Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3172/05.4 TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO VENTURA
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA
MEDIADOR DE SEGUROS
Data do Acordão: 06/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 205º DO CP
Sumário: 1. A relação contratual de mediação de seguros legitima o mediador a receber de terceiro – o tomador do seguro – coisa móvel – o montante do prémio. Porém, esse montante não lhe pertence, foi-lhe entregue pelos tomadores dos seguros para que os entregasse à seguradora, constituindo-se o mediador mero detentor precário e obrigado, como qualquer pessoa que detém o que não é seu, a entregar a coisa móvel ao seu proprietário.
2. Comete um crime de abuso de confiança aquele que escapando inteiramente à relação contratual de mediação de seguros, dissipa em proveito próprio os prémios recebidos.
Decisão Texto Integral: I. Relatório

[1] Nos presentes autos com o NUIPC 3172/05.4 TALRA do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Leiria, foi o arguido J... condenado pela prática de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo artº 205º, nºs 1 e 4 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, e de outro crime de abuso de confiança, agora p. e p. pelo artº 205º, nºs 1 e 4, al. a) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão. Em cúmulo dessas duas penas, foi condenado na pena unitária de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período. Mais foi julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado contra o arguido pela demandante Zurich – Companhia de Seguros, S.A. e condenado este a pagar àquela a quantia de €7.814, 54 (sete mil, oitocentos e catorze euros e cinquenta e quatro cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, desde a notificação e até integral pagamento.
[2] O arguido não se conformou com essa condenação e interpôs recurso, circunscrito à matéria de Direito, pedindo a sua absolvição. Extraiu da motivação as seguintes conclusões:
1. O arguido foi condenado pela prática de dois crimes de abuso de confiança p. e p. pelo art ° 205, n.° 1 e 4, alínea a) do Código Penal na pena de dois anos e seis meses de prisão e um ano e seis meses de prisão respectivamente.
2. Em cúmulo jurídico o arguido foi condenado na pena única de três anos de prisão suspensa pelo período de três anos.
3. O arguido não praticou os crimes pelos quais foi condenado.
4. Resulta da matéria de facto provada a existência de uma relação contratual de mediação de seguros entre o arguido e a Zurich – Companhia de Seguros, S.A.
5. No âmbito de tal contrato, cabia ao arguido, além do mais angariar contratos de seguro encaminhando as respectivas propostas subscritas pelos respectivos tomadores para a Zurich, SA, e cobrar os prémios de seguros contra a entrega dos respectivos recibos que a Zurich emitia e lhe confiava.
6. Após a cobrança dos prémios dos seguros, em regra aquando das prestações de contas, o arguido procedia à entrega dos valores cobrados à Zurich SA, depois de deduzidas as comissões a que, nos termos do aludido contrato de mediação, tinha direito.
7. E assim procedeu o arguido.
8. O arguido prestou contas e emitiu cheques para pagamento dos saldos devidos.
9. Dos factos provados não resulta com exactidão quais os valores em causa, quando foram apresentados a pagamento os cheques e quando foram devolvidos.
10. Em face da matéria de factos provada, apenas nos é possível concluir que a Zurich SA tem um crédito sobre o recorrente.
11. Esse direito de crédito que surge do desenvolvimento normal da relação contratual entre a seguradora e o seu mediador não pode ser considerada como coisa móvel, como elemento típico do crime de abuso de confiança.
12. Como bem refere o Prof. Jorge de Figueiredo Dias in Crime Contra o Património (Art. 205 - Abuso de Confiança) "Créditos e quaisquer outros direitos não sendo coisas nem em sentido material nem em sentido jurídico, não podem constituir objecto do crime de abuso de confiança; o mais que poderá é a sua disposição danosa constituir crime de infidelidade".
13. Por outro lado, atentando no teor do Dec-Lei 388/91 que regula a actividade de mediação do seguros, a violação dos deveres do mediador de seguro nunca pode ser punida como crime mas apenas e só como contra-ordenação.
14. Tudo para concluir que o arguido não praticou os crimes de abuso de confiança.
15. Ao decidir pela condenação do arguido, o Tribunal violou o disposto no Art. 205 n.° 1 e 4 alínea a) do Código Penal.

