Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
628/13.9TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTO
FASE JUDICIAL
RECURSO
Data do Acordão: 11/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 423º, 425º E 651º CPC.
Sumário: I – Da articulação lógica entre o artigo 651º, nº 1 do CPC e os artigos 425º e 423º do mesmo Código resulta que a junção de documentos na fase de recurso, sendo admitida a título excepcional, depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso; (2) ter o julgamento de primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional.

II – Quanto ao primeiro elemento, a impossibilidade refere-se à superveniência do documento, referida ao momento do julgamento em primeira instância, e pode ser caracterizada como superveniência objectiva ou superveniência subjectiva.

III – Objectivamente, só é superveniente o que historicamente ocorreu depois do momento considerado, não abrangendo incidências situadas, relativamente a esse momento, no passado. Subjectivamente, é superveniente o que só foi conhecido posteriormente ao mesmo momento considerado.

IV – Neste caso (superveniência subjectiva) é necessário, como requisito de admissão do documento, a justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, não obstante o carácter pretérito da situação quanto ao momento considerado, só ocorreu posteriormente a este e por razões que se prefigurem como atendíveis.

V – Só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade daquela pessoa, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento.

VI – Quanto ao segundo elemento referido em I deste sumário, o caso indicado no trecho final do artigo 651º, nº 1 do CPC (a junção do documento ter-se tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância), pressupõe a novidade da questão decisória justificativa da junção do documento com o recurso, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão recorrida, o que exclui que essa decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa

            1. M… e marido, A… (1ºs AA. e aqui Apelados), e J… e mulher, L… (2ºs AA. e aqui igualmente Apelados) demandaram o seguinte, amplo, grupo de RR.: (a) Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de E…, seguida da referência identificativa “representada pelos seguintes herdeiros e interessados[1], …

            A culminar a petição inicial expressaram os AA. os diversos pedidos – fundamentalmente decorrentes da aquisição por prescrição (usucapião) de servidões de aqueduto e passagem de águas em benefício de um prédio dos AA. onerando prédios integrando o acervo das duas heranças indicadas –, em função disto expressaram os AA., dizíamos, os diversos pedidos nos seguintes termos:
“[…]
[D]eve a presente acção ser julgada provada e procedente condenando-se os RR. Herança Ilíquida e Indivisa deixada por óbito de E…, … a:
I – Reconhecerem os primeiros e segundos AA. como donos e legítimos possuidores do prédio rústico com o Artigo matricial nº. … em compropriedade e na proporção de metade indivisa para cada um.
II - Reconhecerem que os AA. são donos e legítimos possuidores do direito a um quarto da água da mina existente no prédio rústico com o Art.º matricial nº. …, identificado no Art.º 8.º da Petição Inicial.
III – Reconhecerem que este quarto da água da mina existente no prédio rústico com o Art.º … se traduz numa utilização alternada pelos primeiros e segundos AA., durante todo o ano, dois dias seguidos em cada oito dias de toda a água da referida mina.
IV – Reconhecerem a existência no prédio rústico com o Artigo matricial nº. … de uma servidão de aqueduto com as características e medidas descritas nos Artigos 18.º a 24.º da Petição Inicial.
V – Reconhecerem a existência de uma servidão de passagem a pé no prédio rústico com o Artigo matricial nº. … para acesso e acompanhamento das águas e limpeza do rego a favor do prédio dos AA., com as características, modo de exercício e conteúdo descritos nos Artigos 25.º a 29.º da Petição Inicial.
Os RR. Herança Ilíquida e Indivisa deixada por óbito de E, … serem condenados a:
VI – A reconhecerem os AA. como titulares, donos e possuidores do direito a um terço da água de uma mina recolhida num tanque existentes no prédio rústico com o Artigo matricial nº. …, identificado no Art.º 7.º da Petição Inicial.
VII – Reconhecerem que o direito a um terço da água da mina recolhida no tanque existentes no seu prédio com o Artigo … se traduz na utilização alternada pelos A.A. durante todo o ano, dois dias seguidos em cada oito dias e ainda mais dois dias em cada vinte e quatro dias de toda a água da referida mina a favor do prédio dos AA.
VIII – Reconhecerem a existência no seu prédio rústico a favor do prédio dos A.A. de uma servidão de aqueduto, definida com as características e medidas descritas nos Artigos 37.º a 42.º da Petição Inicial.
IX – Reconhecerem a existência no seu prédio rústico e a favor do prédio dos AA. de uma servidão de passagem a pé para acesso e acompanhamento das águas em limpeza do rego com as características, localização e dimensão, modo de exercício e conteúdo descritos nos Artºs. 43.º a 48.º da Petição Inicial.
XI – Reconhecerem que não têm qualquer direito de servidão de aqueduto e de passagem para utilização da água da mina situada no prédio rústico com o Artigo matricial nº. … para o prédio rústico com o Artigo matricial com o nº. … através do tubo de plástico referido no Art.º 50.º da Petição Inicial.
XII – Reporem no seu prédio rústico com o Artigo matricial nº. …as servidões de aqueduto e passagem a pé para condução da água e acesso à mina existente no prédio rústico com o Artigo … dos VI a XI RR., e as servidões de aqueduto e de passagem a pé para condução da água e acesso ao tanque existente no prédio rústico com o Artigo matricial nº. … a favor do prédio rústico dos AA. com o Artigo matricial nº. ...
XII – Absterem-se de impedirem ou prejudicarem o exercício normal de utilização pelos AA. das águas pertencentes aos AA. situadas nos prédios rústicos com os Artigos matriciais nºs. … e …, e a retirarem o tubo de plástico que colocaram na mina situada no prédio com o Artigo matricial … para levarem água para o seu prédio rústico com o Artº. ...
XIII – Serem condenados em sanção pecuniária compulsória a favor do Estado em quantia que se entenda adequada e em indemnização a favor dos AA. que se julga adequada em €100,00 diários desde a citação até efectivo cumprimento.
[…]” (sublinhados acrescentados em vista da matéria pertinente ao recurso).

