montante da multa com a gravidade da prática do acto fora de tempo, tendo em conta a essencialidade do acto para o sujeito processual e a medida da sua culpa no atraso verificado.

IV – O requerente tem de invocar as circunstâncias concretas que poderão levar à redução ou à isenção da multa, sem prejuízo de o juiz poder oficiosamente reduzir ou dispensar a multa quando tais circunstâncias resultem já do processo.

Decisão Texto Integral:






Acordam, em Conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

1. Por sentença datada de 9 de novembro de 2020, proferida pelo Juízo Local Criminal de Leiria – J3, da Comarca de Leiria, proferida no processo comum n.º 776/19.1GCLRA, foi decidido:

«Quanto ao segmento criminal

a) Absolver o arguido N. da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo p. e p. pelos artigos 14.º e 152.º, n.ºs 1, al. a), 2, 4 e 5, todos do Código Penal;

b) Condenar o arguido N. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 200 [duzentos] dias de multa, à taxa diária de € 7,00 [sete euros]; (…)

Quanto ao segmento civil

(….)».

Da sentença proferida recorre o Ministério Público – que apreciaremos posteriormente ao conhecimento do


Ø RECURSO INTERLOCUTÓRIO:

  Cabe, em primeiro lugar, conhecer do recurso interlocutório interposto pelo arguido após a sentença.


a) Despacho recorrido:

“Por Decisão proferida em 09.11.2020, foi o aqui arguido N., no que ora releva, absolvido da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo p. e p. pelos artigos 14.º e 152.º, n.ºs 1, al. a), 2, 4 e 5, todos do Código Penal, e condenado, além do mais, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros) – cfr. fls. 234 a 250v. dos autos.

Inconformado com tal Decisão, dela interpôs recurso o MINISTÉRIO PÚBLICO (cfr. fls. 252 a 284v. dos autos), o qual foi admitido por despacho proferido a fls. 285 dos autos, no qual foi ainda ordenado o cumprimento do disposto no artigo 411.º, n.º 6, do Código de Processo Penal.

Regularmente notificados arguido e assistente, apenas o primeiro veio responder, o que fez em 25.01.2021, no 3.º dia útil subsequente ao termo do prazo para a prática do ato, de harmonia com o disposto no artigo 139.º, n.º 8, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do art. 107.º, n.º 5 do Código de Processo Penal, sem, contudo, proceder ao pagamento da respetiva multa, invocando, para o efeito, e em súmula, o princípio da igualdade de armas e o direito a um processo equitativo.

Desse requerimento foi dado conhecimento ao Ministério Público e à Assistente para exercerem, querendo, em 5 (cinco) dias o respetivo contraditório (cfr. fls. 324 dos autos).

            Nenhum dos mencionados sujeitos processuais se pronunciou. Cumpre apreciar e decidir:

No requerimento apresentado pelo arguido e que ora nos reportamos (id. em epígrafe), vem alegado, em síntese, que o Ministério Público interpôs recurso a 14.12.2020, tendo o prazo terminado a 09.12.2020, pelo que foi apresentado no terceiro dia útil subsequente ao termo do prazo legalmente fixado para o efeito, não tendo pago a multa a que alude o artigo 107.º-A, al. c) do Código de Processo Penal, nem tendo sido notificado para proceder ao pagamento a que se refere o artigo 139.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, tendo sido, não obstante, aquele considerado tempestivo.

Nesta sequência, fazendo apelo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e à Convenção Europeia dos Direitos Humanos, nomeadamente, ao princípio do processo equitativo, vem o arguido pugnar pela dispensa do pagamento da multa para a resposta ao recurso, escorado ainda no princípio da proporcionalidade e da igualdade de armas.

O prazo para interposição de recurso da sentença é de 30 dias, a contar do respetivo depósito, nos termos do disposto no art. 411.º, n.º 1, al. b) do CPP, tendo aquele depósito ocorrido na data em que foi prolatada a decisão a 09/11/2020.

Vejamos:

No que concerne à possibilidade de o Ministério Público praticar ato processual nos três dias úteis seguintes ao termo do respetivo prazo, sem pagar multa, tal encontra acolhimento nos artigos 107.º, n.º 5, e 522.º do Código de Processo Penal, e 139.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, a contrario (vd. Ac. do STJ n.º 5/2012 de 18/04, disponível no sítio www.dgsi.pt).