[3] Respondeu o magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo, no sentido de que deverá ser negado provimento ao recurso, avançando para tanto com razões que sintetiza da seguinte forma:
I) Da matéria de facto apurada consta que o arguido recebeu de terceiros, clientes da seguradora "Zurich", quantias em dinheiro, pelos prémios de seguro cobrados e que deveria ter entregue a esta;
II) Tais valores estão concretizados na matéria de facto dada assente pelo tribunal a quo;
III) Ao não proceder à entrega dos prémios de seguro que cobrava aos clientes da seguradora lesada, o arguido apoderou-se indevidamente de tais quantias monetárias, porquanto, embora tivesse um contrato de mediação com aquela, não estava autorizado, quer por via dessa relação contratual, - quer pela própria lesada, a reter em seu beneficio tais quantias;
IV) A sua conduta preenche o crime de abuso de confiança p. e p. no art.205° do C.Penal, crime este agravado nos termos do n°4 al. a), face aos valores em causa.

[4] Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando os argumentos expostos pelo Ministério Público na instância. Considera igualmente que o recurso não merece provimento.
[5] Cumprido o disposto no nº2 do artº 417º do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
[6] O arguido dirigiu aos autos exposição, sustentando que foi «condenado por dívidas».
[7] Foram colhidos os vistos e procedeu-se a conferência.

II. Fundamentação

2.1. Delimitação do objecto do recurso

[8] É pacífica a doutrina e jurisprudência Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª ed., Ed. Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ de 99/03/24, in CJ (STJ), ano VII, tº 1, pág. 247. no sentido de que o âmbito do recurso delimita-se face às conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso Cfr., por exemplo, art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2, 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP e acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/95, publicado sob o n.º 7/95 em DR, I-A, de 28/12/95..
[9] O presente recurso versa, como se disse, apenas matéria de direito e centra-se na discordância quanto à tipicidade da conduta provada, designadamente quanto ao cometimento dos dois crimes de abuso de confiança pelos quais foi o arguido condenado.

2.2. Da decisão recorrida
[10] A primeira abordagem à questão colocada prende-se com a matéria provada, decisão que o arguido não impugna e em relação à qual não se vislumbra qualquer vício. Os factos dados como provados são os seguintes:

A) FACTOS PROVADOS
DA ACUSAÇÃO:
1) No início de Maio de 1997, o arguido J... celebrou um contrato através do qual se tomou mediador de seguros da Metrópole Seguros, a qual mais tarde foi incorporada na Zurich, Companhia de Seguros, S.A.
2) No âmbito desse contrato cabia-lhe, além do mais, angariar contratos de seguros, encaminhando as respectivas propostas subscritas pelos respectivos tomadores para a Zurich, S.A., e cobrar prémios de seguros contra a entrega dos respectivos recibos que a Zurich, S.A., emitia e lhe confiava.
3) Após a cobrança dos prémios dos seguros, em regra aquando das prestações
de contas, o arguido procedia à entrega dos valores cobrados à Zurich, S.A., depois de deduzidas as comissões a que, nos termos do aludido contrato de mediação, tinha direito.
4) No âmbito da aludida relação contratual, no ano 2000, o arguido recebeu da Zurich, S.A., os seguintes recibos relativos a prémios de seguros relativamente aos quais tinha o direito de, após a respectiva cobrança, ficar com comissões, tudo com a seguir se indica:
N° RECIBO TOMADOR DO SEGURO VALOR COMISSÃO
1 003676808 80.485$00 5.963$00
2 003710860 18.792$00 1.376$00
3 003710911 9.417$00 661$00
4 003711862 44.115$00 3.261$00
5 003715719 20.966$00 3.097$00
6 003718510 18.079$00 1.323$00
7 003718814 54.590$00 4.035$00
8 003726757 81.293$00 6.023$00
9 003726912 50.940$00 3.766$00
10 003729443 24.677$00 3.645$00
11 003732292 36.099$00 2.666$00
12 003739882 41.243$00 3.047$00
13 003741036 35.127$00 2.592$00
14 003741109 38.778$00 2.863$00
15 003744420 78.546$00 6.976$00
16 003744422 30.620$00 2.254$00
17 003744652 49.811$00 3.681$00
18 003745083 188.772$00 4.000$00
19 003748525 5.001$00 739$00
20 003751413 108.436$00 8.039$00
21 003767255 46.547$00 3.441$00
22 003773278 27.661$00 4.085$00
23 003776769 21.660$00 1.588$00
24 003828177 545$00 -$00
25 003794876 33.986$00 3.275$00
26 003844080 54.204$00 4.008$00
27 003855151 48.504$00 3.586$00
28 003862330 54.721$00 4.046$00
29 003868863 40.490$00 2.990$00
30 003870740 84.987$00 6.297$00
31 003871536 13.325$00 1.289$00
32 003882433 42.421$00 3.133$00
33 003882440 71.389$00 5.288$00
34 003882469 34.351$00 2.535$00
35 003883193 148.188$00 10.985$00
36 003885422 29.127$00 2.819$00
37 003885426 52.343$00 3.871$00
38 003885427 6.959$00 1.028$00
39 003885562 106.489$00 9.464$00
40 003885956 42.268$00 3.123$00
41 003886451 43.174$00 3.190$00
42 003891777 6.893$00 474$00
43 003891905 68.077$00 6.044$00
44 003892720 13.669$00 996$00
45 003893178 54.590$00 4.035$00
46 003893193 40.442$00 2.986$00
47 003906321 51.917$00 3.838$00
48 003906695 131.719$00 12.689$00
49 003925651 40.580$00 2.979$00
50 003937149 118.097$00 2.189$00
51 003938967 42.033$00 3.105$00
52 003940648 181.424$00 13.453$00
53 003940834 50.605$00 3.739$00
54 003940882 17.166$00 2.535$00
55 003940883 66.672$00 6.199$00
56 003941020 113.990$00 10.997$00
57 003947688 32.032$00 2.974$00
58 003947716 126.856$00 9.365$00
59 003947741 160.264$00 11.843$00
60 003947779 48.698$00 3.561$00
61 003947783 6.136$00 826$00
62 003947808 45.082$00 3.291$00
63 003947812 6.136$00 826$00
64 003947821 46.004$00 3.359$00
65 003953913 4.035$00 558$00
66 003953914 4.035$00 558$00
67 004013035 15.928$00 1.123$00
68 004016395 45.474$00 3.321$00
69 003603246 16.010$00 1.170$00
70 003611050 7.382$00 1.090$00
71 003672816 7.689$00 1.137$00
72 003721556 17.627$00 2.522$00
73 003721598 4.774$00 585$00
74 003721624 6.887$00 936$00
75 003721716 37.767$00 3.454$00
76 003721730 37.767$00 3.454$00
77 003809513 28.549$00 4.216$00
78 003821244 37.859$00 2.794$00
79 003821281 41.788$00 3.086$00
80 003688068 48.029$00 3.550$00
81 003688285 28.594$00 4.220$00
82 003689866 131.719$00 12.689$00
83 003691532 14.342$00 2.118$00
84 003691721 42.749$00 6.311$00
85 003691722 23.631$00 3.490$00
86 003691723 49.847$00 3.686$00
87 003691728 4.244$00 585$00
88 003691876 23.386$00 2.187$00
89 003692760 38.094$00 2.814$00
90 003698820 28.528$00 2.768$00
91 003698884 51.420$00 4.782$00
92 003703174 11.903$00 1.759$00
93 003703392 23.698$00 3.499$00
94 003706217 53.858$00 3.979$00
95 003706274 42.525$00 3.138$00
96 003707096 40.221$00 2.971$00
97 003751621 66.246$00 4.903$00
Total 4.524.990$00 371.804$00
5) Na posse dos indicados recibos, desde meados de 2000 até ao fim desse ano, o arguido cobrou dos aludidos tomadores dos seguros os valores neles mencionados e
6) Cobrou ainda os recibos n°s 003879695 e 003940110, figurando como clientes … e …., nos valores de 43.613$00 e 107.964$00, aos quais correspondiam as comissões de 6.438$00 e 8.002$00, respectivamente.
7) Em 22 de Setembro de 2000, prestou contas à Zurich, Comp. de Seguros, SA, relativamente aos primeiros 24 recibos acima mencionados, apurando-se um total de cobranças no valor de 1.206.800$00 e de comissões a seu favor no valor de 102.137$00, competindo-lhe entregar à Comp. de Seguros o valor de 1.123.530$00.