            1.1. Foram os RR. – todos os RR. – regularmente citados, sendo que nenhum deles (designadamente os 2ºs RR.,) deduziu oposição, juntou documentos ou constituiu (então) mandatário.

Daí que a fls. 106 o Tribunal tenha julgado confessados os factos articulados pelos AA., nos termos do artigo 567º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)[2].

            1.2. Subsequentemente, foi a acção julgada em primeira instância pela Sentença de fls. 111/128constitui esta a decisão visada pelo presente recurso – no sentido da procedência parcial – uma procedência quase total[3] –, através do seguinte pronunciamento decisório:
“[…]
[O] tribunal julga a acção parcialmente procedente e, em consequência, absolvendo os RR. do demais peticionado:
a) Condena os RR. Herança Ilíquida e Indivisa deixada por óbito de E…, …  a:
I - Reconhecerem os primeiros e segundos AA. como donos e legítimos possuidores do prédio rústico com o Artigo matricial n.º …, identificado no artigo 1º da petição inicial em compropriedade e na proporção de metade indivisa para cada um;
II - Reconhecerem que os AA. são donos e legítimos possuidores do direito a um quarto da água da mina existente no prédio rústico com o artigo matricial n.º …, identificado no artigo 8.º da petição inicial;
III – Reconhecerem que este quarto da água da mina existente no prédio rústico com o artigo … se traduz numa utilização alternada pelos primeiros e segundos AA., durante todo o ano, dois dias seguidos em cada oito dias de toda a água da referida mina;
IV - Reconhecerem a existência no prédio rústico com o artigo matricial n.º … , de uma servidão de aqueduto com as características e medidas descritas nos Artigos 18.º a 24.º da petição inicial;
V - Reconhecerem a existência de uma servidão de passagem a pé no prédio rústico com o artigo matricial n.º … para acesso e acompanhamento das águas e limpeza do rego a favor do prédio dos autores, com as características, modo de exercício e conteúdo descritos nos artigos 25.º a 29.º da petição inicial;
b) Condena os RR. Herança Ilíquida e Indivisa deixada por óbito de E…, …  a:
VI - A reconhecerem os AA. como titulares, donos e possuidores do direito a um terço da água de uma mina recolhida num tanque existentes no prédio rústico com o artigo matricial n.º …, identificado no artigo 7º da petição inicial;
VII - Reconhecerem que o direito a um terço da água da mina recolhida no tanque existente no seu prédio com o artigo … se traduz na utilização alternada pelos AA. durante todo o ano, dois dias seguidos em cada oito dias e ainda mais dois dias em cada vinte e quatro dias de toda a água da referida mina a favor do prédio dos autores;
VIII - Reconhecerem a existência no seu prédio rústico a favor do prédio dos AA. de uma servidão de aqueduto, definida com as características e medidas descritas nos artigos 37.º a 42.º da petição inicial;
IX - Reconhecerem a existência no seu prédio rústico e a favor do prédio dos autores de uma servidão de passagem a pé para acesso e acompanhamento das águas e limpeza do rego com as características, localização e dimensão, modo de exercício e conteúdo descritos nos artigos 43.º a 48.º da Petição Inicial;
XI – Reconhecerem que não têm qualquer direito de servidão de aqueduto e de passagem para utilização da água da mina situada no prédio rústico com o artigo matricial nº. … para o prédio rústico com o artigo matricial com o nº. … através do tubo de plástico referido no artigo 50.º da Petição Inicial;
XI - Reporem no seu prédio rústico com o artigo matricial n.º … as servidões de aqueduto e passagem a pé para condução da água e acesso à mina existente no prédio rústico com o artigo … dos VI a XI RR., e as servidões de aqueduto e de passagem a pé para condução da água e acesso ao tanque existente no prédio rústico com o artigo matricial nº. … a favor do prédio rústico dos autores com o artigo matricial n.º …;
XII - Absterem-se de impedirem ou prejudicarem o exercício normal de utilização pelos AA. das águas pertencentes aos autores situadas nos prédios rústicos com os artigos matriciais nºs. … e … da freguesia de …, e a retirarem o tubo de plástico que colocaram na mina situada no prédio com o artigo matricial … para levarem água para o seu prédio rústico com o artigo ...
[…]”.