Tal isenção encontra respaldo no facto de o Ministério Público ser “o representante do Estado, encarregado de, nos termos da lei, defender a igualdade democrática, exercer a ação penal e promover a realização do interesse social” (cfr. Ac. do STJ de 11/12/1996, proc. n.º 96P754, in www.dgsi.pt).

Sem prejuízo, preceitua o artigo 139.º, n.º 8. do Código de Processo Civil que “O juiz pode excecionalmente determinar a redução ou dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica ou quando o respetivo montante se revele manifestamente desproporcionado, designadamente nas ações que não importem a constituição de mandatário e o ato tenha sido praticado diretamente pela parte”.

Nessa sequência, veio o Ac. do STJ n.º 4/2020, de 18/05 uniformizar jurisprudência no sentido de que “O n.º 8 do art.º 139.º do Código de Processo Civil, no qual se estabelece a possibilidade excecional da redução ou dispensa da multa pela prática de ato processual fora do prazo, é aplicável em processo penal” – estando, assim, aberta a possibilidade de o juiz conceder a redução ou dispensa da multa também ao arguido.

Contudo, a aplicação desse normativo não pode ser realizada de forma automática, assumindo cariz excecional, devendo ser aduzidos pelo arguido fundamentos nos quais ancora a manifesta carência económica. Podendo igualmente o juiz reduzir ou dispensar da multa quando o montante respetivo se revelar manifestamente desproporcionado, “designadamente nas ações que não importem a constituição de mandatário e o ato tenha sido praticado diretamente pela parte” (vd. Ac. da RG de 30/11/2015, proc. n.º 87/13.6GAMGD.G1, in www.dgsi.pt).

Ora, revertendo ao caso dos autos, o arguido não só não comprova qualquer situação de carência económica, como nem sequer traz à colocação qualquer fundamento que traduza essa carência e muito menos “manifesta”, tal qual reclama o comando normativo sobredito. Diga-se, aliás, a este propósito, que o montante devido não se revela manifestamente desproporcionado (ou seja, 2UC – valor total de € 204,00, cfr. art. 107.º-A, al. c) do CPP).

Por outro lado, sublinhe-se o facto de a interposição de recurso ou a resposta ao mesmo carecer da constituição de Mandatário, não tendo por isso o ato sido praticado diretamente pela parte. Pese embora, o preceito legal utilize a expressão “designadamente”, o tribunal não pode desconsiderar esse facto. Tece apenas no ponto 19 do seu requerimento a consideração genérica de “o cidadão-arguido, que não dispõe dos poderes de que é titular o MP, nem beneficia de todo a máquina que se encontra ao serviço deste (…) viu substancialmente dificultada a elaboração da sua resposta ao referido recurso”, não densificando ou concretizando essa “dificuldade”.

Sem embargo, o direito a um processo equitativo tem consagração no art. 6.º da CEDH (art. 20.º, n.º 4 da CRP – vd. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª edição revista, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 415), constituindo um dos pilares mais relevantes do Direito Internacional, tendo como desiderato a salvaguarda dos indivíduos contra tratamentos arbitrários (encontrando ainda acolhimento em variados diplomas internacionais, a saber: arts. 14.º e 15.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; arts. 8.º e 9.º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos; arts. 7.º e 26.º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos; art. 40.º da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança).

Na esteira de MANUEL AFONSO VAZ/CATARINA SANTOS BOTELHO o direito ao processo equitativo “e a averiguação da sua violação deverão efetuar-se segundo uma análise casuística, que atenda às particularidades do processo em causa. Nesta sede, dever-se-á perspetivar o processo como um todo, no seu conjunto” (MANUEL AFONSO VAZ/CATARINA SANTOS BOTELHO, “Algumas reflexões sobre o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direito do Homem Direito a um processo equitativo e a uma decisão num prazo razoável”, in E-Pública – Revista Eletrónica de Direito Público, n.º 7, 2016, p. 5).

Acrescentam “Ainda que a garantia de um processo equitativo perpasse os planos civil e penal, o Tribunal tem entendido que a margem de livre apreciação dos Estados Contratantes deverá ser menos ampla no âmbito do processo penal, em virtude da legalidade estrita própria deste tipo de processo” (MANUEL AFONSO VAZ/CATARINA SANTOS BOTELHO, ob. cit., p. 5).