8) Para pagamento deste valor o arguido emitiu e entregou à Comp. de Seguros Zurich o cheque n° 2700189473, da CCAM de Leiria, datado de 22/9/2000, incorporando o montante de 1.123.530$00, o qual apresentado a pagamento, veio a ser devolvido por falta de provisão.
9) Em 2 de Novembro de 2000 o arguido prestou contas à Zurich relativamente aos 25° a 68° recibos constantes da listagem acima colocada, apurando-se um total de cobranças no valor de 2 597 057$00, tendo, de comissões a seu favor o valor de 203 230$00, tendo ficado determinado que lhe competia entregar à Seguradora o valor de 2 390 355$00.
10) Para pagamento, o arguido entregou à Zurich três cheques, incorporando o valor total de 2.392.424$00, um dos quais, sacado sobre a CCAM de Leiria, com o n° 5000189492, no valor de 2.240.847$00, emitido pelo próprio arguido de conta sua, veio a ser devolvido por falta de provisão.
11) Em 6 de Setembro de 2000 prestou contas à Zurich, relativamente aos recibos 69° a 97°, constantes da listagem acima existente, tendo-se então apurado um total de cobranças de 967.133$00, sendo de comissões a seu favor o valor de 93.893$00.
12) Os montantes recebidos pelo arguido e não entregues foram por este depositados numa sua conta bancária e por si gastos em proveito próprio.
13) Ao emitir e entregar os cheques acima indicados o arguido sabia que os mesmos não seriam pagos pois não tinha dinheiro na conta sacada para prover aos mesmos.
14) Agiu com o intuito de se apoderar das quantias que lhe foram entregues pelos clientes da Zurich e mercê das suas funções de mediador de seguros.
15) Sabia que tais valores não lhe pertenciam e que os devia entregar à Zurich, SA.
16) Ao proceder pela forma descrita o arguido visou engrandecer o seu património com o montante que devia entregar à Seguradora Zurich, SA.,e à custa desta, como logrou conseguir.
17) O arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei.
MAIS SE PROVOU QUE:
18) Da prestação de contas realizada em 22/9, a que se reporta o facto 7) dos Factos Provados, consta ainda um recibo com o n° 003714498, respeitante ao próprio arguido enquanto tomador, o qual foi tido em conta no total de cobranças apurado, tendo também sido incluído nas comissões pelo valor de 13.016$00, mas não tendo sido incluído na listagem que se encontra em 4) dos Factos Provados.
19) Os recibos referidos no facto 6) dos Factos Provados, respeitantes aos tomadores ….e …, constam da prestação de contas de 2/11, referida no facto 9) dos Factos Provados, tendo sido tomados em conta, quer no total das cobranças efectuadas, quer no total das comissões, mas não constando da listagem constante do facto 4) dos Factos Provados.
20) Os outros dois cheques referidos em 10) dos Factos Provados são os que apresentam os n°s 9434330581 e 5341837883, ambos sacados sobre o BPI, emitidos por …e …, dos valores de 43.613$00 e 107.964$00, respectivamente, totalizando 151.577$00.
21) Ambos estes cheques foram emitidos directamente à ordem da Zurich e posteriormente depositados na conta desta.
22) O segurado…., constante da listagem que se encontra em 4) dos Factos Provados (n° 77- recibo n° 003809513), emitiu, com data de 28/8/2000 um cheque à ordem da Zurich, com o n° 8137647684, sacado sobre o BPSM, no valor de 28.549$00 (valor constante do recibo), que foi depositado na conta da Zurich e por esta recebido.
23) O segurado …, constante da referida listagem (n° 79-recibo n° 003821281), emitiu, com data de 28/8/2000, um cheque à ordem da Zurich, com o n°6477302346, secado sobre o BES, no valor de 41.788$00, que foi depositado na conta da Zurich e por esta recebido.
24) O segurado,,,, constante da listagem que se encontra em 4) dos Factos Provados (n° 78-recibo n° 003821244), emitiu, com data de 22/8/2000, um cheque à ordem da Zurich, com o n° 8172418179, sacado sobre o BNU, no valor de 37.859$00, que foi depositado na conta da Zurich e por esta recebido.
25) O arguido emitiu a favor da Zurich, para além dos cheques referidos em 8) e 10) dos Factos Provados (dos valores de 1.123.530$00 e 2.240.847$00), também o cheque n° 1800189474, sacado sobre a COAM, no valor de 1.000.000$00, o qual, tal como aqueles, foi devolvido por falta de provisão.
26) Actualmente, o arguido é mediador das Seguradoras Império-Bonança, Fidelidade-Mundial e Allianz
27) O arguido no âmbito do processo comum colectivo n° 235/01.9TALRA, do 2° Juízo Criminal, foi condenado, em 17/3/2004, pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão e de um abuso de confiança, praticados em 1999, nas penas, respectivamente, de 300 dias de multa e 2 anos de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 3 anos.
DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL:
28) O arguido não entregou à lesada o montante de 3.279.646$00,ou seja, de €
16.358,81, correspondente à diferença entre os valores cobrados e as comissões a que aquele tinha direito.
29) Entretanto o arguido, com o decorrer do tempo, e provenientes de outras origens, foi cumulando comissões, cujo montante ascende, com referência à data de 8/9/2005, de € 8.544,27