            1.3. Propiciou a notificação desta Sentença o aparecimento (activo) no processo dos 2ºs RR. …, através do presente recurso (com constituição simultânea de Mandatária), recurso que foi motivado a fls. 160/171, ao qual anexaram esses RR. um documento pretendido juntar (o de fls. 172/173, pretendido juntar, pois, em sede de recurso)[4], sendo as conclusões com que remataram a motivação as seguintes:
“[…]


II – Fundamentação

2. Caracterizado sucintamente o desenvolvimento do processo que conduziu à presente instância de recurso, importa apreciar a impugnação dos Apelantes, sendo que o âmbito objectivo desta se mostra delimitado pelas conclusões transcritas no item antecedente (v. os artigos 635º, nº 4 e 639º do CPC[5]). É assim que, fora das conclusões só valem, num recurso, questões que se configurem como de conhecimento oficioso – embora aqui nenhuma questão relevante se configure nesses termos. Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição no recurso sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas (di-lo o artigo 608º, nº 2 do CPC) – e ocorre aqui, como de seguida veremos, uma situação deste tipo. E, enfim – esgotando a enunciação do modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões-fundamento) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações.

2.1. Os Apelantes caracterizam o recurso como referido à pretensão de alterar os factos fixados em primeira instância nos termos do artigo 662º, nº 1 do CPC: “[a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. Neste caso o motivo da almejada alteração reside na apresentação de um documento reputado de “superveniente”, correspondendo o mesmo à certidão junta com a alegação de recurso (trata-se o dito “documento superveniente”, pois, da certidão de fls. 172/173[6]).

Apresenta-se, assim, como elemento operante do recurso a possibilitação da entrada desse documento no processo e, consequentemente, enquanto questão prévia condicionante, a admissão no processo desse mesmo documento.

É esta (a) questão (prévia) que importa desde já resolver.

2.1.1. Explicando com maior detalhe esse elemento condicionante da admissão do documento na dinâmica do recurso aqui visado, diremos que só aceitando no processo esse documento – no qual fundam os Apelantes a asserção de não serem eles donos de um dos prédios onerados com as servidões em causa, por uma anterior partilha da herança o ter atribuído a uma outra interessada e aqui R. –, só aceitando esse documento, dizíamos, existirá – existiria – algum espaço factual para a consideração da construção interpretativa em função da qual os Apelantes pretendem ser deslegitimados substantivamente para a presente acção. Só com essa junção, pois, será possível a este Tribunal da Relação, actuando no quadro do artigo 662º, nº 1 do CPC, modificar, como pretendem os Apelantes, a decisão respeitante à matéria de facto.