Ora, perscrutando o caso em apreço, não se verifica que esteja em causa a violação do direito ao processo equitativo, essencialmente, porque o arguido na apresentação da resposta ao recurso no 3.º dia útil subsequente ao termo do respetivo prazo (cfr. art. 139.º, n.º 5 do CPC) não aduziu qualquer fundamento que pudesse conduzir à decisão por parte do tribunal de redução ou isenção da multa, de acordo com o art. 139.º, n.º 8 do CPC, encontrando-se, além do mais, o arguido devidamente patrocinado. Acresce o facto de resultar cristalino, como supra se explanou, a consagração expressa da isenção do Ministério Público, no que concerne ao pagamento de multa, podendo praticar o ato até ao 3º dia útil seguinte ao termo do respetivo prazo, sem qualquer consequência, algo que não sucede em relação a outros sujeitos processuais, uma vez que como se aludiu supra, o Ministério Público exerce a ação penal, pugna pela realização de interesses supra-individuais e constitui a garantia de intervenção norteada por critérios de legalidade. Ainda assim, e para casos excecionais o legislador estabeleceu uma “válvula de segurança”, permitindo ao arguido usufruir da redução ou da isenção da multa, desde que, para o efeito resultassem verificados os pressupostos reclamados pelo art. 139.º, n.º 8 do CPC. O que, salvo melhor entendimento, não resulta apurado nos presentes autos. Neste contexto, não considera o tribunal existir, in casu, qualquer desigualdade de armas, ausência de equidade ou tratamento arbitrário, quando o Ministério Público se encontra isento de custas e multas, dada a qualidade de órgão de justiça e o interesse público que lhe subjaz.

Face ao exposto, impõe-se, concluir pela improcedência/indeferimento do requerido pelo arguido, devendo este ser notificado proceder ao pagamento da multa respetiva, acrescida da penalização de 25%, nos termos do art. 139.º, n.º 6 do CPC.»


b) Recurso do arguido (conclusões):

«1ª- Pelo douto despacho recorrido foi indeferido o pedido, formulado pelo arguido, aqui recorrente, ao abrigo do disposto no art. 139º, nº 8, do CPC, ex vi do art. 107º, nº 5, do CPP, de dispensa do pagamento da multa a que se refere o art. 107º-A, al. c), deste diploma, pela apresentação da sua resposta ao recurso da douta sentença, interposto pelo MP, no terceiro dia útil subsequente ao termo do prazo para a prática desse ato, tendo sido determinada a notificação do ora recorrente para proceder ao pagamento dessa multa, acrescida da penalização de 25%, nos termos do art. 139º, nº 6 do CPC.

2ª- Para decisão do presente caso, são pertinentes as seguintes circunstâncias:

- por sentença proferida pela 1ª instância, o arguido foi absolvido da prática de um crime de violência doméstica agravada, por que vinha acusado;

- o MP interpôs recurso dessa sentença, pedindo a condenação do arguido pela prática do referido crime;

- para praticar este ato, o MP utilizou o prazo de 35 dias, ou seja, mais 5 dias do que o prazo legal;

- para utilizar esse prazo, o MP não só não pagou qualquer multa, como não apresentou justificação alguma;

- utilizando tal prazo, o MP elaborou um recurso com sessenta e uma páginas, denso e complexo, invocando nulidades, impugnando a decisão sobre a matéria de facto relativamente a vinte um factos, designadamente com base na transcrição de múltiplas passagens de depoimentos de diversas testemunhas, pedindo a renovação da prova e atacando a decisão de direito;

- consequentemente, o arguido, que não possui o poder do MP, não beneficiando da máquina que se encontra ao serviço deste, nomeadamente dos respetivos recursos técnicos e humanos, viu substancialmente dificultada a elaboração da sua resposta ao referido recurso;

- ainda assim, o arguido elaborou e apresentou essa resposta em prazo igual ao utilizado pelo MP para interpor o recurso;

- porém, no mesmo prazo, o arguido teve ainda de elaborar e apresentar um requerimento fundamentado, com quatro páginas, a fim de pedir a dispensa do pagamento de multa pela apresentação da referida resposta após o termo do prazo legal; - nem o MP, nem a assistente se opuseram a esse pedido.

3ª- Em face destas circunstâncias, com vista a assegurar a igualdade de armas, no mínimo, impunha-se que fosse permitido ao arguido elaborar e apresentar a sua resposta ao referido recurso do MP no mesmo prazo utilizado por este para elaborar e apresentar esse recurso, sem o pagamento de multa.

4ª- Consequentemente, o douto despacho recorrido violou o direito a um processo equitativo, na sua dimensão de igualdade de armas, consagrado no art. 6º, nº 1, da CEDH, pelo que deve ser revogado, deferindo-se o sobredito pedido de dispensa de pagamento de multa formulado pelo arguido.