[11] Tendo em atenção esse apuramento factual, o Tribunal a quo considerou que o arguido incorreu na prática de dois crimes de abuso de confiança e apreciou a argumentação contrária do arguido - afinal a mesma esgrimida no recurso - nestes termos
A) QUESTÕES SUSCITADAS PELO ARGUIDO
Por requerimento subscrito pelo seu defensor, veio o arguido sustentar que as infracções no âmbito da mediação de seguros constituem contra-ordenações, tendo em conta o disposto na Lei n° 47/91, de 3 de Agosto.
Todavia não lhe assiste qualquer razão.
De facto a Lei acima referida estabeleceu uma autorização legislativa que precedeu a aprovação do Dec-Lei n° 388/91, diploma que regula a actividade de mediação de seguros, pelo que aquela Lei, em si mesma, nada estabelece de concreto.
Já o artigo 48°, n° 1, alínea a) do DL 388/91 estabelece coima para a violação das obrigações constantes das alíneas b), c), f), g), h) ou i) do artigo 8° do mesmo diploma, sendo que a alínea h) impõe ao mediador a obrigação de "prestar contas às seguradoras nos termos legais ou regulamentares estabelecidos".
Ora, salvo o devido respeito por melhor opinião, no caso dos autos o arguido prestou contas, como o comprovam os vários boletins de prestações de contas existentes nos autos, apenas sucedendo que não entregou à seguradora as quantias resultantes dessas prestações de contas, pelo que não terá violado essa obrigação.
Mas mesmo que se entenda que, no conceito de "prestar contas" está compreendido também o dever de entrega das quantias, sempre se teria de considerar não excluída a responsabilidade criminal em face do corpo do n° 1 do citado artigo 48°, onde se dispõe que as coimas são aplicáveis, " sem prejuízo de pena mais grave que no caso caiba".
É assim manifesto que a responsabilidade penal do arguido não está excluída, podendo mesmo, caso se entenda que a conduta constitui violação do dever de prestar contas, ser cumulada com a imputação contra-ordenacional.
Suscita ainda o arguido no requerimento a questão do direito de retenção, invocando a sua qualidade de agente e o disposto no DL n° 178/86.
Efectivamente o direito de retenção é reconhecido aos agentes pelo artigo 35° deste diploma, pelos créditos resultantes da sua actividade.
Mas sucede que no caso dos autos não há, à data dos factos qualquer crédito do arguido sobre a seguradora pois as prestações de contas eram efectuadas pontualmente, conformando-se o arguido com as mesmas, tanto mais que até emitia cheques para o respectivo pagamento.
De resto o arguido não invocou quaisquer créditos à data dos factos, e se os mesmos ora existem, são posteriores à prática dos factos, apenas podendo ser considerados em sede de pedido de indemnização civil.
Também neste ponto não assiste pois, qualquer razão ao arguido.