À questão da junção de documentos na fase de recurso se refere expressamente o artigo 651º, nº 1 do CPC, cujo teor ora se transcreve:

Artigo 651º
Junção de documentos e de pareceres
1 - As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425º ou no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.
--------------------------------------------------------------------------------------.

            E dispõe o artigo 425º para o qual remete o texto da norma acabada de transcrever:

Artigo 425º
Apresentação em momento posterior
Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.

            E importará ter presente, enfim, enquanto norma contendo o “princípio geral” que referencia, na dinâmica do processo, o momento da apresentação de prova por documentos, o artigo 423º do CPC:

Artigo 423º
Momento da Apresentação
1 - Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
2 - Se não forem juntos com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
3 - Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.

            Da articulação lógica destas normas decorre – e estamos a cingir-nos à questão aqui relevante – que a junção de documentos em sede de recurso (junção que é positivamente considerada apenas a título excepcional) depende da caracterização (rectius, da alegação e da prova) pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso, valendo aqui a remessa do artigo 651º, nº 1 para o artigo 425º; (2) o ter o julgamento da primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional, que até aí – até ao julgamento em primeira instância – se mostrava desfasada do objecto da acção ou inútil relativamente a este.

            O primeiro elemento referido – a impossibilidade de apresentação anterior – legitima as partes a utilizar no recurso, juntando-os com a motivação deste, documentos cuja apresentação não tenha sido possível até esse momento (até ao julgamento em primeira instância), o que pressupõe aquilo que se refere como superveniência objectiva ou subjectiva do documento pretendido juntar[7].

Ora, sendo superveniente (objectivamente superveniente) o que só ocorreu historicamente depois de um determinado momento considerado, ou (superveniência subjectiva) o que justificadamente só foi conhecido por alguém depois desse momento, vale a asserção de superveniência aqui relevante – vale, portanto, como integração positiva da facti species do nº 1 do artigo 651º do CPC – pela constatação da ocorrência da situação revelada pelo documento só posteriormente à decisão recorrida (superveniência objectiva, pressupondo esta a criação posterior do documento) ou pela justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, não obstante a sua existência ser anterior ao momento considerado, só teve lugar posteriormente, por razões que se prefigurem como atendíveis, no sentido de serem razões aptas a demonstrar a impossibilidade daquela pessoa (quer o artigo 423º, nº 3 como o artigo 425º, ambos do CPC, falam em “não [ter] sido possível”), num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido conhecimento anterior da existência do documento. Estas razões, todavia – rectius, a atendibilidade delas – pressupõem à partida a respectiva invocação e a prova da não possibilidade (da impossibilidade) de um conhecimento anterior[8] e abrem caminho, quando alegadas, à respectiva indagação.

Note-se que o artigo 651º, nº 1 do CPC também admite, no seu trecho final, a junção de documentos com as alegações de recurso nos casos em que o julgamento proferido em primeira instância torne necessária a consideração desse documento. Pressupõe esta situação, todavia, a novidade da questão decisória justificativa da junção pretendida, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão, sendo que isso exclui que a decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum. Com efeito, como refere expressivamente António Santos Abrantes Geraldes, “[p]odem […] ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, maxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo[9].

2.1.2. Ora, nesta situação, estando em causa, com o documento pretendido agora juntar, um inventário e a subsequente partilha judicial ocorrida em 1983 (no qual foi parte o Apelante e a sua mãe aqui R.), tendo a presente acção sido proposta (também contra os ora Apelantes) em 2013 e, enfim, estando em causa uma servidão referida a um prédio atribuído (à mãe do Apelante aqui 1ª R.) nessa partilha longinquamente pretérita, não se pode falar de facto objectivamente superveniente, pois trata-se de facto historicamente passado. E também não se pode falar de facto subjectivamente superveniente, o que os Apelantes, aliás, nem sequer alegaram no recurso, dado o objecto da acção e a partilha do prédio aqui em causa ter sido realizada de antanho, mas com permanência do bem no círculo familiar directo do Apelante, tudo elementos que excluem a relevância de razões subjectivas a ele referidas (a ele Apelante e à sua mulher) nessa hipotética superveniência: a questão não é o que “não se sabe”, “porque não se sabe” – ninguém sabe aquilo que não teve a curiosidade ou o cuidado de averiguar – a questão é o que justificadamente alguém “não podia saber, mas veio a saber mais tarde” e só neste caso se fala em superveniência subjectiva.