5ª- De todo o modo, as especificidades do caso em apreço requerem a dispensa do pagamento de qualquer multa pela apresentação da resposta ao recurso interposto pelo MP no mesmo prazo utilizado por este para tal interposição, nos termos do nº 8 do art. 139º do CPC, aplicável ex vi do art. 107º, nº 5, do CPP.

6ª- Destarte, sempre o douto despacho recorrido violou estas normas, devendo ser revogado e deferido o mencionado pedido de dispensa de pagamento de multa, formulado pelo arguido.


c) Resposta do Ministério Público (conclusões):

«1. Por douto despacho, proferido a 16.03.2021, sob a referência 96253549, foi admitida a resposta ao recurso apresentada pelo arguido N. e indeferido o pedido de dispensa de pagamento da multa processual, contida no artigo 107.º-A, alínea c) do Código de Processo Penal.

2. O arguido N., ora recorrente, tendo sido condenado no pagamento de 2UCs, invoca ter sido preterido o princípio da igualdade de armas, enquanto corolário de um processo equitativo, reconhecido pelo artigo 6.º, n.º 1 da CEDH, tendo por base a isenção de custas de que o Ministério Público beneficia, por previsão legal, nos termos do artigo 4.º, alínea a) do Regulamento das Custas Processuais.

3. O ora recorrente, ao pugnar pela dispensa de pagamento da multa, por apresentação extemporânea de ato processual, não observa as exigências legais, contidas no artigo 139.º, n.º 8 do Código de Processo Civil, visto não invocar qualquer motivo de carência ou dificuldade económicas.

4. Mais acresce que a resposta ao recurso, apresentada pelo arguido N., foi elaborada por mandatário (conforme exigência contida no artigo 68.º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo Penal) e não diretamente pela parte, conforme se estabelece no indicado artigo 139.º, n.º 8 do Código de Processo Civil.

5. O tribunal a quo não acolheu qualquer entendimento ou interpretação dos artigos 107.º-A do Código de Processo Penal e 139.º, n.ºs 6 e 8 do Código de Processo Civil, que colida com as garantias próprias de um processo penal democrático, de estrutura acusatória, norteado por um princípio do contraditório.

6. Ao Ministério Público, aquando da interposição de recurso, nos 3 dias subsequentes ao termo do prazo, não lhe é imposta qualquer justificação (tal como decorre do artigo 139.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, ex vi artigo 107.º, n.º 5 do Código de Processo Penal), nem lhe é exigível, por gozar de isenção legal, o pagamento de qualquer multa processual.

7. O douto despacho recorrido mais não fez do que cumprir devidamente os normativos invocados, por obediência à lei e ao direito, conforme imposição constitucional (artigo 203.º da C.R.P.).

8. O douto despacho proferido encontra-se devidamente fundamentado, de facto e de direito, em conformidade com as normas legais aplicáveis, não padecendo de qualquer vício, irregularidade ou nulidade.

9. Por último, não foram violadas quaisquer garantias ou princípios de direito europeu, designadamente, os invocados pelo recorrente, pelo que o douto despacho sindicado não merece qualquer reparo.»


d) Parecer do Ministério Público nesta Relação:

            Pronuncia-se pela improcedência do recurso, acompanhando a resposta do Ministério Público em 1ª instância.


e) Conhecimento do recurso:

Pretende o arguido que seja revogado o despacho que ordenou a sua notificação para pagar a multa a que se refere o art. 107º, n.º 5, e 107º-A, al. c), do Código de Processo Penal, por ter apresentado a resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público da sentença proferida nos autos no 3º dia útil posterior ao termo do prazo para o efeito (art. 139º, n.º 8, do Código de Processo Civil, ex vi art. 107º, n.º 5, do Código de Processo Penal).

No requerimento que originou o despacho recorrido, o arguido invocou, exclusivamente, o princípio da igualdade de armas, previsto no art. 6º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, uma vez que o Ministério Público interpôs o recurso no 3º dia útil subsequente ao terminus do prazo e beneficiou de dispensa do pagamento da multa – razão pela qual defende ser-lhe aplicável idêntica isenção. Repete os fundamentos na motivação recursiva, invocando ainda a norma constante do n.º 8 do art. 139º do Código de Processo Civil.