B) DA QUALIFICAÇÃO JURIDICA DOS FACTOS
Realiza o tipo de crime de abuso de confiança previsto no art. 205° n° 1 do C.P. quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo de propriedade.
Objecto da conduta típica é coisa móvel alheia (cf. segmento descritivo típico "não translativo de propriedade"). Alheio no âmbito jurídico-penal é "toda a coisa que esteja ligada, por uma relação de interesse, a uma pessoa diferente daquela que pratica a infracção".
Quanto ao tipo objectivo do crime, consiste o seu primeiro elemento na apropriação ilegítima. A apropriação consiste no facto de o agente fazer sua coisa alheia que, recebida validamente, passa, posteriormente, a possuir ilicitamente ao inverter o título de posse ou detenção, na medida em que dela passa a dispor como se fosse sua.
O arguido recebeu diversas quantias de cobranças de prémios de seguros, as quais após uma primeira prestação de contas totalizavam o valor de 1.123.530$00, já deduzidas as comissões a que tinha direito. Após uma segunda prestação de contas, respeitante a outros recibos e ocorrida mais de um mês após a primeira, apurou-se que o arguido devia entregar também a quantia de 2.390.355$00, já deduzidas as comissões, estando obrigado a entregar as referidas quantias à seguradora.
Todavia o arguido não procedeu a essas entregas, passando a agir, relativamente a tais quantias, como se as mesmas lhe pertencessem.
Praticou, pois, actos objectivos reveladores de verdadeira inversão do título de posse. Deixou de possuir em nome alheio e fez entrar a coisa (dinheiro) no seu património, dispondo dela como se sua fosse, com o propósito de não lhe dar o destino a que estava ligada.
O segundo elemento do tipo objectivo é a natureza de coisa móvel do bem de que o agente se apropria. Para efeitos penais e do presente crime, coisa é toda a substância corpórea, material, susceptível de apreensão e que tenha um valor juridicamente relevante. Móvel, sê-lo-á, nos termos do artigo 205° do Código Civil. Tratando-se o bem aqui em causa de dinheiro, não apresenta dúvidas a sua qualificação como coisa móvel.
Finalmente, temos o elemento da entrega a título não translativo. Terá, realmente, que haver uma entrega voluntária da coisa pelo seu dono ao agente do crime e essa entrega terá de ser precária, i. e., feita por título não translativo da propriedade, mas apenas da detenção.
Precisamente, o arguido recebeu quantias de clientes da seguradora, em nome desta, tendo o dever de entregar a coisa (o dinheiro) à seguradora, sua legítima dona. Foi, assim, constituído pela ofendida em mero detentor precário da coisa.
Quanto ao elemento subjectivo do tipo, verifica-se que o arguido tinha conhecimento dos factos descritos e desejou agir como agiu, visando apropriar-se, como se apropriou, das quantias que lhe foram entregues.
Verifica-se, pois, o preenchimento dos elementos intelectual e volitivo do dolo (directo). Como consciência e vontade de realização do tipo objectivo, consiste o dolo, no crime de abuso de confiança, na consciência, pelo agente, de que a coisa se encontra em seu poder por força de um título não translativo da propriedade, querendo este, ainda assim, apropriar-se da mesma a seu favor. Em sede do tipo-de-culpa, encontra-se igualmente verificada a consciência da ilicitude por parte do arguido, uma vez que se provou que bem sabia que tal conduta não lhe era permitida por lei, permitindo-nos estabelecer um juízo de censura relativo à sua atitude interna face ao específico mandamento jurídico.
No caso dos autos, demonstrado ficou que o arguido que era mediador de seguros da Zurich, fez suas as cobranças que havia feito aos segurados e cujas deveria ter entregue àquela após as deduções a que tinha direito (no valor respectivamente de 3 279 646$00 e 371 804$00).
Ficou, assim, o arguido na sua posse de tal quantia, cuja integrou no seu património, em proveito próprio, e, em detrimento da Zurich - a quem a deveria entregar.
No caso presente, resultou provado que o arguido durante dois períodos diferentes (22 de Setembro e 2 de Novembro do ano de 2000) prestou contas à Zurich e que não entregou o dinheiro a que se obrigara, por tais prestações de contas, a entregar.
Já no que se refere aos factos respeitantes à prestação de contas de 6/9, não ficou demonstrado que o arguido não tenha entregue a quantia então apurada.
De acordo com o expresso no artigo 30°, n° 1 do Código Penal, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. No caso, verifica-se que o arguido com o seu comportamento preencheu por duas vezes o tipo de crime de abuso de confiança. Afastada fica a aplicação do crime continuado (artigo 300, n° 2 do Código Penal), uma vez que não se vislumbra na actuação do arguido qualquer quadro que diminua de forma considerável a sua culpa, muito pelo contrário).

