Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2262/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: COMPROPRIEDADE
USO DA COISA COMUM PELOS CONSORTES
Data do Acordão: 10/04/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1405º, Nº 1, E 1406, Nº 1, DO C.CIV. .
Sumário: I – De acordo com o artº 1405º, nº 1, do C. Civ., os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular e, segundo o artº 1406º, nº 1, do mesmo diploma, na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer deles é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito .
II – O acordo relativo à divisão do gozo da coisa não está sujeito às exigências de forma que a divisão da coisa implicaria, nada impedindo que seja meramente consensual .

III – Materialmente dividido o gozo da coisa objecto da compropriedade, em termos de cada um ficar a usar a parte determinada que lhe coube, não se encontra razão para que esse uso, salvaguardado o fim a que a coisa se destina e o respeito pelos simétricos direitos dos consortes, tenha de ser necessariamente pessoal e não o possa ser por intermédio de terceiro .

IV- O que nenhum comproprietário pode é, a pretexto de que a lei lhe faculta o uso integral da coisa, comportar-se como se fosse proprietário exclusivo, privando os demais consortes do uso a que, tal como ele, têm direito .

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


1. RELATÓRIO
A..., divorciado, residente no Lago da Igreja, Valhelhas, Guarda, intentou acção declarativa, com processo comum e forma sumária, contra B... e mulher C..., ambos residentes em Valhelhas, Guarda, pedindo a condenação dos RR. a reconhecerem o seu direito de usufruto sobre o imóvel identificado e, consequentemente, a deixá-lo livre e desocupado.
Para tanto, o A. alegou, em síntese, que é usufrutuário de 1/3 do prédio urbano inscrito na matriz predial da freguesia de Valhelhas sob o art. 185 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o n.º 122; que os réus, desde há cerca de 3 / 4 anos vêm ocupando, sem qualquer título, uma das partes do dito urbano, que fora adquirido por contrato de compra e venda formalizado por escritura pública em 17/05/1988, por si (que posteriormente doou a propriedade de raiz da sua quota parte aos seus filhos) e pelos seus irmãos Agostinho e José Joaquim; que tal ocupação foi, inicialmente, por si tolerada mas, como os réus ali fossem ficando, interpelou-os para que deixassem a casa, o que recusam; e que a ocupação é, assim, além de contra a sua vontade, ilegal por violadora do seu direito real de usufruto sobre o imóvel.
Os réus contestaram, defendendo-se por excepção e impugnação. Por excepção, invocaram a ilegitimidade do autor e o abuso do seu pretenso direito; por impugnação, alegaram, que aquando da divisão da utilização do prédio, os comproprietários – Agostinho, José e o próprio autor (comproprietário na altura) – acordaram dividir a casa em três espaços autónomos e de área semelhante, cabendo ao autor a parte central do prédio, enquanto os restantes ficaram com as partes laterais; e que o espaço que utilizam é aquele que coube na divisão ao réu Agostinho, o qual autoriza a dita utilização.
O A. respondeu pugnando pela improcedência das excepções e terminando como na petição inicial.
Realizada, sem êxito, uma tentativa de conciliação, foi proferido despacho saneador em que se julgou improcedente a invocada excepção dilatória de ilegitimidade do autor e se entendeu verificarem-se todos os demais pressupostos processuais.
Condensada e instruída a acção, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, em cujo decurso foi proferido o despacho de fls. 107, respondendo aos quesitos da base instrutória e, desse modo, decidindo a matéria de facto controvertida.
Foi depois proferida a sentença de fls. 111 a 115, julgando a acção improcedente e absolvendo os RR. do pedido.
Irresignado, o A. recorreu e, na alegação apresentada, formulou as conclusões seguintes:
1) Ao contrário do entendimento perfilhado pelo Mmº Juiz a quo, a relação que se estabeleceu entre o recorrente e os réus é uma situação distinta daquela que existe entre os vários consortes, os recorridos ocupam uma parte indivisa do prédio sem qualquer título que legitime tal ocupação.
2) Existindo oposição de um dos consortes à utilização do imóvel por um terceiro estranho à compropriedade, tal ocupação é violadora da lei.