Vejamos:

            O Supremo Tribunal de Justiça fixou no Acórdão n.º 5/2012, de 18 de abril de 2012 (publicado no DR, I Série, nº 98, de 21 de maio de 2012, pág. 2640), a seguinte jurisprudência: “O Ministério Público, em processo penal, pode praticar ato processual nos três dias úteis seguintes ao termo do respetivo prazo, ao abrigo do disposto no artigo 145.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, sem pagar multa ou emitir declaração a manifestar a intenção de praticar o ato naquele prazo”.

            No aresto em causa justifica-se a isenção do pagamento da multa por parte do Ministério Público da seguinte forma: “O estatuto constitucional do Ministério Público (…) justificam o tratamento diferenciado que o legislador lhe confere no exercício do direito à prática de ato processual fora de prazo, independentemente de justo impedimento, sendo certo que as normas conjugadas dos artigos 145º, n.º 5, do Código de Processo Civil e 107º, n.º 5 e 522º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ao permitirem ao Ministério Público o exercício daquele direito sem exigência de pagamento de multa ou de qualquer outro ato procedimental, à luz das considerações expostas, não violam o princípio da igualdade em qualquer das suas vertentes. A pretensa desigualdade resultante da isenção de multa de que beneficia o Ministério Público no exercício do direito à prática de ato fora do respetivo prazo é meramente formal, visto que não atinge os direitos processuais dos demais sujeitos, nem afeta o seu exercício ou a sua realização, tanto mais que a lei prevê a possibilidade de redução ou dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica ou quando o respetivo montante se revele manifestamente desproporcionado (n.º 8 do artigo 145º do Código de Processo Civil), possibilidade que em processo penal, atentas as suas específicas finalidades, deve ser equacionada e admitida sem o rigor exigível em processo civil, particularmente no que concerne ao arguido, atenta a parte final do n.º 5 do artigo 107º do Código de Processo Penal, que manda aplicar o n.º 5 do artigo 145º do Código de Processo Civil, com as necessárias adaptações”.

O recorrente entende que o princípio da igualdade de armas impõe que lhe seja conferido igual direito, ou seja, à prática do contraditório nos 3 dias úteis posteriores ao termo do prazo legal sem ter de liquidar a multa devida.

O art. 6º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, vigente na nossa ordem jurídica por força, desde logo, do art. 8º da Constituição da República Portuguesa, no qual o recorrente assenta a sua pretensão, estabelece o seguinte, no tocante ao processo equitativo: “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. (…)”.

Entre outros, consagra esta norma os princípios do contraditório e da igualdade de armas. O direito ao processo equitativo, do qual emanam os referidos princípios, exige que cada uma das partes tenha possibilidades razoáveis de defender os seus interesses numa posição que não seja inferior à da parte contrária. Dito de outra forma, “a parte deve deter a garantia de apresentar o seu caso perante o tribunal em condições que a não coloquem em substancial desvantagem face ao seu oponente” (cf. Irineu Cabral Barreto, “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 5ª ed., 2015, págs. 169-170).

No que respeita ao processo penal, a igualdade de armas “deve avaliar-se no contexto global da estrutura lógico-material da acusação e da defesa e da sua dialética e não, propriamente, em cada ato processual. Logo, relativamente a um ato concreto, a mera constatação de que não são exatamente iguais os direitos e deveres do Ministério Público e os do arguido (ou do outro sujeito do processo), só por si, não é suficiente para se ter como necessariamente violado o aludido princípio: uma tal violação só existirá se a desigualdade for arbitrária, irrazoável ou intoleravelmente discriminatória, por carecer de fundamento material bastante” – Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 11.12.1996, proc. JSTJ0031014, em www.dgsi.pt.

Ora, importa considerar previamente que o processo penal não é um processo de partes, desde logo porque não estão em causa relações jurídicas. O Ministério Público é um órgão autónomo de administração da justiça, a quem a lei incumbe a legitimidade para promover a ação penal em representação do Estado (art. 48º do Código de Processo Penal), orientando-se por critérios de legalidade e objetividade (art. 219º da Constituição da República Portuguesa), tendo legitimidade inclusive para atuar processualmente no exclusivo interesse do arguido [arts. 53º, n.º 2, al. d), e 401º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal].

Assim, as faltas processuais do Ministério Público não são cominadas com multa, e todo o sistema está assente no pressuposto de que o Ministério Público se encontra isento de multas processuais. Daqui não decorre qualquer violação do princípio da igualdade de armas: o arguido, enquanto sujeito processual, não está inibido de praticar o ato em causa (resposta ao recurso), no estrito cumprimento do princípio do contraditório.