2.3. Apreciação

[12] Como se referiu, o arguido sustenta que não praticou os crimes por que foi condenado e alinha em apoio dessa conclusão dois argumentos. O primeiro decorre da alegação de que agiu no âmbito de contrato de mediação de seguros Conclusões 4ª a 6ª., prestou contas, emitiu cheques para pagamento «dos saldos devidos» Conclusões 7ª e 8ª e que não se apurou com exactidão «quando foram apresentados a pagamento os cheques e quando foram devolvidos» pelo que, entende, existe tão somente um crédito sobre si por parte da seguradora Zurich SA. O segundo argumento prende-se pela circunstância da violação dos deveres do mediador de seguro «nunca poder ser punida como crime mas apenas e só como contra-ordenação». Começemos por apreciar este argumento, dada a sua evidente improcedência.
[13] Ficou provado que o arguido contratou com sociedade ulteriormente incorporada na Zurich, Companhia de Seguros, SA, nos termos do qual cabia-lhe um conjunto de actividades por conta e no interesse daquela, a saber, angariar contratos de seguros, receber e encaminhar propostas, cobrar prémios de seguro e emitir os correspondentes recibos, recebendo remuneração fixada em função dos valores cobrados - comissão. Perante tal conformação contratual, não restam dúvida que se tratou de contrato de mediação de seguros, o qual encontrava-se regulado, à data dos factos, pelo D.L. nº 388/91 de 10/10.
[14] No âmbito desse diploma, o legislador configurou as sanções para a violação do respectivo regime e previu um conjunto de infracções contra-ordenacionais, entre as quais não se encontra o locupletamento do mediador com as quantias cobradas dos segurados em pagamento dos prémios de seguro. Mas, mesmo que assim não fosse, e se considerasse que a conduta era punível a título contra-ordenacional, daí não resultaria afastada a responsabilidade criminal, como resulta de forma cristalina do artº 20º do Regime Geral das Contra-Ordenações, constante do D.L. 433/82, de 27/10, que estatui «Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra-ordenação, será o agente sempre punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias previstas para a contra-ordenação».
[15] Diga-se, a latere Pois a exposição subscrita pelo arguido não constitui resposta nem pode suscitar questões não comportadas na motivação de recurso subscrita pelo seu defensor. Não pode, nomeadamente, introduzir questões de constitucionalidade ausentes das conclusões., que o arguido veio aos autos juntar cópia de várias decisões jurisprudenciais, lendo nelas o que manifestamente não existe. O aresto da Relação do Porto de 11/12/96 que refere versa simplesmente um caso de verificação de contra-ordenação prevista no D.L. 388/91, de 19/10, em recurso incidente sobre a medida da coima, e não qualquer questão de concurso entre responsabilidade criminal e contra-ordenacional.
[16] Afastado esse argumento, passemos ao problema da tipicidade criminal, face ao disposto no artº 205º do Código Penal, no qual se prevê a conduta de «quem ilicitamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade». Então, para que seja cometido o crime de abuso de confiança é necessário que tenha lugar recebimento lícito pelo agente de uma coisa móvel, com a obrigação de a restituir; descaminho por parte de quem a recebe; prejuízo ou perigo de prejuízo para o proprietário, possuidor ou detentor da coisa entregue. Protege-se o bem jurídico património, no contexto de uma relação de fidúcia entre o agente e o proprietário Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense”, Tomo II, Coimbra Ed., 1999, págs. 94-97, Juan González Rus, “Curso de Derecho Penal Español”, E. Marcial Pons. Madrid, 1996, págs. 699-670 e Norberto Barranco, “Tutela Penal de la propriedad y delitos de apropriación – El dinero como objecto material de los delitos de hurto y apropiación indebida”, PPU Ed., Barcelona, 1994, págs. 39 e segs. e configura-se ilícito que atinge a sua consumação quando o agente, que recebe a coisa do seu proprietário, do seu detentor legítimo ou de um terceiro obrigado a presta-la, por título não translativo da propriedade para lhe dar determinado destino, dela se apropria, passando a agir animo domini Acs. do STJ de 31/10/91, in BMJ 410, pág. 430, de 12/01/94, in C.J., Acs. do STJ, ano II, tº1, pág. 195, de 20/04/95, in CJ (STJ), tomo 2, ano III, pág. 173, entre muitos.
[17] No caso em apreço, a relação contratual de mediação de seguros legitimou o arguido a receber de terceiro – o tomador do seguro – coisa móvel – o montante do prémio. Porém, esse montante não lhe pertence, foi-lhe entregue pelos tomadores dos seguros para que os entregasse à seguradora, constituindo-se o mediador mero detentor precário e obrigado, como qualquer pessoa que detém o que não é seu, a entregar a coisa móvel ao seu proprietário.
