Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
175/07.8TASPS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
VÍCIOS DO ARTIGO 410.º
N.º 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
IMPUGNAÇÃO AMPLA
Data do Acordão: 01/14/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE S. PEDRO DO SUL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 410.º, N.º 2 E 412.º, N.ºS 3, 4 E 6 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I. - A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma.
II. - No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
III. - No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do C.P.Penal.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO
1. No processo comum com intervenção do tribunal singular registado sob o n.º175/07.8TASPS a correr termos no Tribunal Judicial de S. Pedro do Sul, o arguido …, melhor identificado nos autos, foi submetido a julgamento pelos factos constantes da acusação deduzida nestes autos, pela imputada prática, em autoria material, de um crime de desobediência previsto e punível pelo artigo 348.º, n.º1, alínea b), do Código Penal, tendo sido o arguido condenado, por aquele crime, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), no total de €420,00 (quatrocentos e vinte euros).
2. Inconformado, o arguido interpôs recurso, formulando, na motivação, as seguintes conclusões (transcrição):
Normas violadas: O tribunal recorrido violou os princípios in dibio pro reo e da presunção de inocência (decorrentes do art. 32.º, n.º2, da CRP) e o art. 127.º, do Cód. de Proc. Penal.
O arguido agiu sem dolo, na convicção de que, se na DGV lhe devolveram a carta de condução, mesmo tendo aquele exibido a douta sentença condenatória, seria porque todas as inibições de conduzir se encontravam já cumpridas.
Tal convicção foi reforçada pelo conselho do seu Advogado, a testemunha ouvida em audiência, que interpretou da mesma forma as informações dadas pela DGV e que, por cautela, requereu esclarecimento ao Tribunal – que nunca obteve.
O arguido quando teve conhecimento de que a GNR o havia procurado na sua residência logo se dirigiu ao posto daquela força policial para fazer entrega voluntária da sua carta de condução, já que sempre quis cumprir a lei.
Nestes termos e nos mais de direito que V. Ex.cias doutamente suprirão deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e substituindo-se por outra que absolva o arguido da prática do crime de que vem acusado – com o que se fará Justiça.
3. Respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância, pugnando no sentido de o recurso ser julgado manifestamente improcedente.
4. Admitido o recurso, subiram os autos a este Tribunal da Relação, onde o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º, do Código de Processo Penal, pronunciou-se no sentido de que o recurso não merece provimento.
5. Foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Segundo jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como o são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2 (entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.99, CJ/STJ, Ano VI, Tomo II, p. 196).
Atento o teor das conclusões, identificam-se como questões a apreciar e decidir
- saber se o tribunal violou os princípios do in dubio pro reo, da presunção de inocência e da livre apreciação da prova, devendo o recorrente ser absolvido por ter agido sem dolo.
2. A sentença recorrida
2.1. Na sentença proferida na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
1- No âmbito do processo especial sumário n.º 106/06.2GASPS, que correu termos neste tribunal judicial de S. Pedro do Sul, foi o aqui arguido ali condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. nos termos dos art. 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do CP, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de 5 euros, e ainda na pena acessória de 4 (quatro) meses de proibição de conduzir veículos motorizados.
2- Aquando da leitura da sentença proferida no âmbito daqueles autos em primeira instância, no dia11.5.06, foi o arguido notificado pessoalmente de que tinha de entregar, no prazo de 15 dias a contar do trânsito em julgado daquela sentença, na secretaria deste tribunal judicial de S. Pedro do Sul, ou em qualquer posto policial, a sua carta de condução, sob pena de, não o fazendo naquele prazo, incorrer na prática de um crime de desobediência.
3- Contudo, transitada em julgado aquela sentença no dia 30.1.07, o arguido não procedeu à entrega da sua carta de condução no prazo subsequente de quinze dias, em virtude de tal carta de condução estar nessa altura apreendida à ordem da então Direcção Geral de Viação, para cumprimento da sanção acessória de inibição de condução de veículos motorizados pelo período de 60 dias que ao arguido foi aplicada no âmbito dos autos de contra-ordenação n.º 247.150.010, tendo o arguido findo o cumprimento de tal sanção acessória de inibição de condução de veículos automóveis no dia 24.3.07.