A lei concede-lhe um prazo idêntico ao previsto para a interposição do recurso para junção da resposta, incluindo o direito a praticar o ato nos 3 dias úteis posteriores ao termo do prazo. A única distinção reside no facto de não gozar de isenção de pagamento da multa processualmente prevista para validar o ato praticado nesses dias, conforme previsto nos arts. 138º, n.º 5, do Código de Processo Civil, 107º, n.º 5, e 107º-A do Código de Processo Penal.

Do facto de a validade da prática do ato ficar dependente do pagamento de uma quantia a título de multa não decorre uma desigualdade de armas, porquanto o que os princípios do contraditório e da igualdade de armas pretendem proteger é a igualdade de oportunidade de pronúncia de todos os sujeitos processuais, no mesmo prazo – direito que se encontra, no caso, garantido.

Acresce que a insuficiência de meios económicos do arguido para pagamento da multa aplicável, reduzida no processo penal conforme previsto no art. 107º-A do Código de Processo Penal, não impede a prática do ato. Na verdade, o n.º 8 do art. 139º do Código de Processo Civil dispõe que "[o] juiz pode excecionalmente determinar a redução ou dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica ou quando o respetivo montante se revele manifestamente desproporcionado, designadamente nas ações que não importem a constituição de mandatário e o ato tenha sido praticado diretamente pela parte.".

            Esta norma destina-se a assegurar de forma plena os princípios da proporcionalidade e a igualdade substancial das partes, facultando ao juiz a concreta adequação da sanção patrimonial correspondente ao grau de negligência da parte ou à eventual situação de carência económica do beneficiário do exercício do direito.

            Porém, para que o juiz use desta faculdade, sobre o sujeito processual que dela pretenda beneficiar impende o ónus de demonstrar encontrar-se em situação de manifesta carência económica para poder efetuar o pagamento da multa ou, então, que o montante desta se apresenta manifestamente desproporcionado face ao ato a praticar.

            A propósito, refere Lebre de Freitas (em “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 1.º, Coimbra Editora, 1999, pág. 255): «[n]este caso perguntar-se-á: desproporcionado a que realidade? Não, certamente, à situação económica da parte, pois essa já está considerada na situação. A comparação a estabelecer é com a gravidade da prática do ato fora de tempo.».

            A “manifesta desproporção” a ter em conta deve resultar da comparação do montante da multa com a gravidade da prática do ato fora de tempo, tendo em conta a essencialidade do ato para o sujeito processual e pela medida da sua culpa no atraso verificado.

            Para além disso, o requerente tem de invocar as circunstâncias concretas que poderão levar à redução ou à isenção da multa, sem prejuízo do juiz poder oficiosamente reduzir ou dispensar a multa quando tais circunstâncias resultem já do processo.

            Ora, compulsado o requerimento apresentado pelo arguido, verifica-se que o mesmo não invoca qualquer circunstância donde resulte quer a sua carência económica, quer a desproporção do montante em causa, atendendo ao ato concreto em causa, conforme refere a decisão recorrida. Pelo contrário, ficou provado que o recorrente aufere um salário líquido mensal de € 1.800,00, tendo como despesas fixas uma prestação bancária no valor de € 400,00 (v. factos provados sob os pontos 19 a 21). O pagamento da multa prevista em concreto no art. 107º-A, al. c), do Código de Processo Penal, está, assim, perfeitamente ao alcance das suas possibilidades económicas.

            Improcede, pelo exposto, totalmente o recurso interposto pelo arguido.

No recurso interposto da sentença pelo Ministério Público, será considerada a resposta apresentada pelo arguido, atendendo ao facto de este ter depositado nos autos a quantia correspondente à multa pela prática tardia do ato.


***
Ø RECURSO DA SENTENÇA:

(…).

V. DECISÃO

Pelas razões expostas, decide-se:

a) Negar provimento ao recurso interlocutório interposto pelo arguido N., confirmando-se o despacho proferido a 16.3.2021;

b) Negar provimento ao recurso interposto da sentença pelo Ministério Público, confirmando-se na íntegra a sentença recorrida.

Custas do recurso interlocutório pelo arguido, fixando-se em 3 UC’s a taxa de justiça devida.

Sem tributação o recurso interposto da sentença.

Coimbra, 10 de novembro de 2021

Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (relatora)

João Bernardo Peral Novais (adjunto)