Da mesma forma, também não tem sentido apelar – e, em rigor, também esse apelo os ora Recorrentes não constroem na motivação do recurso – a uma justificação da superveniência induzida pelo sentido do julgamento em primeira instância (trecho final do artigo 651º, nº 1 do CPC), quando o Tribunal se limitou a julgar a acção, nos exactos termos configurados pelos AA. no articulado inicial, descontado o pequeno pormenor indicado na nota 5 supra, julgamento este que ocorreu com base num efeito cominatório semi-pleno decorrente da não contestação por todos os RR. na sequência da citação, inclusive os dois RR. que agora nos aparecem como Apelantes.

2.2. Visa o presente recurso, como disseram os Apelantes nas alegações, obter a alteração da matéria de facto, nos termos do artigo 662º, nº 1 do CPC, por via de um documento que reputaram de superveniente e que consideraram impor decisão fáctica diversa da recorrida. Ora, se a junção superveniente desse documento não é aceite – como aqui não é – fica a pretensão veiculada pelo recurso sem base de sustentação, mostrando-se prejudicada, como acima se disse referindo o artigo 608º, nº 2 do CPC, a apreciação da potencialidade desse documento para alterar os pressupostos de facto da decisão. Trata-se esta, pois, de questão que este Tribunal nem sequer apreciará. Com efeito, a não admissão do documento pretendido juntar com o recurso, sempre conduz à improcedência deste.

É o que nos resta formular decisoriamente a rematar este Acórdão.

2.3. Sumário elaborado pelo relator:
I – Da articulação lógica entre o artigo 651º, nº 1 do CPC e os artigos 425º e 423º do mesmo Código resulta que a junção de documentos na fase de recurso, sendo admitida a título excepcional, depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso; (2) ter o julgamento de primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional;
II – Quanto ao primeiro elemento, a impossibilidade refere-se à superveniência do documento, referida ao momento do julgamento em primeira instância, e pode ser caracterizada como superveniência objectiva ou superveniência subjectiva;
III – Objectivamente, só é superveniente o que historicamente ocorreu depois do momento considerado, não abrangendo incidências situadas, relativamente a esse momento, no passado. Subjectivamente, é superveniente o que só foi conhecido posteriormente ao mesmo momento considerado;
IV – Neste caso (superveniência subjectiva) é necessário, como requisito de admissão do documento, a justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, não obstante o carácter pretérito da situação quanto ao momento considerado, só ocorreu posteriormente a este e por razões que se prefigurem como atendíveis;
V – Só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade daquela pessoa, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento;
VI – Quanto ao segundo elemento referido em I deste sumário, o caso indicado no trecho final do artigo 651º, nº 1 do CPC (a junção do documento ter-se tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância), pressupõe a novidade da questão decisória justificativa da junção do documento com o recurso, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão recorrida, o que exclui que essa decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum.


III – Decisão

            3. Face ao exposto, decidindo-se, como ora se decide, pela inadmissibilidade da junção no presente recurso do documento de fls. 172/173 apresentado pelos Apelantes com a alegação do recurso (mesmo que tal documento completado fosse), é a presente apelação julgada improcedente, confirmando-se a Sentença pretendida recorrer.

            Custas do recurso pelos Apelantes.


(J. A. Teles Pereira - Relator)
(Manuel Capelo)
(Jacinto Meca)


[1] Esta referência, seguida da indicação de todos os herdeiros como partes, resolve a questão da legitimidade que se coloca relativamente a uma herança indivisa nos termos do artigo 2091º, nº 1 do Código Civil, v. o Acórdão desta Relação de 09/03/2010, proferido pelo ora relator, com esta mesma formação, no processo nº 121/08.1TBANS.C1, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/0a3f1642d6c42089802576e700401a9.
Sumário:
“[…]
I – A actuação em juízo de uma herança indivisa pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do artigo 2091º, nº 1 do CC.
[…]”.
[2] Aqui se transcreve o despacho contendo tal asserção:
“[…]

Despacho.