4- Assim, foi o arguido, por despacho judicial proferido em 28.5.07, pela Juiz de Direito titular, à data, dos autos de processo sumário supra identificados, Dra. …, para entregar a sua carta de condução no tribunal judicial de S. Pedro do Sul, ou em qualquer posto policial, no prazo de 15 dias a contar da notificação daquela ordem, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência.
5- O arguido foi notificado de tal ordem, através de via postal simples com prova de depósito, no dia 13.6.07.
6 - Todavia o arguido, nos 15 dias seguintes, não fez a entrega da sua carta de condução, nem na secretaria deste tribunal judicial de S. Pedro do Sul, nem em qualquer posto policial, tal como lhe havia sido ordenado.
7 - O arguido sabia que a ordem referida supra em 4 era legítima, e que havia sido regularmente comunicada e emanada de entidade competente.
8 - Ao não apresentar a sua carta de condução no prazo referido em 4 o arguido sabia que estava a desobedecer à ordem que lhe fora dada para entrega daquela carta neste tribunal judicial de S. Pedro do Sul, ou em qualquer posto policial, conformando-se com tal falta.
9 - Agiu nas circunstâncias atrás descritas, livre voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
10 - Encontra-se presentemente desempregado.
11 - Vive com a mãe, a qual é reformada.
12 - O arguido tem 4 filhos, todos a cargo da respectiva progenitora.
13 - Tem como habilitações a 4.ª classe.
14 - Possui antecedentes criminais, pois que:
a) por despacho proferido em 7.11.03, no âmbito de processo especial sumaríssimo, e por factos praticados em 6.5.03, foi condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, em pena de admoestação;
b) por sentença proferida em 11.5.06 (aquela referenciada supra em 1 e 2), e por factos praticados em 15.4.06, foi condenado, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 50 dias de multa, bem como na pena acessória de 4 meses de proibição de condução de veículos com motor, sendo que entretanto efectuou o pagamento da pena de multa.
Não se provaram quaisquer outros factos relevantes para além ou em contradição com os anteriores.
2.2. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
«Fundou-se a convicção do tribunal, desde logo, nas declarações do arguido, o qual reconheceu a condenação de que foi alvo no processo crime identificado na acusação, designadamente na pena acessória de 4 meses de proibição da condução de veículos com motor, além da sua notificação, logo aquando da leitura da sentença a que esteve presente (como referiu), para fazer entrega da sua carta de condução na secretaria deste tribunal ou em qualquer posto policial. Mais reconheceu ter sido posteriormente notificado, por via postal, para fazer entrega da sua carta, no prazo de 15 dias, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência. Como reconheceu não ter entregue, em tal prazo, a sua carta, seja neste tribunal, seja em qualquer posto policial. Tais declarações foram conjugadas e corroboradas pelo teor das certidões de fls. 2 a 22 (especialmente fls. 2 a 5 e 14 a 20) e de fls. 35 a 39 e 53 a 55.
No mais, designadamente quanto aos motivos ou fundamentos para tal omissão, as declarações do arguido “brotaram” numa amálgama de explicações que não nos convenceram. Assim, referenciando que não fez a entrega da carta por motivo da ex-DGV considerar o seu titulo de condução válido, pese embora a declaração de caducidade da carta imposta na sentença condenatória, e que por tal motivo não pode submeter-se a novo exame para obtenção de carta de condução, é manifesto que esta argumentação não convence. De facto, não se vê em que medida uma coisa (a obrigação de entrega do documento que o habilita, ou habilitaria, a conduzir) tem a ver com a possibilidade ou viabilidade de obtenção de novo título de condução. Não se vê e, acrescente-se, qualquer pessoa não confunde uma e outra daquelas situações. Por outro lado, mais referiu que não fez entrega da carta porquanto também estaria convencido que, após a devolução da carta de condução pela DGV (em 24.3.07), na sequência da apreensão daquela pela GNR, e tendo esta apreensão ocorrido aquando da prática dos factos posteriormente censurados em tribunal, estaria convencido, dizíamos, de ter cumprido todas as sanções/inibições que a DGV, por um lado, e o tribunal, por outro, lhe teriam imposto (2 meses + 4 meses, respectivamente). Ora, pese embora este argumento tenha já sido exposto pelo arguido no âmbito do processo sumário referido em 1 da factualidade apurada (cfr. o 4° parágrafo da carta de fls. 21 e 22, cuja subscrição o arguido reconheceu), o mesmo é desde logo afastado pela carta de fls. 12 e s. (cuja subscrição o arguido também reconheceu), através da qual o arguido, aí referindo que a GNR procedeu à apreensão da sua carta de condução, também referiu que aquela entidade lhe facultou uma guia de substituição, renovável, até à decisão final do processo administrativo relacionado com uma alegada infracção ao disposto no art.