3) A ter existido um acordo quanto à divisão do imóvel, esse acordo, vincularia, apenas, os comproprietários e não um terceiro alheio à compropriedade.
4) Os recorridos ocuparam o imóvel por mera tolerância do recorrente, possuindo unicamente e tão só, duas autorizações de dois dos comproprietários a permitirem a sua permanência no imóvel, as quais não a legitimam.
5) Mesmo que por hipótese existisse a divisão amigável sempre estaria sujeita à forma exigida para alienação onerosa da coisa a escritura pública, como decorre do disposto no art. 1413º do C.C, o que nunca aconteceu.
6) O Mmº Juiz a quo, ao considerar a existência de uma divisão sem existir a respectiva escritura pública que validasse esse eventual acordo e ao sustentar a posição assumida na sentença com esse fundamento torna a mesma nula, por contradição entre a matéria factual dada nos autos e a decisão proferida.
7) Sendo o eventual acordo de divisão nulo, o Mmº juiz teria de fundamentar a sentença noutro pressuposto que não existência desse acordo, o qual, jamais, poderia conferir qualquer direito aos recorridos, enquanto terceiros estranhos à compropriedade.
8) Os recorridos, apesar de serem titulares de duas autorizações sempre seriam as mesmas inoponíveis ao recorrente, pelo simples facto de a ocupação da casa por um terceiro, ser um acto de oneração da coisa que só com o consentimento de todos os comproprietários é que seria possível mantê-los no imóvel, conforme decorre do disposto no art. 1408º do C.C..
9) Não existindo, o consentimento de todos os consortes as autorizações juntas aos autos consubstanciam uma oneração do direito de parte especificada e por isso, qualificada pela lei como um acto de oneração de coisa alheia, nula por força do disposto no artº 892º do C.C.
10) Não existindo uma divisão amigável do imóvel, pelo facto de não constar nos autos qualquer escritura publica de divisão, de acordo com o previsto no art. 1406º do C.C, cada um dos consortes pode usar integralmente a coisa comum, o que neste momento está vedado ao recorrente em virtude da ocupação ilegal do imóvel pelos recorridos.
11) Com a ocupação de uma parte especificada do mesmo pelos recorridos, para além de tal situação ser uma oneração da coisa, a mesma, neste momento e até pelo facto das más relações existentes entre ambos limita e belisca o uso pleno do direito do recorrente.
12) A douta sentença recorrida viola as disposições constantes dos arts. 892º, 1405º, 1406º, 1408º, 1413º, 1468º e 1483º todos do C.C. e 653º nº 2, 659º, nº 3 e 660º, nº 2, 668º nº 1 alínea b), c) e d) todos do C.P.C..
Os apelados responderam defendendo a manutenção da sentença recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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2. QUESTÕES A SOLUCIONAR
Tendo em consideração que, de acordo com os artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada apenas a questão da (in)existência de título que legitime a utilização de parte do prédio pelos RR..
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3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. De facto
Não tendo sido impugnada a decisão de facto nem havendo fundamento para oficiosamente a alterar, considera-se definitivamente assente a factualidade dada como provada na 1ª instância e que é a seguinte:
A) Por escritura de compra e venda, lavrada no Cartório Notarial da Guarda, no dia 16/05/88, exarada a fls. 98 a 100 do L 34-F, Joaquim Bidarra Pedro Teles declarou vender a José Joaquim Calheiros Andrade, A... e Agostinho Andrade Calheiros e estes comprar, em comum e partes iguais, um prédio urbano composto de rés-do-chão e primeiro andar com curral, com a área de 255 m2, sito na freguesia de Valhelhas e inscrito na matriz sob o art.º 185 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda, freguesia de Valhelhas, sob o n.º 122.
B) Por escritura pública de doação, lavrada no Cartório Notarial da Guarda, em 4/05/1995, A..., declarou que, com reserva de usufruto para ele, outorgante, doa aos seus três filhos Agostinho Júlio Fernandes Calheiros, Rogério Fernandes Calheiros e David José Fernandes Calheiros a terça parte indivisa do prédio urbano, composto de rés-do-chão e primeiro andar com curral, com a área de 255 m2, sito na freguesia de Valhelhas e inscrito na matriz sob o art.º 185 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda, freguesia de Valhelhas, sob o n.º 122.