[18] Nos termos provados, o arguido depositou os montantes recebidos dos tomadores de seguro em conta bancária de que é titular, o que em si mesmo não é ilícito, atenta a fungibilidade do dinheiro Como salienta Figueiredo Dias, op. cit,.105, na apropriação de dinheiro releva uma certa medida ou quantidade e não determinadas notas ou moedas., desde que seja permanentemente respeitada a separação entre o que é seu e o que não é, ou seja, desde que o montante detido precariamente não seja dissipado, alcançando o agente locupletamento ilegítimo. Ora, nos termos provados, foi isso mesmo o que aconteceu, pois, com intuito de engrandecer ilegitimamente Cfr. facto provado nº15. o seu património à custa da Zurich SA Cfr. facto provado nº16., e sabendo a sua conduta punida e proibida por lei Cfr. facto provado nº17., o arguido J... gastou os montantes que deveria entregar à Zurich SA em proveito próprio Cfr. facto provado nº 12..
[19] Perante essa conformação da conduta, os crimes de abuso de confiança consumaram-se no momento em que o arguido inverteu o título de posse e passou a agir como proprietário dos montantes pertencentes à Zurich SA, designadamente utilizando-os ilegitimamente em proveito próprio, o que torna irrelevante a emissão de cheques e a respectiva devolução. Essa conduta tem lugar após a consumação e não posterga a conduta anterior, traduzindo apenas um embuste pois, como ficou igualmente provado, o arguido sabia que os títulos não iriam ser pagos, por falta de provisão. E, nesse contexto, não se encontra qualquer utilidade em saber com exactidão quando foram apresentados a pagamento e devolvidos.
[20] Sustenta o arguido que a Zurich SA tem sobre si um direito de crédito «que surge como desenvolvimento normal da relação contratual entre a seguradora e o seu mediador» mas é patente que assim não é. A conduta do arguido nada tem de regular ou «normal». Na verdade, o programa contratual estabelecido com o mediador de seguros envolve uma periodicidade na prestação de contas e, inerentemente, na entrega do respectivo saldo, podendo, nesse quadro, encontrar-se incumprimento contratual quando o mediador retém o saldo para além do contratualmente estipulado. Porém, no caso em presença, não estamos perante mora na entrega dos prémios à seguradora mas sim, repete-se, na sua dissipação em proveito próprio, o que escapa inteiramente à relação contratual de mediação de seguros, do mesmo modo que o funcionário bancário que recebe um depósito em dinheiro e o gasta em proveito próprio não é simplesmente devedor da instituição de crédito.
[21] Uma vez que a conduta jurídico-penalmente censurada não se confunde com a responsabilidade contratual, são impertinentes todas as considerações relativas à impossibilidade de ter como objecto do crime de abuso de confiança um crédito e a evocação da proibição da prisão por dívidas, pois o que se tutela neste plano não é a violação culposa de um determinado quadro contratual mas sim a violação do direito de propriedade, pela sua deslocação indevida. Não se confunda aqui a natureza do crime de abuso de confiança como delito de dever, em que releva especialmente a fonte e qualificação da relação de confiança e, porque o tipo exige que a apropriação seja ilícita, a sua intrínseca relação com o ordenamento civil. A verificação de que a entrega da coisa decorre de contrato não significa que a subsequente apropriação, sem o consentimento do proprietário, não possa ultrapassar o plano da responsabilidade contratual ou que se esteja a criminalizar a falta de cumprimento de uma prestação acordada. Acresce que, como já se disse, o arguido dissipou os montantes com dolo e consciência da ilicitude, sem que tenha ficado provada qualquer situação de erro sobre elemento constitutivo da infracção, mormente quanto à ilegitimidade da apropriação, ou sobre a existência de causa justificativa.
[22] Em suma, uma vez que o arguido não coloca em crise a medida da pena, nem se encontra outras questões de que cumpra oficiosamente conhecer, cumpre concluir pela improcedência do recurso.


III. Dispositivo

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:
A) Negar provimento ao recurso;
B) Condenar o arguido/recorrente nas custas, que se fixam em 4 (quatro) Ucs, atenta a simplicidade;
C) Notifique.


Texto elaborado em computador e revisto (artº 94º nº2 do CPP).

Recurso nº 3172/05.4TALRA

Coimbra, 17/06/2009

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(Fernando Ventura - relator)

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(Isabel Valongo)