º 4.º, n.º 3 do Código da Estrada. Ora, tendo iniciado em 23.1.07 o cumprimento da sanção acessória de 2 meses imposta no processo de contra-ordenação supra referido, não se vê como pudesse o arguido pensar que teria cumprido uma pena acessória de 4 meses de proibição, imposta por este tribunal, sendo detentor de uma guia de substituição que o autorizava, precisamente, a conduzir até à decisão final do processo administrativo. De resto, a testemunha PB..., advogado, e que referiu ter aconselhado o arguido nos procedimentos relacionados com a carta de condução, mais referiu que acompanhou pessoalmente o arguido aos serviços da DGV, aquando da devolução da carta de condução, e que aí ninguém relacionado com aqueles disse que o arguido havia já cumprido qualquer pena acessória imposta por tribunal. Por último, quando confrontado com as suas explicações, o arguido, ainda que de um modo não expressivo ou claro (e não se esperava que o fosse perante os argumentos que foi discorrendo), lá apontou que não teria entregue a carta, na sequência da ordem que recebera do tribunal, porque 2talvez precisasse da carta2. Aliás, este registo vem de encontro ao teor dos dois parágrafos finais da 1.ª folha da carta de fls. 21 e s. dos autos, nos quais o arguido aponta a necessidade de se poder deslocar em função de um emprego que arranjara em área do concelho de Oliveira de Frades.
Mais foi relevante o teor da informação documentada de fl. 29. Ainda o CRC de fls. 47 a 49.
Para a situação socio-económica do arguido foram relevantes as suas próprias declarações
3. Apreciando
3.1. É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do C.P.Penal.
No caso em apreço, o arguido, ao interpor o seu recurso, afirmou que o mesmo é «restrito à matéria de direito».
E, efectivamente, a motivação do recurso e as respectivas conclusões não cumprem minimamente os requisitos exigidos pelo recurso (impugnação ampla) sobre a decisão da matéria de facto.
Aliás, o recorrente, no corpo da motivação – que não nas respectivas conclusões delimitadoras do âmbito do recurso – refere-se à existência do vício decisório do erro na apreciação da matéria de facto, a que se reporta a alínea c) do n.º2 do artigo 410.º, do C.P.P., cuja apreciação se inscreve na referida “revista alargada”, permitida mesmo nos casos em que o recurso incida apenas sobre a matéria de direito.
Porém, tal vício, como os demais referidos no n.º2 do artigo 410.º, tem de resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, conforme já se explicitou. Quer isto dizer que a sua verificação não decorre de qualquer reapreciação da prova produzida na audiência de julgamento.
É certo que o recorrente, na motivação do recurso, refere-se, em termos genéricos, à prova testemunhal produzida – testemunho do Dr. PB….
Porém, em parte alguma se denota a pretensão de suscitar a impugnação ampla da matéria de facto – antes o contrário, pois o recorrente afirma, de modo expresso, que o recurso é limitado ao direito –, sendo evidente que, para essa finalidade, o recurso interposto se revelaria totalmente inapropriado na sua formulação, por manifesto incumprimento dos ónus de especificação exigidos para o recurso sobre a decisão da matéria de facto.
Face ao exposto, e tendo em vista que o próprio recorrente, na motivação, situa a sua impugnação no âmbito do vício do “erro notório”, é forçoso concluir que o recurso interposto, no que toca à decisão da matéria de facto, não poderá ser apreciado para além do âmbito consentido pela invocação dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., cujo conhecimento, aliás, é oficioso.
3.2. Da análise da sentença recorrida resulta que o tribunal a quo analisou a documentação junta, considerou a prova produzida, tudo sopesou no âmbito da livre apreciação da prova (artigo 127.º do C.P.P.) e acabou por decidir quanto à matéria de facto. Da decisão recorrida não se infere que, no processo de valoração e decisão, no âmbito da livre apreciação, tenha o tribunal a quo actuado contra a lei ou de modo desconforme aos ditames da razão, da lógica e da experiência comum.