C) Desde há cerca de 4 anos que os réus ocupam, sem qualquer título, uma das partes do prédio identificado em A..
D) Apesar de interpelados pelo autor os réus recusam-se a abandonar parte do prédio que ocupam.
E) Declaração junta a fls. 33, que se dá por reproduzida, nomeadamente, que “ ... Esta autorização permite a permanência de meu irmão B... na minha casa, na freguesia de Valhelhas, concelho da Guarda, durante a minha ausência” Trata-se de um documento datado de 15/10/2002 e assinado por Agostinho A. Calheiros..
F) José Joaquim Calheiros Andrade autorizou o réu a habitar o local que ocupa, em 4/10/04;
G) Após a aquisição do prédio, os comproprietários procederam à divisão da sua utilização, em três partes.
H) O autor habita a parte central;
i) Cada uma das divisões tem entradas separadas;
J) O autor aceitou que o réu ocupasse parte do prédio para habitação.
L) Autor e réus acordaram proceder ao pagamento da electricidade na proporção com o consumo geral do prédio.
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3.2. De direito
Não vem questionado – nem, face ao regime jurídico do usufruto, constante dos artºs 1439 e seguintes do Código Civil, se questiona – que, na qualidade de usufrutuário de 1/3 indiviso do prédio urbano inscrito na matriz da freguesia de Valhelhas, concelho da Guarda, sob o artº 185 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o nº 122/Valhelhas, ao apelante cabem, no tocante ao uso do imóvel, direitos equiparados aos dos dois comproprietários plenos dos restantes 2/3 indivisos.
Por isso, embora a nua propriedade da quota de que o apelante é usufrutuário radique na esfera jurídica dos seus três filhos, a quem a doou, raciocinar-se-á doravante, por facilidade, como se as posições do apelante e dos comproprietários Agostinho e José Joaquim fossem idênticas.
De acordo com o artº 1405º, nº 1 do Cód. Civil, os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular; separadamente, participam nas vantagens e encargos da coisa, em proporção da suas quotas e nos termos dos artigos seguintes.
E, segundo o artº 1406º, nº 1 do mesmo diploma legal, na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito.
Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, pág. 357., “a possibilidade de uso integral da coisa, como se, nesse aspecto, o contitular da propriedade fosse titular único da coisa, vale apenas como princípio supletivo e nos termos que adiante se desenvolvem. Em primeiro lugar, há que respeitar o que houver sido acordado entre os interessados. Este acordo tanto pode constar do título constitutivo da compropriedade, como resultar de acordo posterior, ditado pelo consenso unânime dos interessados ou pela simples maioria dos consortes, nos termos em que esta decide sobre a administração da coisa. A maioria, porém, nunca poderá privar qualquer dos consortes, sem o respectivo consentimento, do uso da coisa a que tem direito. Apenas lhe será lícito disciplinar esse uso, de modo a evitar conflitos e choques de interesses entre os vários comproprietários”.
“Há – continuam os mesmos autores – casos em que os comproprietários harmonizam os seus interesses conflituantes no uso da coisa comum, mediante uma divisão material do gozo dela. Sem chegarem a uma divisão da coisa, que ponha termo à compropriedade, os condóminos podem acordar em usar, separadamente, as dependências em que dividem a casa comum, ou os vários lotes de terreno em que repartem para o efeito o prédio rústico comum”.
Ainda segundo a lição dos Mestres referidos, “nos casos em que não é possível ou conveniente o uso por partes ou fracções da coisa, ou o uso por turnos, os interessados acordam por vezes no uso directo promíscuo ou simultâneo. Este é perfeitamente exequível em muitos casos de propriedade comum (couto de caça, lago para pescar, jardim de recreio, pátio ou logradouro que sirva várias casas, etc.). Podem todavia, levantar-se dificuldades práticas e teóricas, quanto ao uso directo promíscuo de prédios urbanos, que não se prestem a divisão”.
Qualquer pessoa entende facilmente que, no caso de compropriedade de uma casa de habitação, não podendo aos comproprietários ser imposto o dever de co-habitarem uns com os outros, ou é materialmente possível dividir o uso, habitando cada um uma parte determinada da casa, ou a única alternativa será o gozo indirecto, que se traduzirá, em regra, na locação do imóvel, a terceiro ou a um dos consortes, conforme a maioria, no exercício dos poderes de administração que o artº 1407º lhe confere, decidir.