Dispõe o artigo 566º do Código de Processo Civil que «Se o réu, além de não deduzir qualquer oposição, não constituir mandatário nem intervier de qualquer forma no processo, o tribunal verifica se a citação foi feita com as formalidades legais e ordena a sua repetição quando encontre irregularidades».

Por seu turno, o artigo 567º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe «efeitos da revelia», dispõe: «1 – Se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor. 2 – O processo é facultado para exame pelo prazo de 10 dias, primeiro ao advogado do autor e depois ao advogado do réu, para alegarem por escrito, e em seguida é proferida sentença, julgando a causa conforme for de direito. 3 – Se a resolução da causa revestir manifesta simplicidade, a sentença pode limitar-se à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado».

Assim, mostrando-se os réus regularmente citados, não tendo deduzido oposição nem constituído mandatário ou intervindo de qualquer forma no processo, o tribunal julga confessados os factos articulados pelos autores.

Notifique, sendo os autores ainda para, querendo, em 10 dias, apresentarem as suas alegações.
[…]”.
[3] A absolvição restringiu-se à sanção pecuniária compulsória e ao elemento indemnizatório contidos no final do pedido, sendo assim justificada:
“[…]

Ressalva se coloca, no entanto, relativamente ao último dos pedidos formulados:
“XIII – Serem condenados em sanção pecuniária compulsória a favor do Estado em quantia que se entenda adequada e em indemnização a favor dos autores que se julga adequada em €100,00 diários desde a citação até efectivo cumprimento”.

A sanção pecuniária compulsória está legalmente prevista (no artigo 829º-A do Código Civil) como mecanismo de pressão para garantir o cumprimento de «obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo».

Não resulta do pedido formulado que tal pretensão tenha subjacente uma obrigação de prestação de facto infungível. E, analisando os factos provados, também não se vislumbra que esteja em causa qualquer obrigação de prestação de facto infungível, pois, relativamente a tudo quanto é pedido aos réus, se os mesmos não realizarem as obras em causa, sempre as mesmas podem ser executadas em execução de sentença e vir a ser realizadas por terceiros, daí resultando a sua fungibilidade.

Assim, nesta parte, por não estarem em causa obrigações de prestação de facto infungível, improcede a acção.
[…]”.
[4] Na possibilidade da junção desse documento se encerra, como veremos na subsequente exposição, a questão operante do recurso, sendo que ela condiciona – e, como veremos, bloqueará – a pretendida alteração dos factos visada pelos Apelantes.
[5] Vale aqui como precedente, com contínua relevância no CPC actual, o Acórdão do STJ de 03/06/2011 (Pereira da Silva), proferido no processo nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, cujo sumário está disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9dd7bb05e5140b1802578bf00470473:
Sumário:
“[…]
[O] que baliza o âmbito do recurso, tal sendo, afora as de conhecimento oficioso, as questões levadas às conclusões da alegação do recorrente, extraídas da respectiva motivação (artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do CPC), defeso é o conhecimento de questão não aflorada naquelas, ainda que versada no corpo alegatório.
[…]”.
[6] Nada mais de que estas duas folhas existem no – rectius, foram juntas ao… – processo pelos Apelantes, não se percebendo como é que o elemento narrativo da certidão (cfr. fls. 172) fala em 12 folhas fotocopiadas. Aliás, o que foi junto corresponde à primeira página de um auto de declarações de cabeça de casal, incompleto, que não demonstra a realidade afirmada pelos Apelantes no recurso. Independentemente desta questão, que a resolver-se implicaria que os Apelantes juntassem a totalidade do documento, vamos pressupor como verdadeira a afirmação de ter sido adjudicado, nesse inventário ocorrido em 1983, à mãe do Apelante o prédio aqui em causa.
[7] Parafraseámos o essencial, e aqui registamos a vénia que é devida, da caracterização feita por António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, 2013, p. 184.
[8] Citando de novo a nota de António Santos Abrantes Geraldes ao artigo 651º, nº 1 do CPC, dir-se-á que “[a] jurisprudência anterior [ao Novo CPC] sobre esta matéria [da superveniência] não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado” (Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., p. 185).
[9] Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., p. 184.