Estabelece o art. 410.º, n.º 2, do C.P.P. que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
Trata-se, como já se disse, de vícios de conhecimento oficioso.
O vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo, designadamente, sem que se reaprecie a prova documentada – por não ter sido interposto recurso sobre a decisão da matéria de facto.
Quanto à “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, este vício, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão. Saliente-se que este vício reporta-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
Quanto à “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, quanto ao “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, tal vício verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
Do texto da sentença recorrida, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação de qualquer dos apontados vícios.
Quanto ao “erro notório” – que o recorrente refere no corpo da motivação, afigura-se-nos que o recorrente confunde o erro notório na apreciação da prova e o recurso alargado sobre a matéria de facto.
No fundo, o que o recorrente impugna, sob a invocação do vício do “erro notório”, é a circunstância de o tribunal, face à prova produzida e à valoração que dela realizou, ter dado como provados os factos constantes da sentença.
Porém, não tendo sido interposta impugnação ampla da matéria de facto, este tribunal não reaprecia a prova produzida e não pode, consequentemente, decidir que o recorrente não actuou dolosamente.
Como já se salientou, a fundamentação apresentada pelo tribunal a quo é cabalmente esclarecedora dos motivos que levaram a dar como provados os factos constantes da sentença e certamente a discordância do recorrente quanto à valoração das provas não integra qualquer dos vícios da decisão enunciados no artigo 410.º, n.º2, designadamente, o do “erro notório”. Este vício decisório não deve ser confundido com a opinião que o recorrente formulou sobre a prova produzida, divergente da que veio a vingar na sentença recorrida.
Como expressivamente realça o tribunal a quo, como pode o recorrente sustentar que estava convencido de que tinha cumprido a proibição de conduzir em causa no período em que lhe tinha sido facultada uma guia de substituição, renovável, que o habilitou a continuar a conduzir? Como se diz na fundamentação da decisão de facto, «tendo iniciado em 23.1.07 o cumprimento da sanção acessória de 2 meses imposta no processo de contra-ordenação supra referido, não se vê como pudesse o arguido pensar que teria cumprido uma pena acessória de 4 meses de proibição, imposta por este tribunal, sendo detentor de uma guia de substituição que o autorizava, precisamente, a conduzir até à decisão final do processo administrativo».
Temos, pois, que a sentença recorrida não evidencia qualquer erro notório na apreciação da prova, entendido correctamente este vício decisório nos termos supra referidos.
3.3.Finalmente, é de realçar que do teor da sentença recorrida não resulta que esta haja violado qualquer princípio ou regra sobre provas, não tendo sustentação a invocação de que teria sido infringido o princípio in dubio pro reo.
Por um lado, não resulta da sentença que o tribunal tenha ficado num estado de dúvida – dúvida razoável, objectiva e motivável – e que, a partir desse estado dubitativo, tenha procedido à fixação dos factos provados desfavoráveis ao arguido; por outro, não se encontrando o tribunal a quo nesse estado de dúvida, razão pela qual não havia que apelar ao princípio in dubio, também nada nos permite concluir que o devesse estar.
O mesmo podemos dizer quanto aos princípios da presunção de inocência e da livre apreciação da prova, que não se detecta tenham sido de alguma forma postergados, nem o recorrente minimamente fundamenta, com razoabilidade, de que modo e por que via tais princípios teriam sido violados pelo tribunal a quo.
Mais uma vez o que avulta é que o arguido-recorrente, sem recorrer da decisão da matéria de facto, pretende sindicar a valoração que o tribunal a quo fez das provas produzidas – valoração que foi efectuada no quadro da livre apreciação e sem que se identifique nessa valoração qualquer arbitrariedade ou violação das regras da boa lógica e da experiência comum.
3.4. Face ao exposto, não enfermando a sentença recorrida dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, tem-se como assente a factualidade provada.
3.5. Tendo em vista os factos que se consideram assentes, não oferece dúvidas a prática pelo arguido-recorrente do crime por que foi condenado, nem a penalidade que lhe foi aplicada.
Em suma: o recurso não merece provimento.
III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, mantendo