É claro que – sem prejuízo da eventual superveniência dos requisitos da usucapião – dividir materialmente o gozo da coisa não é o mesmo que dividir materialmente a coisa. No primeiro caso, cada comproprietário usará a parte determinada da coisa que lhe foi atribuída sabendo que o seu direito é constituído por uma quota ideal da coisa e não por aquela parte específica. O que não sucederá no segundo, em que cada comproprietário passará a considerar-se proprietário exclusivo da parte que, fruto da divisão, lhe coube.
Por isso, o acordo relativamente à divisão do gozo da coisa não está sujeito às exigências de forma que a divisão da coisa implicaria, nada impedindo que seja meramente consensual Cfr. Ac. da Rel. do Porto de 17/06/1982, in CJ, VII, 3, 236..
E, materialmente dividido o gozo da coisa objecto da compropriedade, em termos de cada um ficar a usar a parte determinada que lhe coube, não se encontra razão para que esse uso, salvaguardado o fim a que a coisa se destina e o respeito pelos simétricos direitos dos consortes, tenha de ser necessariamente pessoal e não o possa ser por intermédio de terceiro.
Ou seja, acordado entre os comproprietários que cada um ficaria a gozar de uma parte determinada da coisa comum, não se vê impedimento, a não ser que a maioria expressamente o decidisse, a que todos ou alguns exerçam os respectivos direitos através de terceira pessoa.
O que nenhum comproprietário pode é, a pretexto de que a lei lhe faculta o uso integral da coisa, comportar-se como se fosse proprietário exclusivo, privando os demais consortes do uso a que, tal como ele, têm direito.

No caso “sub judice” constatamos que se encontra provado que, após a aquisição do prédio, os comproprietários – ou seja, o A., que, na altura, ainda não doara a nua propriedade da sua quota aos seus filhos, e os seus irmãos Agostinho e José Joaquim – procederam à divisão da sua utilização em três partes, cada uma com entradas separadas, ficando o A. a habitar a parte central e tendo aceite que o R., que para tal foi autorizado pelos restantes dois comproprietários, ocupasse parte do prédio para habitação.
Aplicando os princípios acima enunciados, verificamos que o apelante usa, de acordo com a divisão do gozo oportunamente feita com os demais consortes, a parte determinada que lhe foi atribuída.
Tal acordo, porque divide apenas o gozo e não a coisa, não é nulo por falta de forma Cfr. Ac. da Rel. do Porto, já referido. e vincula quem nele interveio, designadamente o apelante que, não fora ele, careceria de título para usar de modo exclusivo da parte central da casa.
E, não querendo ou não podendo os outros comproprietários usar pessoalmente as partes que na divisão lhes couberam, nada impede que permitam o respectivo uso a terceiro (que, segundo o artº 4º da contestação e a autorização de fls. 74, é irmão do A. e dos outros comproprietários).
De resto, nos termos dos artºs 1407º e 985º do Cód. Civil, os comproprietários Agostinho e José Joaquim formam maioria, já que detêm 2/3 do valor das quotas, não fazendo sentido que o apelante, usufrutuário de apenas 1/3, cujo direito está acautelado pelo gozo, em conformidade com a divisão acordada, da parte central da casa, impeça aqueles de, gratuitamente, facultarem ao R. e esposa a ocupação de uma outra parte.
Se, porventura, ao apelante assistisse – que não assiste – o direito de impedir aquele propósito dos outros dois comproprietários, ao exercê-lo entraria, seguramente, como os RR. adiantaram na contestação, perante abuso de direito (artº 334º do Cód. Civil), já que excederia manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelo fim social ou económico desse direito.
Em suma, soçobram as conclusões da alegação do apelante, o que conduz à improcedência da apelação e à manutenção da sentença recorrida, a qual, não revela qualquer contradição entre os fundamentos, designadamente a matéria factual, e a decisão, não padecendo de nulidade (cfr. conclusão 6ª).
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4. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, em manter a sentença recorrida.
As custas são a cargo do apelante.
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Coimbra,